Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4862/15.9T8GMR-A.G1
Relator: HELENA MELO
Descritores: LETRA DE CÂMBIO
ACEITE
LETRA COMO MERO QUIRÓGRAFO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/02/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I.O aceite é a declaração cambiária pela qual o sacado se obriga a pagar a letra ao portador, sendo necessária para que o aceite valha como tal a correspondência entre a identidade da pessoa que no título figura como sacado e a identidade de quem apôs a assinatura no lugar destinado ao aceitante.
II. As letras relativamente às quais falte a referida correspondência, não podem valer como meros quirógrafos nos termos do artº 703º, nº1, alínea c) do CPP, quando são omissas relativamente à relação subjacente e no requerimento executivo o exequente se limitou a invocar a existência de uma dívida.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório
Em apenso à acção executiva, fundada em duas letras de câmbio, veio a executada AA deduzir oposição à execução que lhe move BB, mediante embargos de executada, alegando, em síntese, que não preencheu ou assinou as letras dadas à execução, nem nunca as aceitou, inexistindo qualquer relação subjacente, sustentando que a presente execução resulta de um plano gizado pelo seu ex-marido, também executado, no sentido de a prejudicar.
Pede, por isso, a procedência dos embargos e a extinção da execução quanto a si.
O exequente contestou, sustentando, em síntese, que os títulos executivos foram assinados pela executada, a quem emprestou, assim como ao executado, cerca de setenta mil euros, por volta de Abril de 2010, destinando-se as letras dadas à execução a garantir o pagamento do referido empréstimo.
Foi proferido saneador sentença, julgando procedente a oposição e determinando a extinção da execução relativamente à executada.
O exequente não se conformou e interpôs o presente recurso, tendo formulado as seguintes conclusões:

A presente sentença é recorrível nos termos do disposto nos artigos 629º, n.º 1, 631º, n.º 1, 644º, n.º 1, al. a); 645º, n.º 1, al. a), 647º, n.º 1, 852º e 853º, todos do CPC, pois o valor da presente causa é superior à alçada do tribunal de primeira instância, tendo a sentença julgado procedente os Embargos de Executado e determinado a extinção da execução, pelo que a sucumbência é superior a metade da citada alçada. Assim, a presente sentença admite recurso. - cfr. artigo 637º, n.º 2 do CPC.

A sentença recorrida faz, salvo o devido respeito, uma incorreta interpretação dos artigos 1º, n.º 3 e 25º da LULL.

O aceite é escrito na letra. As letras dos autos têm escrito o aceite. O aceite é assinado pelo sacado, ou seja, quem assina no local do aceite resulta imediatamente como sacado, ser aceitante é ser sacado. Vale como aceite a assinatura do sacado, pelo que quem assina no local do aceite é, desde logo, sacado.

O artigo 1º, n.º 3, apenas estabelece que a letra tem de conter o nome daquele que deve pagar, o sacado. Não estabelece que tal tem de constar do local onde é referido sacado, nomeadamente como é o caso, quando existem vários sacados, marido e mulher e não tem sequer espaço para tal. Sendo certo que ser aceitante é ser sacado, pelo que o nome do sacado consta das letras dadas à execução no local do aceite.

No requerimento executivo e na contestação dos Embargos de Executado foi invocada a relação subjacente às letras: empréstimo, pelo que as letras sempre valeriam como meros quirógrafos e, como tal, título executivo, tudo nos termos do disposto no artigo 703º, n.º 1, al. c) do CPC, pelo que nunca poderiam os Embargos de Executado ter sido julgados procedentes.
“1 - À execução apenas podem servir de base: c) Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;” – artigo 703º, n.º 1, al. c) do CPC

A sentença recorrida viola o disposto nos artigos 1º, n.º 3 e 25º da LULL, 703º, n.º 1, al. c) do CPC, termos em que deverá ser revogada.
A parte contrária contra-alegou, tendo pugnado pela manutenção da decisão recorrida.

II – Objecto do recurso
Considerando que:
. o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e,
. os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,
a questão a decidir é a seguinte:
- seo exequente possui título executivo válido contra o subscritor que apõe a sua assinatura no rosto da letra, do lado esquerdo, transversalmente, ainda que o nome e morada desse subscritor não conste no local destinado ao nome e morada do sacado.

III - Fundamentação
Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos, por documentos e confissão:
1. O exequente é portador dos dois documentos dados à execução (letras de câmbio), constantes de fls. 9 e 10 dos autos principais, cujo conteúdo se considera aqui por reproduzido e que têm as seguintes inscrições:
1.1. «local e data de emissão: Fafe; 2010-04-15; vencimento: 2012-07-15; importância: 13.000,00 €; no seu vencimento pagará a V. Exa. Por esta única via de letra a nós ou à nossa ordem a quantia de treze mil euros; assinatura do sacador: (ilegível); nome e morada do sacado: FF, Rua H, Fafe; Nome e morada ou carimbo do sacador: BB (…); Nº de contribuinte do sacador: 108; aceite: DD e BB; nº de contribuinte do sacado: 149 (…)»
1.2. «local e data de emissão: Fafe; 2010-04-15; vencimento: 2013-07-15; importância: 13.000,00 €; no seu vencimento pagará a V. Exa. Por esta única via de letra a nós ou à nossa ordem a quantia de treze mil euros; assinatura do sacador: (ilegível); nome e morada do sacado: FF, Rua H, Fafe; Nome e morada ou carimbo do sacador: BB (…); Nº de contribuinte do sacador: 108 746 500; aceite: DD e BB; nº de contribuinte do sacado: 149669160 (…)»
2. O executado DD tem o nº de contribuinte 149669160.

