Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
665/16.1T8VVD.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: INTERPRETAÇÃO DO PEDIDO
NULIDADE
ANULABILIDADE
CADUCIDADE DO DIREITO À INVOCAÇÃO DA ANULABILIDADE
NÃO CUMPRIMENTO DO NEGÓCIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/12/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDÊNCIA DA APELAÇÃO
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Quando o autor alega factualidade que se subsume a duas causas de pedir diversas, uma que leva à nulidade do acto e outra que leva à anulabilidade, e apenas formula pedido no sentido de o acto ser declarado nulo, sendo óbvio que o resultado material que pretende pode ser alcançado quer pela via da nulidade quer da anulabilidade, pode o Tribunal, sem violar o disposto no art. 609º,1 CPC, interpretar o pedido formulado de forma a considerar que também está pedida a anulabilidade, porque: a) tal corresponde à tutela pretendida pelo autor, ainda que deficientemente expressa; b) a nulidade é um vício mais grave que a mera anulabilidade, donde a possibilidade de o Tribunal anular o negócio em vez de o declarar nulo é um minus em relação ao que foi pedido; c) os réus não são prejudicados em nada, pois a causa de pedir consta da petição inicial, nas suas contestações referiram-se a essa questão, embora desvalorizando-a, e nos temas da prova foram incluídos, sem reclamação da parte dos réus, factos subjacentes a essa causa de pedir; d) solução contrária seria um atentado à economia processual, porque, podendo a questão ser já pacificada neste processo, iria implica a necessidade de o autor intentar uma segunda acção, para obter o mesmo resultado, formulando de forma clara o pedido que aqui ficou esquecido.

II- Improcede a invocação da caducidade desse direito da autora a pedir a anulabilidade do negócio, uma vez que ficou provado que não foi entregue qualquer quantia a título de preço, facto esse que tem necessariamente de ser visto como o negócio não estar cumprido, para os efeitos do disposto no art. 287º,2 CC.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

M. C. intentou contra A. L. e J. M. a presente acção declarativa sob a forma de processo comum na qual pede que:

a) Seja declarada a nulidade do negócio de compra e venda das motorizadas identificadas na petição inicial, com fundamento na invocada simulação, decretando-se a sua restituição ao património conjugal;
b) Seja decretado o cancelamento do registo da aquisição a que respeita a Ap. N 03607, relativamente à motorizada com a matrícula NF;
c) Seja decretado o cancelamento do registo de aquisição a que respeita a Ap. N.º …, relativamente à motorizada com a matrícula NU
Subsidiariamente, para a hipótese de vir a concluir-se que o negócio é válido, pede que seja condenado o 1.º Réu a restituir à Autora a quantia de € 20.000,00 acrescida dos respectivos juros legais que se vencerem até efectivo e integral pagamento.
Sem prescindir, e ainda subsidiariamente, pede que seja condenado o 1.º Réu a restituir à Autora a quantia de € 20.000,00, com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa.

Para tanto alega, em síntese, que a Autora e o 1.º Réu casaram, em regime de comunhão de adquiridos, no dia - de Abril de 1985, encontrando-se separados de facto desde Dezembro de 2013 e divorciados desde - de Junho de 2016.

A autora, para acautelar a integralidade do património conjugal intentou providência cautelar de arrolamento contra o 1º Réu tendo requerido o arrolamento de todos os bens comuns do casal, entre os quais constavam dois motociclos da marca “Harley Davidson” com as matrículas NF e NU, com o valor de mercado de € 20.000,00 (vinte mil euros) cada uma, adquiridas na pendência do matrimónio. Porém, a Autora teve conhecimento que o 1.º Réu transferiu para o Réu F. M. aquelas motorizadas. Trata-se de negócio simulado, para enganar e defraudar a Autora, pois o preço não foi pago pelo 2.º Réu, nem foi recebido pelo 1.º Réu, nunca o comprador tomou posse das motos, nem praticou qualquer acto típico de quem é proprietário, e o vendedor (1.º Réu) continuou a ter a posse dos veículos, como sempre teve, e manteve sempre uma atitude típica de quem é proprietário, continuando a circular com os aludidos veículos, suportando todas as despesas relativas à fruição dos mesmos, tais como imposto único de circulação e prémios de seguro.

E para a hipótese de se considerar válido o negócio jurídico acima referido sempre a Autora tem direito a reaver metade do valor das motas em causa, correspondente à sua meação no património comum.

O Réu A. L. contestou, impugnando parcialmente a matéria alegada na Petição Inicial, alegando em síntese que os dois motociclos referidos não foram arrolados, tendo pelo contrário as partes, no que a eles respeita, sido remetidos para os meios comuns.
Mais alega que os motociclos referidos foram comprados e alienados na constância do matrimónio, no âmbito de um negócio com o co-Réu F. M., o qual vendeu ao casal diverso material, destinado à construção e decoração de um lagar de azeite adquirido por Autora e Réu, tendo autora e réu acordado, a proposta daquele, que os referidos motociclos lhe seriam entregues em pagamento desse material. E assim foi feito. Tudo com a concordância da autora.

O Réu F. M. contestou, impugnando parcialmente a matéria alegada na Petição Inicial e invocando a excepção dilatória de ilegitimidade processual dos Réus, por preterição de litisconsórcio necessário, alegando, em síntese, que o veículo NF não é propriedade do Réu desde 14.01.2016, data em que foi vendido e registado a favor de L. L.. Assim, a decisão proferida nos presentes autos só produzirá o seu efeito útil normal se o actual proprietário da NF intervier no processo, pelo que estamos perante uma situação de litisconsórcio passivo necessário e, ao não ter sido demandado o actual proprietário da NF, estamos perante uma situação de ilegitimidade processual.
No mais, reproduz a alegação do co-réu, de ter vendido ao casal bens variados, no valor de € 21.200,00, e como aqueles não dispunham de dinheiro bastante para pagar, ele propôs ao Réu A. L. que o preço fosse pago através da entrega das motos HARLEY DAVIDSON, com as matrículas NF e NU, o que o Réu A. L. aceitou, e entregou as motos ao contestante, assim pagando o preço.

Por despacho proferido a fls. 99 a 100 dos autos foi julgada improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade invocada pelo Réu F. M..

Teve lugar a audiência de julgamento, e a final foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu os réus do pedido.

Inconformada com esta decisão, a autora dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos, e com efeito meramente devolutivo, findando a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

I- Do Objeto do Recurso

1- O presente recurso tem por objecto a douta sentença proferida no âmbito do processo supra identificado – para a qual remetemos e que aqui damos por integralmente reproduzida por questões de economia processual – na medida em que decide: “… julgo improcedente a acção e, em consequência, absolvo os Réus do pedido.”
2- A autora, ora recorrente, pese embora o respeito e admiração, que é muito, pelo Tribunal a quo, não se pode conformar com o teor da decisão proferida, por diversas razões, de facto e de direito, que elencará infra.
3- Refira-se ainda que o presente recurso terá por objecto a reapreciação de prova gravada, pelo que ao prazo de apresentação de recurso acrescem 10 (dez) dias, nos termos do artigo 638º, nº7 do C.P.C.

II- Contextualização Prévia.

4- Nesta sede, e por questões de brevidade e economia processual, remetemos para o corpo das motivações, nomeadamente para o capítulo com título homónimo.

Assim,

III- Do erro no julgamento e da decisão que deveria ter sido tomada

A) Os concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados.

5- Considera a recorrente que andou mal o tribunal a quo ao considerar como não provados ou não integralmente provados os seguintes pontos dos “Factos não provados”:

-os factos a que se referem os artigos 11, 12, 14, 15, 16, 18, 19, 20, 21, 36 da Petição Inicial, que consideramos integralmente reproduzidos por questões de economia processual e que foram, inclusive, transcritos na motivação que antecede, para a qual remetemos.
6- Bem assim, deverá ser acrescentado um outro facto ao rol dos factos dados como provados, com a seguinte redacção: “Os réus apresentaram 4 qualificações distintas para o negócio em causa: a 1ª em sede do apenso de arrolamento, a 2ª nas declarações de venda apresentadas na Conservatória do Registo Automóvel, uma 3ª nas suas contestações e uma última em sede declarações de parte.”
7- Antes de mais, contudo, cumpre referir que vários dos factos dados como provados na sentença vão de encontro à tese da ora autora – sendo que, a ver desta, o elenco dos factos provados apenas se encontra incompleto.
8- Para sufragar este entendimento, a recorrente baseia-se na prova produzida, quer a prova documental já junta aos autos, quer a prova testemunhal e ainda os declarações/depoimentos de parte do 2º réu e da autora.

B) Dos concretos meios probatórios que, a ver do recorrente, deveriam ter conduzido a uma decisão diversa da recorrida.

I) DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA M. S., prestado no dia 27/11/2018, pelas 10:43, no Tribunal Judicial de Vila Verde.

