Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
196/20.5GBBCL.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: NÃO PRONÚNCIA
VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO
OMISSÃO DE FACTOS
DECISÃO INVÁLIDA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIAL PROVIMENTO
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. O despacho de não pronúncia tem necessariamente de ser fundamentado, o que significa que nele devem ser especificados os motivos de facto e de direito da respetiva decisão;
II. Na decisão instrutória de não pronúncia que conheça do mérito, o cumprimento dessa exigência, nomeadamente no que respeita à indicação dos factos indiciados e não indiciados, é também essencial para a fixação dos efeitos do caso julgado.
III. A omissão da descrição dos factos indiciados e/ou não indiciados na decisão instrutória de não pronúncia que conhece de mérito, configura uma irregularidade que influi na decisão da causa, pois consubstancia um hiato parcial que afeta o seu valor e impede que o tribunal ad quem sobre ela se pronuncie.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.
(Secção Penal)

I. RELATÓRIO

No processo de instrução n.º 196/20.5GBBCL, do Juízo de Instrução Criminal de Braga – Juiz 1, do Tribunal Judicial da comarca de Braga, foi, em 15 de dezembro de 2020, proferida decisão instrutória:
- de não pronúncia dos arguidos A. B. e J. P., com os demais sinais dos autos, pela prática de um crime de violação de domicílio, previsto e punível pelo artigo 190.º, n.º 1 do Código Penal, que lhes havia sido imputado em sede de acusação pelo Ministério Público.

