Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
15/15.4T8BGC.G1
Relator: VERA SOTTOMAYOR
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
NEXO DE CAUSALIDADE
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário: I – A responsabilidade do empregador relativamente aos acidentes de trabalho sofridos pelos seus trabalhadores assenta no chamado risco económico ou de autoridade que está subjacente ao conceito de acidente de trabalho que resulta do disposto no artigo 8º da NLAT
II – Para que se considere a existência de um acidente de trabalho à luz do artigo 8º da NLAT, não se exige a verificação de um nexo de causalidade entre o acidente e a prestação do trabalho em concreto, mas apenas se exige a verificação de um nexo de causalidade entre o acidente e a relação laboral.
III – Verifica-se o nexo de causalidade entre o acidente e a relação laboral, no acidente que consistiu num trabalhador agrícola, que se encontrava no seu local e tempo de trabalho, ao auxiliar, de forma voluntária, o proprietário de uma máquina Bulldozer a “ferrá-la”, ter ingerido gasóleo quando aspirava tal combustível da mangueira de abastecimento da máquina, para tentar retirar o ar que impedia o combustível de chegar ao motor, do qual veio a resultar em consequência das lesões sofridas a sua morte.
IV – O artigo 14º n.º 1 al. b) da NLAT estipula que não dá direito a reparação o acidente que for proveniente exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado, ou seja o proveniente de um comportamento temerário em alto e relevante grau que não consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.
V – Não se verificam os requisitos previstos na al. b) do artigo 14º da NLAT no acidente que consistiu no sinistrado, com o intuito de auxiliar um colaborador do seu empregador, imitando os gestos e o procedimento que este último já havia realizado para “ferrar” a bomba de combustível da máquina Bulldozer, ingeriu gasóleo quando aspirava tal combustível da mangueira de abastecimento da máquina, vindo a falecer.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães

APELANTE: B. SEGUROS
APELADOS: C. e D.
Comarca de Bragança, Instância Central, Secção do Trabalho – J1

I – RELATÓRIO
Frustrada a tentativa de conciliação, C. e marido D., residentes na … intentaram a presente ação especial emergente de acidente de trabalho contra B. Seguros – SUCURSAL EM PORTUGAL, com sede na Rua …, pedindo que se declare o acidente sofrido por seu filho E. como de trabalho e consequentemente se condene a Ré a pagar-lhes:
a) A pensão anual e vitalícia no montante de 1.060,50€ (a cada um dos beneficiários) até à idade de reforma, e a partir da idade da reforma na pensão anual e vitalícia no montante de 1.414,00€ a partir de 6/01/2015 nos termos do preceituado nos artigos 61º n.º 1, n.º 2 e n.º 3, artigo 57º n.º1 alínea d) da lei 98/2009 correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual.
b) Essa pensão deverá ser paga adiantada e mensalmente até ao 3.º dia de cada mês, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual.
c) Aos subsídios de férias e Natal, no valor de 1/14 cada da pensão anual, são respectivamente pagos nos meses de Maio e Novembro, nos termos do preceituado no artigo 72º da Lei 98/2009 de 4 de Setembro.
d) Às despesas de funeral com transladação no valor de 3.689,14€
e) Indemnização pelos períodos de IT´S no montante de 252,62€- artigo 48 n.º1 e 50 da lei 98/2009.
f) Ao valor de 130 € correspondente à deslocação efectuadas ao Tribunal de Trabalho em Bragança, virtude de não existirem transportes públicos capazes de transportar os A. até Bragança que possam chegar em tempo útil às diligências nesse tribunal;
g) A importância correspondente a juros vencidos contados à taxa legal sobre as importâncias vencidas e que se forem vencendo até integral pagamento;
Alegam em resumo que são os progenitores de E., que sofreu um acidente de trabalho em 17/12/2014, no exercício da sua profissão de trabalhador agrícola, ao serviço do seu empregador, em consequência do qual sofreu lesões que lhe determinaram a morte, ocorrida em 5/1/2015. O sinistrado era solteiro e estava integrado no agregado familiar dos AA., com quem vivia em economia comum, contribuindo regularmente para a economia familiar, já que os seus pais não têm outro rendimento para além de uma pensão vitalícia que a A. mãe aufere por acidente de trabalho de montante não superior a €234,00. A responsabilidade infortunística do empregador encontrava-se totalmente transferida para a R. seguradora por meio de contrato de seguro de acidentes de trabalho. O sinistrado auferia a retribuição diária de €16,83 e mensal de €505,00.
Regularmente citada, a Ré Seguradora contestou, defendendo em síntese, que o sinistrado E. não se encontrava a realizar qualquer tarefa determinada pelo seu empregador ou por qualquer representante deste no momento do acidente e que este ocorreu por acto voluntário e temerário daquele, realizado em favor de terceiro, não estando, por isso, coberto pelas garantias do seguro, além de que resultou exclusivamente de comportamento imprudente e negligente do próprio sinistrado e da privação do uso da razão por parte deste proveniente do consumo de substâncias sedativas e hipnóticas.
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Os autos prosseguiram os seus ulteriores termos tendo por fim sido proferida sentença, a qual terminou com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, julgo totalmente procedente, por provada, a presente acção e, em consequência, condeno a R. B., Sucursal em Portugal a pagar aos AA. C. e D. as seguintes prestações:
- Uma pensão anual e vitalícia, a cada um, de €1.060,50 (mil e sessenta euros e cinquenta cêntimos), desde o dia 6/01/2015, a pagar adiantada e mensalmente, até ao 3º dia de cada mês, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual e sendo os subsídios de férias e de Natal, no valor de 1/14 da mesma pensão, pagos, respectivamente, nos meses de Junho e de Novembro, sem prejuízo da sua eventual remição obrigatória, nos termos do art. 75º da NLAT;
- A quantia de €130,00 (cento e trinta euros);
- Juros de mora, à taxa legal, desde a data do respectivo vencimento, ou seja, desde 6/01/2015 quanto à pensão por morte e desde a citação quanto às despesas de deslocação.
Custas pela R..
Notifique.
Registe.
Fixo à causa o valor de € 23.187,39.
Cumpra o disposto no art. 137º do Cód. Proc. Trabalho.
Notifique os AA. beneficiários para, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da presente sentença, vir aos autos declarar se pretendem a remição obrigatória da pensão fixada nestes autos, atento o disposto no art. 75º nº 1 da NLAT.”
Inconformada com esta decisão, dela veio a Ré interpor recurso para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminam com as seguintes conclusões:
1ª – O presente recurso incide, prima facie, sobre o julgamento da matéria de facto, mais concretamente a resposta dada ao facto constante do art.º 42º da base instrutória.
2ª - A resposta do tribunal a quo ao art.º 42.º da base instrutória foi: “Provado apenas o que consta da alínea F) da matéria de facto assente”. Contudo, tal facto deve passar a “Provado” (cfr. artigo 640.º n.º 1 do C.P.C.).
3ª - A resposta art.º 42.º da b.i. deverá ser modificada com base no depoimento produzido pelas testemunhas Márcio e Soares, que assistiram aos factos.