9- As passagens relevantes do depoimento desta testemunha já foram transcritas supra na motivação, motivo pelo qual remetemos para as mesmas e as damos aqui por integralmente reproduzidas.
10- É possível encontrar no depoimento desta testemunha rastos da verdade, que os réus procuram ocultar, profundamente reveladores quer do negócio ficcionado pelos réus, com a intenção de, com esse pacto, enganarem e prejudicarem a autora.
11- Senão vejamos, a testemunha confirma que o suposto negócio celebrado entre os réus foi feito já depois da separação de facto da autora e do réu, isto é, depois de ser iminente a apresentação do divórcio (o que motivava o interesse e intenção dos réus de sonegar bens ao património conjugal, enganando e prejudicando assim a autora).
12- Do seu depoimento confirma-se também que entre os réus existia uma relação de amizade antiga, reforçada por uma proximidade de vizinhança, que facilitou, por certo, a realização do negócio simulado.
13- A testemunha em causa, apesar das ligações aos réus, admitiu também que o réu A. L., seu irmão, continuou a andar com as motas objecto do negócio e que, inclusive, celebrou contratos de seguro sobre aquelas.
14- Não podemos deixar de notar também que a testemunha demonstra que a autora não tinha conhecimento de nenhum dos negócios;
15- Bem assim, o depoimento desta testemunha, tal como todas as outras e a prova documental, afasta-se do suposto negócio de compra e venda ou dação em cumprimento das pedras que os réus alegam estar subjacente à transmissão das motas.
16- Em suma, do depoimento desta testemunha, ficam provados factos a que se referem os artigos 11, 12, 14, 15, 16, 18, 19, 20, 21, 36 da Petição Inicial, que a autora já indicou supra.

II) Depoimento de A. F., prestado no dia 20 de Fevereiro de 2019, pelas 16:16, no tribunal judicial de Vila Verde.

17- Uma vez que o depoimento desta testemunha já foi transcrito supra, na motivação, remetemos para as mesmas, por questões de economia processual.
18- Como é bom de ver, também esta testemunha vem atestar que a autora saiu da casa de morada de família em “meados” de Dezembro –o que indica que foi antes do negócio alegadamente celebrado entre os réus.
19- Ademais, atesta que o 1º réu continuou a utilizar pelo menos uma das motas, com toda a probabilidade.
20- e que, inclusive, cada uma dessas motas deveria ter um valor patrimonial de, pelo menos, 17.500,00€ (dezassete mil e quinhentos euros).
21- Assim, o depoimento desta testemunha vem demonstrar os factos 19, 20, 21 e 22 já indicados supra pela ora recorrente.

III) DECLARAÇÕES DE PARTE DO RÉU F. M., prestado no dia 20/02/19, pelas 15:54, no tribunal judicial de Vila Verde.

22- As próprias declarações de parte do 2º réu vêm corroborar a tese da autora, de forma involuntária, motivo pelo qual se procedeu à transcrição das passagens relevantes de tais declarações supra, as quais damos aqui por integralmente reproduzidas.
23- Como é bom de ver, o próprio 2º réu refere, numa primeira fase, que não sabe se a autora teve conhecimento do negócio, admitindo, contudo, que ela não teve qualquer intervenção nas negociações – sendo certo que, no final das suas declarações, já afirma que a autora teve conhecimento do negócio, apesar de não saber dizer a razão de ciência por trás deste entendimento.
24- Por outro lado, ficou demonstrado que a forma como o negócio foi alegadamente celebrado não se coaduna com a normalidade dos negócios entre particulares – os valores das pedras alegadamente trocadas não são consistentes, não existe nenhuma factura, recibo, comprovativo de pagamento ou guia de transporte, o 2º réu (que se dedica à venda de obras de arte) virou pedreiro e negociante de materiais de construção, os pagamentos eram todos feitos em numerário, sem qualquer rasto ou documento comprovativo, para além da memória selectiva do 2º réu quanto a diversos aspectos do negócio…
25- Enfim, as declarações de parte do 2º réu são esclarecedoras nas suas incongruências, na medida em que atestam a autêntica farsa que foi o negócio ora em crise.
26- O que “salta à vista” é que, em boa verdade, quem sempre utilizou pelo menos uma das motas em causa foi sempre o 1º réu, que detinha a posse da mesma, como ficou amplamente demonstrado não só por este depoimento como também pela restante prova produzida.
27- Ademais, o próprio admite que era vizinho do 1º réu “desde a infância”, pelo que tinha, naturalmente, fortes ligações com o mesmo – tanto é que lhe “cedeu o negócio” da compra de pedras.
28- Se dúvidas houvesse acerca da simulação do negócio, elas ficam dissipadas com as declarações de parte do 2º réu, que procurou carrear para o processo a poeira e a má-fé com que tentou e logrou iludir o tribunal, não só com a mentira mas sobretudo com a mentira absurda, com a contradição constante, que não só desmente as teses dos réus, constantes das contestações, como confirma a tese da autora.
29- Fica, das suas declarações, evidente que o negócio que alegam estar subjacente à suposta transmissão das motas não passou de uma invenção ridícula, sem qualquer suporte factual que permita sequer duvidar de que possa alguma vez ter acontecido.
30- Relembramos que o 2º réu se dedica, como ficou evidente, à venda de velharias e obras de arte e tentou, ao longo do processo e do seu depoimento, demonstrar que afinal vendeu ao 1º réu pedras e outros materiais de construção, sem, porém, carrear para os autos comprovativos de compra, venda ou transporte desses materiais (pese embora tenha sido notificado para o efeito pelo tribunal).
31- Este, para agudizar o absurdo do seu depoimento, chega mesmo a dizer que não tinha documentos ou facturas, pois, pese embora o negócio tenha sido celebrado no âmbito da sua actividade comercial (alegadamente), não necessitava de facturas, facto que terá aprendido com o seu avô e o seu pai.
32- O 2º réu inaugurou, ainda, no seu depoimento, uma quarta tese acerca do negócio que estaria subjacente à transmissão da mota, depois de ter sido encurralado nas suas contradições: a de que, afinal, não comprou pedras e outros materiais nem os vendeu ao 1º réu, tendo-se limitado a “ceder-lhe” o negócio, contrariando todas as teses anteriores.
33- Assim, analisando de forma crítica, à luz das regras da experiência, as declarações do 2º réu, e conjugando-as com a prova documental e testemunhal constantes dos autos, ficam evidentemente demonstrados todos os factos enunciados no capítulo anterior, ficando claro que ambos os réus procuraram, ab initio, ficcionar o negócio, criando a aparência de uma realidade negocial que na verdade nunca existiu e que nunca quiseram, como o intuito de enganar e prejudicar a autora, factos que, apesar de absurdos e por demais evidentes, conseguiram ludibriar o tribunal a quo, com mestria e desfaçatez que temos de reconhecer, mas que não podemos admitir.

IV) Declarações de parte da M. C., prestado no dia 17/5/2019, pelas 10 horas, no Tribunal Judicial de Vila Verde.

34- As declarações de parte da autora também permitem elucidar algumas questões que não foram tidas em conta pelo tribunal a quo, tal como já se transcreveu no corpo das motivações, para as quais remetemos.
35- Antes de mais, importa referir que as declarações de parte da autora se revelaram coerentes e de perfeita harmonia, não só com as regras da experiência como também com a restante prova constante dos autos.
36- Ao seu depoimento, claro e inequívoco, não podemos deixar de denotar, por não ser despiciendo, o facto de o 1º réu nunca ter usado desta possibilidade (prestar declarações), pois poderia ter explicado os fundamentos da sua tese mas preferiu remeter-se a um silêncio, do qual não podemos deixar de tirar as devidas ilações.
37- Ao contrário do 1º réu, a autora demonstrou que a tese dos réus é absurda pois o casal nunca teve dívidas para com o 2º réu, nunca lhe comprou qualquer dos materiais descritos nos autos;
38- Para além disso, demonstrou os contornos em que saiu de casa, que motivaram, por certo, a ânsia dos réus na elaboração da simulação objecto dos autos.
39- Também ficou claro, do seu depoimento, que o casal, e nomeadamente o 1º réu atribuíam grande valor as motas objecto dos autos, referindo que o réu as valorizava e que as mesmas teriam não só elevado valor afectivo (que era de tal ordem elevado que era intenção do casal dar cada uma das motas aos seus filhos) mas também comercial, o que certamente motivou o comportamento ardiloso dos réus.
40- Em suma, das declarações da autora, ficam provados factos a que se referem os artigos 11, 12, 14, 15, 16, 18, 19, 20, 21, 36 da Petição Inicial, que a autora já indicou supra.

V) Da prova documental junta aos autos.

41- Para além da prova testemunhal, também a prova documental carreada para os autos – e, de certo modo, a ausência de alguma prova documental, como veremos - vem atestar a tese da autora.
42- Desde logo, as cópias dos procedimentos cautelares (fls. 30 a 58) confirmam que o 2º réu foi testemunha indicada pelo 1º réu naqueles autos, conforme foi alegado pela autora (e que demonstra o compadrio entre os réus e a ausência de qualquer credibilidade do 2º réu, que já naquele procedimento cautelar procurou auxiliar o 1º réu na ocultação de património do casal, facto que foi notado pelo tribunal na altura).
43- Acresce que, naquele arrolamento, o 1º réu refere, na sua defesa, e no que concerne à verba referente às pedras, que as mesmas foram para um acerto de contas, o que foi contrariado pelos réus em vários momentos posteriores.
44- Ademais, os documentos juntos a fls. 129 e 142 a 146 demonstram amplamente que o 1º réu tinha seguro em seu nome para, pelo menos, uma das motas – o que revela que o mesmo nunca deixou de ser o possuidor e o proprietário de facto das motas.
45- Ainda, os documentos juntos a fls. 158 a 160 e 175 e 186, vêm atestar que não foi vontade dos réus a celebração deste negócio –o qual foi declarado para efeitos do registo automóvel e configurado juridicamente pelo Tribunal a quo como uma compra e venda.
46- Isto porque, como é bom de ver, especialmente pelo documento de fls. 177 e 184, os réus optaram por qualificar o “Ato de registo requerido” como uma “Declaração para registo de propriedade (contrato verbal de compra e venda)”, quando poderiam perfeitamente ter optado pela opção “Outras causas de aquisição de propriedade” e ter referido que se tratava de um dação em cumprimento, ou eventualmente de uma permuta.
47- Por outro lado, entre miríade documentos juntos pelos réus, não se encontra uma única factura, guia ou recibo que ateste o alegado negócio celebrado – nomeadamente, a entrega e pagamento das pedras e o seu transporte -, o que, por si só, é bastante esclarecedor quanto à veracidade e bondade desse alegado negócio.
48- Aliás, notificado do despacho do Tribunal a quo para o efeito (do dia 20/02/2019), o réu F. M. não juntou os documentos em sua posse relativos à aquisição e transporte dos matérias referidos no artigo 12º da contestação do réu A. L.– porque os mesmos não existem e nunca existiram.
49- Destarte, da análise de toda esta documentação, conjugada com as regras da experiência e a restante prova, ficam claramente demonstrados os factos a que se referem os artigos 11, 12, 14, 15, 16, 18, 19, 20, 21, 36 da Petição Inicial, que a autora já indicou supra.