É o seguinte o teor integral de tal decisão:
«Declaro encerrada a instrução que os arguidos A. B. e J. P. requereram e a que se procedeu.
*
Não concordando com a acusação pública e particular contra si deduzidas, após a realização do respetivo inquérito, requerem os arguidos a abertura da instrução, alegando, em síntese:
Não cometeram os factos na data indicada nas acusações, porquanto à data dos mesmos, a arguida encontrava-se a trabalhar na empresa que gere, local onde também se encontrava o arguido. Não podiam, pois, ter entrado na casa do assistente. Requerem, pois, que não sejam pronunciados.
*
Procedeu-se ao interrogatório dos arguidos e à realização do debate instrutório com observância do legal formalismo.
É, pois, o momento de ser proferida a decisão instrutória, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 307.º do Código de Processo Penal.
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O Tribunal é o competente.
O Ministério Público e o assistente têm legitimidade para a ação penal.
Não existem nulidades ou questões prévias de que cumpra conhecer.
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“Preceitua o art. 286º, nº 1, do C. P. Penal ao cuidar da finalidade e âmbito da instrução, que esta fase do processo visa o reconhecimento jurisdicional da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (Cfr. José Souto de Moura, Inquérito e Instrução, Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina, 1989, p. 125.). Trata-se de uma fase jurisdicional (facultativa) em que o juiz de instrução investiga autonomamente o caso que lhe é submetido, praticando os actos necessários a fundamentar a convicção que lhe permita proferir a decisão final de submeter ou não a causa a julgamento, ou seja, de pronunciar ou não pronunciar o arguido (Cfr. art. 308º, nº 1, do CPP.).” (Ac. R. Guimarães de 9/1/2017, (REL. Ausenda Gonçalves, www.dgsi.pt).
Assim, a prova produzida em sede de instrução tem carácter meramente indiciário, conforme arts. 308.º n.ºs 1 e 2 e art. 283.º n.º 2 do Código de Processo Penal, ou seja, não é uma prova tão exigente como é aquela que tem na base a condenação de um arguido em audiência de discussão e julgamento, a qual não se fazendo aí, levará a que esse arguido beneficie do princípio in dubio pro reo e seja absolvido.
Constituem indícios suficientes, os vestígios, suspeitas, resoluções, sinais, indicações suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e é o arguido responsável por ele.
Contudo, para a pronúncia não é necessária uma certeza da existência da infração, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado.
Dir-se-á, desde já, que não se trata na instrução de recolher prova de que o crime denunciado não se verificou. Trata-se de apurar se, em face das diligências probatórias realizadas, foram ou não recolhidos indícios suficientes da prática pelos arguidos, de factos que constituam crime.
Os presentes autos tiveram início com a queixa do assistente, dando conta de uma invasão da propriedade por parte dos ora arguidos, que entraram na sua casa sita na travessa da ..., n. …, Barcelos, suspeitando que utilizaram uma chave que desaparecera uns dias antes.
Inquirido a fls. 34 e ss., o assistente disse então que a mencionada chave estava escondida no exterior da habitação em causa para o caso de algum trabalhador necessitar de ali entrar. E mais disse que comprou aquela casa e foi alertado por um trabalhador (D. F.) que ali estava a fazer obras de restauro para a presença dentro daquela casa, de duas pessoas estranhas. E que mais tarde, esta pessoa veio a reconhecer, apenas uma delas, ou seja, o arguido, pai do assistente, quando a reviu. E deduz que a segunda pessoa seria a arguida, por ser a atual companheira do arguido.
Foi inquirido D. F., a fls. 36 e disse ter detetado a presença de duas pessoas na casa do assistente, onde se encontrava a fazer trabalho de pintura. E contou ao assistente, que, pela descrição física, suspeitou tratar-se do pai e companheira, ora arguidos. Apenas reviu mais tarde o arguido, que afirma ser quem viu na casa do assistente. Mas não chegou a ver a companheira pelo que não pode confirmar se ela esteve também em casa do assistente.
Interrogados como arguidos a fls. 42 e 47, o arguido refutou os factos e a arguida nada declarou. No dia de hoje refutaram os factos.
Ora, procedendo à análise conjugada da prova assim elencada, verifica-se que, desde logo, o que não se indicia é que o assistente habitasse a referida casa. É ele próprio que alega, na sua acusação particular, que comprou a casa referida na acusação pública, da qual não faz a sua habitação principal. E dizemos nós, nem sequer, secundária, porque nada é referido por nenhuma das testemunhas, como aliás, tudo indica, a casa fora comprada e estava em obras de restauro. O inquérito não averiguou se o assistente e sua companheira viviam, ou alguma vez viveram, na referida casa.
Ou seja, não se indicia a matéria do ponto a) da acusação quando aí refere que o número .. da travessa da ..., em Barcelos, é a casa de residência do assistente.
Dispõe o artº 190º, nº 1 do C. Penal:" Quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias".
Conforme decorre do facto da referida disposição legal se encontrar integrada no Título I, da Parte especial - Dos crimes contra as pessoas -, e, concretamente no Capítulo VI - Dos crimes contra a reserva da vida privada - é evidente que não se trata de um crime contra o património, mas sim contra as pessoas, garantindo a reserva da sua vida privada e a inviolabilidade do seu domicílio.
Não é a propriedade ou a titularidade formal da casa que está em causa.
Trata-se de um crime que visa proteger a inviolabilidade do domicílio da pessoa que efetivamente está a habitar a casa, a qual é assegurada em primeira linha pelo artº 34º, nºs 1, 2 e 3 da Constituição da República e está ligada à reserva da intimidade da vida privada e familiar consagrada constitucionalmente no artº 26º, nº 1.
E perante uma inexistente indiciação da residência efetiva do assistente na casa referida na acusação (declarações do assistente na acusação particular) tem de concluir-se pela improbabilidade de, em audiência de julgamento, e com os elementos de prova até agora recolhidos, virem os arguidos a ser condenados pelo crime que lhes vem imputado na acusação, concluindo-se, necessariamente, pela decisão de não pronúncia.
*
Nesta conformidade, não pronuncio A. B. e J. P., pelas razões de facto e direito que lhe vêm imputadas na acusação pública e na acusação particular, nos termos do artigo 307º nº 1 do CPP havendo apenas que ordenar o arquivamento dos autos, o que se determina.
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Custas a cargo do assistente, fixando em 2 UC a taxa de justiça devida. Declaro cessada as medidas de coação.»
*
Inconformado, o assistente P. F. interpôs recurso, apresentando a competente motivação, que remata com as seguintes conclusões:

«1. No despacho decisório proferido na instrução, entendeu a Mm. Juiz de Instrução Criminal, não estar indiciada a matéria do ponto a) da acusação;
2. Embora firmando a verificação de todos os elementos objetivos do tipo de crime em causa, assim como foi corroborada a existência de prova cabal da prática pelos arguidos dos factos pelos quais vem acusados, nomeadamente pelas declarações do Assistente e ainda pelas declarações da testemunha D. F., testemunha direta, que presenciou os factos e que os relatou com precisão e isenção nas declarações prestadas;
3. Certo é que, resulta do despacho que o tribunal recorrido, apenas recusa pronunciar os arguidos por, a seu ver, faltar a indiciação nos autos de que aquela morada correspondesse à residência do Assistente;
4. Ora, no momento da prática dos factos o Assistente não se encontrava a residir naquela habitação porque, conforme resulta dos autos, a mesma encontrava-se a ser alvo de obras de remodelação;
5. No entanto, o facto de o Assistente ter pernoitado durante o período das obras de remodelação em outro lugar, não significa, salvo melhor e mais douto entendimento, que aquela não continuasse a ser a sua habitação própria e permanente;
6. Pois aquela era e é a única habitação do Assistente;
7. Aliás, foi aquela a morada indicada pelo Autor junto dos OPC, bem como a morada indicada no pedido de proteção jurídica;
8. Assim, salvo o devido respeito, que é muito, resulta indiciado dos autos que o Assistente residia naquela morada;
9. Pelo exposto, é manifesto que se verificam indícios mais que suficientes da prática, pelos Arguidos do crime pelo qual se acham indiciados;
10. Razão pela qual devem os mesmos ser levados a julgamento — uma vez que, atendendo à factualidade acima exposta, dúvidas não restam que por aqueles foi praticado o crime de violação de domicílio, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 190º, n.º 1 e 14º, n.º 1 e 26º do Código Penal;
11. E que tais indícios são mais que suficientes para que se entenda que a probabilidade de, em julgamento, aqueles serem condenados é largamente superior àquela outra de serem absolvidos;
12. Ademais, ainda que dúvidas houvessem haver sobre aquela matéria, deveria a mesma ser relegada para apurar em audiência de discussão e julgamento, já que, havendo indícios suficientes da prática do crime — o que é inequívoco — deverá ser proferido despacho de pronúncia;
13. Daí que, não tendo o tribunal recorrido pronunciado os Arguidos tenha violado o disposto na primeira parte do n.º 1 do artigo 308º C.P.P.
14. Pelo que, deverão V/ Exas. revogar o despacho recorrido e substituí-lo por um outro que determine a pronúncia dos Arguidos J. P. e A. B. pela prática do crime que lhes é imputado e nos moldes constantes da acusação pública e pela acusação particular contra si deduzida pelo Assistente.
*
O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães com o regime e efeito próprios.

O Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu, concluindo do seguinte modo:

«A) A M.ª Juiz a quo serviu-se de um conceito muito redutor do que possa ser uma habitação para efeitos da tutela da privacidade conferida pela norma no n.º 1 do art. 190.º do Código Penal;
B) O facto de o assistente ter comprado um prédio e nele estarem a ser efectuadas obras de remodelação, não vivendo naquele espaço, não impede que esse prédio se possa considerar a sua habitação;
C) Com efeito, tudo numa casa, desde a destinação dada a cada uma das suas dependências, a cor das paredes, os soalhos, os tectos, os móveis escolhidos, os quadros e fotografias pendurados nas paredes, etc., é revelador da personalidade da pessoa que ali habita, habitou ou vai habitar;
D) Nas palavras do Professor Costa Andrade, o domicílio tem de ser visto como uma projecção espacial da pessoa que reside em certa habitação, uma forma de uma pessoa afirmar a sua dignidade humana, e só a ela, pois, assistir o domínio e a disposição sobre o espaço da habitação;
E) Encarados os factos nesta perspectiva, logo se percebe que devia ter sido proferido despacho de pronúncia;
F) Porém, se a M.ª Juiz a quo tinha dúvidas sobre se o prédio em causa podia ser considerado uma habitação, para efeitos do art. 190.º do Código Penal, poderia ter lançado mão dos seus poderes de investigação oficiosa;
G) Mas mesmo que concluísse, como concluiu, não estarmos em presença do crime de violação de domicílio, nem por isso o comportamento descrito na acusação deixava de ter relevância penal;
H) Passando a assumir as vestes do crime de introdução em lugar vedado ao público;
I) E à M.ª Juiz a quo competia ter lançado mão do mecanismo da alteração não substancial dos factos, com vista a eventual despacho de pronúncia.

