Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
230/14.8GAAMR.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: ELEMENTOS DA ACUSAÇÃO
OMISSÃO
NULIDADE INSANÁVEL
ARGUIÇÃO
ART. 311º
Nº 2
A) E 3
C) DO CPP
ARTºS 283º
Nº 2
ALS. A) A G) DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) A falta na acusação de qualquer dos elementos mencionados nas alíneas a) a g), do n.º 3, do artigo 283.º do CPP constitui uma nulidade sanável.

II) Não tendo essa nulidade sido arguida em momento e local próprio, pode ainda fundamentar a rejeição da acusação por manifestamente infundada, nos termos do artigo 311.º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. c) do CPP, que é o único momento processual em que a lei prevê essa possibilidade.

IIII) A partir daí, os vícios que a acusação eventualmente apresente passarão unicamente a poder influir na apreciação do mérito da causa, se não forem – ou não possam ser – supridos através de mecanismos legais próprios, designadamente os previstos nos artigos 358.º e 359.º do CPP, que dentro de certos limites, e excecionalmente, permitem a alteração dos factos narrados na acusação e da qualificação jurídica nela efetuada.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.
(Secção penal)

I. RELATÓRIO

No processo comum singular n.º 230/14.8GAAMR da instância local de Amares, secção de competência genérica, juiz 1, da comarca de Braga, foram submetidos a julgamento os arguidos “JC & JM, Lda.”, Manuel e Martins, com os demais sinais dos autos.
A sentença, proferida a 15 de março de 2017 e depositada no mesmo dia, tem o seguinte dispositivo:

«5.1.- Condenar os arguidos Manuel e Martins, a prática um crime de violação de regras de segurança, p. e p. pelo art.º 152.º-B, n.ºs 1, 2 e 4, al. b) do Código Penal, por referência ao art.º 11.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do mesmo diploma, e aos art.ºs 281 e 282.º, ambos do Código do Trabalho, art.ºs 15.º, n.º 1 e 20.º, da L. n.º 102/09, de 10/9, art.ºs 3.º, 4.º, 6.º, 8.º e 20.º, al. a), todos do DL n.º 50/05, de 25/2, e art.ºs 6.º e 9.º, ambos da Portaria n.º 348/93, de 1/10, na pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução.

5.2.- Condenar a arguida JC & JM, LDA., na prática um crime de violação de regras de segurança, p. e p. pelo art.º 152.º-B, n.ºs 1, 2 e 4, al. b) do Código Penal, por referência ao art.º 11.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do mesmo diploma, e aos art.ºs 281 e 282.º, ambos do Código do Trabalho, art.ºs 15.º, n.º 1 e 20.º, da L. n.º 102/09, de 10/9, art.ºs 3.º, 4.º, 6.º, 8.º e 20.º, al. a), todos do DL n.º 50/05, de 25/2, e art.ºs 6.º e 9.º, ambos da Portaria n.º 348/93, de 1/10, na pena de trezentos e sessenta dias de multa, à taxa diária de quatrocentos euros.

5.3.- Condenar cada um dos arguidos no pagamento de 4 UC`s de taxa de justiça, e nas custas do processo.

5.4.- Deposite a sentença.

5.5.- Após trânsito, remeta boletim à D.S.I.C.»

Inconformados, os três arguidos interpuseram recurso conjunto, apresentando a competente motivação, que rematam com as seguintes conclusões:

1- «Os recorrentes vêm condenados pela prática do crime previsto em art. 152º-B, n.º 1 CP, por referência ao art. 11º, n.º 1 e 2, al. a) do mesmo diploma no caso da pessoa colectiva, e aos arts. 281º e 282º do Código do Trabalho (doravante, CT), arts. 15º, n.º 1 e 20 da Lei n.º 102/09, arts. 3º, 4º, 6º 8º e 20º, al. a) do Decreto-Lei n.º 50/05 e arts. 6º e 9º do Decreto-Lei n.º 348/93.

2- Ora, já em sede de contestação os arguidos haviam pugnado pela nulidade da acusação deduzida pelo MP por violação do disposto no art. 283º, n.º 3, al. c) CPP.

3- O tipo de crime remete para o preenchimento de disposições legais ou regulamentares, integrando as mesmas da legislação extra-penal no direito penal desta forma.
4- Tal não pode significar qualquer relaxamento do princípio da tipicidade, constitucionalmente consagrado nos arts. 29º, n.º 1 e 3 CP.

5- A remissão em bloco realizada pela acusação para 30 normas como integrando o art. 152º-B, CP, que a acusação realiza subverte por completo o princípio da tipicidade de tal forma a que não é concretamente identificável o tipo de crime imputável aos arguidos na medida em que não são identificadas as regras legais ou regulamentares violadas.

6- Esta imputação carece de concretização porquanto uma regra legal ou regulamentar violada integra o tipo de ilícito por remissão; logo, não é indiferente para o preenchimento objectivo e subjectivo do mesmo a norma, o dever de comportamento concretamente violado pelos agentes.

7- O Tribunal a quo considera que o pedido de decretamento de nulidade da acusação com o fundamento alegado é extemporâneo.

8- Só que o art. 311º, n.º 3 CPP converte a a nulidade resultante da omissão das disposições das als. a), b) e c) do art. 283º, n.º 3 CPP em autêntica nulidade insanável e de conhecimento oficioso. É que os vícios contidos no art. 311º, n.º 3 CPP são sobreponíveis às matérias do art. 283º, n.º 3, al. a) b) e c) CPP, conforme citada doutrina.

9- Portanto, a nulidade contida no art. 283º, n.º 3, al. c) CPP é de conhecimento oficioso (art. 311º, n.º 3 CPP), não sendo o requerimento da mesma jamais extemporâneo, não se podendo recusar o Tribunal a decidi-lo sob pena de violação de proibição de non liquet, assim se requerendo a V. Exas. que determinem.

10- Subsidiariamente, ao considerar que o que vem de se alegar tem manifesta falta de fundamento legal, a sentença a quo que considera a acusação como sendo válida ao remeter em bloco para 30 disposições legais a integração do art. 152º-B CP é inconstitucional à luz do disposto no art. 29º, n.º 1, 3 e 4 CRP e omite fundamentação em violação do disposto no art. 374º, n.º 2 CPP.

11- Com efeito, e sumariando jurisprudência variada citada em corpo de motivação, recorde-se que a especificação das concretas normas jurídicas não pode deixar de envolver a determinação da alínea do preceito indicado na acusação: assim, o acórdão 81/09.1GCLSA-A.C1, datado de 04/14/2014, do Tribunal da Relação de Coimbra.

12- Não há razão para que raciocínio sobre a al. b) do n.º 3 do art. 283º CPP não seja aplicável à al. c) do mesmo preceito, mutatis mutandis, na medida em que também é abrangido pelo art. 311º, n.º 3 CPP.

13- Pelo exposto, mal andou a sentença a quo devendo ser substituída por acórdão que julgue tempestivo, porquanto suscitando questão de conhecimento oficioso, o requerimento de nulidade da acusação pelos motivos apresentados e que julgue o mesmo procedente, determinando a pronúncia de nulidade da mesma e arquivamento dos autos ou subsidiariamente, a absolvição dos arguidos.

14- Os recorrentes impugnam o facto dado como provado n.º 4 com base nas declarações dos arguidos prestadas na audiência de julgamento de 06/03/2017 identificadas em corpo de texto da motivação de recurso, devendo ser alterado o mesmo no sentido de apenas considerar que só Manuel praticou actos subsumíveis a qualquer tipo penal na medida em que foi ele que contratou, seja sob que modalidade seja, a vítima para prestar serviços naquele dia fatídico.

15- Resultando absolvido da prática de qualquer ilícito Martins que não teve qualquer intervenção nos autos.

16- Impugnam-se os factos dados como provados 3, 4, 5, 8 e 9 na medida em que referem que o falecido era trabalhador da sociedade arguida.

17- Por um lado, tal asserção é uma conclusão jurídica que não pode ser considerada em sede de matéria de facto.

18- A consideração da vítima como trabalhador é um conceito jurídico que permite a sua subsunção ao regime do contrato de trabalho (vd. art. 11º e 12º CT) e, em concreto, o modo de aplicação das disposições da Lei n.º 102/09 aos autos (questão central na aplicação do art. 152º-B CP que penaliza a conduta dos arguidos por força do disposto no art. 15º, n.º 13 da Lei n.º 102/09).