C) A decisão que, no entender da recorrente, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

50- Face a toda a argumentação plasmada supra, entende a recorrente que deveriam ser dados como integralmente provados os factos a que se referem os artigos 11, 12, 14, 15, 16, 18, 19, 20, 21 e 36 da Petição Inicial, do rol dos factos dados como não provados pela douta sentença, com as devidas adaptações.
51- Nesta conformidade, dando-se como plenamente provados os factos supra referidos, (ainda mais) patente se torna a existência de um pacto simulatório entre os réus no negócio que celebraram, com o expresso intuito de enganar a autora, o que resultou num prejuízo patrimonial para esta.
52- Em consequência directa destes factos, conjugados com os factos já dados como provados pela douta sentença ora em crise, verifica-se que se encontram preenchidos os requisitos da simulação, previstos no artigo 240º do Código Civil – nomeadamente, a divergência entre a vontade real e a vontade declarada pelas partes, o conluio entre as partes e o intuito de enganar terceiros – motivo pelo qual se deverá reconhecer que o negócio em crise padece de nulidade, por ser simulado.
53- Destarte, e em conformidade com o alegado supra, deverá proceder-se à declaração de nulidade do negócio em crise e de todos os que lhe sejam posteriores, devendo as motas em causa regressar à esfera jurídica patrimonial do casal (1º réu e autora), a fim de poderem ser partilhadas, devendo, naturalmente, proceder-se ao respectivo cancelamento no registo.

Ademais,

IV- Da matéria de direito

As normas jurídicas violadas, bem como o sentido com que, no entender da recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas.

A) Da simulação do negócio celebrado entre os réus, nos termos do artigo 240º do Código Civil e a violação do mesmo preceito pelo tribunal a quo.

54- Face ao exposto supra quanto à matéria de facto, e mesmo independentemente de se considerar como provada a matéria de facto que a recorrente pretende aditar ao rol dos factos provados, entende o ora recorrente que a matéria considerada provada pelo tribunal a quo decidiu é por si só suficiente para verificação dos pressupostos para a existência de simulação no negócio celebrado entre os réus, previstos no artigo 240º do Código Civil.
55- Na verdade, existem vários fatores que evidenciam, fortemente e desde logo, que os réus nunca pretenderam celebrar qualquer negócio entre si.
56- Recuperando a matéria supra aduzida, bem como a matéria resultante dos factos dados como provados pela douta sentença recorrida, encontramos exemplos gritantes de que o negócio em causa não passou de uma farsa.
57- Desde logo, o facto de não ter sido entregue qualquer quantia, pelo 2º réu ao 1º, a título de pagamento pelo negócio que, supostamente, teria sido uma compra e venda (ou, pelo menos, foi assim declarado no registo), matéria que resulta dos nºs 10 e 7 do rol de factos dados como provados pela douta sentença recorrida, bem como dos factos nº 17, 18, 19 e 20 da Petição Inicial.
58- O contrato de compra e venda inclui duas prestações: a do pagamento do preço e da entrega da coisa, que são as duas metades do mesmo negócio jurídico (artigo 874º do Código Civil). Por isso, é, no mínimo, bizarro que tenha estado em falta a contrapartida directa para a entrega das coisas ora em causa.
59- Directamente correlacionado com este “sintoma” está o facto de as teses dos réus quanto a este negócio não serem consistentes: como bem refere a douta sentença proferida pelo tribunal a quo, no procedimento cautelar de arrolamento que precedeu os autos principais, foi alegado pelo 1º réu que o preço das motas foi pago pela entrega de várias pedras (melhor descritas nos autos), enquanto que nestes autos, e em sede de depoimento de parte do 2º réu, as pedras é que foram pagas pela entrega das motas.
60- Um outro facto que demonstra a simulação do negócio é o facto de o seguro de uma das motas em causa ter permanecido em nome do 1º réu até muito tempo após a declaração de venda das motas (nº 9 do rol dos factos dados como provados).
61- Como decorre da normalidade das coisas e das regras da experiência, quando alguém vende um bem sujeito a seguro obrigatório, deixará de pagar o seguro por esse bem que já não é seu; a excepção pode encontrar-se nos casos em que, apesar da transmissão formal da propriedade do bem, o mesmo continua a ser utilizado (i.e., na posse de) pelo alegado “vendedor”.
62- Por outro lado, como refere a douta sentença recorrida, não existe qualquer prova documental ou testemunhal que ateste, com a mínima credibilidade, a tese dos réus (a adoptada nos autos principais), o que, por si só, é também um forte indicativo de que a verdadeira vontade não se manifestou no negócio.
63- Acrescem a estes factos, que aliás a douta sentença recorrida já tinha dado como provados, alguns outros alegados pela autora e supramencionados quanto à matéria de facto, a saber:
64- O facto de o 1º réu e o 2º réu serem amigos de longa data, tendo este último inclusive testemunhado a favor do primeiro num outro processo judicial (nomeadamente, o apenso de arrolamento que antecedeu os presentes autos), o que revela a sua relação de proximidade;
65- O facto de o 2º réu nunca ter utilizado ele próprio as motas em causa, nem, no geral, ter praticado qualquer ato que típico de quem é proprietário;
66- O facto de o 1º réu ter continuado a utilizar uma das motas que supostamente vendeu ao 2º, após a alegada venda;
67- Em boa verdade, na douta sentença recorrida, o tribunal a quo já dá como provados os grandes factos que permitem concluir pela simulação do negócio; no entanto, considera que “não se afigura possível chegar a uma conclusão segura”, o que, no entendimento da ora recorrente, não é verdade.
68- De toda a matéria alegada supra, muita da qual dada como provada pelo próprio tribunal a quo, com facilidade se pode constatar que os réus não queriam celebrar o negócio que declararam ter celebrado.
69- Entendimento diverso seria o equivalente a exigir da autora, ora recorrente, um esforço probatório impossível: se todos aqueles factos não são suficientes, o que será suficiente? A confissão por parte dos réus? Uma gravação em que ambos admitem ter “forjado” este negócio?
70- Conforme refere o acórdão desta Relação de Guimarães, processo 6420/14.6T8VNF-B.G1, de 14-02-2019, “I - Nos casos em que venha invocada a outorga de contratos simulados, uma vez que é necessário apurar a intenção dos contraentes ao outorgarem os negócios impugnados, e não havendo, por regra, prova directa da simulação, a prova terá de ser feita, quase sempre, por meio de indícios ou presunções judiciais.”
71- Os elementos probatórios constantes dos autos devem, assim, ser conjugados entre si, seguindo sempre as regras da valoração da prova do âmbito do processo civil, de modo a que se possa chegar à conclusão que, de acordo com as regras da experiência e da normalidade da vida, é a mais provável.
72- Não podemos esquecer que este tipo de negócios se apresentam sempre travestidos, com uma aparência ficcionada que procura ocultar a verdadeira identidade dos negócios; como tal, impõe-se aqui, com especial importância, a convocação das regras da experiência e de uma análise crítica do tribunal para que o absurdo e a contrafacção da verdade não sejam premiados, em detrimento da verdade.
73- Contudo, o tribunal a quo entende que a autora não logrou provar os elementos pressupostos previstos para a simulação (o acordo entre o declarante e o declaratário, a divergência entre a declaração e a vontade das partes, e a intenção de enganar terceiros), como são elencados na sentença.
74- Salvo o devido respeito, que é muito, todos os pressupostos da simulação se encontram amplamente demonstrados através do rol dos factos dados como provados na própria sentença e ainda nos factos que deveriam ter sido incluídos naquele rol (já descriminados supra).
75- A dúvida, a existir, não é suficientemente forte nem razoável para que se possa decidir que não houve um conluio entre os réus para “celebrarem” um negócio que nunca quiseram, com o objectivo de subtrair bens à meação da autora (prejudicando-a e enganando-a sob a égide de um negócio legítimo) – o acervo probatório, conjugado entre si, demonstra plenamente que o negócio foi simulado.
76- Nesta conformidade, entende a ora recorrente não foi correctamente interpretada e aplicada a norma constante do artigo 240º do Código Civil, que acabou por ser violada.
77- No entender da recorrente, deveriam ter sido considerados como verificados preenchidos os pressupostos para a declaração da simulação absoluta do negócio celebrado entre os réus, previstos no artigo 240º do Código Civil, o que conduz à sua nulidade nos termos do supra-referido artigo 240º, motivo pelo qual deverá a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que declare a nulidade daquele negócio, com todas as legais consequências.