4ª – Do depoimento destas duas testemunhas resulta que o sinistrado sugou, com força e repetidamente, o gasóleo do depósito da máquina, tendo acabado por ingerir gasóleo do tubo e ainda que o sinistrado apenas parou o movimento de sucção do gasóleo após ingerir uma elevada quantidade de gasóleo, quando se sentiu mal.
5ª – A exacta passagem do depoimento da testemunha Márcio que impõe uma decisão diversa da recorrida é a compreendida entre o min. 13.40 e o min. 14.30 e a do Soares situa-se entre o min 16.45 e o min 18.15.
6ª - Os depoimentos destas testemunhas conjugados entre si, confirmam, na íntegra, o facto do art.º 42.º da douta base instrutória, o qual deverá ser dado como provado.
A FALTA DE QUALIFICAÇÃO DO EVENTO COMO UM ACIDENTE DE TRABALHO TIPIFICADO NA L.A.T.
7ª - Face aos factos provados, não ocorreu um típico acidente de trabalho, nos termos constantes na Lei n.º 98/2009, de 4/9, não havendo, por isso, lugar a reparação.
8ª – A versão dos factos alegada na douta p.i. “faliu” por completo, pois “as testemunhas presenciais desmentiram a versão dos AA. de que o sinistrado recebeu ordens expressas de Soares para auxiliar o maquinista no procedimento de remoção do ar da mangueira do gasóleo, nem sequer que este tivesse solicitado qualquer auxílio aos trabalhadores presentes para tal tarefa” – vide despacho de resposta aos quesitos de fls .
9ª - Provou-se que foi o próprio sinistrado quem interpelou de forma repetida o maquinista José para que este o deixasse tentar sugar o gasóleo.
10ª - O sinistrado não se encontrava a executar uma tarefa determinada pela sua entidade patronal, que nessa altura não orientava o E..
11ª - Provou-se ainda que o sinistrado tinha como tarefa específica, “retirar do solo as pedras sobrantes” e foi contratado unicamente para esse fim,
12ª - Face à matéria de facto dada como provada não existe nexo causal entre a tarefa de sugar o gasóleo da Bulldozer e as funções que o sinistrado exercia.
13ª - O art.º 8º n.º 1º da Lei 98/2009 de 4 de Setembro (L.A.T.) delimita o conceito de acidente de trabalho sendo ainda unânime o entendimento de que “Independentemente de ocorrer ou não no tempo e no local de trabalho, o que relevará fundamentalmente para que um acidente possa ser considerado como de trabalho é que o trabalhador se encontre, no momento da sua verificação, sob a autoridade da entidade empregadora, se encontre a executar um serviço ou tarefa por ela determinado” – cfr. ARC de 16/12/2015, Proc. n.º 235/13.6TTLRA.C1, disponível em www.dgsi.pt .
14ª - A tarefa de sugar gasóleo não foi determinada pela entidade empregadora do sinistrado e, decisivamente, encontra-se desligada das funções para que foi contratado.
15ª - Aquando do sinistro, do acto de sugar o tubo, o sinistrado não se encontrava sob a autoridade da sua entidade empregadora. Não foi por causa das funções que exercia naquele arroteamento que o sinistrado ingeriu gasóleo.
16ª - A tarefa de “sangrar” a Bulldozer não foi determinada pela sua entidade empregadora, nem por qualquer representante da mesma, e não cabia nas funções que o sinistrado exercia naquela empreitada agrícola.

17ª – A visão da Exm.ª Sr.ª Juíza a quo, não é sustentável do ponto de vista jurídico.
18ª - Por um lado, os Autores não alegaram uma relação de dependência entre as funções que o sinistrado desempenhava e tarefa que o maquinista da Bulldozer executava.
19ª - Por outro lado, não resulta dos factos provados a existência de relação de dependência jurídica entre as tarefas do manobrador da máquina e a específica tarefa desempenhada pelo sinistrado. A questão é, neste caso, jurídica.
20ª - Por último, esta construção foi até contrariada pelo depoimento da testemunha José– cfr. min. 18.13 e min 19.45 do seu depoimento gravado.
21ª - Face à matéria de facto dada como provada, deverá entender-se que o sinistro em discussão nos presentes autos não configura um acidente de trabalho, tal como tipificado na Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro.
SEM PRESCINDIR – DESCARACTERIZAÇÃO POR NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
22ª - Mesmo que se entenda que o evento en cause configura um acidente de trabalho, sempre o mesmo se mostra descaracterizado, uma vez que se deveu à negligência grosseira do próprio sinistrado – art.º 14.º n.º 1 al. b) da Lei n.º 98/2009, de 4/9.
23ª - Do rol de factos provados resulta que o sinistrado, ao sugar o combustível da mangueira de uma forma inadvertida, adoptou um comportamento temerário em alto grau que conduz inevitavelmente à descaracterização do sinistro. Trata-se de um comportamento de risco, mesmo risco de perder a vida, como se viu.
24ª - O movimento de sucção de uma mangueira onde corre um combustível (gasóleo) é um acto de elevado perigo, que não pode ser confundido com o acto de sugar uma mangueira de água. Por ser perigoso, muito perigoso, não pode deixar de ser tido como um comportamento temerário e, por isso, reprovável.
25ª - Além de reprovável e voluntário (como se provou), o comportamento do sinistrado, mostra-se totalmente injustificado à luz do elementar senso comum.
26ª - O acto de sugar o gasóleo do tubo com a boca já se mostra reprovável. Mas sugar gasóleo de uma mangueira com uma intensidade tal que levou à queda do sinistrado inanimado no chão (cfr. art.º 24.º de fls. ), não tem desculpa nem justificação, sendo absolutamente reprovável face a um elementar sentido de bom senso.
27ª - As consequências do comportamento do sinistrado eram previsíveis para qualquer trabalhador ou mesmo para qualquer pessoa.
28ª - Ao adoptar o comportamento em causa, o sinistrado não observou o dever objectivo de cuidado que se impunha, tanto mais o dano era altamente previsível.
29ª - O sinistro sub judice deveu-se de forma exclusiva ao comportamento temerário do sinistrado, que sugou, com a sua boca, sem que lhe fosse pedido, E SEM OBEDECER A ORDENS DE NINGUÉM, gasóleo de um tubo da máquina, até cair inanimado.
30ª - O sinistro en cause deve considerar-se descaracterizado, face ao disposto no art.º 14.º n.º 1 al. b) e n.º 3 da Lei 98/2009, de 4/9/, e ainda o Ac. do T.R.L. de 7 de Março de 2012, Proc. n.º 2606/09.3TTLSB.L1-4, Ac. do T.R.C. de 13 de Dezembro de 1979 e Ac. do T.R.L. de 3 de Março de 2004.
31ª - Deve, assim, ser revogada a douta sentença recorrida, por violação, nomeadamente, do disposto nos artigos 8.º e 14.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro e 607.º do Código de Processo Civil que deveriam ter sido aplicados em conformidade com o alegado nas conclusões supra.
Conclui assim a Recorrente/Apelante pela revogação da sentença recorrida, com a sua substituição por Acórdão que julgue procedentes as conclusões do recurso, com as legais consequências.