19- Caso não se considere que a vítima era trabalhador da sociedade arguida, esta é equiparada a empregador – o que implica que todas as disposições legais e regulamentares atinentes à sua segurança no local de trabalho correm única e exclusivamente por sua conta, jamais podendo ser a sociedade arguida e os arguidos responsáveis pelo perigo que resulta da sua inobservância.

20- Ao considerar que a vítima era trabalhador da sociedade no acervo factual da sentença a quo, o Tribunal entorta de forma irremediável a sua apreciação jurídica e não deixa margem à correcta aplicação do direito aos factos, inviabilizando a ponderação da aplicação do art. 15º, n.º 13 da Lei n.º 102/09 aos autos porquanto tal consistiria em contradição do direito com a matéria provada uma vez que esta já inclui um conceito jurídico – a vítima era trabalhadora.

21- Daí que, primeiramente e antes de mais, a sentença a quo erra na interpretação que faz das regras de elaboração da sentença ao inserir qualificações jurídicas no acervo de matéria factual, devendo toda a referência feita ao “trabalhador Arménio” no acervo factual, em particular nos factos 3, 4, 5, 8 e 9 ser substituída por referência à “vítima Arménio”, na esteira de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça melhor citada em corpo de texto de motivação.

22- Que Arménio não era trabalhador da sociedade arguida resulta com clareza dos depoimentos de Manuel, João (irmão do falecido), Tiago, António – todos demonstrativos da ausência de vínculo laboral ou subordinação ou dependência económica do falecido da sociedade arguida.

23- Deve ser expurgada qualquer referência à condição de trabalhador do falecido da matéria de facto pelos motivos supra expostos, com a consequência em sede de aplicação de direito de falta de reunião de pressupostos para imputação do tipo de ilícito objectivo.

24- Impugna-se os factos dados como provados 6 e 7 com base nos depoimentos melhor situados de Sofia e de José, devendo ser provado que não havia fios escarnados nos cabos do gerador, por um lado, e pelo outro que a vítima Arménio agarrou os alicates do gerador com ambas as mãos.

25- Pessoa alguma agarra ambos os cabos de gerador com as mãos desprotegidas da mesma foram que pessoa alguma coloca os seus dedos numa tomada de electricidade. O comportamento do falecido assim provado interrompe o nexo de causalidade de qualquer actuação ou omissão dos arguidos, constitui única causa do sinistro (associada à recusa em usar o equipamento de protecção colocado à disposição) o que determina a ausência de culpa dos arguidos na comissão de qualquer ilícito.

26- Por outro lado, a alteração de factos da acusção produzida antes da leitura da sentença é verdadeiramente nula na medida em que leva ao acervo da matéria factual um objecto distinto de litígio que não foi alvo de contraditório e interrogatório junto das testemunhas. Com efeito, a acusação refere que o falecido teria perecido por força do agarre de cabos de fios de luz com pontas escarnadas; foi isso que sempre se debateu, jamais as condições do gerador e da manipulação dos seus cabos, pelo que a alteração fere o direito de defesa e de contraditório dos arguidos.

27- Impugna-se o facto número 8 porquanto resulta do depoimento identificado de Manuel, João, José, que havia constante sensibilização dos gerentes da sociedade arguida para a utilização dos equipamentos de segurança, mais devendo ser provado no mesmo seguimento, e com base nos citados depoimentos em corpo de motivação, que o falecido dispunha de luvas no local do sinistro mas que no entanto não fez uso das mesmas por motivos que não são imputáveis à sociedade arguida que não pode, naturalmente, controlar todos os seus prestadores de serviço a todo o momento. Destarte, resultaria como inexistente a culpa dos arguidos na prática do litígio, a qual seria apenas imputável ao falecido por omitir o uso do equipamento de protecção disponibilizado.

28- Os mesmos depoimentos implicam que se dê como não provado o facto n.º 10, na medida em que nunca resulta demonstrado – antes pelo contrário – que segundo e terceiro arguidos tivessem conhecimento que a vítima estava sujeitada a um perigo acrescido de eletrocussão na medida em que resulta claro pelas referências às indicações dadas pelos gerentes e ao equipamento disponibilizado que estavam assim convictos de que todos os que para si trabalhassem ou realizassem tarefas estavam protegidos contra acidentes.

29- Por outro lado, o facto provado número 11 deve dar-se como não escrito pois está repleto de considerações jurídicas que não são factos, designadamente quando se refere que o segundo e terceiro arguidos omitiram dever de cuidado adequado a evitar evento produzido. Trata-se de uma valoração jurídica, que nem quantifica que dever de cuidado era exigível observar aos arguidos para de seguida contrastar com o comportamento efectivamente observado.

30- A sentença a quo mais erra na apreciação e aplicação do direito aos autos, mesmo na ausência de qualquer correção factual. O art. 152º-B, n.º 1 CP faz depender o preenchimento do tipo legal da condição de trabalhador da vítima. E esta condição é preenchida nos termos da lei civil, em particular considerando o CT e a Lei n.º 102/09.

31- Se o art. 152º-B, n.º 1 CP faz depender do seu tipo de crime a inobservância de disposições legais e regulamentares, integra no juízo penal um juízo prévio civil. Isto é, se não forem inobservadas disposições contidas em regras de direito civil (e público de regulação), não pode haver responsabilidade penal. Ou seja, não havendo responsabilidade à luz do regime de saúde e segurança de trabalho, não pode por maioria de razão haver responsabilidade penal no âmbito do art. 152º-B CP porquanto esta depende daquela.

32- O falecido não era trabalhador da sociedade arguido nem tinha emprego à data do seu falecimento; vivia com pais que proviam ao seu sustento; não tinha qualquer dependência económica da sociedade arguida.

33- A relação laboral pressupõe a subordinação do trabalhador, que por seu turno pressupõe a dependência económica (e não só) deste do seu empregador, conforme jurisprudência abundante citada em corpo de texto das motivações, incluindo aresto de Supremo Tribunal de Justiça que julga que trabalhador ocasional, prestador de serviços esporádicos a uma sociedade, não é trabalhador da mesma para efeitos de protecção da Lei de Base dos Acidentes de Trabalho na medida em que não é seu trabalhador.

34- Recorde-se que o mesmo Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão com n.º em www.dgsi.pt 99S215, datado de 18/11/1999, considerou que o trabalho ocasional, fortuito e de verificação imprevisível, exclui a responsabilidade por acidente de trabalho se for de curta duração, entendendo-se esta como “a duração inferior a uma semana”.

35- Não sendo imputável à sociedade arguida a responsabilidade por acidente de trabalho civil, não pode ser imputada a responsabilidade maior por natureza: penal. E tanto assim é que o MP não promoveu processo para reparação por acidente de trabalho na jurisdição laboral, o qual não foi movido por seguradora ou familiar no prazo devido constante do art. 179º da Lei n.º 98/2009 – LAT.

36- As regras de segurança citadas na acusação apenas se aplicam a trabalhadores no sentido estrito do termo, de relação jurídico-laboral.

37- A delimitação da lei penal, ao remeter para outras disposições legais e regulamentares, não pode alargar o âmbito destas. Se estas apenas são aplicáveis a trabalhadores, não são aplicáveis a não-trabalhadores, pelo que não podem os arguidos ser punidos por não cumprir lei que... afinal não era de aplicação ao sujeito em questão!

38- O falecido ou era trabalhador independente ou prestador de trabalho sem subordinação jurídica; ou estava subsumido ao art. 4º da lei n.º 102/2009 ou ao art. 4º, n.º 1, al. c) da Lei n.º 7/2009 que aprova o CT – em qualquer dos casos, não lhe seriam aplicáveis as normas citadas na acusação e na sentença a quo como violadas para integração do art. 152º-B CP. O art. 152º-B CP faz expressa referência à inobservância de disposições legais ou regulamentares. Se estas não são inobservadas, não pode haver aplicação do art. 152º-B CP.

39- Por força do princípio da tipicidade, não pode a lei penal conferir a estas disposições um âmbito mais largo do que aquele que elas têm.

40- Por outro lado, erra de direito a sentença a quo quando considera que a violação dos arts. 3º, 4º, 6º, 8º e 20º do Decreto-Lei n.º 50/05 geram o preenchimento do disposto no art. 152º-B CP para efeitos de tutela penal.