Sem prescindir,

B) Da anulabilidade do negócio por via da falta de consentimento do cônjuge, ora recorrente, nos termos do artigo 1682º, nº1 do Código Civil e a violação do mesmo preceito pelo tribunal a quo.

78- Cumpre também analisar a posição adoptada pelo tribunal a quo no que concerne à anulabilidade do negócio em causa, por falta de consentimento da autora – pois que, como ficou amplamente demonstrado e como, inclusive, é admitido na própria sentença, o negócio foi celebrado na constância do matrimónio.
79- Nesta sede, recuperamos toda a argumentação exposta na douta sentença recorrida quanto à natureza do negócio celebrado (ponto II) da rúbrica do Direito).
80- Em boa verdade, o tribunal a quo opera uma correcta qualificação jurídica do negócio enquanto um acto de disposição que não se enquadra no âmbito de um acto de administração ordinária e que, por esse motivo, carecia do consentimento de ambos os cônjuges nos termos do artigo 1682º, nº 1 do Código Civil.
81- É por dizer, o tribunal a quo admite que o negócio celebrado pelo réu carecia do consentimento da autora e que, não tendo sido prestada tal autorização, o mesmo é anulável nos termos do artigo 1682º, nº 1, conjugado com os artigos 286º e 287º, todos do Código Civil.
82- No entanto – e é este o ponto de divergência entre o entendimento da ora recorrente e a decisão perfilhada pelo tribunal a quo, quanto à matéria da anulabilidade – o tribunal a quo considera que não pode anular este negócio (configurado como contrato de compra e venda) porque tal anulação não foi peticionada pela autora no pedido formulado no final da petição inicial.
83- Ora, em primeiro lugar, é fulcral realçar que, pese embora não conste qualquer alusão à anulabilidade do negócio/contrato no pedido formulado pela autora, a mesma questão da anulabilidade vem expressamente invocada pela mesma no texto da petição inicial.
84- Na verdade, a autora alega expressamente, nos artigos 31 a 42 da petição inicial – que aqui damos por integralmente reproduzidos por questões de economia processual -, que o negócio é anulável por falta do seu consentimento, terminando tal alegação pedindo que lhe fosse devolvida metade do valor pelo qual as motas em causa foram vendidas.
85- Mais concretamente, nos artigos 32, 33 e 37, a autora refere expressamente o seguinte:
“…
32. Com efeito, dispõe o artigo 1682º n.º 1 do Código Civil que a alienação de bens móveis carece do consentimento de ambos os cônjuges, salvo se se tratar de acto de administração ordinária.
33. A sanção prevista legalmente para a prática daqueles actos sem consentimento do cônjuge é a anulabilidade do negócio, conforme artigo 1687º n.º 1 do Código Civil.
37. Bem assim nunca a Autora consentiria na alienação daqueles bens porque havia sido acordado entre o ex-casal que seriam doadas ao filho mais velho.
…”
86- É certo que, no pedido final, a autora não pede expressamente que o negócio seja anulado por violação do disposto no artigo 1682º, nº 1 do Código Civil;
87- No entanto, com facilidade se pode constatar que tal anulabilidade foi expressamente invocada na petição inicial.
88- Ademais, a autora termina esta “rubrica” peticionando a devolução de metade do valor das motas (20.000,00€), o que decorre directamente da ausência de consentimento para a venda das motas.
89- Apesar de recair sobre as partes o ónus de alegarem e peticionarem por si próprias, decorrente do princípio do dispositivo, este ónus é regrado pela própria intervenção do julgador – o qual pode, ao abrigo dos princípios da gestão processual e da prossecução de decisões materialmente justas, suprir oficiosamente ou convidar a parte a suprir insuficiências da sua alegação e/ou pedido.
90- Isto assume particular relevância no caso pois o tribunal a quo conheceu da questão da anulabilidade, suscitada pela autora.
91- Aliás, até decidiu que o negócio em causa carecia do consentimento desta e que seria anulável.
92- Mas, porque a autora não inseriu expressamente no pedido final da sua petição inicial a questão da anulabilidade, o tribunal a quo resigna-se perante essa circunstância, referindo que não pode anular o contrato/negócio em causa.
93- O que, por demais, revela ser uma atitude algo contraditória e bizarra, pois que, se não houvesse mesmo qualquer razão para anular o negócio, não haveria necessidade de analisar o caso, verificando se existem ou não os pressupostos para tal anulabilidade – bastaria nem sequer conhecer da questão, por não ter sido peticionada.
94- Como é consabido, o tribunal não pode exceder o objecto do processo, tal como configurado a partir do pedido e da causa de pedir, conforme dispõe o artigo 609º, nº 1 do C.P.C. (e tal como é invocado na sentença para fundamentar a decisão adoptada).
95- Em regra, não tendo sido peticionada a anulação do contrato mas apenas e só a declaração de nulidade do mesmo, não se pode proceder à anulação de tal contrato.
96- Contudo, esta regra, como todas, importa excepções que, a existir no caso concreto, permitem que o tribunal conheça a anulabilidade e decrete a mesma.
97- Tais excepções prendem-se com três grandes factores: a formulação dada pelo autor, a interpretação de tal formulação por parte do réu e o entendimento retirado pelo Tribunal da formulação da autora e da interpretação do réu – sendo certo que não existem comportamentos taxativamente impostos.
98- Na esteira deste entendimento, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18/01/2018, processo 1005/12.4TBPVZ.P1.S1, (disponível em http://www.dgsi.pt) que trata um caso bastante similar ao que se discute nos presentes autos – acórdão este que aqui damos por integralmente reproduzido por questões de economia processual.
99- Em suma, este aresto ensina-nos que “… V. Numa acção em que foi pedida a declaração de nulidade de um contrato de compra e venda com fundamento em simulação, mas em que também se aludiu à anulabilidade do mesmo contrato com fundamento na falta de consentimento dos demais filhos dos vendedores, nos termos do art. 877º do CC (venda a filhos ou netos), apesar da improcedência do pedido de declaração de nulidade, é legítimo na sentença declarar a anulação do contrato numa situação em que concorrem as seguintes circunstâncias: …”
100- O referido aresto passa a indicar diversos factores – desde a formulação da petição inicial à actuação na audiência de julgamento, passando por uma segunda acção judicial – que, conjugados entre si, perante o caso concreto e de forma a obter decisões materialmente justas, permitem que o tribunal decrete a anulação do negócio (naquele caso, por falta de consentimento dos demais filhos dos vendedores, neste caso por falta de consentimento do cônjuge).
101- Estes factores são aferidos casuisticamente, como é bom de ver, pelo que urge analisar o caso em concreto para saber se este entendimento é aplicável ao caso dos autos.
102- Em primeiro lugar, verifica-se que a autora invocou expressamente a anulabilidade do negócio, nos termos do artigo 1682º, nº 1 do Código Civil, logo na sua petição inicial (apesar de, a final, não a ter peticionado).
103- Em segundo lugar, nas respectivas contestações, quer o 1º Réu (nos artigos 22 e 23 e especialmente 25 a 29, que aqui damos por integralmente reproduzidos), quer o 2º Réu (artigo 64) defendem-se impugnando a anulabilidade invocada pela autora.
104- Especial relevo deve ser dado à contestação do 1º Réu (o ex-cônjuge da autora), que se defende invocando que o negócio em causa consubstanciou “…um acto de mera administração ordinária do património do casal.”, como alega no artigo 27 da sua contestação.
105- Por último, o próprio tribunal a quo abordou esta questão na sentença proferida, tendo inclusive avaliado os elementos necessários para a decisão final da mesma, com excepção da tempestividade – o enquadramento do negócio como ato de disposição e não de mera administração e a própria legitimidade.
106- Até mesmo no despacho que fixou os temas da prova (proferido a 03/07/2017 e que aqui damos por integralmente reproduzido) o tribunal a quo fixou como questões a decidir “Saber se a venda das motorizadas pelo primeiro Réu ao segundo Réu foi realizada sem o consentimento da Autora” e “Saber se a Autora só teve conhecimento desse negócio no dia 15 de Novembro de 2015”, questões exclusivamente relacionadas com a anulabilidade do negócio (e que nada dizem respeito a qualquer outra matéria suscitada nos autos).
107- Enfim, por todas as circunstâncias supra descritas, com facilidade se pode constatar que a questão da anulabilidade foi amplamente suscitada e debatida nos presentes autos, pelo que integra, indubitavelmente, o objecto do processo.
108- Quer isto dizer que a questão da anulabilidade poderia e deveria não só ter sido amplamente apreciada pelo tribunal a quo como também decretada (verificados os respectivos pressupostos) judicialmente.
109- Entendimento diverso, como refere o aresto supracitado, traduzir-se-ia numa “…situação de abuso objectivo do direito de defesa, cujos efeitos deveriam ser vedados por aplicação do disposto no art. 334º do CC.”, para além de configurar um entendimento excessivamente formalista e contrário ao espírito e à letra do novo Código de Processo Civil – abuso de direito que expressamente se invoca e que, de resto, é de conhecimento oficioso do Tribunal.
110- Destarte, face a toda a argumentação aduzida supra, entende a ora recorrente que o tribunal a quo andou mal ao não anular o contrato de compra e venda que se discute nos autos, com fundamento no facto de a autora não ter peticionado tal anulação (violando assim o disposto no artigo 1682º, nº 1 do Código Civil).
111- Assim, entende a recorrente que deve a decisão ora recorrida ser revogada e substituída por outra que considere que a anulabilidade foi suficientemente alegada e requerida (tendo em conta não só a petição inicial como também todos os elementos elencados supra), devendo, em consequência disso, anular o negócio em causa com base no disposto nos artigos 1682º, nº 1, 286º e 287º do Código Civil.