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Contra alegaram os Autores deduzindo as seguintes conclusões:
“1.º - Julgou de forma acertada a Meritissíma Juiz a quo dando como “ provado apenas o constante da alínea F) da matéria de facto assente”, no que se refere ao artigo 42.º da base instrutória.
2.º- Atenta a prova produzida pela recorrente, e os depoimentos do senhor Soares e Márcio, ficou claramente demonstrado e provado que ocorreu um acidente de trabalho.
3.º-É exactamente com base nos depoimentos invocados pela recorrente Márcio e Soares que efectivamente assistiram aos factos.
4.º Em momento algum dos seus depoimentos referem que Maurice, o sinistrado, sugou com” força” e “repetidamente,” o gasóleo da máquina, tal como afirmamos supra , apesar da má qualidade da gravação tais expressões nunca foram proferidas, pelo que em nosso modesto entender a recorrente ouviu o que não foi dito.
5.º E é efectivamente com base no testemunho dos mencionados Márcio e Soares, que a Meritíssima juiz a quo julgou sabiamente.
Face aos factos provados, o tribunal a quo considerou efectivamente que existiu um acidente de trabalho, o senhor E. foi contratado para desempenhar funções na actividade agrícola do tomador de seguro, mais precisamente na preparação de um terreno, como arroteamento para futura plantação e foi durante essa relação laboral que o mesmo sofreu um acidente de trabalho.
6.º Tal como supra afirmado o sinistrado efectuou um procedimento que, imitou de outro trabalhador, o manobrador da maquina, um procedimento que no dizer do mesmo é habitual, e tal como se afirmou supra também há uma dependência entre ambos os trabalhos, naquele circuito não havia trabalhos estanques, dos depoimentos das Testemunhas Soares e Márcio respectivamente nos seus depoimentos entre min.4.33 e min. 5,00, e min 8.05 e 8.37, os seu trabalhos dependiam da máquina.
7.º Tratavam-se de trabalhos complementares e com um fim comum, e há nesta complementaridade um interesse económico da própria entidade patronal, justificando-se pela própria relação laboral.
8. No depoimento do manobrador da máquina senhor José, entre o min 16.15 e 20.14, o mesmo refere que o trabalho do restante pessoal, onde se incluía o sinistrado E., iam na sequência do dele, sem o trabalho da máquina, eles não teriam trabalho para fazer.
9-Face à matéria dada como provada estamos perante um acidente de trabalho tal qual vem tipificado nos termos do decreto-lei 98/2009 de 4 de Setembro, no seu artigo 8.
10- Não pode e não foi negligência grosseira por parte do sinistrado, e julgou mais uma vez sabiamente a Meritíssima Juiz a quo, o sinistrado agiu no intuito de auxiliar um trabalhador da sua entidade patronal, imitando o manobrador da máquina que o precedeu no acto.
11. Tal como se afirmou, e estando dependente o trabalho de todos os trabalhadores, mostrou-se plenamente justificada a atitude do sinistrado, tentando permitir que o trabalho de todos fluísse normalmente.
12.- Aliás o manobrador da máquina, no seu depoimento min. 6.00 e 6.35 refere que ainda hoje acontece, muitas vezes e que já bebeu algum gasóleo.
13- Dai o sinistro não se dever ao comportamento temerário do sinistrado, agiu no intuito de auxiliar um colaborador da sua entidade patronal.”
Terminam as suas conclusões dizendo que ao recurso deve ser negado o provimento e em consequência deve ser mantida a sentença recorrida.
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Admitido o recurso na espécie própria e com o adequado regime de subida e efeito suspensivo, já que foi prestada a caução, foram os autos remetidos a esta 2ª instância.
Foi determinado que se desse cumprimento ao disposto no artigo 87º n.º 3 do C.P.T., tendo o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitido o douto parecer de fls.237 a 245 no sentido da improcedência global do recurso.
Notificado a recorrente para responder, querendo, ao parecer do Ministério Público, nada veio dizer.
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Cumprido o disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 657º do Código de Processo Civil, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
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II – DO OBJECTO DO RECURSO
Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões da recorrente (artigos 653º, nº 3 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nela não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso, que aqui se não detetam, no recurso interposto pela Ré/Apelante sobre a sentença recorrida, colocam-se à apreciação deste Tribunal da Relação as seguintes questões:
- Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
- Da qualificação do acidente sofrido pelo sinistrado;
- Da descaraterização do acidente nos termos do artigo 14º n.º 1 al. b) da NLAT.
III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Em 1ª instância considerou-se provada a seguinte matéria de facto:
1 – C. e D., de nacionalidade alemã, são pais de E., que faleceu no dia 5 de janeiro de 2015, no estado de solteiro, com 32 anos de idade [al. A)].
2- F. celebrou com a seguradora B. Seguros- sucursal em Portugal um contrato de seguro de acidentes de trabalho por conta de outrem na modalidade de seguro agrícola genérico, a prémio fixo, titulado pela apólice nº …, cujas condições particulares constam do documento de fls. 9 e cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido [al. B)].
3- Por força do referido contrato, a “B.” assumiu o pagamento dos encargos obrigatórios provenientes de acidentes de trabalho ocorridos no âmbito do exercício da actividade agrícola do tomador do seguro, relativamente a quatro trabalhadores, dois deles trabalhadores genéricos, sem nome e funções atribuídas, para trabalho mecanizado e não mecanizado, um trabalhador com as funções de podador/limpador e ainda um trabalhador de construção civil (pequenas reparações), pelo salário mensal de Eur. 505,00, relativamente a cada um desses trabalhadores [al. C)].
4- Sendo que o contrato de seguro iniciou a sua vigência no dia 11 de Novembro de 2014 [al. D)].
5- No dia 17/12/2014 decorriam trabalhos de surriba num terreno pertencente a …, sito em …, nos quais era utilizada uma máquina Bulldozer manobrada por José e colaboravam vários trabalhadores, entre os quais E. que tinha sido contratado por conta de F. [al. E)].
6- No dia 17/12/2014, no local referido, E. sofreu um acidente que consistiu em ter ingerido gasóleo quando aspirava tal combustível da mangueira de abastecimento do motor da referida máquina bulldozer e para tentar retirar o ar que impedia o combustível de chegar ao motor [al. F)].
7- F. encontra-se emigrado no Brasil [al. G)].
Das respostas à Base instrutória
8- C. e D. vivem desde 1987, na zona da … (resposta ao quesito 1º).
9- O seu filho E. não deixou filhos (resposta ao quesito 2º).
10- E., era trabalhador rural desde há alguns anos, fazendo disso meio de sustento de vida e o mesmo fazia parte do agregado familiar dos pais, contribuindo para a economia familiar regularmente com o produto do seu trabalho (resposta ao quesito 3º).
11- Seus pais não têm outro rendimento além de uma pensão vitalícia que a mãe aufere por acidente de trabalho ocorrido em Portugal, cujo valor mensal actual ascende a €243,80 (resposta ao quesito 4º).
12- O seu pai não aufere qualquer rendimento, trabalhando os campos em redor da casa que ocupam, imóvel que não é seu e que foi cedido por uns amigos (resposta ao quesito 5º).