41- Assim, o art. 152º-B CP é uma norma penal em branco – as normas que o integram têm de constar de Lei em sentido formal ou Decreto-Lei autorizado por forma a respeitar o princípio da legalidade e da reserva de competência da Assembleia da República. O art. 152º-B CP faz expressa referência à inobservância de disposições legais ou regulamentares. Portanto, abrange com o seu manto tipificador as disposições legais ou regulamentares em questão, dotando-as de relevo penal.

42- É por violações do Decreto-Lei n.º 50/05 que vêm os arguidos singulares condenados – no entanto o mesmo não pode servir para fundamentar a condenação penal por violação da reserva de competência legislativa da AR constante dos art. 29, n.º 1 e n.º 3 e art. 165º, n.º 1, al. b) e c) CRP, razão pela qual tal interpretação do art. 152º-B CP, n.º 1, tem de se considerar inconstitucional, determinando em consequência a absolvição dos arguidos e, na mesma medida, da sociedade.

43- Seguidamente, e na sequência acima exposta, precisamente no enquadramento jurídico-penal, dispõe a sentença a quo que a violação do Decreto-Lei n.º 50/05, arts. 3º, 4º, 6º, 8º e 20º ocorreu por intermédio da violação de um dever de cuidado.

44- Ora, o art. 152º-B, n.º 1 CP não se compadece com a inobservância de um dever genérico formulado pela sentença a quo que resulta do cotejo de trinta normas legais. O mesmo exige a concreta violação de disposições legais e regulamentares e de deveres específicos de cuidado ou de conduta plasmados nas mesmas. Tal nunca foi especificado pela sentença a quo, razão pela qual a condenação resulta numa violação do citado normativo bem como das regras processuais porquanto inexiste matéria de facto provada suficiente para concluir que os arguidos não agiram com o dever geral de atenção, cuidado e previdência necessários nem é identificado qual o concreto dever violado, não sendo assim preenchidos os pressupostos de punibilidade previstos no art. 152º-B CP.

45- No mais, a p. 11, a sentença a quo refere a violação genérica de todas as disposições indicadas em art. 1º da presente motivação sem que contudo justifique uma que seja para lá das referentes ao Decreto-Lei n.º 50/05 – o que constitui numa por demais nulidade da sentença por falta de fundamentação uma vez que não é justificada, sequer pretensamente, a violação de qualquer disposição para lá do Decreto-Lei n.º 50/05.

46- Em particular, e no tocante à falta de formação referida no facto dado como provado n.º 8 e 9, é importante que a ausência de formação é expressamente prevista como aceitável no âmbito do CT, não podendo ser sancionada penalmente. Com efeito, dispõe o art. 131º, n.º 6 CT que esta pode ser diferida dois anos após a admissão do trabalhador (não se prescindindo que a vítima não era, ainda assim, trabalhador da sociedade arguida).

47- Destarte, se a formação pode ser diferida por dois anos, não se pode dizer que no momento do ilícito os arguidos tivessem violado qualquer disposição atinente relativa à realização de formação porquanto a mesma não era ainda exigível. Nesta medida, não sendo violada disposição legal, não se pode considerar preenchido o disposto em art. 152º-B, n.º 1 CP.

48- Na mesma medida, não se pode considerar preenchido o disposto no art. 152º-B, n.º 5 CP porquanto não se concretiza de que facto resultou a morte do falecido – ou seja, não se logra provar o nexo de causalidade entre a violação de qualquer dever legal ou a omissão de cumprimento do mesmo e o falecimento do de cujus.

49- Por fim, a pena fixada à sociedade arguida é violadora do disposto no art. 47º, n.º 2 CP porque não atende à situação financeira do condenado resultante das suas declarações modelo 22 IRC.

50- É certo que a pena na qual a sociedade arguida vem condenada converte-se, por força da questão financeira ora demonstrada, em autêntica pena de interdição de exercício de actividade cumulada com declaração de insolvência, única alternativa que restará à sociedade arguida.

51- Considerando as necessidades de prevenção geral e especial (em particular, a família do falecido até desistiu do PIC nos autos), deveria ter sido a pena prevista no art. 90º-E, n.º 1 CP a determinada à ordem dos presentes autos.

52- Subsidiariamente, teria sempre a multa que ser fixada no quantitativo mínimo legal diário, que, ainda assim, sempre seria excessivo face à situação concreta da arguida - € 100,00 – o que se requer a V. Exas. que corrijam no vosso alto critério.»


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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães, por despacho datado de 3 de maio de 2017.
O Ministério Público respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
Nesta Relação, a Exma. Senhora Procuradora-Geral adjunta emitiu douto parecer, igualmente no sentido do não provimento do recurso.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, nº 2 do Código de Processo Penal, na sequência do que os arguidos responderam, reafirmando os argumentos invocados no recurso.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer(1).
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1. Questões a decidir
Face às conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, as questões a decidir são as seguintes:

A. nulidade da acusação pública;
B. nulidade da sentença por falta de fundamentação;
C. violação do direito de defesa e do contraditório, por alteração ilegal dos factos constantes da acusação;
D. impugnação de determinados pontos da matéria de facto provada por errada apreciação e valoração da prova;
E. subsunção jurídica dos factos;
F. quantum do montante diário correspondente a cada dia da pena de multa da arguida sociedade. Substituição da pena de multa por vigilância judiciária.
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2. Factos Provados
Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados e respectiva fundamentação, constantes da sentença recorrida:

«2.1. - Factos provados com relevância para a decisão da causa:

1.- A primeira arguida é uma sociedade comercial por quotas, registada na Conservatória do Registo Comercial de Braga com o NIPC 505813ASD, com o CAE 82990-RR, e com sede na Rua do J., Braga, que se dedica a prestação de serviços de iluminação e decoração de festas.

2.- Os segundo e terceiro arguidos são os únicos sócios e gerentes daquela sociedade, desde a sua constituição em 8/11/2001, sendo os responsáveis por toda a sua atividade, nomeadamente, pela contratação de trabalhadores para a execução dos trabalhos prestados pela sociedade, pagamento dos respetivos salários bem como os responsáveis por fazer cumprir e controlar as normas de segurança relativas à execução de tais trabalhos nos diversos serviços adjudicados à primeira arguida e manutenção dos equipamentos utilizados nesses trabalhos.

3.- Assim, os segundo e terceiro arguidos já nos meses de Outubro de 2009 a Janeiro de 2010, em nome e no interesse da primeira arguida, e no seu próprio interesse, enquanto únicos responsáveis pela condução da vida da sociedade, haviam contratado o falecido Arménio como trabalhador daquela empresa para a execução, sob a sua direção e ordens, daqueles trabalhos, sem que previamente lhe tivessem disponibilizado qualquer formação profissional para a sua execução dessas funções ou lhe tivessem os arguidos, eles mesmo, ministrado qualquer formação nessa área em que ele exercia funções.

4.- E, mais uma vez, em data não concretamente apurada do mês de Julho de 2014, os segundo e terceiro arguidos contrataram aquele Arménio como trabalhador da sociedade arguida para a execução de tarefas de colocação e montagem de estruturas de iluminação e decoração de festas, a prestar entre os dias 24 e 26 de Julho de 2014, sem que mais uma vez lhe tivessem ministrado qualquer formação para a execução de tais trabalhos e manuseamento de equipamentos elétricos.

5.- Assim, no dia 26 de Julho 2014, por ordem e indicação dos segundo e terceiro arguidos, a vítima Arménio, acompanhado de José, também trabalhador da sociedade arguida, deslocou-se para a Avenida do M., Amares, a fim de proceder, juntamente com aquele, à montagem e colocação de diversas estruturas de iluminação decorativa, com diversas lâmpadas e respetivos fios elétricos, alusivas às festividades da Senhora das Neves que aí iriam decorrer, nomeadamente junto dum nicho religioso existente naquela artéria, acabando por aí chegar pelas 11h da manhã.

