Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1767/21.8T8VCT.G1
Relator: MARGARIDA ALMEIDA FERNANDES
Descritores: ÓNUS DE ALEGAR E FORMULAR CONCLUSÕES
RECURSO POR IMPOSIÇÃO DA LEI
REPRESENTAÇÃO DO ESTADO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
FALTA DE CITAÇÃO
NULIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - As situações em que o Ministério Público recorre por imposição da lei referidas no nº 5 do art. 639º do C.P.C. são as previstas na Lei nº 28/82 de 15 de Novembro, a saber, quando a norma cuja aplicação haja sido recusada, por inconstitucionalidade ou ilegalidade, conste de convenção internacional, ato legislativo ou decreto regulamentar, ou quando se verifiquem os casos previstos nas alíneas g), h) e i) do n.º 1 do artigo 70º.
II - Nos demais casos o Ministério Público está em posição semelhante à de qualquer outro recorrente, onerado com a apresentação de alegações e de conclusões.
III – Numa acção contra “Estado Português, Ministério do Ambiente e Transição Energética” ao abrigo da Lei nº 54/2005 de 15 de Novembro, diploma que estabeleceu a Titularidade dos Recursos Hídricos, a citação deve ser efectuada na pessoa do Ministério Público por este estar incumbido da representação do Estado.
IV – A citação do Ministério do Ambiente equivale a falta de citação que acarreta a nulidade de tudo o que se processou depois da petição inicial.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

X – Estudos e Realizações Imobiliárias, Lda., com sede na Av. …, Ponte de Lima, intentou a presente acção declarativa de condenação contra o Estado Português - Ministério do Ambiente e Transição Energética, sito na Rua …, Lisboa, pedindo:
- a declaração e a condenação do réu a reconhecer que os prédios aforados e constantes da escritura de justificação, nomeadamente o prédio sito no lugar de ..., com a área de 200.000 m2, inscrito na matriz sob o artigo 1º (parte) e 2º (parte), descrito em livro (197) sob o nº ..., na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..., da freguesia de ..., descritos em 1º e 6º a 8º da petição inicial, estão excluídos do Domínio Público Marítimo do Estado, nomeadamente por estarem na posse de particulares já antes de 31 de Dezembro de 1864;
- a condenação do réu a reconhecer a propriedade privada e particular, incluindo a posse e plena propriedade da margem dos 50 metros da linha da praia mar da autora, sobre o referido prédio.
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Foi enviada carta registada com aviso de recepção para citação do réu no Ministério do Ambiente e Transição Energética, sito na Rua …, em Lisboa, tendo o aviso de recepção sido assinado em 21/06/2021.
Não foi apresentada contestação.
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Foi dado cumprimento ao disposto no art. 567º nº 2 do C.P.C. tendo apenas a autora apresentado alegações.
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Foi ordenada a junção aos autos de certidão extraída do Proc. nº 1849/14.2TBVCT
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Em 29/11/2021 foi proferida sentença cuja parte decisória se transcreve:

“Decide-se assim julgar totalmente procedente, por provada, a presente acção e, consequentemente,
- condenar o Réu a reconhecer, que os prédios aforados e constantes da escritura de justificação - nomeadamente o prédio sito no lugar de ..., com a área de 200.000 m2, inscrito na matriz sob o artigo 1 (parte) e 2 (parte), descrito em livro (197) sob o n.º ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ..., da freguesia de ... - descritos em 1.º e 6.º a 8.º da petição inicial, estão excluídos do Domínio Público Marítimo do Estado, nomeadamente por estarem na posse de particulares já antes de 31 de dezembro de 1864;
- condenar o Réu a reconhecer a propriedade privada e particular, incluindo a posse e plena propriedade da margem dos 50 metros da linha da praia mar da Autora, sobre o prédio sito no lugar de ..., com a área de 200.000 m2, inscrito na matriz sob o artigo 1 (parte) e 2 (parte), descrito em livro (197) sob o n.º ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ..., da freguesia de ..., descrito nos artigos 1.º e 6.º a 8.º da petição inicial. (…)”
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Não se conformando com esta sentença veio o Ministério Público, em representação própria do Estado-Administração, dela interpor recurso de apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