13- Os terrenos onde praticam uma agricultura de subsistência também foram cedidos por amigos, uma vez que não tem capacidade económica para adquirir objectos e máquinas de granjeio industrial (resposta ao quesito 6º).
14- A contribuição de E. era indispensável para o sustento familiar e demais necessidades básicas dos AA., uma vez que, sem emprego os dois viviam essencialmente da ajuda monetária do filho (resposta ao quesito 7º).
15- E. era geireiro, fazendo todo o tipo de serviço na agricultura, trabalhando para quem o chamasse já há alguns anos, entre os quais trabalhava para o senhor F. (resposta ao quesito 8º).
16- Sendo considerado um bom trabalhador, que exercia com zelo e dedicação as suas funções (resposta ao quesito 9º).
17- Em 17 de Dezembro de 2014, trabalhava para F., sob orientação de Soares, por nesse dia não se encontrar presente Manuel, que era a pessoa encarregada por aquele de administrar as suas propriedades agrícolas (resposta ao quesito 10º).
18- Procedia-se na altura a um arroteamento de terras para futura plantação de vinha (resposta ao quesito 11º).
19- E. já se encontrava naquele trabalho há 4 dias, com a categoria de trabalhador agrícola (resposta ao quesito 12º).
20- Auferia uma retribuição não superior a €40,00 por cada dia de trabalho (resposta ao quesito 13º).
21- No dia 17 de Dezembro de 2014, uma máquina Bulldozer arroteava e em seguida os restantes trabalhadores procediam á remoção de entulhos deixados pela máquina a fim de poderem colocar o terreno em patamares para a plantação (resposta ao quesito 14º).
22- Nesse mesmo dia 17 de Dezembro, em hora não concretamente apurada, mas a meio da tarde, no lugar de …, numa dessas manobras que a máquina elaborava, a mesma parou inesperadamente numa posição inclinada, por falta de combustível, tornando-se necessário proceder não só ao abastecimento da máquina, como também à tentativa de retirada do ar do circuito de abastecimento de combustível da mesma (resposta ao quesito 15º).
23- O maquinista manobrador da máquina Bulldozer, José, tentou efectuar o procedimento de retirada do ar do circuito de abastecimento de combustível, tendo, inclusive, tentado fazer tal operação aspirando com a boca através de uma mangueira o mesmo gasóleo, o que não conseguiu (resposta ao quesito 17º).
24- Em consequência do facto descrito na alínea F), o E. caiu imediatamente inanimado no chão, sendo que os seus colegas chamaram de imediato o INEM para o tentar socorrer (resposta ao quesito 19º).
25- Em consequência do evento descrito, E. sofreu as lesões melhor descritas no relatório de autópsia que consta de fls. 40 a 43 e que aqui se considera integralmente reproduzido, designadamente pneumonia, as quais foram causa directa e necessária da sua morte, em 5/1/2015 (resposta ao quesito 21º).
26- Os AA. despenderam €130,00 na deslocação ao Tribunal do Trabalho de Bragança em táxi, em virtude de não terem transporte público colectivo capaz de os transportar em tempo útil às diligências neste Tribunal (resposta ao quesito 23º).
27- É o Sr. Manuel quem administra as propriedades de F., segurado da Ré (resposta ao quesito 24º).
28- E roga o pessoal que considera necessário para a execução dos trabalhos (resposta ao quesito 25º).
29- Assim, o Sr. E., como todos os restantes trabalhadores que se encontravam na sua propriedade no dia 17 de Dezembro de 2014 foram rogados pelo Sr. Manuel (resposta ao quesito 26º).
30- O Sr. José, que é manobrador e proprietário de uma bulldozer da marca “Komatsu”, também foi contratado por Manuel para prestar serviços específicos, por sua conta e risco, que consistiam na surriba do terreno em questão, por intermédio da referida máquina Bulldozer (resposta ao quesito 27º).
31- O referido José dedica-se à actividade profissional de manobrador de máquinas, por conta própria, cujos serviços, pontualmente, eram requisitados pelo referido Manuel e que era pago à hora (resposta ao quesito 28º).
32- Os trabalhadores rogados pelo Sr. Manuel tinham como função acompanhar a bulldozer, na sua retaguarda, e retirar do solo as pedras sobrantes, de modo a deixar o terreno limpo (resposta ao quesito 29º).
33- Foi única e exclusivamente para este fim que os referidos trabalhadores foram rogados pelo Sr. Manuel, sendo pagos ao dia e obedecendo a ordens do Sr. Manuel (resposta ao quesito 31º).
34- No dia 17 de Dezembro de 2014, a dada altura, a bulldozer que procedia ao saibramento ficou sem combustível, o que originou a paragem do motor da máquina (resposta ao quesito 32º).
35- Nesta circunstância, o seu proprietário, Sr. José, reabasteceu com gasóleo o depósito da bulldozer (resposta ao quesito 33º).
36- No entanto, a bomba injectora da bulldozer havia “desferrado”, ou seja, a falta de combustível levou à entrada de ar na mangueira de borracha por onde circula combustível, o que impedia o funcionamento da bulldozer, que necessitava de ser “sangrada”, em linguagem corrente (resposta ao quesito 34º).
37- O Sr. José retirou a mangueira que conduz o gasóleo desde o depósito até ao motor da bulldozer e de seguida colocou a mangueira na sua própria boca, iniciando depois um movimento de sucção do ar, com vista a “ferrar” a dita bomba (resposta ao quesito 35º).
38- O Sr. José tentou mas não conseguiu “ferrar” a bomba (resposta ao quesito 36º).
39- Foi então que o Sr. E. interpelou o Sr. José, pedindo que o deixasse tentar “ferrar” a bomba (resposta ao quesito 37º).
40- Todavia, o Sr. José recusou tal pedido e continuou, ele próprio, a tentar “ferrar” a bomba, durante alguns minutos (resposta ao quesito 38º).
41- Porém, o Sr. E. manteve-se sempre junto da máquina, e pediu ao dono da máquina, repetidamente, que o deixasse tentar (resposta ao quesito 39º).
42- A dada altura, e após tamanha insistência, o Sr. José A acabou por ceder às solicitações do Sr. E. (resposta ao quesito 40º).
43- Então o Sr. E. aproximou-se da bulldozer, sentou-se na lagarta da mesma, introduziu as suas pernas entre a referida lagarta e o corpo da máquina, colocou depois a mangueira do gasóleo na sua própria boca, e iniciou um movimento de sucção do gasóleo do depósito da máquina (resposta ao quesito 41º).
44- A pesquisa efectuada ao sangue do Sr. E., constante do relatório do Serviço de Química e Toxicologia Forenses de 2 de Abril de 2015, acusou a presença de “benzodiazepinas - desalquiflurazepam”, na concentração de 3,3 ng/ml, e acusou igualmente “midazolam”, na concentração de 1717 ng/ml?; as referidas substâncias foram administradas ao sinistrado durante o período de internamento e para o manter em estado de sedação (resposta ao quesito 44º).
45- Trata-se de substâncias com efeitos sedativos (resposta ao quesito 45º).
IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO
1 - Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto
A Recorrente/Apelante pretende a alteração da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova, designadamente dos depoimentos testemunhais gravados.
Dispõe o artigo 662º n.º 1 do C.P.C. aplicável por força do disposto no n.º 1 do artigo 87º do C.P.T. e no que aqui nos interessa, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
O artigo 640º do C.P.C. estabelece as regras a que tem de obedecer a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Assim, a Recorrente deve, necessariamente, especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Importa ainda ter presente o princípio da livre apreciação da prova testemunhal, segundo o qual a prova é apreciada segundo as regras da experiência e livre convicção do julgador e que se mostra consagrado no disposto no artigo 396º do C.C. ao dispor que a força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal.
Relacionado com este princípio estão os princípios da oralidade e da imediação. O primeiro exige que a produção de prova e a discussão na audiência de julgamento se realizem oralmente, para que as provas, excepto aquelas cuja natureza o não permite, sejam apreendidas pelo julgador por forma auditiva. O segundo diz respeito à proximidade que o julgador tem com o participante ou intervenientes no processo, ao contacto com todos os elementos de prova através de uma percepção directa ou formal. Esta perceção imediata oferece maiores possibilidades de certeza e da exacta compreensão dos elementos levados ao conhecimento do tribunal.
Segundo o Prof. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 386 estes princípios possibilitam o indispensável contacto pessoal entre o juiz e as diversas fontes de prova. Só eles permitem fazer uma avaliação, o mais corretamente possível, da credibilidade dos depoimentos prestados pelas testemunhas.
Assim na reapreciação da prova impõe-se toda a cautela para não desvirtuar os mencionados princípios.
No caso em apreço, a Recorrente indicou o concreto ponto de facto que deve ser alterado, indicou a decisão que deve ser proferida sobre a questão de facto impugnada e relativamente à exigência prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 640º do CPC., de especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diferente, indicou e sinalizou os depoimentos de duas testemunhas que no seu entender impõe a alteração da decisão.
Com efeito, a Recorrente considerou que foi incorrectamente julgado o facto constante do artigo 42º da base instrutória, já que Senhora Juíza a quo não extraiu o devido alcance da prova produzida, pelo que em face da prova testemunhal séria e credível que foi produzida no que respeita a este facto, nomeadamente pelas testemunhas Márcio e Soares impunha-se dar como provada a matéria que consta de tal artigo, com excepção da expressão “por descuido” que configura um juízo de valor.
Vejamos se lhe assiste razão.
No quesito 42º perguntava-se o seguinte
“Movimento que efetuou com força e repetidamente, até que ingeriu, por descuido, gasóleo do tubo, tendo parado somente após ingerir uma elevada quantidade de gasóleo, quando se sentiu mal?”
Tal quesito mereceu a seguinte resposta: “provado apenas o que consta da alínea f) da matéria de facto assente”.
A Mma. Juiz motivou a sua decisão sobre a resposta restritiva dada ao artigo 42º da base instrutória da seguinte forma:
“ (…) Márcio e Soares, que presenciaram o acidente, pelo facto de se encontrarem no local a exercer a sua actividade ao serviço do dono do terreno e empregador F., sendo companheiros de trabalho do sinistrado, tendo tais testemunhas revelado conhecimento fundado das circunstâncias em que ocorreu o acidente e das relações existentes entre cada um dos intervenientes nos trabalhos e o dono do terreno, bem como das concretas tarefas a desempenhar por cada um, sendo os seus depoimentos, no essencial, coincidentes e corroborados pelo depoimento da testemunha Manuel (…); com base nos depoimentos das referidas testemunhas, considerou o tribunal provados os factos vertidos nas respostas aos quesitos 10º a 14º, 17º a 19º, 24º a 29º, 31º a 42º”.
Procedemos à audição da gravação onde constam os depoimentos das duas testemunhas, bem como das demais que foram inquiridas na audiência de julgamento.
Apesar da dificuldade na audição dos depoimentos prestados pelas testemunhas que foram inquiridas por videoconferência, o certo é que nenhuma das testemunhas mencionadas pela Recorrente testemunhou os factos que agora se pretende que sejam dados como provados, ou seja não resulta da prova produzida em audiência de julgamento que o sinistrado tivesse iniciado o movimento de sucção do gasóleo do depósito da máquina com força e repetidamente, tendo parado somente após ingerir uma elevada quantidade de gasóleo, quando se sentiu mal.
Na verdade, os depoimentos das duas testemunhas acima mencionadas não infirmam a decisão adoptada pelo Tribunal a quo, nem nos permitem fazer qualquer dedução ou concluir no sentido propugnado pela Recorrente.
Ao invés o que resulta dos depoimentos das testemunhas é apenas o facto de o sinistrado quando aspirava gasóleo da mangueira de abastecimento do motor da máquina bulldozer, ingeriu gasóleo.
Verificamos assim que os meios de prova invocados pela Recorrente/Apelante não impõe de forma alguma decisão diversa sobre a factualidade em causa, razão pela qual bem andou a Mmª Juiz a quo ao responder de forma restritiva e em conformidade com a prova produzida aos factos que constam do artigo 42º da base instrutória.
Em face do exposto improcede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
2 - Da qualificação do acidente sofrido pelo Autor
Importa desde já deixar consignado que por os factos em apreciação terem ocorrido em 17 de Dezembro de 2014, a Lei aplicável, no que respeita ao regime dos acidentes de trabalho é a Lei n.º 98/2009 de 4/09 (NLAT) que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, incluindo a reabilitação e reintegração profissionais, nos termos do art. 284º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009 de 12/02.
Comecemos por apurar se o evento ocorrido é de considerar como acidente de trabalho, integrando este conceito nos termos previstos no artigo 8º da Lei n.º 98/2009, de 4/09 (NLAT), já que a Recorrente/Apelante defende que não foi feita prova de todos os seus requisitos, nomeadamente não se fez prova do nexo causal a estabelecer entre a prestação do trabalho e o acidente.
Na verdade, a recorrente não aceita que na altura do sinistrado tivesse sob a autoridade da sua entidade empregadora, nem aceita que o sinistro tenha ocorrido quando o sinistrado se encontrava a executar uma tarefa determinada pela sua entidade patronal, nem aceita que esteja demonstrado o nexo causal entre a tarefa de sugar gasóleo da Bulldozer e as funções que o sinistrado exercia, que consistiam em retirar do solo as pedras sobrantes. Defende assim a Recorrente que não tendo a tarefa de “sangrar” a Buldozer sido determinada pelo seu empregador, nem por qualquer representante da mesma, não se inserindo a mesma nas funções que o sinistrado exercia naquela altura, não pode o acidente ora em apreço ser caracterizado como de trabalho.
Na sentença recorrida escreveu-se a este propósito o seguinte:
“Da factualidade descrita decorre sem margem para dúvidas que o sinistrado E. foi vítima de um evento externo e súbito, inesperado (aspiração acidental de combustível), ocorrido no tempo e local de trabalho, que lhe provocou lesões no corpo e saúde. Temos também por certo, como alega a R. seguradora, que esse evento não se produziu quando o sinistrado executava as tarefas de que estava concretamente incumbido pelo empregador e que consistiam, tão só, em acompanhar a bulldozer, na sua retaguarda, e retirar do solo as pedras sobrantes, de modo a deixar o terreno limpo. Mas, como explicitamos supra, não se exige um nexo de causalidade directa entre a execução do trabalho e o acidente, bastando que se verifique uma relação causal adequada entre o evento e a relação laboral. Ora, essa relação é patente no caso em apreço. Com efeito, embora o manobrador da máquina trabalhasse por sua conta e risco, o certo é que todos tinham um objectivo comum, ao serviço da mesma pessoa, que era a surriba de um terreno a este pertencente e o trabalho do sinistrado, bem como dos restantes trabalhadores presentes, estava directamente dependente da actividade do manobrador, que era executada com o auxílio da máquina Bulldozer. Tratava-se de trabalhos complementares e com um fim comum. Assim, tendo a máquina sofrido uma avaria que impedia o seu funcionamento e tendo-se o sinistrado prontificado a auxiliar o manobrador, tal não pode ser visto, como faz a R. seguradora, como mero acto voluntário, alheio ao vínculo laboral a que o sinistrado estava adstrito, praticado no interesse exclusivo do sinistrado ou do manobrador da máquina, mas antes como uma acção enquadrada e justificada pela própria relação laboral. Assim, o evento lesivo - aspiração de gasóleo ocorrida na manobra de tentativa de “ferrar” a bomba de combustível efectuada pelo sinistrado – não pode deixar de se qualificar como um acidente de trabalho, por ter ocorrido no tempo e local de trabalho e existir entre tal evento e a relação laboral um evidente nexo de causalidade adequada. Dito de outro modo, foi o facto do sinistrado se encontrar no tempo e local de trabalho, disponível para a execução das funções de que fora incumbido que o levou auxiliar um prestador de serviços do seu empregador e foi por causa desse auxílio que sofreu o evento lesivo.
Conclui-se, pois, que o evento descrito deve ser qualificado como acidente de trabalho.”
O conceito de acidente de trabalho vem definido no art. 8º da Lei n.º 98/2009, de 4/09 dispondo tal artigo que “ 1- É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo do trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
2 – Para efeitos do presente capítulo, entende-se por:
a) ”Local de trabalho” todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, direta ou indiretamente, sujeito ao controlo do empregador;
b) “Tempo de trabalho além do período normal de trabalho” o que precede o seu início, em atos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em atos também com ele relacionados e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho”
Daqui resulta que para a existência de acidente de trabalho é necessário que se verifiquem cumulativamente três elementos: um elemento espacial – local de trabalho -; um elemento temporal – tempo de trabalho -; e um elemento causal – nexo de causa – efeito entre o evento e a lesão, perturbação funcional ou doença e entre estas situações e a redução da capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
Por seu turno resulta do previsto nos artigos 2º e 3º da NLAT que os trabalhadores e os seus familiares têm direito à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais nos termos previstos nessa lei, sendo certo que esse regime abrange o trabalhador por conta de outrem de qualquer atividade, seja ou não explorada com fins lucrativos, abrange o praticante, o aprendiz, o estagiário e as demais situações que devam considerar-se de formação prática.
São complexas e enumeras as causas dos acidentes de trabalho.
Trata-se sempre de um acontecimento não intencionalmente provocado, de caráter anormal, súbito e inesperado, gerador de consequências danosas no corpo ou na saúde, imputável ao trabalho, no exercício de uma atividade profissional, ou por causa dela, de que é vitima um trabalhador.
Do teor dos citados preceitos resulta desde logo que o acidente de trabalho não se reduz, nem reconduz apenas ao acidente ocorrido na execução do trabalho. Para efeitos de reparação de acidente de trabalho, pode ocorrer um acidente de trabalho ainda que o trabalhador não esteja em rigor a trabalhar, muito embora se encontre no local de trabalho e no tempo de trabalho.
Basta que o acidente ocorra por ocasião do trabalho.
Do elemento literal do citado artigo 8º da NLAT não decorre o nexo causal entre a prestação do trabalho e o acidente, o único nexo causal aí previsto é o nexo entre o acidente e a lesão corporal, perturbação funcional ou doença.
Compreende-se que assim seja, já que a teoria subjacente ao nosso ordenamento jurídico infortuístico-laboral há muito que deixou de ser a teoria do risco profissional, como escreve Carlos Alegre (in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ª ed., pág. 12 e 13) que assentava num risco específico de natureza profissional traduzido pela relação direta acidente – trabalho, tendo sido substituída, a partir da Lei n.º 1942, de 27 de Julho de 1936, pela denominada teoria do risco económico ou risco de autoridade cuja ideia mestra “é a de que não se trata já de um risco específico de natureza profissional, traduzido pela relação direta acidente-trabalho, mas sim de um risco genérico ligado à noção ampla de autoridade patronal e às diferenças de poder económico entre as partes.”
Mais à frente na obra citada, páginas 41-42 pode ler-se o seguinte: discutiu-se muito, quer na doutrina, quer na jurisprudência, a necessidade da causa da lesão ser ou não um risco inerente ao trabalho, ou seja, a necessidade da existência de um nexo de causalidade entre o trabalho e o evento lesivo, mas a desnecessidade desse nexo entre o evento lesivo e o trabalho em execução é uma decorrência natural da teoria do risco económico ou risco da autoridade, pelo que o acidente ocorrido no tempo e local do trabalho é considerado como de trabalho, “seja qual for a causa, a menos que se demonstre (e esse ónus pertence à entidade responsável) que, no momento da ocorrência do acidente a vítima se encontrava subtraída à autoridade patronal”.
Em consonância com esta posição se escreveu no Ac. do STJ, de 17/12/2009, in CJ/STJ, Tº III/2009, pág. 269, o seguinte: “Mas recordemos também que, posteriormente, se evoluiu no sentido de que a responsabilidade objectiva por acidentes de trabalho também encontrava justificação no risco da integração do trabalhador na empresa com a consequente sujeição à autoridade do empregador, assim nascendo a chamada teoria do risco económico ou de autoridade, que, como já foi dito, remete, não para um risco específico, mas para um risco genérico, ligado ao conceito amplo de autoridade patronal, risco esse que o empregador deve suportar pelo simples facto de ser ele quem efetivamente beneficia da atividade prestada pelo trabalhador ou da mera disponibilidade da mesma.
Não quer isto dizer que não tenha de haver uma relação entre o acidente e o trabalho. O que sucede é que esse nexo de causalidade há-de ser estabelecido entre o acidente e a relação laboral e não propriamente com a prestação laboral em si”.
Como refere ainda a este respeito Júlio Manuel Viera Gomes, in “O Acidente de Trabalho, O acidente in itinere e a sua descaracterização”, 1ª ed. Coimbra Editora, pág. 97 e 98 “Parece-nos claro que o acidente de trabalho não se reduz, no nosso ordenamento, ao acidente ocorrido na execução do trabalho, nem havendo sequer que exigir uma relação causal entre o acidente e essa mesma execução do trabalho. Poderão ser acidentes de trabalho múltiplos acidentes em que o trabalhador não está em rigor, a trabalhar, a executar a sua prestação, muito embora se encontre no local de trabalho e até no tempo de trabalho, pelo menos para este efeito de reparação dos acidentes de trabalho. Deste modo, poderá ser acidente de trabalho aquele que o trabalhador sofre quando satisfaz uma necessidade fisiológica, durante uma pausa que pode, até, ser considerada tempo de trabalho, já de acordo com a regra geral sobre o que constitui tempo de trabalho. (…) Sendo suficiente que o acidente ocorra, na terminologia italiana e anglo-saxónica, por ocasião do trabalho, o acidente de trabalho pode consistir em um acidente ocorrido quando se presta socorro a terceiros ou, inclusive, numa situação em que o trabalhador é agredido ou vítima de uma “partida de mau gosto”, quer o autor desse facto ilícito seja um colega, quer se trate de um terceiro estranho à relação laboral.”
Em suma, no nosso sistema o regime regra da responsabilidade civil do empregador é o da responsabilidade civil extracontratual objectiva, a qual assenta na chamada teoria do risco económico ou de autoridade que se considera subjacente ao conceito ampliado de acidente de trabalho resultante do previsto no artigo 9º da NLAT. Esta teoria não exige a verificação de um nexo de causalidade entre o acidente e a prestação do trabalho em si, apenas se exige a verificação de um nexo de causalidade entre o acidente e a relação laboral.
No caso dos autos, não temos qualquer dúvida em afirmar que perante os factos provados (pontos 5, 6, 17, 18, 24, 25 e 43), no tempo e no local de trabalho do sinistrado ocorreu um evento (ingestão de gasóleo quando aspirava tal combustível) que lhe determinou lesões, designadamente pneumonia, as quais foram causa directa e necessária da sua morte.
O evento ocorreu no local e tempo de trabalho, mais precisamente no terreno pertencente ao empregador, onde o sinistrado exercia as suas funções de trabalhador agrícola, a meio da tarde, tal como se infere dos pontos 17, 18, 21 a 24 e 43 dos factos provados.
Ao contrário do defendido pela Recorrente o evento naturalístico que provocou a morte do sinistrado, para além de ter ocorrido no tempo e no local de trabalho, ocorreu quando o sinistrado estava a desempenhar a actividade para a qual havia sido contratado, independentemente da concreta actividade que na altura o sinistrado exercia, estando por isso sob a autoridade do seu empregador. O facto de não ter agido, mediante a emissão de ordem expressa do seu empregador ou de alguém em sua representação, não nos permite concluir de forma alguma que o sinistrado estivesse subtraído ao poder de autoridade e direcção do seu empregador.
Na verdade, o sinistrado encontrava-se no seu tempo e local de trabalho a executando as suas funções sob a esfera da autoridade e direcção do seu empregador, quando foi auxiliar o proprietário e operador do Bulldozer que aí se encontrava, na realização do procedimento de retirada de ar do circuito de abastecimento de combustível da máquina Bulldozer que havia ficado sem gasóleo, tentando fazer tal operação aspirando com a boca através de uma mangueira o mesmo gasóleo, tendo caído inanimado no chão (cfr. pontos 5, 6, 17,18, 29 a 43 dos factos provados).
O nexo entre o acidente e a relação laboral é evidente, pois caso o sinistrado não estivesse a trabalhar no seu local e tempo de trabalho não teria ocorrido o sucedido, ou seja se sinistrado não tivesse a remover os entulhos deixados pela máquina Buldozer, não teria ido auxiliar o individuo que a manobrava, na operação de abastecimento de gasóleo.
O evento a que os autos se reportam tem de ser qualificado como de trabalho, independentemente da concreta tarefa que o sinistrado estava a desenvolver quando o mesmo ocorreu.
Com efeito, não se provaram quaisquer factos materiais que nos permitam concluir que no momento do acidente o sinistrado estivesse de alguma forma subtraído à autoridade do empregador, tendo o acidente ocorrido fora da esfera do empregador, estando por isso este impossibilitado de poder exercer os seus poderes de direção e fiscalização.
Resumindo, os elementos dos autos são suficientes para concluirmos pela ocorrência de um típico acidente de trabalho, improcedendo assim nesta parte as alegações de recurso.
2 - Da descaraterização do acidente como de trabalho
A Recorrente/Apelante coloca também no seu recurso esta questão, sustentando que o acidente a que os autos se reportam se ficou a dever à negligência grosseira do próprio sinistrado, já que ao sugar o combustível de forma inadvertida adoptou um comportamento temerário em alto grau, sendo evidente o risco de perder a vida, pelo que o acidente deve considerar-se descaracterizado em face do disposto no artigo 14º n.º 1 al. b) e n.º 3 da NLAT
Na sentença consignou-se o seguinte:
“1 Dispõe art. 14º da N.L.A.T.:
1. O empregadora não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei;
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.
2 – Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la.
3 – Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.”
Corresponde tal norma, no essencial, ao regime estabelecido anteriormente no artigos 7º da Lei 100/97 de 13/09 e 8º do D.L. 143/99 de 30/04.
Em causa estão, na alegação da R. seguradora, as hipóteses de descaracterização previstas nas alíneas b) e c) do nº 1 do art. 14º.
A negligência consiste na omissão da diligência exigível ao agente. Não basta, contudo, para a descaracterização do acidente, “a simples imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano que não considera os prós e os contras” (vd. Carlos Alegre, Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho…, Almedina, 2ª Ed., pág. 63). É necessário que se verifique uma grosseira violação do dever de diligência geral, isto é, que o sinistrado tenha agido com culpa lata ou grave, que “consiste em não observar os cuidados que todos, em princípio, adoptam” (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 5ª Ed. Pág. 530). Segundo a jurisprudência dominante, exige-se um comportamento perigoso, audacioso, gratuito e de todo infundado, que seja altamente reprovável à luz do mais elementar senso comum (cf. Ac. do STJ de 29/1/2014, supra citado, e demais jurisprudência aí referenciada). Por fim, o comportamento negligente do sinistrado tem de ser causa exclusiva do acidente, o que afasta a concorrência de culpas.
(…)
Por outro lado, embora se possa dizer que o sinistrado foi imprudente e leviano, ao sugar um líquido combustível, fê-lo com o intuito de auxiliar um colaborador do seu empregador, o manobrador da máquina que estava a ser utilizada no trabalho de surriba - e imitando os gestos e procedimentos por este efectuados momentos antes, infrutiferamente, com o objectivo de “ferrar” a bomba do combustível da referida máquina. Não se vislumbra em tal comportamento o grau de temeridade, reprovabilidade e indesculpabilidade exigido pela lei para que se possa rotular de grosseiramente negligente, sendo, por isso, de afastar a negligência grosseira do sinistrado como causa de descaracterização do acidente.
Claudica, assim, a invocada descaracterização do acidente em apreço como de trabalho.”
Podemos desde já afirmar que concordamos com a não descaracterização do acidente.
Conforme é pacífico na doutrina e na jurisprudência, para que ocorra negligência grosseira, não basta a culpa leve, a imprudência, a distração, a imprevidência ou comportamentos semelhantes, exigindo-se um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência.
A par das conhecidas modalidades de negligência (negligência consciente e negligência inconsciente) distingue-se ainda a negligência em grave, leve e levíssima, em função da intensidade ou grau de ilicitude (a violação do cuidado objetivamente devido) e da culpa (a violação do cuidado que o agente é capaz de prestar segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais).
Neste caso a lei acolheu a figura da negligência grosseira que corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objetivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo.
É uma negligência temerária, que configura uma omissão fortemente indesculpável das precauções ou cautelas mais elementares, que tem de ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima e não em função de um padrão geral, abstrato, de conduta.
Na verdade, nesta situação, para que se verifique a exclusão da responsabilidade emergente de acidente de trabalho é necessária a prova de que ocorreu um ato ou omissão temerários em alto e relevante grau por parte do sinistrado, injustificados pela habitualidade ao perigo do trabalho executado, pela confiança na experiência profissional ou pelos usos da profissão, e, para além disso, que o acidente tenha resultado exclusivamente desse comportamento.
Como refere o Acórdão da Relação de Coimbra de 16/06/2016, Proc. n.º 306/11.3TTGRD.C1, in www.dgsi.pt “A negligência consiste na omissão da diligência a que o agente estava obrigado – na inobservância do dever objectivo de cuidado que lhe era exigível. Nos vários cambiantes da culpa, no domínio da negligência, a noção de negligência grosseira equivale à usualmente caracterizada como culpa grave: quando o agente deixar de usar a diligência que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta não teria observado.
Assim, para a descaracterizar o acidente, com base na negligência grosseira do sinistrado, é preciso provar que o sinistrado atentou contra o mais elementar sentido de prudência – que a conduta se apresente como altamente reprovável, indesculpável e injustificada, à luz do mais elementar senso comum. Mas também é preciso provar que o acidente ocorreu exclusivamente por causa da negligência grosseira.”
Analisemos a actuação do sinistrado.
O E. no dia 17/12/2014 procedia no exercício das suas funções à remoção de entulhos deixados pela máquina Bulldozer que realizava a operação de saibramento de um terreno para o colocar em patamares para plantação. A meio da tarde, o bulldozer ficou sem combustível, o que originou a paragem do seu motor. O proprietário e operador da máquina tentou reabastecê-la com gasóleo, verificando que a mesma tinha “desferrado”. Este tentou “ferrá-la” colocando a mangueira que conduz o gasóleo desde o depósito até ao motor do bulldozer na sua própria boca, iniciando depois um movimento de sucção do ar com vista a “ferrar” a bomba, sem conseguir obter êxito. O sinistrado aproximou-se, pedindo que o deixasse “ferrar” a bomba. Após grande insistência do sinistrado o proprietário do bulldozer cedeu à solicitação do sinistrado. Nesta altura o sinistrado coloca a mangueira do gasóleo na sua boca e iniciou um movimento de sucção do gasóleo do depósito da máquina. Ao aspirar tal combustível da mangueira ingeriu gasóleo, tendo caído inanimado no chão.
Esta é a factualidade relevante.
Como circunstâncias de facto pretensamente descaracterizadoras do acidente alegou em tempo a Ré Seguradora que o sinistrado realizou o movimento de sucção do gasóleo com força e repetidamente, até que ingeriu, por descuido, gasóleo do tubo, tendo parado somente após ingerir uma elevada quantidade de gasóleo, quando se sentiu mal.
Confrontando esta alegação com a factualidade apurada, teremos de concluir que esta alegação não logrou a Recorrente provar.
Refletindo agora sobre o factualizado contexto em que ocorreu o evento, não podemos deixar de dizer que a actuação do sinistrado foi imprudente, irrefletida e revela até algum impulso leviano, mas de forma alguma podemos concluir que o seu comportamento assumiu uma gravidade, uma temeridade e uma indesculpabilidade que qualificam a negligência de grosseira.
Com efeito, o sinistrado agiu com o intuito de resolver o problema da máquina, tendo-o feito da mesma forma como o proprietário da máquina já o tinha tentado fazer. Resulta quer do comportamento do manobrador do bulldozer, quer do comportamento do sinistrado que a operação de “ferrar” a bomba do combustível era efectuada da mesma forma em que o fez o sinistrado, não sendo por isso a primeira vez que assim procediam. O sinistrado limitou-se a seguir o procedimento que já havia sido tentado pelo operador da máquina, tendo em vista a resolução o problema, não podendo nem devendo o seu comportamento ser considerado de ostensivamente indesculpável e gratuitamente aventureiro.
A prova dos factos susceptiveis de descaraterizar o acidente dos autos à recorrente/apelante incumbia, tendo em atenção que estamos perante factos impeditivos do direito invocado pelos AA. (artigo 342º n.º 2 do C.C.), daí que por falta de prova dos requisitos legais, dos quais dependeria a desoneração da entidade responsável, improcede nesta parte a apelação.
DECISÃO
Pelo exposto, e ao abrigo do disposto nos artigos 87º do C.P.T. e 663º do C.P.C., acorda-se, neste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso de apelação interposto por B. Seguros – SUCURSAL EM PORTUGAL, confirmando-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.

Guimarães, 15 de Dezembro de 2016

Vera Maria Sottomayor (relatora)
Antero Dinis Ramos Veiga
Alda Martins

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Sumário – artigo 663º n.º 7 do C.P.C.
I – A responsabilidade do empregador relativamente aos acidentes de trabalho sofridos pelos seus trabalhadores assenta no chamado risco económico ou de autoridade que está subjacente ao conceito de acidente de trabalho que resulta do disposto no artigo 8º da NLAT
II – Para que se considere a existência de um acidente de trabalho à luz do artigo 8º da NLAT, não se exige a verificação de um nexo de causalidade entre o acidente e a prestação do trabalho em concreto, mas apenas se exige a verificação de um nexo de causalidade entre o acidente e a relação laboral.
III – Verifica-se o nexo de causalidade entre o acidente e a relação laboral, no acidente que consistiu num trabalhador agrícola, que se encontrava no seu local e tempo de trabalho, ao auxiliar, de forma voluntária, o proprietário de uma máquina Bulldozer a “ferrá-la”, ter ingerido gasóleo quando aspirava tal combustível da mangueira de abastecimento da máquina, para tentar retirar o ar que impedia o combustível de chegar ao motor, do qual veio a resultar em consequência das lesões sofridas a sua morte.
IV – O artigo 14º n.º 1 al. b) da NLAT estipula que não dá direito a reparação o acidente que for proveniente exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado, ou seja o proveniente de um comportamento temerário em alto e relevante grau que não consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.
V – Não se verificam os requisitos previstos na al. b) do artigo 14º da NLAT no acidente que consistiu no sinistrado, com o intuito de auxiliar um colaborador do seu empregador, imitando os gestos e o procedimento que este último já havia realizado para “ferrar” a bomba de combustível da máquina Bulldozer, ingeriu gasóleo quando aspirava tal combustível da mangueira de abastecimento da máquina, vindo a falecer.

Vera Sottomayor