6.- Aí chegado, aquele Arménio, na execução das tarefas que lhe foram distribuídas pelos segundo e terceiro arguidos, enquanto representantes legais da sociedade arguida, sem que fizesse uso de quaisquer luvas, em cima duma banca de madeira que montaram no local junto do tal nicho, começou a efetuar testes às diversas lâmpadas, a fim de verificar se as mesmas estavam em condições de funcionamento, para depois as colocar nas estruturas de iluminação, encontrando-se aquelas ligadas entre si por diversos fios elétricos, cujas pontas se encontravam escarnadas, com o fio de cobre de condução de energia descoberto, utilizando para o efeito um gerador que fornecia energia elétrica àqueles fios e lâmpadas e que estava colocado em cima da carrinha que os trabalhadores utilizaram para ali se deslocar e que estava estacionada na via pública, nas imediações do tal nicho.

7.- A dado momento, com o gerador já em funcionamento, a vítima Arménio acabou por agarrar com ambas as mãos, desprotegidas, as pontas dos cabos de alimentação desse gerador, sendo de imediato o seu corpo sujeito a uma passagem de corrente elétrica (eletrocussão) devido ao contacto direto com aqueles cabos elétricos, durante vários segundos, ficando depois tombado no chão, vindo depois a falecer logo no local por força dessa (eletrocussão), sendo o seu óbito verificado às 12h.

8.- Nunca os arguidos ministraram ao trabalhador qualquer formação profissional na área de segurança e saúde no trabalho nem procederam a qualquer ação de sensibilização ou formação nesta matéria, nomeadamente, no manuseamento de material elétrico e obrigação de utilização de luvas para contacto com o mesmo quando em funcionamento.

9.- Nunca a primeira arguida, nem os segundo e terceiro arguidos, enquanto responsáveis por fazer cumprir e controlar as normas de segurança relativas à execução daquele tipo de trabalhos, como podiam e deviam, procederam à advertência de tal risco ou qualquer procedimento de segurança ou a tomada de qualquer medida de prevenção para o correto e seguro desempenho das tarefas por parte dos seus trabalhadores, e, em especial, o trabalhador Arménio.

10.- Os segundo e terceiro arguidos tinham conhecimento de que a vítima, seu trabalhador, atentas as tarefas que lhe tinham ordenado e estava obrigado a desempenhar, naquelas condições e sem que o trabalhador utilizasse equipamento de proteção adequado, sujeitava-o a um perigo acrescido de eletrocussão e, consequentemente, de morte, sendo que adequado para evitar tal perigo era a utilização de luvas e a verificação do estado e condições daqueles equipamentos elétricos, o que eles bem sabiam, nunca se tendo contudo conformado com a possibilidade da morte de Arménio.

11.- Os segundo e terceiro arguidos, atuando sempre em nome e no interesse da primeira arguida, e também no seu próprio interesse, ao agirem da forma descrita, omitiram o dever de cuidado adequado a evitar o evento produzido, que podiam e deveriam ter previsto, e que segundo as circunstâncias do caso em apreço eram capazes de prever, e manifestaram falta de consideração pelas normas legais relativas à saúde e segurança do trabalhador Arménio na utilização de equipamentos elétricos, dever esse que qualquer empregador médio nas circunstâncias descritas observaria, sujeitando-o a perigo para a sua vida, mais sabendo que a sua conduta era proibida e criminalmente punida por lei e, mesmo assim, não se coibiram se assim proceder, agindo sempre se forma livre, deliberada e consciente.

12.- Os arguidos não têm antecedentes criminais.

13.- O arguido Manuel aufere um rendimento mensal de 583 euros, a esposa aufere um rendimento mensal de 583 euros, tem dois filhos menores de idade, paga mensalmente um empréstimo hipotecário no valor de 140 euros e tem o 9.º ano de escolaridade.

14.- O arguido Martins aufere um rendimento mensal de 583 euros, a esposa aufere um rendimento mensal de 583 euros, tem dois filhos menores de idade, vive em casa dos pais e tem o 6.º ano de escolaridade.

15.- No ano de 2016, a sociedade arguida declarou à autoridade tributária um rendimento total de 167.549,28 euros, conforme modelo 22 junto a fls. 735, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
*
2.2.- Factos não provados com relevância para a decisão da causa:
Não se provaram os demais factos constantes da acusação e contestação que não estejam supra referidos nos factos provados ou estejam em contradição com estes, designadamente, os seguintes:

- A vítima Arménio, antes de falecer agarrou com ambas as mãos as pontas descarnadas daqueles fios elétricos existentes nas estruturas de iluminação.

*

2.3.- Motivação do tribunal

O tribunal formou a sua convicção no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, apreciada à luz das regras de experiência comum e de normalidade, nomeadamente, na conjugação das declarações dos arguidos, com os depoimentos das testemunhas António P., Sofia, João, José, Tiago, Paulo, José O., António e Manuel, com o teor do relatório de autópsia de fls. 55 a 64., com o teor do auto de notícia de fls. 3 a 6; com o teor dos elementos clínicos de fls. 7 a 9; com o teor do auto de apreensão de fls. 11; com o relatório fotográfico e de inspeção de fls. 18 a 32; com o teor da certidão de registo comercial de fls. 42 a 46; com o teor do relatório da ACT de fls. 109 a 294, com os autos de reconhecimento de fls. 332 a 337, com o teor dos modelos 22 juntos a fls. 713 e ss., e com o teor das informações da Segurança Social de fls. 316 e 322.
As declarações dos arguidos foram bem elucidativas das responsabilidades que cada um deles assume na gestão da sociedade arguida bem como a relação laboral que estabeleceram nos anos de 2009 e 2010 e na data da ocorrência dos factos com a vítima.
Note-se que, quanto a este aspeto em especial, as declarações dos arguidos são suficientemente elucidativas de que a vítima era efetivamente trabalhador da sociedade arguida no momento da ocorrência dos factos.
Podemos até reinventar o direito quanto a este aspeto essencial, invocando a precariedade da situação laboral da vítima.
Mas como confessaram os arguidos, a vítima estava a exercer, aquando do acidente, uma atividade remunerada em nome da sociedade arguida e sob as ordens e fiscalização desta e não estava a exercer essas funções por mera recriação pessoal e sem o conhecimento da sociedade arguida.
Note-se que a vítima não pode ser considerada pela defesa, na mesma retórica, como trabalhador quando se discutem as condições de segurança em que ele exercia as funções que confessadamente lhe foram incumbidas pelos arguidos em nome da sociedade arguida e como não trabalhador quando se discute apenas este conceito jurídico em concreto.
Ultrapassada, assim, por força das declarações dos arguidos, esta falsa questão alimentada em alegações finais pela defesa, importa também referir, de um modo claro e inequívoco, que os arguidos também confessaram que nunca ministraram pessoal ou através de outrem qualquer formação profissional à vítima.
Aliás, tal ausência de formação profissional também foi confirmada pelos próprios trabalhadores da sociedade arguida, testemunhas João, José e Tiago.
E qualquer documento junto pela defesa que ateste a existência de formação profissional aos seus trabalhadores, certamente que está desfasada do ponto de vista temporal e só ocorreu após o acidente em discussão nos autos.- cfr. fls. 700
Por essa razão, tal documentação é absolutamente irrelevante para o apuramento dos factos em discussão.
Ainda sobre a questão da ausência de qualquer formação profissional aos eletricistas, seus trabalhadores, nos quais incluímos a vítima, também importa esclarecer que a propalada “simplicidade” das funções que a vítima estava a exercer confessadamente em nome da sociedade arguida não tem manifestamente a virtualidade que lhe quis imputar a defesa ao trazer para a discussão tal argumento.
Com efeito, a serem tão “simples” ao ponto de dispensarem qualquer formação profissional, como também pretenderam fazer crer (conveniente) os trabalhadores da sociedade arguida, José e Tiago, não compreendemos como é que alguém terá falecido ao exercer tal atividade tão “simples”.
É, pois, notório que ao contrário do que argumentou a defesa também em alegações finais, que mesmo a atividade tão simples do seu ponto de vista, não desobriga à formação profissional exatamente para que não aconteçam fatalidades como aquela que estamos hoje a discutir.
Por essa razão, mesmo nesta atividade que, agora, convenientemente, é “tão simples” porque “só” convive com eletricidade, também existe essa obrigação legal que os arguidos confessadamente não acautelaram como era sua obrigação legal enquanto empregadores da vítima.
E se a desconhecem, como até reconhecem expressamente quando invocaram a exceção da nulidade da acusação na sua contestação crime, tal facto apenas sustenta a agravação da sua culpa e nunca a exclusão desta, como é óbvio,
Ainda no que diz respeito às condições de segurança em que a vítima exercia essa sua atividade, importa referir expressamente que as testemunhas José e Sofia, que presenciaram o momento em que o vítima tombou no chão agarrado aos cabos do gerador, confirmaram, de um modo inequívoco, que a vítima não usava as luvas de proteção que o podiam ter salvo, como confirmou expressamente a testemunha Manuel.
A vítima não usava luvas, nem foi apresentada qualquer prova credível de que os arguidos entregaram essa luvas à vítima, antes deste executar essas tarefas que lhe incumbiram.
Aliás, sobre esta questão em especial, retemos as seguintes afirmações da testemunha Tiago, as quais são bem elucidativas da falta de zelo dos arguidos no que diz respeito à segurança dos seus trabalhadores: “eles não obrigam a usar o equipamento … mas nó sabemos que temos de o usar”…”cada qual vai buscar o equipamento”… “alguns que trabalham à jorna levam equipamento outras esquecem…”.
Ainda no que diz respeito às circunstâncias em que a eletrocussão aconteceu, o depoimento da testemunha Sofia não nos deixa qualquer dúvida de que, nesse exato momento, a vítima apenas tinha os cabos do gerador nas suas mãos.
Dai a resposta negativa do tribunal ao facto da vítima ter sido eletrocutada no exato momento em que testava as lâmpadas e por ter contactado com as suas mãos nos fios das estruturas das lâmpadas.
Resulta, portanto, assente, do depoimento isento da testemunha Sofia, que a eletrocussão aconteceu por força do contacto das mãos da vítima, que não usava as luvas de proteção, com os cabos do gerador que, conforme referiu expressamente a testemunha José, estava ligado nesse momento.
Assim, perante tal quadro probatório, nada mais restava ao Tribunal do que dar como provado também o elemento subjetivo imputado aos arguidos.
Por fim, quando às lesões sofridas pelo ofendido, o tribunal teve em atenção o relatório da autópsia junto aos autos a fls. 55 e ss..
Os demais depoimentos, porque nada de mais relevante acrescentaram aos quadro probatório supra identificado, foram absolutamente irrelevantes para o apuramento dos factos.
Os demais factos não provados resultaram da inexistência de prova bastante quanto à sua ocorrência, ou a prova produzida foi manifestamente insuficiente para os dar como provados.
Por fim, foram relevantes as declarações dos arguidos quanto à sua situação socioeconómica, e os CRC.s juntos aos autos quanto aos seus antecedentes criminais.»
***