“1. A sentença de que se recorre aceitou como R. a citar, ou seja o Estado, entidade que não o pode representar no processo em concreto e na presente acção.
2. A representação do Estado deveria, legal e constitucionalmente, ser efectuada pelo Ministério Público e esta entidade nunca foi citada para os termos da acção e para contestar a mesma.
3. A omissão de tal citação implica a nulidade do processado posterior à petição inicial.”
Pugna pela revogação da sentença.
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Foram apresentadas contra-alegações tendo a autora defendido que o Ministério Público não cumpriu com o ónus previsto no art. 639º do C.P.C. pelo que o recurso deve ser liminarmente rejeição.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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Tendo em atenção que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (art. 635º nº 3 e 4 e 639º nº 1 e 3 do C.P.C.), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, observado que seja, se necessário, o disposto no art. 3º nº 3 do C.P.C., as questões a decidir são:

A) Saber se existe fundamento para rejeição do recurso;
B) E, na negativa, se no caso concreto o réu Estado deve ser representado pelo Ministério Público pelo que a citação devia ter sido efectuada neste;
C) Na positiva, saber quias as consequências.
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II – Fundamentação

Os factos que relevam para a decisão a proferir são os que constam do relatório que antecede que, por brevidade, aqui se dão por integralmente reproduzidos.
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A) Da eventual rejeição liminar do recurso
Pugna a apelada pela rejeição do recurso alegando que o apelante não deu cumprimento ao disposto no art. 639º nº 2 do C.P.C. sendo que não é aplicável o disposto no nº 5 do mesmo preceito.
Vejamos.

Dispõe o nº 2 do art. 637º do C.P.C., diploma a que pertencerão os diplomas a citar sem menção de origem:
“(…) O requerimento de interposição do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade; (…)”.

E o 639º:
1 – O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 – Versando o recurso sobre a matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.
(…)
5 – O disposto nos números anteriores não é aplicável aos recursos interpostos pelo Ministério Público, quando recorra por imposição da lei.”
Antes de mais, as situações em que o Ministério Público recorre por imposição da lei são as previstas na Lei nº 28/82 de 15 de Novembro, diploma que aprovou a Lei Orgânica sobre a Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, a saber, quando a norma cuja aplicação haja sido recusada, por inconstitucionalidade ou ilegalidade, conste de convenção internacional, ato legislativo ou decreto regulamentar, ou quando se verifiquem os casos previstos nas alíneas g), h) e i) do n.º 1 do artigo 70.º, salvo o disposto no número seguinte.
Assim, “Nos demais casos, ou seja, quando a intervenção ocorra em representação do Estado ou de outras pessoas ou em função de interesses ligados à colectividade, está em posição semelhante à de qualquer outro recorrente, onerado, pois, com a apresentação de alegações e de conclusões.” – Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª Ed., Almedina, p. 151.

No caso em apreço, o recurso foi interposto da sentença que se pronunciou acerca do reconhecimento do direito de propriedade privada em matéria de Domínio Público Marítimo, matéria esta regulada na Lei nº 54/2005 de 15 de Novembro, diploma que estabeleceu a Titularidade dos Recursos Hídricos. Assim sendo, este recurso não se enquadra no acima nº 5 do art. 639º.
Analisando as conclusões do recurso verificamos que das mesmas não constam nenhuma das especificações a que alude o nº 2 do preceito em análise, contudo tal omissão não é fundamento de rejeição do recurso, mas, quando muito, de convite a aperfeiçoamento nos termos do nº 3 do art. 639º (vide a expressão “devem”).
Mas, entendemos que não é de proferir tal despacho por não ocorrer, quanto a nós, uma situação de deficiência ou obscuridade recursória que o justifique. Com efeito, com o mencionado preceito pretende o legislador que os recorrentes forneçam, nos recursos que interponham, a indicação em termos perceptíveis, não só do que pretendem, como das disposições legais que afirmam terem sido violadas pela decisão recorrida. Assim, constando nas alegações expressa referência a tais normas (vide art. 24º e 187º a) do C.P.C., 219º da C.R.P., 2º e 4º nº 1 b) do Estatuto do Ministério Público), bem como o sentido em que devem ser interpretadas, tal objectivo é conseguido, pois a apelada esteve em condições de contraditar e este Tribunal de conhecer do objecto do recurso.
Neste sentido vide Ac. da R.L de 15/04/2021 (Carlos Castelo Branco), in www.dgsi, p.t., endereço a que pertencerão os Acórdãos a citar sem menção de origem, onde se lê: “I) As conclusões da motivação do recurso visam habilitar o tribunal superior a conhecer das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, seja no plano de facto, seja no plano de direito, traduzindo uma enunciação abreviada, congruente, clara e precisa dos fundamentos do recurso. II) O ónus de concluir compete exclusivamente ao recorrente, conforme decorre do n.º 1 do artigo 639.º do CPC. III) Tendo a recorrente formulado a conclusão do recurso, em termos inteligíveis, solicitando a revogação da decisão recorrida e expondo a razão sucinta da impugnação, o Tribunal de recurso está em condições de conhecer da impugnação, pelo que, a ausência da menção nas conclusões às normas jurídicas violadas - que consta, aliás, da motivação da alegação - não deve determinar o não conhecimento do recurso, sob pena de se cair numa leitura estritamente formal do consignado no artigo 639.º do CPC.”
Pelo exposto, inexistindo fundamento para rejeição do recurso, importa agora conhecer do mesmo.
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B) Da representação do Estado pelo Ministério Público