Ainda sem prescindir,

C) Da nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do artigo 615º, nº1, alínea c) do C.P.C..

112- Nesta sede, recuperaremos toda a matéria exposta supra, em A) e B), que por questões de economia processual aqui damos por integralmente reproduzida.
113- Assim, no que concerne à parte decisória relativa à simulação, verifica-se que, mesmo sem o aditamento dos factos que a recorrente considera que deveriam ter sido dados como provados, os pressupostos previstos no artigo 240º do Código Civil se encontram preenchidos no caso em concreto.
114- O acervo probatório considerado pela sentença é, por si só, suficiente para que se considera que o negócio celebrado entre os dois réus é simulado.
115- No entanto, o tribunal a quo não parece chegar a esta conclusão, admitindo uma “dúvida” sobre os termos deste negócio – dúvida esta que está para além da dúvida razoável.
116- Isto porque o negócio em causa é, sem margem para dúvidas, estranho, anormal e impreciso (pois que nem as partes que o celebraram conseguem manter uma única versão do mesmo), mas uma coisa resulta certa: ficou demonstrado, para além de toda a dúvida – dúvida razoável, minimamente objectiva, baseada na prova produzida – que os réus não pretendiam celebrar aquele negócio e que apenas o fizeram de modo a “retirar” bens do acervo conjugal da autora e do 1º réu, prejudicando a autora na altura da partilha pelo divórcio.
117- Assim, a decisão ora recorrida não encontra correspondência com os factos que lhe servem de fundamento, que deveriam ter levado, precisamente, à decisão inversa, motivo pelo qual a douta sentença recorrida padece de nulidade, nesta parte, de acordo com o disposto no artigo 615º, nº1 alínea c) do C.P.C., nulidade esta que expressamente se invoca e deve ser decreta, com as legais consequências.

Os recorridos contra-alegaram, defendendo a total improcedência do recurso.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, as questões a decidir consistem em saber se:

a) ocorreu erro no julgamento da matéria de facto;
b) podia o Tribunal recorrido ter decidido pela anulabilidade do contrato

III
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1- A Autora e o 1.º Réu casaram, em regime de comunhão de adquiridos, no dia - de Abril de 1985.
2- Encontrando-se separados de facto desde Dezembro de 2013.
3- Na data referida em 2, a Autora abandonou a casa de morada de família, tendo o 1.º Réu, posteriormente, mudado as respectivas fechaduras.
4- A Autora intentou procedimento cautelar de arrolamento contra o 1º Réu, tendo requerido o arrolamento de bens comuns do casal.
5- O procedimento cautelar referido em 4 correu termos na 1.ª Sec. Família e Menores – J2 do Tribunal Judicial da Comarca de Braga com o n.º de processo 6203/15.6T8BRG.
6- Na pendência do matrimónio da Autora com o 1.º Réu, o casal adquiriu dois motociclos da marca “Harley Davidson” com as matrículas NF e NU, com o valor de mercado de, pelo menos, € 10.000,00 cada uma.
7- Em 23.12.2013 o 1.º Réu declarou vender ao 2.º Réu, que declarou comprar, os motociclos referidos em 6.
8- A propriedade daqueles veículos foi registada a favor do 2.º Réu no dia 18 de Fevereiro de 2014.
9- O 1.º Réu teve em seu nome o seguro relativo ao motociclo de matrícula NU entre 25.05.2012 e 22.07.2015 e entre 1.08.2015 e 1.08.2016.
10- O 2.º Réu não entregou ao 1.º Réu qualquer quantia a título de pagamento do preço dos motociclos referidos em 6.
11- O 1.º Réu vendeu os motociclos referidos em 6 sem o consentimento da Autora.
12- Por decisão proferida no procedimento cautelar referido em 5, foram remetidos os interessados para os meios comuns, no que se refere ao arrolamento dos motociclos referidos em 6.
13- No procedimento cautelar referido em 5 foram arroladas várias pedras depositadas num terreno sito na Rua …, …, Vila Verde, às quais foi atribuído o valor de € 4.000,00.
14- Tendo o 1.º Réu, aquando da elaboração do respectivo auto de arrolamento, indicado que as mesmas “foram por acerto de contas, por duas motos”.
15- Os Réus assinaram os requerimentos de registo dos motociclos referidos em 6.
16- O Réu é um empresário em nome individual que se dedica, há mais de 30 anos, à compra, venda e reparação de antiguidades.
17- Durante o ano, o Réu reside alternadamente em Portugal e no Brasil, país onde tem domicílio fiscal e visto permanente de residente.
18- Além de as antiguidades constituírem a sua actividade profissional, o Réu é também coleccionador de motociclos.
19- E é, em particular, um aficionado dos motociclos HARLEY DAVIDSON.
20- Para além da moto NU, o Réu tem registados em seu nome dois outros motociclos, com as matrículas GO e FI.

b) Factos não provados: todos os restantes que foram alegados, com destaque para os seguintes, que são aqueles cuja não prova a recorrente impugna:

-Artigo 11.º da Petição Inicial, salvo na parte que resulta do ponto 7 dos Factos Provados.
-Artigo 12.º da Petição Inicial.
-Artigos 14.º e 15.º da Petição Inicial.
-Artigo 16.º da Petição Inicial, salvo na parte que resulta do ponto 10 dos Factos Provados.
-Artigos 18.º a 20.º da Petição Inicial.
-Artigo 21.º da Petição Inicial, salvo na parte que resulta do ponto 9 dos Factos Provados.
-Artigo 36º da Petição Inicial

IV
Conhecendo do recurso.

Vamos desde já adiantar que a recorrente respeitou o ónus de impugnação imposto pelo art. 640º CPC a quem pretende impugnar o julgamento da matéria de facto: fez constar essa sua pretensão nas conclusões de recurso, especificou os concretos pontos de facto que entende mal julgados, bem como as provas que em seu entender deveriam ter levado a decisão diversa, e disse qual a decisão que em seu entender deveria ter sido proferida.
Coisa bem diferente é o mérito do recurso, ou seja, averiguar se a decisão da primeira instância contém erros de julgamento, quer os que a recorrente lhe imputa, quer outros que sejam de conhecimento oficioso, que justifiquem a sua alteração.
E aqui também vamos adiantar que a decisão está correcta e muito bem fundamentada, não merecendo qualquer alteração.
Damos aqui por reproduzido o artigo 662º CPC, que define em que circunstâncias a Relação deve alterar a decisão da primeira instância sobre a matéria de facto.
Das conclusões do recurso resulta que a recorrente não vem dizer que o Tribunal se baseou em depoimentos inexistentes, nem que deu como provado algo que nenhuma testemunha declarou, nem sequer que as testemunhas disseram uma coisa e o Tribunal deu como provada outra.
O recurso da decisão sobre matéria de facto assenta, exclusivamente, na interpretação que segundo a recorrente deve ser feita dos depoimentos testemunhais e depoimentos e declarações de parte, à luz das regras do senso comum e da prova documental junta. A recorrente acaba por resumir de forma lapidar a sua pretensão, dizendo que os réus “conseguiram ludibriar o tribunal a quo, com mestria e desfaçatez que temos de reconhecer”.
Sendo esta a base do recurso que agora nos ocupa, vamos começar por algumas observações prévias, óbvias, mas que nos parecem importantes.
A primeira observação que tem de ser feita é a de que na situação que nos foi trazida temos duas versões diferentes sobre a mesma realidade: uma que é trazida pela autora, e outra pelos réus. Por definição, sabemos que alguém está a mentir e que uma das teses em confronto é falsa. Quando assim é, a experiência judiciária demonstra-nos que primeiro devemos olhar para as declarações em confronto e tentar detectar se alguma merece mais credibilidade que a outra, pela forma como foi prestada, e pela sua coerência interna. Nessa tarefa, as Relações deparam-se com uma dificuldade suplementar, mas que é ultrapassável: é que “a gravação dos depoimentos por registo áudio ou por meio que permita a fixação da imagem (video) nem sempre consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no Tribunal a quo. Como a experiência o demonstra frequentemente, tanto ou mais importante que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, sendo que a mera gravação dos depoimentos não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que porventura influenciaram o juiz da 1ª instância. Na verdade existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador” (1).

Ou seja, o registo audio da prova não permite captar na totalidade aquilo que a psicologia designa de “comunicação não-verbal”. E para um juiz que tem perante si dois relatos divergentes sobre os mesmos factos essenciais, essa comunicação não-verbal assume uma importância determinante na conclusão final sobre a veracidade dos depoimentos.
Donde, a solução depende da credibilidade a dar a cada uma das testemunhas que foram ouvidas. E a prova testemunhal, por definição, não é tarifada, estando sujeita à regra da livre apreciação (art. 607º,5 CPC).
Assim, a priori, numa situação destas, um recurso da decisão sobre matéria de facto assente apenas no entendimento dos recorrentes, necessariamente divergente do entendimento do Tribunal, estará na esmagadora maioria dos casos votado ao fracasso.
Só assim não será se da análise da decisão e sua fundamentação se verificar a existência de algum erro manifesto, contradição, ou alguma incoerência ou implausibilidade, que coloque sérias dúvidas sobre a justeza da decisão, ou se for manifesto e ostensivo que, das duas versões testemunhais apresentadas perante o Tribunal, aquela na qual este se apoiou para julgar a matéria de facto for notoriamente menos credível que a outra, que o Tribunal a quo desvalorizou.
Que é justamente o que não encontramos na decisão recorrida.
Pelo contrário, encontramos uma fundamentação exaustiva, correcta e totalmente assente na prova produzida, na qual o Tribunal foi buscar apoio para os juízos valorativos que efectuou e explicou. E esta Relação, depois de ouvir todos os depoimentos prestados em audiência, corrobora integralmente a ponderação feita na decisão recorrida.
Não iremos repetir tudo o que nesta se escreveu em sede de motivação para a decisão, o que seria fastidioso. Vamos apenas fixar a nossa atenção no essencial. E o essencial são os pontos de facto que a autora alegou na sua petição e pretendia ver dados como provados, opinião que o Tribunal recorrido não acompanhou.
Assim, e em primeiro lugar, quando ao acordo simulatório e à divergência entre a vontade real dos réus e a vontade declarada, limitamo-nos confirmar o que afirma o Tribunal recorrido: “constata-se, por outro lado, que as referidas testemunhas não têm qualquer conhecimento sobre a matéria alegada nos artigos 14.º a 16.º e 18.º da Petição Inicial – que também não é confirmada por qualquer outra testemunha”.
E no que se refere aos factos indiciários dessa simulação, igualmente secundamos o que se afirma na sentença: “a respeito da matéria alegada nos artigos 19º a 22º da Petição Inicial, apenas a testemunha A. F. refere ter visto, uma única vez, o 1.º Réu a deslocar-se numa mota que diz ter a certeza ser uma das que o casal possuía, acrescentando, porém, “a menos que fosse uma mota muito parecida”. “Tal episódio, de localização temporal imprecisa, tem um valor indiciário muito reduzido quanto à matéria alegada nos artigos 14.º a 16.º e 18.º a 22.º. da Petição Inicial”. E igualmente concordamos -e aqui está o cerne do julgamento da matéria de facto- com o que se escreve a seguir: “de maior valor indiciário se revestem as circunstâncias referidas nos pontos 9 e 10 dos Factos Provados – manutenção do seguro de um dos veículos em nome do 1.º Réu após a venda e ausência de entrega de qualquer quantia a título de pagamento do preço –, os quais, conjugados com as regras da normalidade, poderiam levar a concluir pela existência de uma divergência intencional entre a vontade real das partes e aquilo que foi declarado, nos termos alegados pela Autora. Todavia, não se afigura possível uma conclusão segura, sendo certo que as testemunhas M. S., L. L., D. O., T. D. e J. F. aludem aos hábitos de troca ou empréstimo de motas entre aficionados, à utilização e reparação, pelo 2.º Réu ou a mando deste, de duas motas que o mesmo dizia ter comprado ao 1.º Réu, bem como às ausências do 2.º Réu do país, em virtude da sua actividade profissional. Tais depoimentos, além de permitirem a demonstração da matéria vertida nos pontos 17 a 19 dos Factos Provados e da que se refere ao valor dos motociclos em causa nos autos, permitem criar a dúvida quanto às circunstâncias que rodearam a celebração do negócio em causa nos autos e a eventual utilização dos motociclos pelo 1.º Réu após essa celebração”.
Resta apenas referir que subjaz a esta decisão da primeira instância a regra constante do art. 342º,1 CC, segundo a qual o ónus de provar os factos constitutivos da pretensão formulada cabe ao autor. Assim, era a autora que tinha de provar todos os factos referidos na petição inicial, e que fossem constitutivos do direito por si alegado: dentre esses, no caso em apreço, ficaram por provar os factos alegados em 11º, 12º, 14º a 15º, 18º a 21º e 36º da petição inicial. Todas as dúvidas e incertezas referidas na motivação da decisão recorrida tinham de ser, como foram, valoradas contra a parte onerada com essa prova.
Supomos ser pacífico que não foi produzida qualquer prova directa do acordo simulatório e da divergência entre a vontade declarada pelos réus e a sua vontade real, bem como da intenção de assim prejudicar a autora.
Onde a apreciação da prova se revela de maior melindre é na interpretação a fazer dos factos provados 9 e 10 (manutenção do seguro de um dos veículos em nome do 1.º Réu após a venda e ausência de entrega de qualquer quantia a título de pagamento do preço).
Estamos perante óbvios factos indiciários, os quais, é forçoso reconhecer, vêm dar peso à pretensão da recorrente de ver provado o acordo simulatório.
Sabemos que a prova indiciária funciona através de um mecanismo intelectual de exclusão gradual da plausibilidade de explicações alternativas àquela que se pretende demonstrar. E o seu modo de funcionamento é muito simples: poucos indícios, e/ou indícios pouco sólidos, deixam em aberto a possibilidade de várias explicações alternativas para além daquela que se pretende provar. Mas quantos mais indícios existirem, que podem ser das mais variadas naturezas, e quanto mais objectivos eles forem, mais explicações alternativas permitem excluir, até que chegamos a um ponto em que está reunido um conjunto suficientemente sólido e congruente de indícios, de tal forma que todas as explicações alternativas podem ser descartadas, restando apenas aquela que é a verdadeira.
Porém, apesar de os factos supra referidos serem relevantes como indícios da alegada simulação, o certo é que existem outros factos e provas que funcionam em sentido contrário, e retiram-lhes grande parte desse peso indiciário. É o caso dos factos provados sob os números 17 a 20. É a eles que a sentença recorrida se refere, ao falar nos “hábitos de troca ou empréstimo de motas entre aficionados”, “à utilização e reparação, pelo 2.º Réu ou a mando deste, de duas motas que o mesmo dizia ter comprado ao 1.º Réu, bem como às ausências do 2.º Réu do país, em virtude da sua actividade profissional”.
Tais factos, incontroversos porque nem sequer impugnados pela recorrente, vêm diluir o valor indiciário que se poderia retirar dos supra referidos, fazendo com que, como se afirma na sentença, fique a dúvida quanto às circunstâncias que rodearam a celebração do negócio em causa nos autos e a eventual utilização dos motociclos pelo 1º Réu após essa celebração. Dizendo de outra forma, perante um contrato de compra e venda de dois motociclos da marca Harley-Davidson em que o comprador é, tal como ficou provado, coleccionador de motociclos, e em particular aficionado das motos dessa marca, sem melhor prova não é possível considerar provado que o negócio foi fingido e que nem o vendedor quis vender nem o comprador quis comprar.
Numa síntese final, diremos que quanto aos factos essenciais que preencheriam o conceito jurídico da simulação, a prova directa foi totalmente inexistente. E os factos indiciários, que poderiam, se sólidos e incontroversos, levar à prova desses factos essenciais, foram pelo contrário enfraquecidos pelas razões explicadas na sentença recorrida, e o seu valor indiciário foi diluído pela prova trazida pelos réus, como igualmente está explicado na sentença.

Assim, improcede o recurso contra a decisão sobre matéria de facto.

Questões de Direito:

1. Da simulação

Nas suas conclusões 54 a 77 a recorrente veio colocar novamente a questão da simulação, que no seu entender deveria ter sido considerada verificada, dizendo que o Tribunal a quo violou o disposto no art. 240º CC.
Alega a recorrente que, independentemente do sucesso do recurso quanto à matéria de facto, os factos dados como provados na sentença recorrida já eram, só por si, suficientes para considerar verificados os pressupostos para a existência de simulação no negócio celebrado entre os réus, previstos no artigo 240º do Código Civil.
Porém, é manifesto que assim não é, e que a recorrente incorre num lapso.
A não prova dos factos alegados nos artigos 14, 15 e 18 da petição inicial afasta por completo a possibilidade de julgar que o negócio em causa foi um negócio simulado, ao abrigo do art. 240º CC.
Onde a recorrente, salvo o devido respeito, incorre em lapso, é quando vem agora, em sede de discussão jurídica, reproduzir a discussão que já foi tida aquando da análise da fundamentação da decisão sobre matéria de facto, tentando convencer esta instância de recurso a olhar para os factos indiciários que, indiscutivelmente, resultaram provados, e retirar dos mesmos, através de um raciocínio de natureza indutiva, a existência dos factos essenciais para a simulação, ou seja, a existência de divergência entre a vontade declarada e a vontade real dos contraentes, para enganar a autora.
Essa á uma análise que só pode ser feita em sede de julgamento da matéria de facto: apreciar os indícios existentes para saber se dos mesmos é possível extrair a prova dos factos essenciais da acção. A primeira instância fez essa análise em sede própria, de questão de facto. E esta Relação apreciou igualmente na referida sede própria essa questão. Não pode agora ela renascer, sob as vestes de questão de Direito.

Assim, falece integralmente a argumentação constante das conclusões 55 a 77.

Resta pois apreciar uma última questão.

A sentença recorrida ponderou a aplicação ao caso do disposto no art. 1682º,1 CC. Tal norma dispõe que “a alienação ou oneração de móveis comuns cuja administração caiba aos dois cônjuges carece do consentimento de ambos, salvo se se tratar de acto de administração ordinária”.
E fê-lo nos seguintes termos: não há dúvida que os motociclos em causa nos autos são bens comuns (art. 1725º,b CC). E a sua venda constitui, sem margem para dúvidas, um acto de disposição, que dependente do consentimento de ambos os cônjuges. Faltando o consentimento de um deles, o art. 1687º,1 CC estabelece como consequência a anulabilidade. E, ao contrário do que sucede com a nulidade, a anulabilidade não é de conhecimento oficioso, carecendo de ser invocada pelas pessoas em cujo interesse a lei a estabelece (artigos 286º e 287º,1 CC.
Porém, considerou a sentença, nos termos do art. 609º,1 CPC “a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir”, sendo a violação deste normativo um dos fundamentos de nulidade da sentença, como decorre do art. 615º,1,e CPC.
E neste caso concreto, se bem que a Autora, na Petição Inicial, alegue ter o contrato referido no ponto 7 dos Factos Provados sido celebrado sem o seu consentimento e que tal tem como sanção a anulabilidade desse contrato, não formula qualquer pedido de anulação do mesmo com esse fundamento: limita-se, a final, a concluir pedindo que se declare nulo o referido contrato com fundamento na simulação.
Assim, concluiu o Tribunal recorrido que não podia anular o contrato de compra e venda celebrado entre o 1.º Réu e o 2.º Réu.
É contra esta decisão que se insurge a recorrente, a qual, reconhecendo embora que no pedido que formulou não fez qualquer alusão à anulabilidade do negócio, no entanto chama a atenção para que essa mesma questão da anulabilidade vem expressamente invocada no texto da petição inicial, nos artigos 31 a 42, sendo que neste último artigo da petição a autora afirma expressamente o seguinte: “a autora é contitular de metade do valor da venda das motas e, por isso, está o réu obrigado a devolver à autora tal quantia, correspondente a metade do valor das motas, i. e. € 20.000,00”.
E, no sentido de o Tribunal recorrido poder e dever conhecer e decretar a anulabilidade, invoca o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18/01/2018, processo 1005/12.4TBPVZ.P1.S1, (disponível em http://www.dgsi.pt), que nos ensina que ”numa acção em que foi pedida a declaração de nulidade de um contrato de compra e venda com fundamento em simulação, mas em que também se aludiu à anulabilidade do mesmo contrato com fundamento na falta de consentimento dos demais filhos dos vendedores, nos termos do art. 877º do CC (venda a filhos ou netos), apesar da improcedência do pedido de declaração de nulidade, é legítimo na sentença declarar a anulação do contrato numa situação em que concorrem as seguintes circunstâncias: …”.

Quid iuris ?

Em que medida é que, tendo o Tribunal recorrido analisado a questão da anulabilidade do negócio por falta do consentimento de um dos cônjuges, e tendo-a analisado bem, concluindo que o negócio é anulável, o princípio do dispositivo e o teor do art. 609º CPC impedem verdadeiramente o mesmo Tribunal de, chegando ao segmento decisório da sentença, anular o negócio e ordenar a restituição do que foi prestado ?

Vejamos.

A sede legal do princípio dispositivo é o art. 3º,1 CPC: “o Tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição”.

Explicando a razão de ser desta norma, escrevem Abrantes Geraldes e outros (CPC anotado), que “podendo as partes dispor dos direitos de natureza privada, sobre as mesmas recai o ónus de promover e de impulsionar os instrumentos de natureza processual destinados a assegurar a respectiva tutela. O Estado, através dos Tribunais, não age por iniciativa própria em matéria de direito privado; só dirime os litígios cuja resolução lhe seja solicitada pelos interessados ou por quem detenha legitimidade extraordinária ou indirecta, incluindo certos casos em que esta é atribuída ao Ministério Público”.

Não é preciso mais para concluir que o princípio do dispositivo não impede a solução que a recorrente pretende, pois o litígio foi trazido por ela ao Tribunal, mediante a entrega da petição inicial em Juízo.

Mas o princípio do dispositivo manifesta-se de forma mais directa, e por isso mais relevante, no andamento de cada processo civil em concreto.
Os mesmos autores, e na mesma obra, continuam assim: “o mesmo princípio estende-se à configuração do objecto do processo, através da formulação do pedido e da alegação da matéria de facto que serve de fundamento à acção ou à defesa (art. 5º,1).
Aqui interessa-nos explorar o conceito e o alcance do pedido.
A noção de pedido está consagrada no art. 581º,3 CPC, e corresponde ao efeito prático-jurídico que o autor pretende obter com a acção.
Assim, no caso concreto que nos ocupa, o pedido que a autora formulou é o de ser declarada a nulidade do negócio de compra e venda das motorizadas, com fundamento na simulação, decretando-se a sua restituição ao património conjugal.
É fácil de perceber, neste exemplo concreto, as duas vertentes do pedido: a vertente prática do pedido formulado é o de ver os dois motociclos regressar ao património conjugal. A vertente jurídica é obter a declaração de nulidade do dito negócio.
E há outra conclusão que temos igualmente de extrair daqui: o que verdadeiramente interessa para a tutela judiciária que o autor vem pretender exercer, aquilo que ele verdadeiramente pretende não é a declaração de nulidade do contrato. Essa declaração não passa de uma realidade intelectual, uma construção do pensamento jurídico que é vista pelo autor apenas como um meio para atingir um fim. E esse fim, que é aquilo que a parte quer, é sempre um fim real, objectivo e palpável: in casu, é o reingresso dos motociclos no património do casal.
Como escreve Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, vol. I, 2ª edição, fls. 119 e ss, “mais importante que a qualificação jurídica que seja dada pelo autor, deve atender-se ao efeito prático que o mesmo pretende efectivamente alcançar (2), o que é determinante para o conteúdo da decisão final ou para aferição das excepções dilatórias da litispendência ou de caso julgado”.
E bem se compreende que tem de ser assim. Os Tribunais existem para dirimir litígios concretos, resolvendo problemas práticos dos cidadãos, e não para fazer construções teóricas, ou elocubrações de natureza técnico-jurídica. É certo que estas, do ponto de vista do Tribunal, são essenciais para fazer a ligação entre o plano abstracto das normas jurídicas e o mundo dos factos concretos; já da perspectiva das partes que recorrem ao Tribunal não passam de um instrumento para atingir o seu verdadeiro objectivo, que é sempre de natureza prática.
Isto para dizer que no caso dos autos é incontroverso que a pretensão da autora, aquilo que ela verdadeiramente pretende com a instauração desta acção, é o regresso dos motociclos à propriedade e posse do casal, ou, melhor dizendo, ao património conjugal.
Sendo esta a sua pretensão, da leitura da petição inicial verificamos que são avançadas duas causas de pedir diversas, que, se devidamente escoradas no material fáctico pertinente, se mostram capazes de produzir o efeito jurídico/prático pretendido. E a sentença recorrida analisou essas causas de pedir. A primeira, assente na simulação como vício da vontade, melhor dizendo como divergência entre a vontade declarada e a vontade real, improcedeu por não terem resultado provados os factos constitutivos da mesma. A segunda assenta na conjugação do art. 1682º,1 CC, segundo o qual “a alienação ou oneração de móveis comuns cuja administração caiba aos dois cônjuges carece do consentimento de ambos, salvo se se tratar de acto de administração ordinária”, com o art. 1687º.1 CC, segundo o qual faltando o consentimento de um deles, a consequência é a anulabilidade.
Esta causa de pedir, como a própria sentença recorrida analisou e concluiu, procede. Ou seja, o Tribunal recorrido, aplicando o Direito aos factos provados, concluiu que com fundamento na violação desse artigo 1682º,1 CC, o contrato em causa é anulável.
Os vícios da nulidade e da anulabilidade têm algumas diferenças de regime jurídico mas, como decorre de uma leitura do art. 289º,1 CC, têm os mesmos efeitos: tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
Assim, o cenário com que nos deparamos neste momento é o de a autora pretender o regresso dos motociclos ao património conjugal, e, pelo menos uma das causas de pedir que ela invocou na petição inicial, deve ser julgada procedente, o que deveria levar então à procedência da acção.
Cabe então perguntar em nome de que valor ou princípio deve o Tribunal abster-se de conceder o efeito prático/jurídico pretendido pela autora.
Desde logo, o art. 5º,3 CPC dispõe que o Juíz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
Em comentário a esta norma, pode ler-se no CPC anotado de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa que “o princípio da oficiosidade, no que respeita à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, tem como limite as questões cuja apreciação dependa da iniciativa do interessado, como acontece com a caducidade reportada a direitos disponíveis (art. 33º,1), a prescrição (art. 303º), a anulabilidade (art. 289º,1), a resolução (art. 436º,1) ou a compensação (art. 848º,1 CC). Está ainda condicionado pela necessidade de ser respeitado o contraditório, por forma a evitar decisões-surpresa, isto é, contra a corrente do que as partes alegaram (art. 3º,3).
O grande obstáculo que pode ser utilizado para impedir que em casos como o presente seja concedido o efeito prático/jurídico pretendido pelo autor é o disposto no art. 609º,1 CPC: “a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir”.

Como se pode ler na obra supra citada, em anotação a este artigo, “a prática judiciária revelou situações cuja resolução implicou alguma atenuação da rigidez de tal regra, nos termos que foram objecto de uniformização:

a) no Assento nº 4/95 firmou-se a seguinte jurisprudência: “quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no nº 1 do art. 289º do CC”;
b) No AUJ nº 3/01 concluiu-se que “tendo o autor, em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou anulação do acto jurídico impugnado , tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (nº 1 do art. 616º CC), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo art. 664º do CPC [de 1961]”.

Dentro desta linha de atenuação da rigidez formal da regra do art. 609º,1 CPC, que nos parece a todos os títulos correcta, no caso dos autos nada obsta, antes tudo aponta para que se proceda à mesma atenuação, de forma a conseguir chegar à melhor solução.
Assim, não há dúvidas que a autora pretende a devolução dos motociclos ao património conjugal. Invocou pelo menos duas causas de pedir, baseadas uma na simulação e a outra na falta de legitimidade de um dos cônjuges para alienar bem comum do casal. A primeira improcede, mas a segunda procede. A autora não pediu expressamente que o Tribunal anule o contrato com base nesta segunda causa de pedir, tendo pedido apenas que o declare nulo com base na primeira.
Sendo a nulidade um vício mais grave que a mera anulabilidade, a possibilidade de o Tribunal anular o negócio em vez de o declarar nulo é um minus em relação ao que foi pedido (embora, como já vimos, com os mesmos efeitos práticos).
Finalmente, poder-se-á dizer que ao interpretar o pedido da autora desta forma maleável, de forma a entender que ela só por esquecimento deixou de formular expressamente o pedido de anulação do contrato, mas que este corresponde à sua verdadeira pretensão, estamos a prejudicar os réus, nomeadamente por violação do princípio do contraditório ?
Se pudermos afirmar que uma decisão nesse sentido teria apanhado os réus de surpresa, por eles não estarem de todo a contar com essa condenação, e não se terem podido defender contra ela, alegando factos e interpretando o direito, então não teremos dúvidas em afirmar que haveria uma violação do contraditório, e como tal não se poderia avançar por essa solução.
Porém, não é isso que sucede.
Primeiro, porque a autora fez constar da petição inicial a referência a esta segunda causa de pedir (cfr. artigos 32º a 42º dessa peça).
Segundo, porque todos os factos subjacentes a essa causa de pedir foram alegados e discutidos pelas partes.
Terceiro, porque os réus A. L. e F. M., nas suas contestações, demonstraram estarem cientes dessa causa de pedir alegada pela autora (arts. 4º e 19º de tais peças), limitando-se a desvalorizar a mesma; e ainda, como escreve a autora nas suas conclusões de recurso, especial relevo deve ser dado à contestação do 1º Réu, que se defende invocando que o negócio em causa consubstanciou “…um acto de mera administração ordinária do património do casal.”, como alega no artigo 27 da sua contestação.
E quarto, porque nos temas da prova, o Tribunal incluiu factos subjacentes a esta causa de pedir, como os de saber se a venda foi realizada sem o consentimento da autora, e saber se a Autora só teve conhecimento desse negócio no dia 15 de Novembro de 2015.

A solução que agora defendemos traz inegáveis vantagens do ponto de vista da economia processual, pois permite resolver já nestes autos o presente litígio, coisa que a solução contrária não permitiria, pois, se se mantivesse a decisão de primeira instância, o rigor do conceito de pedido levaria necessariamente a aceitar que a autora poderia propor uma nova acção agora só com base na segunda das referidas causas de pedir, formulando o pedido correspondente, e não haveria excepção de caso julgado, por serem diferentes os pedidos.
Duplicação de processos em Tribunal.
Perda de tempo e de recursos.

Finalmente, não podemos deixar de mencionar aqui, em suporte da tese que defendemos, o próprio acórdão do STJ que a recorrente cita nas suas alegações, e que é bastante esclarecedor (18-01-2018, Revista n.º 1005/12.4TBPVZ.P1.S1; Abrantes Geraldes (Relator): “I - Sem embargo da oficiosidade relativamente à qualificação jurídica exposta pelas partes, o tribunal não pode na sentença extravasar do objecto do processo que é integrado tanto pelo pedido como pela causa de pedir (art. 609.º, n.º 1, do CPC). II - Esta limitação é especialmente imposta quando esteja em causa a declaração de anulação de um negócio jurídico, uma vez que a sua arguição, para além de depender da iniciativa do interessado, está sujeita a um prazo de caducidade que não é de conhecimento oficioso (art. 287.º do CC). III - Numa acção cujo objecto seja integrado exclusivamente pela declaração de nulidade de um contrato de compra e venda com fundamento em simulação não pode ser declarada a anulação do mesmo contrato com fundamento na falta de consentimento dos outros filhos dos vendedores, ao abrigo do art. 877.º, n.º 2, do CC. IV - Nos casos em que a delimitação do objecto do processo não resulte com total evidência da petição inicial, revela-se necessária a interpretação da vontade manifestada pelo autor e a apreciação do modo como esse objecto foi compreendido quer pela parte contrária, quer pelo tribunal. V - Numa acção em que foi pedida a declaração de nulidade de um contrato de compra e venda com fundamento em simulação, mas em que também se aludiu à anulabilidade do mesmo contrato com fundamento na falta de consentimento dos demais filhos dos vendedores, nos termos do art. 877.º do CC (venda a filhos ou netos), apesar da improcedência do pedido de declaração de nulidade, é legítimo na sentença declarar a anulação do contrato numa situação em que concorrem as seguintes circunstâncias: a) Foram alegados na petição inicial factos relacionados com a anulabilidade prevista no art. 877.º do CC e na contestação os réus defenderam-se com a alegação da existência do consentimento dos demais filhos e com o facto de estes terem tido conhecimento da venda há mais de um ano, factos que apenas interessavam na medida em que estivesse em causa a anulação do contrato ao abrigo do art. 877.º, n.º 2, do CC; b) Os demais filhos dos vendedores que pela ré vendedora foram chamados a intervir na acção instauraram uma acção autónoma contra os mesmos réus pedindo que fosse declarada a anulação do contrato de compra e venda com fundamento no art. 877.º do CC, tendo os réus alegado nessa acção a excepção de litispendência fundada no facto de esse pedido de anulação já ter sido deduzido na presente acção; c) A excepção de litispendência alegada na segunda acção foi julgada procedente, sendo os réus absolvidos da instância, decisão que, apesar do recurso interposto pelos autores, foi confirmada pela Relação; d) Na audiência prévia da presente acção o juiz integrou nos temas de prova matéria relacionada com a falta de consentimento dos demais filhos dos vendedores, o que apenas interessaria para a acção na perspectiva da posterior apreciação de um pedido de anulação formulado ao abrigo do art. 877.º do CC; e) Antes da audiência de julgamento os autores apresentaram requerimento no sentido de ser apreciada subsidiariamente a anulação do contrato de compra e venda, pretensão que foi indeferida com a justificação de que se tratava de uma mera divergência de qualificação jurídica, a qual seria oportunamente considerada na sentença. VI - Uma perspectiva formal que, nestas circunstâncias conjugadas, considerasse como único objecto do processo a declaração de nulidade do contrato de compra e venda com fundamento em simulação, desconsiderando a anulablidade do mesmo contrato ao abrigo do art. 877.º, n.º 2, do CC, traduziria uma situação de abuso objectivo do direito de defesa, cujos efeitos deveriam ser vedados por aplicação do disposto no art. 334.º do CC”.

Assim, consideramos que nesta parte assiste razão à recorrente, e que o Tribunal recorrido, interpretando de forma extensiva e completa a pretensão da autora, podia e devia ter conhecido do pedido implícito de anulação do negócio.

Aqui chegados, resta apreciar a defesa que os recorridos apresentam nas suas contra-alegações, e que, para a hipótese de este Tribunal dar provimento ao recurso quanto ao conhecimento da anulabilidade, alegam que o prazo de que a autora dispunha para arguir a anulabilidade já decorreu. Donde, esse direito teria caducado.

Vejamos.

Ao contrário da nulidade, que é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal (art. 286º CCC), a anulabilidade só pode ser arguida dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento (art. 287º,1 CC). Enquanto, porém, o negócio não estiver cumprido, pode a anulabilidade ser arguida, sem dependência de prazo, tanto por via de acção como por via de excepção (art. 287º,2 CC).

Olhando para o que se provou, salta desde logo à vista que foi em 23.12.2013 que o 1.º Réu declarou vender ao 2.º Réu, que declarou comprar, as referidas motas. E daí poderia deduzir-se que, tendo a acção sito intentada em 26/10/2016, já teria decorrido o prazo de caducidade.

Porém, salta igualmente à vista que o 2.º Réu não entregou ao 1.º Réu qualquer quantia a título de pagamento do respectivo preço. Essa não entrega do preço, salvo melhor opinião, tem necessariamente de ser vista como o negócio não estar cumprido, pois a compra e venda, como é sabido (art. 874º CC), tem como efeitos a transmissão da propriedade e a entrega do preço. Faltando uma delas, o negócio tem-se por não cumprido.

E assim, podia a autora suscitar nesta acção a questão da anulabilidade, sem correr o risco de esse seu direito ter caducado.

Resumindo e concluindo, os motociclos da marca “Harley Davidson” com as matrículas NF e NU eram bens comuns do casal composto pela autora e primeiro réu. Só podiam ser alienados por ambos ou com o consentimento de ambos (art. 1682º,1 CC). Foram alienados pelo primeiro réu ao segundo, sem o consentimento da autora, pelo que o contrato em causa é anulável (art. 1687º,1 CC). Essa anulabilidade pode e deve ser declarada pelo Tribunal.

Donde, o recurso procede, devendo ser anulado o contrato de compra e venda celebrado entre o 1.º Réu e o 2.º Réu.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso procedente, e em consequência, revogando a sentença recorrida, anula o contrato de compra e venda dos dois motociclos celebrado entre os réus, condenando o segundo réu a entregar os mesmos ao primeiro réu e à autora.

Custas pelos recorridos (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 12/3/2020

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)


1. Conselheiro Abrantes Geraldes, ob cit, fls. 286.
2. Destaque nosso.