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

A. Nulidade da acusação pública.
Os recorrentes começam por argumentar que na acusação pública não é concretamente identificável o tipo de crime que lhes é imputado, face à remissão em bloco para várias normas, sem identificação das regras legais ou regulamentares alegadamente violadas, o que entendem constituir uma nulidade insanável, de conhecimento oficioso.
Vejamos.
O nosso sistema processual penal, no artigo 118.º, n.º 1, consagra o princípio da legalidade e taxatividade das nulidades.
A falta na acusação de qualquer dos elementos mencionados nas alíneas a) a g), do n.º 3, do artigo 283.º do mesmo diploma – designadamente da indicação das disposições legais aplicáveis – embora constituindo uma nulidade, não é insanável, por como tal não ser prevista por lei.
Assim, mesmo a considerar-se que a acusação pública deduzida nos autos padece de uma nulidade sanável ou relativa, sempre estaria ela dependente de arguição pelos respetivos interessados, em local e tempo próprios.
Sendo que no caso em apreço – expressamente previsto na al. c), do n.º 3, do artigo 120.º do Código de Processo Penal – e uma vez que não houve fase de instrução, a alegada nulidade teria de ser arguida até cinco dias após a notificação do despacho que encerrou o inquérito, o que não aconteceu. Não havendo por conseguinte, e a partir daí, fundamento legal para a declarar.
É certo que passando o processo para a fase de julgamento sem que tenha sido requerida a abertura de instrução, o alegado vício, a ocorrer, poderia então estribar a rejeição da acusação por manifestamente infundada, nos termos do artigo 311.º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. c) do Código de Processo Penal (2), que é o único momento processual em que a lei prevê essa possibilidade.
Mas do compulso dos autos logo se alcança que tal não aconteceu, tendo a acusação sido recebida e proferido despacho a designar dia para a audiência. O que a tornou formalmente apta para suportar a ação penal em julgamento, já que a lei não prevê, a partir daí, a possibilidade de rejeição da acusação noutro momento.
Pelo que os vícios que a acusação eventualmente apresente, ainda que previstos no n.º 3 do artigo 311.º, passarão unicamente a poder influir na apreciação do mérito da causa (3).
Isto, caso tais vícios não sejam – ou não possam ser – supridos através de mecanismos legais próprios, designadamente os previstos nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal, que dentro de certos limites, e excecionalmente, permitem a alteração dos factos narrados na acusação e da qualificação jurídica nela efectuada. Mecanismos esses que, por força do princípio do processo penal da conservação dos atos imperfeitos, podem ser aplicados aos casos de acusações com vícios que tenham chegado à fase de julgamento. (4)
De tudo assim decorrendo a improcedência da arguição pelos recorrentes da nulidade da acusação.
*
B. Nulidade da sentença por falta de fundamentação.

Em absoluta interligação com a questão acabada de decidir, os recorrentes argumentam que o Tribunal a quo, ao indeferir a arguição daquela nulidade da acusação por «manifesta falta de fundamento legal», sem mais, omitiu fundamentação, em violação do artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Apreciemos.
A questão da nulidade da acusação suscitada pelos arguidos na contestação foi apreciada e decidida pelo Tribunal a quo na sentença, mas antes do conhecimento do mérito da causa, da seguinte forma:
«Na sua contestação, vieram os arguidos invocar a nulidade da acusação.
Alegam, em síntese, que os “arguidos não conseguem alcançar que dever legal ou regulamentar contido nestas normas em específico foi violado, impedindo ou dificultando de forma grave a sua defesa”.
**
A DM do MP respondeu à invocada exceção no decurso da audiência de julgamento.
Pugnou pela sua improcedência- cfr. fls. 837.
**
Cumpre decidir:
Nos termos do disposto no artigo 283.º, n.º 3, al. c), do C.P.P., a acusação contém, sob pena de nulidade, a indicação das disposições legais aplicáveis.
Acontece que a nulidade da acusação tem de ser invocada no prazo de 5 dias após a sua notificação ou, sendo requerida a instrução, até ao encerramento do debate instrutório.- cfr. artigo 120.º, do C.P.P. e decorre, por exemplo, do douto acórdão do V.T.R.G. de 18-02-2008, disponível in CJ, 2008, T1, pág.297:
A nulidade da acusação depende de arguição, no prazo de cinco dias após a sua notificação ou, sendo requerida instrução, até ao encerramento do debate instrutório”.
Independentemente desta questão puramente formal, também importa esclarecer que o facto dos arguidos “não alcançarem o dever” que decorre da vasta legislação vertida na acusação não constitui, como é óbvio, fundamento para declarar a nulidade da acusação.
Indefere-se, portanto, o requerimento em apreço, por extemporâneo.»
Trata-se este de um verdadeiro despacho inserto na sentença, que como tal não se encontra contemplado na previsão do artigo 374.º do Código de Processo Penal, sendo-lhe antes aplicável, no que à obrigação de fundamentar respeita, o disposto no artigo 97.º, n.º 5 do mesmo diploma, segundo o qual fundamentar uma decisão é especificar os motivos de facto e de direito dessa decisão.
Ora, a decisão em apreço menciona que a nulidade da acusação invocada na contestação com base numa alegada falta de indicação das disposições legais aplicáveis, é indeferida por extemporaneidade, por ter sido arguida em momento posterior ao termo do prazo para tal previsto, que refere ser de 5 dias após a sua notificação ou, sendo requerida a instrução, até ao encerramento do debate instrutório. Invocando ainda o comando legal do artigo 120.º do Código de Processo Penal como justificador da decisão tomada.
Assim indicando, de forma sumária mas suficiente, as razões de facto e de direito em que se baseou para indeferir a arguição da nulidade. Possibilitando perfeitamente aos seus destinatários o conhecimento dessas razões e que, cientes delas, se conformem com a decisão ou a impugnem de forma consciente e eficaz, como aliás aconteceu nos autos.
É quanto basta para se considerar respeitada não só a obrigação de fundamentação das decisões judiciais, como ainda, no caso do processo criminal, considerar também asseguradas as garantias de defesa do arguido e o princípio do contraditório, constitucionalmente garantidas.
Questão diversa é a da concordância, ou não, com a decisão tomada, que, aliás, foi já por nós sindicada (5).
Sendo nessa sede que os recorrentes situam a alegada violação de princípios constitucionais como o do acusatório, contraditório e respeito pelas garantias de defesa, o que fundamentam na subsistência de uma acusação a que falta a concreta indicação das disposições legais violadas.
Contudo, mesmo vistas as coisas por este prisma, também não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade, posto que a declaração de nulidade da acusação com aquele fundamento é legalmente possível a requerimento dos interessados, só que em tempo e locais próprios cuja regulação compete ao legislador ordinário do código de processo penal, que se encontra investido nessa função por determinação constitucional.
De todo o modo, mesmo ultrapassados esses prazos, os vícios da acusação continuam sempre a poder ser conhecidos, embora agora ao nível do mérito da causa, podendo os arguidos invocá-los nessa sede e com base neles estruturarem a sua defesa.
Naufragando mais este ponto do recurso.
*
C. Violação do direito de defesa e do contraditório, por alteração ilegal dos factos constantes da acusação.
Alegam os recorrentes que a alteração de factos da acusação produzida antes da sentença é nula, na medida em que leva ao acervo da matéria factual um objeto distinto, que não foi alvo de contraditório e interrogatório junto das testemunhas, ferindo os seus direitos de defesa e contraditório.
Efetivamente, na sessão da audiência de 15 de março de 2017, antes da leitura da sentença, foi proferido o seguinte despacho:
«Da alteração não substancial dos factos descritos na acusação:
Da audiência de julgamento resultou fortemente indiciado que a vítima Arménio, ao contrário do que consta do artigo 7.º da douta acusação pública, agarrou com ambas as mãos desprotegidas não “as pontas descarnadas daqueles fios eléctricos” mas antes as “as pontas dos cabos de alimentação desse gerador”.
Procede-se, assim, à alteração não substancial dessa factualidade em particular, ao abrigo do disposto no art. 358º, nº 1 do C.P.P.»
Constando logo em seguida da respetiva ata, que «Comunicada esta alteração dos factos aos arguidos e seu defensor, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 358º, do C.P.P., pelo mesmo foi dito que prescindia de qualquer prazo.»
Ora, como enfatizam os recorrentes, não há dúvida que o nosso sistema processual penal tem natureza acusatória, o que implica que tribunal de julgamento esteja naturalmente subordinado ao princípio da vinculação temática, só podendo atender a factos novos, diversos dos constantes na acusação ou pronúncia, nos precisos termos dos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal.
In casu, os factos descritos na acusação não coincidem exatamente com aqueles que viram a ser considerados apurados na sentença recorrida. Reconduzindo-se aqui o facto novo, apenas, ao local do gerador onde a vítima agarrou com as mãos desprotegidas, o que constitui uma alteração não substancial dos factos, posto que não tem manifestamente como efeito a imputação aos arguidos de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções, nos termos da definição legal da alteração substancial, constante da alínea f) do artigo 1º do Código de Processo Penal.
Contudo, os arguidos não foram surpreendidos com esse novo facto apenas aquando da leitura da sentença, já que o Tribunal a quo lho comunicou em tempo útil, permitindo-lhes também quanto a ele o exercício do contraditório, em ordem a assegurar-lhes uma eficaz e integral defesa, através do prévio cumprimento do disposto no artigo 358.º, n.º 1 do Código de Processo Penal. Constando dos autos que foram os arguidos que optaram por nada fazer, prescindindo inclusive do prazo necessário para preparação de defesa.
De tudo assim resultando que o facto novo foi validamente introduzido em juízo, nada obstando por isso a que conste da sentença como provado.
Improcedendo mais este ponto do recurso.
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D. Impugnação de determinados pontos da matéria de facto provada por errada apreciação e valoração da prova.
Alegam também os recorrentes que o Tribunal a quo deu erradamente como provada a factualidade descrita nos pontos 3, 4, 5, 8, 9, 10 e 11, que deveria ter antes sido considerada como não provada, por não resultar da prova efetivamente produzida.
Para tanto indicam as provas que em seu entender impõem a pretendida diversa decisão sobre a matéria de facto, com a menção concreta das passagens da gravação em que baseiam a impugnação, em cumprimento dos requisitos de forma estabelecidos para a impugnação da matéria de facto pelo artigo 412.º n.º 3, als. a), b) e c) e n.º 4, do Código de Processo Penal.
Requisitos esses que se fundam na necessidade da delimitação objetiva do recurso da matéria de facto, na medida em que o recurso deste tipo não se destina a um novo julgamento com reapreciação de toda a prova, como se o julgamento efetuado na primeira instância não tivesse existido, sendo antes o recurso da matéria de facto concebido pela lei como remédio jurídico (6).
Nestes casos, o Tribunal da Relação não faz um segundo julgamento, não vai à procura de uma nova convicção, antes se limitando a fazer o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido referidos no recurso e das provas que imponham, e não só que permitam, decisão diferente. Pois a decisão do recurso sobre a matéria de facto não pode ignorar, antes tendo de respeitar, o princípio da livre apreciação da prova do julgador, expresso no artigo 127.º do Código de Processo Penal e a sua relação com a imediação e oralidade, sobretudo quando tem que se debruçar sobre a valoração efetuada na primeira instância da prova testemunhal, face à ausência de contacto direto com essa prova, o que integra uma das grandes limitações deste tipo de recursos.