Termos em que, na procedência do recurso interposto pelo assistente, deverá ser ordenada a prolação de despacho de pronúncia; ou, se se entender que não está indiciariamente demonstrado que o espaço em causa integrava o conceito de habitação, deve ser ordenada a reabertura do debate instrutório para que se lance mão do mecanismo previsto no n.º 1 do art. 303.º do CPP, tendo em vista decisão de pronúncia pela prática do crime de introdução em lugar vedado ao público.»

Nesta Relação, o Exmo. Senhor Procurador-Geral adjunto proferiu douto e fundamentado parecer, no qual se pronuncia no sentido de que no lugar de se saber se o imóvel em causa nos autos constitui ou não a morada do assistente, a questão deverá ser deslocada para uma outra prévia a essa e que poderá prejudicar o conhecimento da primeira, que é a de saber se existem indícios bastantes que permitam asseverar terem os arguidos penetrado no imóvel do assistente, a qual, em face dos elementos probatórios constantes dos autos só pode merecer resposta negativa, concluindo assim pela improcedência do recurso e manutenção da decisão de não pronúncia.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem resposta.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (1).
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1. Questão a decidir

Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, a questão suscitada é a de saber se da prova produzida em sede de inquérito e de instrução resultam indícios suficientes da prática, pelos arguidos A. B. e J. P., de um crime de violação de domicílio, previsto e punível pelo artigo 190.º, n.º 1 do Código Penal.
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3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

A decisão instrutória recorrida concluiu «pela improbabilidade de, em audiência de julgamento, e com os elementos de prova até agora recolhidos, virem os arguidos a ser condenados pelo crime que lhes vem imputado na acusação», motivo pelo qual não os pronunciou pela prática de um crime de violação de domicílio, previsto e punível pelo artigo 190.º, n.º 1 do Código Penal.
Contra o que se insurge o recorrente, argumentando que os elementos de prova constantes dos autos sustentam uma indiciação suficiente de verificação dos pressupostos de que depende a futura condenação dos arguidos pela prática daquele crime.
Vejamos.
A instrução é uma fase processual que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, com vista a submeter ou não a causa a julgamento, com base em critérios de legalidade (2).
Em casos como os dos autos, em que com a instrução se pretende reagir a um despacho de acusação, é este que fixa o objeto do processo, definindo a temática dentro da qual se pode desenvolver a atividade investigatória e cognitória do Juiz de Instrução. Daí decorrendo a razão de ser da proibição da pronúncia do arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação, nos termos do disposto nos artigos 303.º, n.º3, e 309.º, n.º1, do Código de Processo Penal.
Dentro deste condicionalismo legal, se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificados os pressuposto de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos respetivos factos. De contrário, deverá ser proferido despacho de não pronúncia, nos termos do disposto no artigo 308.º, nº 1, do Código de Processo Penal.