A presente acção foi instaurada contra “Estado Português, Ministério do Ambiente e Transição Energética”, o que resulta do art. 4º da citada Lei nº 54/2005 de 15 de Novembro e ainda do facto de tal matéria ser da alçada deste Ministério.
Ora, o Ministério do Ambiente é um departamento governamental que não tem personalidade jurídica, personalidade e capacidade judiciária pelo que não pode ser parte na presente acção (também não é uma entidade autónoma). Aliás, se virmos bem, quem foi demandado foi o Estado e não aquele Ministério.
O Estado é dotado de personalidade jurídica, i.e., é susceptível de ser titular de direitos e obrigações, e consequentemente tem personalidade judiciária que consiste na susceptibilidade de ser parte (art. 11º).
No que concerne à sua representação rege o art. 219º nº 1 da C.R.P. que refere Ao Ministério Público compete representar o Estado (…). O mesmo resulta dos art. 2º, 4º b), 9º nº 1 a), 63º nº1 a), 91º do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei nº 68/2019 de 27 de Agosto, e do art. 3º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013 de 26 de Agosto.

Por fim, dispõe o art. 24º do C.P.C.:
1 - O Estado é representado pelo Ministério Público, sem prejuízo dos casos em que a lei especialmente permita o patrocínio por mandatário judicial próprio, cessando a intervenção principal do Ministério Público logo que este esteja constituído.
2 - Se a causa tiver por objeto bens ou direitos do Estado, mas que estejam na administração ou fruição de entidades autónomas, podem estas constituir advogado que intervenha no processo juntamente com o Ministério Público, para o que são citadas quando o Estado seja réu; havendo divergência entre o Ministério Público e o advogado, prevalece a orientação daquele.
Assim sendo, o Estado devia ter sido citado na pessoa do Ministério Público e nunca do Ministério do Ambiente e Transição Energética, entidade esta que não tem sequer a obrigação legal de transmitir a “citação” efectuada àquele.
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C) Consequências da “citação” efectuada no Ministério do Ambiente
Em causa está a citação do Estado, representado pelo Ministério Público, ou a citação do M.P. para intervir como parte principal.
Assim, a citação do Estado, no Ministério do Ambiente, equivale a falta de citação nos termos do art. 188º nº 1 a), o que acarreta a nulidade de tudo o que se processou depois da petição inicial (art. 187º a) e 189º a contrario, 198º nº 2), o que se impõe declarar.
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Sumário – 663º nº 7 do C.P.C.:

I - As situações em que o Ministério Público recorre por imposição da lei referidas no nº 5 do art. 639º do C.P.C. são as previstas na Lei nº 28/82 de 15 de Novembro, a saber, quando a norma cuja aplicação haja sido recusada, por inconstitucionalidade ou ilegalidade, conste de convenção internacional, ato legislativo ou decreto regulamentar, ou quando se verifiquem os casos previstos nas alíneas g), h) e i) do n.º 1 do artigo 70º.
II - Nos demais casos o Ministério Público está em posição semelhante à de qualquer outro recorrente, onerado com a apresentação de alegações e de conclusões.
III – Numa acção contra “Estado Português, Ministério do Ambiente e Transição Energética” ao abrigo da Lei nº 54/2005 de 15 de Novembro, diploma que estabeleceu a Titularidade dos Recursos Hídricos, a citação deve ser efectuada na pessoa do Ministério Público por este estar incumbido da representação do Estado.
IV – A citação do Ministério do Ambiente equivale a falta de citação que acarreta a nulidade de tudo o que se processou depois da petição inicial.
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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e consequentemente declaram nulo tudo o que se processou depois da petição inicial.
Custas pela autora.
A presente decisão é elaborada conforme grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original.
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Guimarães, 07/04/2022

Relatora: Margarida Almeida Fernandes
Adjuntos: Afonso Cabral de Andrade
Alcides Rodrigues