O Direito:

No domínio das relações imediatas, os subscritores da letra podem opor à respectiva contraparte as excepções fundadas nas relações pessoais existentes entre ambos – art. 17º da LULL, a contrario.

Dispõe o artigo 1º, nº3, da LULL que a letra contém o nome daquele que deve pagar (sacado), acrescentando-se no artigo 2º, parágrafo 1º da LULL que o escrito em que faltar esse requisito não produzirá efeito como letra.

O aceite pode exprimir-se pela palavra «aceite» ou outra equivalente, seguida da assinatura do sacado. Neste caso, pode apor-se em qualquer parte da letra. O aceite pode, também, exprimir-se só pela aposição da assinatura do sacado, desde que tal assinatura seja aposta na parte anterior da letra (artº 25º, 1º parágrafo da LULL). Está generalizado o uso de escrever o aceite em sentido transversal, no lado esquerdo da face principal da letra, isto é, ao alto e à esquerda.

Estabelece ainda o artº 28º do mesmo diploma, parágrafos 1º e 2º que “o sacado obriga-se pelo aceite a pagar a letra à data do vencimento.Na falta de pagamento, o portador, mesmo no caso de ser ele o sacador, tem contra o aceitante um direito de acção resultante da letra, em relação a tudo o que pode ser exigido nos termos dos artigos 48º e 49º”.
Daqui resulta que o aceite é a declaração cambiária pela qual o sacado se obriga a pagar a letra ao portador, sendo necessária para que o aceite valha como tal a correspondência entre a identidade da pessoa que no título figura como sacado e a identidade de quem apôs a assinatura no lugar destinado ao aceitante (cfr. se defende no Ac. do TRG 03.11.2004, proferido no proc. 1792-04, citado na sentença recorrida e onde podem ser encontradas diversas referências doutrinárias e jurisprudenciais. No mesmo sentidoAc. do TRG de 12.10.2005, proferido no proc. 1515/05-1 e ainda Ac. do TRP, de 28.09.2006, todos acessíveis em www.dgsi.pt).
Assim, a simples assinatura colocada numa letra só constitui aceite quando a assinatura é do sacado. Ora, não figurando a executada na letra exequenda como sacada, mas apenas o executado, inexiste a dita identidade entre aceitante e sacado, o que constitui um vício de forma gerador de invalidade do aceite (neste sentido, Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, vol. III, «Letras de câmbio», pág. 217 e Pinto Coelho, Lições de Direito Comercial, vol. II, fasc. 5, págs. 36 e segs.).
O apelante vem agora defender em sede de recurso, que ainda assim a letra pode servir de base à execução nos termos do artº 703º, nº 1, c) do CPC, como mero quirógrafo da obrigação.
Tal questão constitui questão nova, estando assim, em princípio, vedado ao Tribunal de recurso o seu conhecimento, pois que os recursos não se destinam ao conhecimento de questões novas, mas à reapreciação de questões já decididas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.
Mas ainda que se entenda que tal questão pode ser conhecida, não pode a referida letra servir de base à execução, porque não foram cumpridos os pressupostos de que depende a sua exequibilidade. A alínea c) do nº 1 do artº 703º do CPCestabelece que, quando o título de crédito apenas valha como mero quirógrafo, o que pode ocorrer por variadas razões, nomeadamente por entretanto ter ocorrido a prescrição da obrigação cambiária, poderá ainda ter força executiva, desde que os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no título executivo. Ora, no caso, nas duas letras nada consta e no requerimento executivo apenas se mencionou o seguinte: “a relação subjacente à presente execução reporta-se ao pagamento de parte de uma dívida por parte dos executados ao exequente”. Alegar somente a existência de uma dívida,não dá cumprimento ao disposto no referido preceito legal. Alegar a relação subjacente é, nomeadamente, invocar a celebração de um contrato deempréstimo, indicando o montante, prazo de pagamento, quantia em dívida, factos que o exequente veio, em parte, mas só posteriormente,alegar na resposta à oposição. Só que a razão de ser desta exigência logo no requerimento executivo, na ausência de elementos no título executivo, é porque incumbe ao exequente concretizar a causa de pedir, e deste modo facultar ao executado o conhecimento dos factos em ordem a melhor poder organizar a sua defesa, direito que não fica assegurado se a relação subjacente apenas for invocada na contestação, uma vez que não há outros articulados (artº 732, nº2 do CPC)
Assim, por falta de título executivo, não pode a execução prosseguir contra a executada.


IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.

Guimarães, 2 de fevereiro de 2017

Relatora:
(Helena Gomes de Melo)


2º Adjunto:
(João Peres Coelho)



Consigna-se que a Exmª 1ª Adjunta (Srª Juíza Desembargadora Higina Orvalho Castelo) votou em conformidade a decisão exarada supra, que só não assina por não se encontrar presente.