No caso em apreço, e como já vimos, a decisão instrutória conhece de mérito, pois nela se conclui pela não pronúncia dos arguidos. Não obstante, e com exceção da factualidade constante da al. a) da acusação (que considera não estar indiciada) omite por completo a decisão fáctica relativamente à restante matéria fática objeto do processo, não elencando ou por qualquer forma especificando todos os demais factos descritos na acusação que considera e/ou que não se considera suficientemente indiciados.
Passando logo à parte da subsunção dos factos ao direito, em que considera que não estando indiciada a factualidade constante da al. a) da acusação: «que o nº 14 da Travessa da ..., em Barcelos, seja a casa de residência do assistente», então nunca poderia considerar-se que a conduta dos arguidos descrita na acusação integrasse o crime de violação de domicílio pelo qual estavam acusados, sendo por isso desnecessário tomar posição sobre os demais factos constantes da acusação.
Mas não é bem assim.
Mesmo aceitando a falta de indiciação do referido facto da al. a), competia à Senhora Juíza de Instrução verificar se o demais comportamento dos arguidos descrito na acusação mantinha relevância penal, ainda que eventualmente com outra qualificação jurídica, suscetível de ser introduzida nesta fase no objeto do processo, através do mecanismo da alteração não substancial dos factos permitido pelo artigo 303.º, nºs. 1 e 5 do Código de Processo Penal. Para o que obviamente tinha primeiro de tomar posição sobre existência, ou não, de indiciação suficiente de toda a restante matéria fática constante da acusação.
Repare-se ainda que, nesta instância, o Ministério Público emitiu douto parecer em que pertinentemente desloca a questão para uma outra, que é a de saber se existem indícios bastantes que permitam asseverar terem os arguidos penetrado no imóvel do assistente, concluindo inclusive pela sua inexistência.
Só que em nosso entendimento, e com o devido respeito por opinião contrária, o Tribunal da Relação não pode fazer a apreciação em primeira linha da prova indiciária, com vista a valorá-la para efeitos da suficiência ou insuficiência de indícios, sem saber qual a base indiciária tida por assente na 1ª instância, como acontece no caso.
Vejamos agora as consequências de tal omissão.
O despacho de não pronúncia, enquanto ato decisório do juiz, tem necessariamente de ser fundamentado, o que significa que nele devem ser especificados os motivos de facto e de direito da respetiva decisão (3), de forma a permitir a sua impugnação e o reexame da causa pelo tribunal de recurso.
Aliás, no que respeita à decisão instrutória de não pronúncia que conheça do mérito, o cumprimento dessa exigência, nomeadamente no que respeita à indicação dos factos indiciados e não indiciados, é também essencial para a fixação dos efeitos do caso julgado.
Sendo que se pode dizer que a decisão instrutória de não pronúncia decidiu sobre o mérito da causa, sempre que não indiciados os factos da acusação (ou do requerimento de abertura da instrução, conforme os casos), ou apesar de indiciados todos ou alguns deles, os factos descritos, se conclua que eles não constituem crime ou que o arguido não pode ser responsabilizado criminalmente pelos mesmos.
Nestas situações, uma vez transitado o despacho de não pronúncia, o processo onde foi proferido só pode ser reaberto através do recurso de revisão, nos termos prevenidos nos artigos 449.º, n.º2, e 450.º, nº.1, al. b), do Código de Processo Penal (4) e, se for instaurado um outro processo pelos mesmos factos, o arguido poderá arguir, com sucesso, a exceção do caso julgado.
Já assim não acontecerá, quando a não pronúncia do arguido e o consequente arquivamento do processo se fica a dever à não indiciação dos factos essenciais para a integração dos elementos constitutivos do crime imputado ao arguido, no requerimento de abertura da instrução.
É que, neste último caso, porque se trata de insuficiência de prova indiciária, caso surjam novos elementos de prova, o processo pode ser reaberto, assim como pode, também, ser instaurado um novo processo, enquanto não ocorrer a prescrição.
Consequentemente – e como se escreveu no acórdão do TRG, de 27.09.2004, proferido no proc. n.º1008/04.2, relatado pelo Desembargador Heitor Gonçalves (5) – «a reabertura do processo arquivado pelo despacho de não pronúncia depende indubitavelmente dos respectivos pressupostos factuais. É por essa razão que o Sr. Juiz de Instrução, ao proferir despacho de não pronúncia pela não verificação dos pressupostos materiais da punibilidade do arguido, deve descrever e especificar quais os factos que considera indiciados e os que considera não indiciados, indicando os respectivos fundamentos ou motivação, pois só dessa a forma se podem definir os verdadeiros efeitos do caso julgado e se garantem cabalmente os direitos de defesa».
Ora, no caso sub judice, já vimos que o despacho de não pronúncia recorrido, apesar de conhecer de mérito, decidindo que a arguida não pode ser responsabilizada pelos factos que lhe são imputados, não enumera os factos alegados no requerimento de abertura da instrução que considera suficientemente indiciados e não suficientemente indiciados, limitando-se a tecer considerações sobre a prova produzida.
Como consequência de tal omissão, parte significativa da doutrina e jurisprudência pronuncia-se pela nulidade, embora entendendo alguns ser uma nulidade insanável e de conhecimento oficioso e, outros, sanável e dependente de arguição. (6)
Não perfilhamos de tal posição, antes seguindo aqueles que vêem na omissão da descrição factual do despacho de não pronúncia que conhece de mérito uma irregularidade. (7)
Em matéria de invalidades, o nosso sistema processual penal consagra o princípio da legalidade das nulidades, plasmado no nº 1 do artigo 118º, do Código de Processo Penal, segundo o qual, a violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei. Sendo o ato irregular nos casos em que a lei não determinar expressamente a nulidade (8).
Ora, o certo é que não há norma que determine a nulidade como consequência da omissão ou deficiência da fundamentação das decisões jurisdicionais em geral, nem, tão pouco, qualquer norma específica que comine com a nulidade a omissão ou deficiência de fundamentação da decisão instrutória de não pronúncia.
Contrariamente, aliás, com o que acontece com as sentenças e decisões instrutórias de pronúncia, nas quais se impõe a enunciação dos factos provados/indiciados e não provados/indiciados, sob pena de nulidade. (9)
Afigura-se-nos, assim, que a omissão da descrição dos factos indiciados e/ou não indiciados na decisão instrutória de não pronúncia que conhece de mérito, configura apenas uma irregularidade.
Só que essa irregularidade influi na decisão da causa, na medida em que só depois da enumeração dos factos indiciados e/ou não indiciados se podia decidir se os primeiros são ou não suficientes para a sujeição da arguida a julgamento, pelo crime imputado no requerimento instrutório.
Sendo que a omissão da descrição fática na decisão instrutória de não pronúncia, consubstancia um hiato parcial da respetiva decisão jurisdicional, que afeta o seu valor e impede que o tribunal ad quem sobre ela se pronuncie.
Impõe-se, assim, ordenar a reparação de tal irregularidade, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.