Posto isto, e dentro dos limites que a lei estabelece para a apreciação do recurso da matéria de facto, vejamos pois se o Tribunal a quo errou na apreciação e valoração da prova produzida na audiência e se o resultado do processo probatório devia ser outro.
A divergência dos recorrentes reporta-se, por um lado, à inserção da palavra “trabalhador" nos pontos 3, 4, 5, 8 e 9, que reputam de conclusiva, argumentando ser um conceito jurídico que permite a sua subsunção ao regime do contrato de trabalho, não deixando margem à correta aplicação do direito aos factos. O mesmo sucedendo relativamente à factualidade descrita em 11, que alegam estar repleta de considerações jurídicas.
Por outro lado, impugnam que o falecido fosse efetivamente trabalhador da sociedade arguida. Contestando, ainda, que as pontas dos fios elétricos a que se alude no ponto 6 se encontrassem descarnadas, assim como o local do gerador onde o falecido agarrou com as mãos, que dizem ter sido “os alicates condutores da corrente” e não “as pontas dos cabos de alimentação”. Mais referindo que também não se ter feito prova de que nunca tenham procedido a qualquer ação de sensibilização ou formação em matéria e segurança e saúde no trabalho, nomeadamente quanto à obrigação de utilização de luvas, estando as do falecido dentro da carrinha, que delas não fez uso por motivos não imputáveis à sociedade arguida.
Começando pela inclusão da palavra trabalhador na factualidade apurada, dir-se-á que a mesma, para além de ser um conceito jurídico, consta também da linguagem corrente e comum para designar todo aquele que se dedica à atividade de trabalhar, independentemente de tal ocorrer, ou não, no âmbito de um contrato de trabalho, sendo manifestamente nessa asserção comum que a palavra é utilizada no elenco dos factos apurados, o que não é censurável.
Aliás, a caraterização da relação do falecido Arménio com a sociedade arguida não é feita no elenco dos factos provados através daquela palavra trabalhador, mas antes da narração de determinadas realidades, como sejam a sua contratação pela sociedade arguida «para a execução, sob a sua direção e ordens» «de tarefas de colocação e montagem de estruturas de iluminação e decoração de festas», «por ordem e indicação dos segundo e terceiros arguidos», «tarefas que lhe tinham ordenado e estava obrigado a desempenhar» (7). Realidades estas que permitem manifestamente, mesmo na linguagem comum, a designação do Arménio como trabalhador da sociedade arguida.
De todo o modo, das declarações prestadas em audiência pelos próprios arguidos – como se alcança da respetiva gravação e é expressamente referido pelo Tribunal a quo na motivação – resulta que os recorrentes Manuel e Martins, sócios e únicos gerentes da sociedade arguida, em nome e no interesse desta, contrataram o falecido Arménio para que, sob a sua direção e ordens, executasse determinados trabalhos, designadamente que procedesse a tarefas de colocação e montagem de estruturas de iluminação e decoração de festas, entre os dias 24 a 26 de julho de 2014, na Avenida da P., em Amares.
Não sendo tal realidade desmentida por ter sido o arguido Manuel a falar com a vítima, posto que das declarações dos arguidos resulta inequivocamente que eram ambos os responsáveis por toda a atividade da sociedade arguida, designadamente pela contratação dos trabalhadores para a execução dos trabalhos prestados por aquela, nos quais se incluía o falecido. Sendo por isso indiferente qual deles foi incumbido de falar com o Arménio para o contratar, já que a respetiva decisão foi previamente tomada por ambos.
Por outro lado, os pequeníssimos excertos dos depoimentos das testemunhas João, Tiago, António e José, reproduzidos no recurso, de modo algum descaraterizam a relação de trabalho existente à data dos factos entre o falecido e a sociedade arguida, tal como é descrita no elenco dos factos considerados apurados na sentença, podendo apenas, e quando muito, elucidar-nos que se tratava de trabalho precário. Em momento algum qualquer dessas testemunhas negando que o falecido tenham sido contratado pela sociedade arguida, mediante remuneração, para sob a sua direção e ordens, executar determinados trabalhos, independentemente do período de tempo que estes envolvessem.
Resulta igualmente das declarações dos arguidos que nunca ministraram pessoalmente ou através de outrem qualquer tipo de formação profissional à vítima. O que foi também confirmado pelas testemunhas João, José e Tiago, que eram trabalhadores da sociedade arguida e, nessa qualidade, demonstraram conhecimento direto do que nela se passava, designadamente ao nível da ausência de formação profissional ao falecido.
Note-se, inclusive, que os documentos referentes a formação profissional dos trabalhadores, juntos pela arguida – e que constam de fls. 700 e segs. – se reportam todos a data posterior à dos factos em causa nos autos, não tendo por isso aqui relevância.
Não colhendo também o argumento da simplicidade das funções exercidas pelo falecido como justificadora da desnecessidade de formação, pois como bem salienta o Tribunal a quo, a própria morte de Arménio no exercício de tais funções e por causa delas desmente só por si a alegada simplicidade.
Por outro lado, da conjugação dos depoimentos das testemunhas José e Sofia, que se encontravam presentes no momento da electrocussão, resulta que as pontas dos fios elétricos a que se alude no ponto 6 se encontravam descarnadas. Bem como que a vítima caiu ao chão, com as mãos desnudas agarradas aos cabos do gerador, que se encontrava nesse momento em funcionamento.
É certo que a testemunha Sofia, por ser uma leiga no tipo de trabalho que o falecido Arménio estava a executar, tem naturalmente dificuldade em localizar e diferenciar as várias partes do gerador que ele então utilizava, como demonstra o pequeno excerto do seu depoimento reproduzido no recurso. Contudo, do teor integral do mesmo e, principalmente, da sua conjugação com o da testemunha José, que se encontrava a trabalhar com o falecido e também presenciou o momento da electrocussão, resulta manifestamente que esta se deu quando o Arménio agarrou os cabos do gerador.
Resultando também dos depoimentos destas duas testemunhas que a vítima não tinha luvas calçadas, as quais lhe poderiam ter salvado a vida, como afirmou a testemunha Manuel, que sobre tal demonstrou conhecimentos.
A propósito do que, como refere o Tribunal a quo na motivação, «nem foi apresentada qualquer prova credível de que os arguidos entregaram essas luvas à vítima, antes deste executar essas tarefas que lhe incumbiram. Aliás, sobre esta questão em especial, retemos as seguintes afirmações da testemunha Tiago, as quais são bem elucidativas da falta de zelo dos arguidos no que diz respeito à segurança dos seus trabalhadores: “eles não obrigam a usar o equipamento … mas nós sabemos que temos de o usar”…”cada qual vai buscar o equipamento”… “alguns que trabalham à jorna levam equipamento outros esquecem…”.»
Não sendo o depoimento da testemunha João, afirmado que a sociedade arguida fornece luvas aos trabalhadores, suficiente para a prova desse facto, desde logo por a testemunha afirmar também expressamente não saber o que se passou relativamente ao falecido Arménio, no concreto dia em causa nos autos.
Por último, das atuações dos arguidos, objetivamente apuradas e apreciadas à luz de critérios de razoabilidade e bom senso e das regras de experiência comum, extrai-se diretamente a factualidade descrita nos pontos 10 e 11.
E se bem que no ponto 11 haja referência a alguns conceitos conclusivos, como argumentam os recorrentes, eles mais não são do que o desenvolvimento da factualidade descrita anteriormente em 10, completada com a menção de factualidade nova, relativa à descrição da atuação dos arguidos como livre, deliberada e consciente.
De tudo assim decorrendo, em síntese conclusiva, que a prova produzida em audiência suporta perfeitamente a decisão sobre a matéria de facto a que chegou o tribunal a quo, que se apresenta verosímil e compatível com todos os elementos constantes dos autos e regras da experiência.
Como ensina Figueiredo Dias (8) a decisão sobre a matéria de facto, para além da atividade racional que envolve, tem também sempre de conter uma convicção pessoal, na qual estão presentes elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais, designadamente no que respeita à credibilidade dos depoimentos. E o legislador, consciente das limitações que o recurso da matéria de facto necessariamente tem envolver, teve o cuidado de dizer que as provas a atender pelo Tribunal ad quem são aquelas que «impõem» e não as que «permitiriam» decisão diversa (9).
In casu, a argumentação e prova indicadas pelos recorrentes não impõem decisão diversa da proferida, nos termos da al. b), do n.º 3, do artigo 412.º do Código de Processo Penal, apenas sendo exemplificativas de outra interpretação da prova, até menos credível, porque feita não pelo órgão jurisdicional com competência para tal, mas por uma das partes, com interesse direto no desfecho do processo.
A decisão do Tribunal a quo é assim inatacável neste ponto, porque proferida de acordo com a sua livre convicção, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal e em absoluto respeito dos dispositivos legais aplicáveis.
Improcedendo a impugnação da matéria de facto por erro de julgamento.
*
E. Subsunção jurídica dos factos.

Os recorrentes imputam ainda à sentença uma errada aplicação do direito no que respeita às suas condenações pelo crime de violação de regras de segurança, previsto e punível pelo artigo 152.º-B, n.ºs 1, 2 e 4, al. b) do Código Penal, argumentando não se verificarem todos os seus pressupostos típicos, em virtude de a vítima não ser trabalhador da sociedade arguida, nem depender economicamente da mesma, não podendo por isso ser convocadas e consideradas aplicáveis as disposições legais e regulamentares respeitantes à segurança no trabalho.
Vejamos.
Sob a epígrafe «Violação de regras de segurança», dispõe o citado artigo 152.º-B, n.ºs 1, 2 e 4, al. b) o seguinte:

«1 - Quem, não observando disposições legais ou regulamentares, sujeitar trabalhador a perigo para a vida ou a perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde, é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - Se o perigo previsto no número anterior for criado por negligência o agente é punido com pena de prisão até três anos.
3 – (…)
4 - Se dos factos previstos nos n.ºs 1 e 2 resultar a morte o agente é punido:
a) (…)
b) Com pena de prisão de dois a oito anos no caso do n.º 2.»
Este crime, que se funda numa relação de vigilância entre trabalhador e empregador é um crime específico próprio, na medida em que pressupõe que o autor possua uma determinada qualidade, estando obrigado à observância das regras legais, regulamentares.
É precisamente quanto a este ponto que incide a discordância dos recorrentes, ao argumentarem que a vítima não era trabalhador da sociedade arguida, não havendo por isso obrigação de quanto a ela cumprirem as disposições legais e regulamentares.
Com relevância para esta questão, não pode contudo olvidar-se que o elenco dos factos apurados – cuja impugnação foi já supra julgada improcedente – permite afirmar que:
. Em data não concretamente apurada do mês de julho de 2014, os arguidos Manuel e Martins, atuando em nome e no interesse da arguida sociedade, da qual eram únicos gerentes e responsáveis, contrataram o falecido Arménio para, sob a sua direção e ordens, executar tarefas de colocação e montagem de estruturas de iluminação e decoração de festas, a prestar entre os dias 24 e 26 de julho de 2014.
Encontrando-se o falecido a executar tais tarefas quando no dia 26 de julho de 2014 ocorreu o acidente que o vitimou.
Neste contexto, é indubitável que se encontra preenchido o conceito de trabalhador pressuposto pelo n.º 1, do artigo 152.º-B, do Código Penal, que ultrapassa manifestamente o conceito de uma relação laboral típica, bastando para o seu preenchimento que, na ocasião, a vítima se encontre a executar uma tarefa no interesse exclusivo de quem está obrigado a implementar as regras de segurança necessárias para o seu pleno desempenho (10).
Sendo tais regras precisamente as disposições legais ou regulamentares que nesse campo vigoram no direito laboral, pois apesar de o tipo de crime não pressupor a existência de uma relação laboral típica, não poderia exigir o cumprimento de outras regras que não as vigentes ao nível da segurança naquele ramo do direito.
No caso dos autos, o acidente deu-se porque não foram implementadas medidas de segurança adequadas à prevenção dos riscos inerentes ao trabalho executado pelo falecido, de eletricista, como é evidente em face da matéria fática apurada (11), da qual se extrai que:
. O Arménio se encontrava, sem que fizesse uso de quaisquer luvas, a efetuar testes às diversas lâmpadas, a fim de verificar se as mesmas estavam em condições de funcionamento, para depois as colocar nas estruturas de iluminação, encontrando-se aquelas ligadas entre si por diversos fios elétricos, cujas pontas se encontravam escarnadas, com o fio de cobre de condução de energia descoberto, utilizando para o efeito um gerador que fornecia energia elétrica àqueles fios e lâmpadas e que estava colocado em cima da carrinha que os trabalhadores utilizaram para ali se deslocar.
E, a dado momento, com o gerador já em funcionamento, o Arménio agarrou com ambas as mãos desprotegidas as pontas dos cabos de alimentação desse gerador, sendo de imediato o seu corpo sujeito a uma passagem de corrente elétrica (eletrocussão) devido ao contacto direto com aqueles cabos elétricos, em consequência do veio a falecer logo no local.
Ora, na execução de um trabalho desta natureza impõe-se a utilização de equipamento suscetível de proteger os trabalhadores do contacto direto ou indireto com a electricidade, do qual ressalta logo o uso de luvas próprias, como para estes casos prescreve especialmente o artigo 20.º al. a) da Lei n.º 50/05, de 25.02. Para além de formação adequada às funções, face à potencial perigosidade do contacto com a eletricidade.
No caso dos autos foi precisamente a formação e o uso de equipamento adequado que falhou, posto que também se provou nunca terem os arguidos ministrado ao trabalhador qualquer formação profissional na área de segurança e saúde no trabalho nem procedido a qualquer ação de sensibilização ou formação nesta matéria, nomeadamente, no manuseamento de material elétrico e obrigação de utilização de luvas para contacto com o mesmo quando em funcionamento
Resultando das disposições legais e regulamentares vigentes, designadamente das referidas na sentença – artigos 281.º e 282.º, ambos do Código do Trabalho, artigos 15.º, n.º 1 e 20.º, da Lei n.º 102/09, de 10.02, artigos 3.º, 4.º, 6.º e 8.º, todos do D.L. n.º 50/05, de 25.02, e artigos 6.º e 9.º, ambos da Portaria n.º 348/93, de 1/10 – a obrigação, em geral, do fornecimento de equipamento adequado e da ministração de formação aos trabalhadores sempre que as funções que exerçam o justifique; e do artigo 20.º al. a) do D.L. n.º 50/05, de 25.02 – também mencionado na sentença – as caraterísticas específicas que devem ter os equipamentos de trabalho no caso de riscos elétricos.
Sendo que face ao tipo de perigo que o trabalho desenvolvido pelo Arménio objetivamente suscitava, e que os arguidos bem conheciam, era exigível que tivessem dado ordens no sentido de serem adotadas medidas concretas e específicas para evitar o perigo de electrocussão. E, ao omitirem a implementação desses meios de segurança, designadamente o fornecimento de luvas, formação e vigilância para que fossem efetivamente utilizadas, que eram suscetíveis de minimizar os riscos e de evitar o resultado lesivo decorrente de eletrocussão, criaram uma situação de perigo que preenche o resultado típico do crime em apreço – resultado previsível – ainda que com ele não se tivessem conformado. Agindo livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que com a omissão da utilização do equipamento próprio para trabalhos com risco de eletricidade estavam a colocar em risco a vida e a integridade física do trabalhador (12).
De tudo assim decorrendo encontrarem-se preenchidos todos os pressupostos objetivos e subjetivos do crime de violação de regras de segurança imputado aos arguidos na sentença.
Resta acrescentar que a sentença recorrida fundamenta de forma sintética, mas suficiente e absolutamente percetível a aplicação do direito aos factos, designadamente no que respeita à referência às disposições legais ou regulamentares aplicáveis, que enuncia, como impõe o n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal.
Nenhuma deficiência contendo a nível da fundamentação de direito, contrariamente ao que também chegam a aludir os recorrentes.
Naufragando assim totalmente mais este ponto do recurso.
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F. Quantum do montante diário correspondente a cada dia da pena de multa da arguida sociedade.
Substituição da pena de multa por vigilância judiciária.
Por último, os recorrentes contestam o quantitativo diário correspondente a cada dia de multa em que foi condenada a sociedade arguida, que reputam como exagerado, devendo por isso ser minorado.
Vejamos.
Sobre o quantitativo diário da multa aplicável às pessoas coletivas estabelece o artigo 90.º B, n.º 5 do Código Penal, que ele «corresponde a uma quantia entre € 100 e € 10.000, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais».
Ora, o quantitativo diário de € 400, fixado pelo Tribunal a quo, mostra-se perfeitamente adequado, dentro dos parâmetros definidos no citado preceito legal, face à situação económica e financeira da sociedade comercial condenada. Veja-se que esta, como se provou, declarou à autoridade tributária, no ano de 2016, um rendimento total de € 167.549,28.
Não lhe sendo conhecidos prejuízos, que embora alegados no recurso não constam do elenco dos factos apurados, não tendo essa omissão sido sequer alegada pelos recorrentes em sede própria, de impugnação da matéria de facto.
Por outro lado, não se afigura também viável a substituição da pena de multa aplicada à arguida sociedade pela de vigilância judiciária, prevista no artigo 90.º-E, n.º 1 do Código Penal. A natureza dos deveres que infringiu, diretamente relacionados com a segurança de um trabalhador cujas funções envolviam riscos eléctricos, vítima de um acidente mortal, exasperam de tal modo as necessidades de prevenção geral, que impõem o cumprimento da pena de multa, sem substituição.
Improcedendo este ponto do recurso.
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III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães, em negar provimento ao recurso dos arguidos “JC & JM, Lda.”, Manuel e Martins.
Vão os recorrentes condenados em custas, fixando-se em 5 (cinco) Ucs a taxa de justiça.
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Guimarães, 11 de setembro de 2017
(Elaborado e revisto pela relatora)


1. Cfr. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
2. Mas já não à declaração de nulidade, posto que o momento próprio para tal havia sido ultrapassado.
3. Mas já não como vícios formais que invalidam a acusação.
4. Neste sentido, cfr. o acórdão do TRE, de 10.12.2009, proc. n.º 17/07.4GBORQ.E1, disponível em www.dgsi/tre.pt.
5. Cfr. A, supra.
6. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7.ª edição, 2008, p. 105.
7. Cfr. n.ºs 3, 4, 5, 6 e 10 dos factos Provados.
8. Direito Processual Penal, vol. I, ed.1974, pág. 204.
9. Cfr. artigo 412º, nº 3, al. b) do Código de Processo Penal.
10. Precisamente neste sentido, cfr. o acórdão do TRP, de 22.02.2017, proferido no processo 649/13.1GBVRF.P1, disponível em www.dgsi.pt, e também citado nesta instância pelo Ministério Público, no seu parecer.
11. Cfr. pontos 5, 6 e 7.
12. Cfr. pontos, 8, 9, 10 e 11 dos factos Provados.