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III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães, em conceder parcial provimento ao recurso, julgando inválida a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra, que supra a omissão consistente na falta da enumeração de todos os factos indiciados e/ou dos não indiciados, por referência aos descritos na acusação.
Sem custas.
*
Guimarães, 13 de setembro de 2021
(Elaborado e revisto pela relatora)

Fátima Furtado
Armando Azevedo


1. Cfr. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
2. Cfr. artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
3. Cfr. artigo 97.º, n.º 5 do Código de Processo Penal.
4. Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 198 e 199.
5. Disponível em www.dgsi/jtrg.pt
6. Cfr. entre outros, a título exemplificativo, os acórdãos, ambos do TRP, de 17.02.2010, proferido no proc. nº 58/07.1TAVNH.P1, relatado pela Desembargadora Eduarda Lobo e de 21.01.2015, proferido no processo nº 9304/13.1TDPRT.P1, relatado pela Desembargadora Lígia Figueiredo, disponíveis em www.dgsi/jtrp.pt.
7. Cfr., entre outros, a título exemplificativo, o acórdão deste TRG, datado de 09.07.2009, proferido no proc. nº 504/07.4GBVVD-A.G1, relatado pelo Desembargador Cruz Bucho e o acórdão do TRP, de 10.12.2014, proferido no proc. nº 281/12.7TAVLG.P1, relatado pela Desembargadora Luísa Arantes, disponíveis em www.dgsi/jtrp.pt.
8. Cfr. n.º 2 do artigo 118.º do Código de Processo Penal.
9. Cfr. artigos 379.º, nº 1, al. a) e 283.º, n.º 3, ex vi do artigo 308.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal.