Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
656/20.8T8VRL.G1
Relator: ALEXANDRA VIANA LOPES
Descritores: NULIDADES DA SENTENÇA – ART.º 615.º N.º 1 ALS. C) E D) DO CPC
CAMINHO PÚBLICO
DIREITO DE PASSAGEM
ASSENTO N.º 7 DE 19.04.1989
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
A existência de um traçado aberto desde tempos imemoriais, que não dá apenas acesso aos prédios com que confronta mas que faz a ligação entre duas vias públicas, pelo qual qualquer pessoa poderia passar e passava, dentro da freguesia e para acesso a outras aldeias, permite classificá-lo como caminho público, de acordo com a doutrina do assento nº 7 de 19.04.1989, com valor atual de acórdão uniformizador de jurisprudência, aplicável sem necessidade de restrição (nomeadamente face à falta de alegação e prova que o caminho provado atravessasse prédios particulares).
Decisão Texto Integral:
As Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam no seguinte

ACÓRDÃO

I – Relatório:

Na ação declarativa, sob a forma de processo comum, instaurada por Freguesia ... contra AA e mulher BB:

1. A autora:
1.1. Pediu a condenação dos réus a reconhecerem «(…) que o prédio descrito sob o artigo ...º da petição inicial é atravessado por um caminho público com 80cm de largura, no sentido Rua ... - sul, que esse caminho faz parte do domínio público da Junta de Freguesia ... e, consequentemente, que se abstenham da prática de quaisquer actos que possam perturbar, impedir ou limitar o exercício público desse direito, quer pela Junta de Freguesia, quer por qualquer pessoa que por ele transite e ainda, condenarem-se os réus a reporem o caminho, de forma a deixar livre a passagem (…)».
1.2. Alegou, em síntese: que existe um caminho (com largura de 80 centímetros, por uma extensão de 159 metros aproximadamente, que se inicia na Estrada ... ou Rua ...), faz a ligação a um caminho público a sul da estrada e a outros caminhos, dá acesso a diversas propriedades rústicas (inclusive algumas que com o mesmo confinam, como as cinco indicadas), circularam e circulam no mesmo quaisquer pessoas, quando o desejaram ou quiseram; que este caminho é ancestral, está aberto há mais de 100 anos e tem utilidade pública; que desde a abertura do referido caminho, que a requerente e seus antecessores levam a cabo obras de manutenção e limpeza necessárias à sua utilização, sem quezílias ou oposição de quem quer que fosse, nunca tendo sido perturbados na sua posse e fruição, colhendo o respeito geral, agindo na convicção, que é certeza, de que exerce os poderes inerentes ao direito de propriedade sobre aquele terreno, pelo que, sempre teriam direito a utilizar o caminho por via da usucapião, o que se invoca para todos os efeitos; que os réus obstruíram e apropriaram-se parcialmente no decurso do ano de 2020 de parte do caminho, contra a vontade da autora.
2. Os réus apresentaram contestação, na qual, em síntese:
a) Arguiram a incompetência do Tribunal em razão da matéria.
b) Impugnaram a totalidade da alegação da petição inicial, por falsidade e desconhecimento, constante dos seus arts.1º ao 27º.
3. Foi proferido despacho a convidar a autora, nos termos do artigo 597º/1-a) do C. P. Civil, a vir aos autos dizer o que tivesse por conveniente relativamente à matéria excetiva suscitada na contestação, com a cominação prevista no artigo 587º/ 1 do C. P. Civil.
4. A autora respondeu à exceção, contestando a competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
5. Foi proferido despacho saneador-sentença a 03.10.2020, com prévia menção de dispensa de realização de audiência prévia, no qual:
5.1. Foi julgada improcedente a exceção de incompetência territorial arguida.
5.2. Foi conhecido imediatamente o mérito da causa, mediante os factos alegados na petição inicial, sendo julgada a ação improcedente, por o Tribunal a quo ter entendido que, em relação às três características que considerou serem exigidas para o reconhecimento da qualidade de caminho público (uso direto e imediato pelo público, uso desde tempos imemoriais, afetação à utilidade pública), não se perspetivava a satisfação do requisito dos interesses coletivos com certo grau de relevância, que contribuísse para a afetação do terreno à utilidade pública, uma vez: que o uso do caminho por pessoas que pretendiam fabricar o terreno denotaria um uso circunscrito do mesmo, de caráter privatístico; que a utilização do trato de terreno por algumas pessoas na ligação a outros caminhos seria característica apenas dos atravessadouros.
6. A autora interpôs recurso de apelação da decisão de I-5.2. supra, recurso no qual, a 15.06.2021, foi proferido acórdão que:
6.1. Considerou, na fundamentação:
«(…) De facto, analisando a petição inicial, verifica-se que a autora:
a) Alegou, quanto ao acesso e às utilidades do caminho que qualificou como sendo público: que o caminho dava acesso a prédios da freguesia, exemplificados com 5 prédios alegados, sem qualquer indicação taxativa (art.2º da petição inicial); que o caminho dava acesso a outros caminhos da freguesia (art.8º da petição inicial); que o caminho tem sido usado desde a sua abertura, há 100 anos, para circulação a pé, de forma livre e por todos as pessoas em geral, sempre que o desejassem e entendessem, em qualquer altura do ano, a qualquer hora (arts. 16º ss da petição inicial); que havia transeuntes com necessidade de utilização do caminho (art.7º da petição inicial).
b) Alegou, quanto à manutenção e limpeza do caminho: que este, desde a sua abertura, foi sempre cuidado pela Junta de Freguesia requerente e pelos seus antecessores, que realizaram as obras de manutenção e limpeza necessárias à sua utilização (art.15º da petição inicial).
c) Invocou a utilidade pública do caminho ancestral, reconhecida por todas as pessoas (art.11º da petição inicial).
Perante esta matéria de facto, os réus/recorridos: não defenderam que os factos alegados, por si próprios, eram insuficientes para o reconhecimento do direito invocado, nomeadamente com a interpretação dos mesmos dada pelo Tribunal a quo na sentença; defenderam-se apenas por impugnação, tornando controvertidos os factos impugnados e carecidos de prova.
O Tribunal a quo, mediante este quadro de facto e de direito, proferiu imediatamente decisão de mérito com uma interpretação restritiva de alguns dos factos alegados e com omissão de conhecimento de outros factos alegados e de invocações realizadas pela autora, sem proferir qualquer despacho prévio de aperfeiçoamento e sem ouvir previamente as partes sobre a solução jurídica considerada perante os factos alegados.
De facto, o Tribunal a quo, na sua decisão: considerou que a petição inicial se limitou a alegar que o caminho servia prédios particulares, revelador apenas de interesses privatísticos, e que dava acesso a outros caminhos, que caracterizam os atravessadouros; mas não ponderou para efeito da utilidade pública os demais factos alegados e referidos supra e a qualificação de utilidade pública referida como reconhecida pelas pessoas (nomeadamente os do corpo do texto do art.2º, os arts.7º, 8º, 16º ss, 15º da petição inicial, referidos supra).
Todavia, adotou esta posição: não só com omissão de qualquer despacho prévio de aperfeiçoamento, nos termos do art.590º/2-b), 4 a 6 do C. P. Civil, em relação aos factos que julgasse insuficientes e pudessem ser desenvolvidos para compreender a existência ou não de alegação de interesse coletivo e público (nomeadamente, a importância coletiva do acesso aos prédios, aos caminhos e ao trânsito geral alegado como realizado e a necessidade do caminho, nomeadamente com clarificação da área da freguesia servida com o caminho- prédios, caminhos e necessidades); mas também com omissão de audição das partes sobre o sentido da decisão, não previamente discutida.
Sendo exigível que o Tribunal a quo tivesse ouvido as partes sobre as insuficiências concretas de alegação que entendia terem ocorrido e poderiam comprometer a procedência da ação, antes da prolação de uma decisão de mérito (face ao referido quadro da discussão de facto e de direito realizada nos articulados e à posição restrita que viriam a adotar mediante os factos alegados e controvertidos), nos termos do art.3º/3 do C. P. Civil (passível de concretizar nos termos do art. 591º/1- b) ex vi do art.597º/b) do C. P. Civil), a omissão deste contraditório constitui uma irregularidade passível de afetar a decisão e, nessa medida, uma nulidade, nos termos assinalados do art.195º do C. P. Civil.
Reconhecendo-se esta nulidade, deve anular-se a decisão proferida com essa falta, nos termos do art.195º do C. P. Civil.
Esta anulação exige que a tramitação subsequente do processo ocorra na 1ª instância: para cumprimento do contraditório em falta (sem prejuízo do Tribunal a quo proceder previamente, ainda, ao convite ao aperfeiçoamento do art.590º/2-b), 4 a 6 do C. P. Civil, caso julgue conveniente face aos factos alegados); para determinar os termos subsequentes da lide, entre os despachos previstos no art.597º do C. P. Civil, que forem adequados aos factos alegados e controvertidos e às posições que vierem a ser assumidas pelas partes nas respostas a esse(s) despacho(s) prévio(s), de acordo com o critério das soluções plausíveis das questões de direito.».

6.2. Decidiu:
«Pelo exposto, as juízes da 1ª Secção Cível deste Tribunal da Relação de Guimarães:
1. Reconhecem a nulidade processual de preterição do contraditório quanto ao conhecimento do mérito da causa na fase de saneamento do processo, julgando-se anulada a decisão recorrida subsequente.
2. Determinam que o processo desça à 1ª instância para cumprir o contraditório em falta (sem prejuízo da prévia operância do despacho do art.590º/2-b), 4 a 6 do C. P. Civil), e termos subsequentes da lide, entre os despachos previstos no art.597º do C. P. Civil.».
7. Descido o processo à 1ª instância, a 03.11.2021 foi proferido despacho a convidar: a autora a alegar «(…) factos que (…) pudessem ser desenvolvidos para compreender a existência ou não de alegação de interesse coletivo e público (nomeadamente, a importância coletiva do acesso aos prédios, aos caminhos e ao trânsito geral alegado como realizado e a necessidade do caminho, nomeadamente com clarificação da área da freguesia servida com o caminho- prédios, caminhos e necessidades);»; os réus a cumprirem o contraditório.
8. Em resposta ao despacho referido em I-7 supra:
8.1. A autora:
a) Alegou:
«O caminho descrito nos autos, como referido na clausula 2ª da P.I, dá acesso às mencionas propriedades referida em a) a e) que directamente confinam com o caminho, ou seja, para acederem à essas propriedades esses proprietários têm de usar esse caminho, não tendo outro acesso as propriedades;
Acresce que, esse caminho dá acesso a outros caminhos que, portanto, levam a outras propriedades cujo caminho obrigatoriamente tem de por ali passar para aceder a outras propriedades.
Como se trata de caminho de acesso a diversas propriedades, o desaparecimento do mesmo fará com que 5 proprietários que confinam directamente com o caminho fiquem sem acesso, ou seja, passamos a ter 5 prédios “encravados” e indirectamente cerca de 50 propriedades ficam sem aquele acesso.
O acesso as propriedades pelo caminho em questão, significa que os diversos proprietários o possam fazer a pé, ou seja, o acesso as propriedades faz-se por caminho muito mais curto e sem recurso a carro, o que implica ser mais rápido.
A alternativa implica uma distância de mais de 5 km, só possível fazer com viatura automóvel, com o aumento de distância aumenta o tempo de viagem e para aqueles que não têm viaturas, pode implicar o abandono das propriedades.
Refira-se por fim que, sendo o caminho essencial à exploração agrícola de um raio de cerca de 10km, o dito caminho também é muito usado para as caminhadas pois trata-se de caminho que sempre ligou a aldeia do ... a outras aldeias, através de caminhos de terra batia que mais tarde foram substituídos por estradas camarárias, mas cujos caminhos são hoje explorados e mantidos para caminheiros.».
b) Juntou um documento (planta).
8.2. Os réus cumpriram o contraditório, no qual impugnaram: os factos alegados, considerando falso que exista algum caminho que atravesse o prédio dos réus para dar acesso às propriedades rústicas referidas nas alíneas a) a e) da petição inicial e entendendo que a matéria do acesso alegado pela autora corresponde a um atravessadouro, nos termos dos arts.1383º e 1384º do C. Civil; o documento junto.
9. Realizou-se audiência prévia, na qual:
9.1. Fixou-se à causa o valor de € 7 500, 00.
9.2. Foi proferido, em fase de saneamento e condensação do processo, o seguinte despacho de fixação do objeto do litígio e de fixação dos temas da prova:
«III. Objecto do litígio
O objecto do litígio consiste em determinar se existe um caminho público e se os réus podem ser condenados a permitir a passagem pelo mesmo.
São as seguintes as questões que ao Tribunal cumpre apreciar e decidir:
a) Sobre o caminho público;
b) Sobre o direito de passagem;
*
IV. Temas de prova

Sem prejuízo dos factos instrumentais e complementares que se vierem a apurar, desde já se fixam os seguintes temas de prova:
1. Caminho público;
a. Configuração;
b. Acesso a terrenos privados;
c. Obstrução do acesso por parte dos requeridos;
2. Prédio dos réus;
a. Confrontações;
b. Atravessamento por caminho público;».
10. Realizou-se a audiência final:
11. Foi proferida sentença que decidiu:
«Termos em que o Tribunal julga a presente acção totalmente improcedente, absolvendo os requeridos do peticionado.
*
Custas pela autora (art 527º, n.º 2 do Cód de Proc Civil).»

12. A autora interpôs recurso da sentença, no qual apresentou as seguintes conclusões:
«1 - Pois que da prova produzida, ao contrário do expendido na douta sentença recorrida, resulta claramente que a Autora/recorrente provou “a satisfação de »interesses colectivos relevantes«”.
Senão vejamos,
2 - De acordo com o entendimento expresso na douta sentença, que acolhe o entendimento da Jurisprudência, designadamente, o Assento do STJ de 19-04-1989, DR, I, de 2-6- 1989 BMJ, 386º-121) através do qual resultou que são públicos “ os caminhos que, desde tempos imemoriais estão no uso directo e imediato do público”.
Apesar das correntes jurisprudenciais que se desenvolveram fixou-se jurisprudência no sentido de considerar públicos desde que seja utilizado livremente por todas as pessoas.
3 - Tal como resulta da douta sentença, são públicos os caminhos que estejam no uso directo e imediato do mesmo pelo público, e que tal uso ocorra desde tempos imemoriais.
“O Tribunal valorou os depoimentos de CC (94 anos), DD (70 anos) e EE (73 anos), os quais referiram que já em crianças passavam pelo dito caminho, pelo que é legítimo concluir que o mesmo se encontra aberto há mais tempo do que a memória dos vivos permite alcançar.”
4 - Só o deixaram de fazer no dia em que os Réus que foi “Há cerca de dois anos que os requeridos:
a. procederam à colocação de um cadeado fechado a aloquete;
b. começaram a lavrar o caminho referido em 3), como se integrasse a sua propriedade;”
Portanto, tal circulação verificou-se durante muitos e muitos anos.
5 - Era por tal caminho que circulava as pessoas da freguesia para as suas propriedades, bem como pessoas de outras freguesias para aldeias vizinhas, pois o Tribunal a quo “valorizou os depoimentos das testemunhas CC, FF, GG e EE. Com efeito, todos eles foram inequívocos ao referir que qualquer pessoa poderia passar pelo caminho em questão;”
6 - Resulta ainda dos factos provados 1º, a 10º, que o caminho em questão, se situa dentro da aldeia de ..., Freguesia ..., no concelho ..., dá acesso direto a, no mínimo 5 prédios rústicos, e indirectamente dá acesso a um numero imenso de outras propriedades.
7 - Tendo em conta os factos dados como provados, não se aceita o douto entendimento do M. Juiz de 1ª instância, quando considera que o caminho não satisfaça »interesses colectivos relevantes«.
Violou o Mº. Juiz de 1ª instância, o disposto no artº 615º nº 1 al. c) e d) do CPC.
8 - Além de que discorda a Recorrente com o enquadramento jurídico que foi dado à factualidade dada por apurada, designadamente ao considerar que estamos perante um caminho público no entanto que não satisfaça “interesses colectivos relevantes”.
9 - Efectivamente, como resulta dos factos descritos nos itens 1.º a 10.º dos factos provados, estamos em presença de um caminho, situado numa aldeia de nome aldeia de ..., Freguesia ..., no concelho ..., e que “O acesso aos prédios referidos em 1) e 2) é realizado através de um caminho que confronta com aqueles”
10- Ficou provado no ponto 4 que “O caminho referido em 3) tem uma largura de pelo menos 80 cm e uma extensão de pelo menos 90 metros e inicia-se na Estrada ... ou Rua ... e faz a ligação a um caminho publico ao sul da estrada, para a qual dá acesso.” E este “ encontra-se limitado de um dos lados com um murro de pedra em toda a sua extensão, não tendo qualquer limite físico do outro lado.”
11 – o ponto 6 dos factos provados é inequívoco em dizer “O caminho referido em 3) encontra-se aberto desde tempos imemoriais, sendo que qualquer pessoa poderia passar pelo mesmo.”
12 – Se está aberto desde tempos imemoriais e qualquer pessoa poderia passar por ele, não estará mais que provada a satisfaça “interesses colectivos relevantes”????.
13- Justifica o Tribunal “a quo” com a interpretação restritivamente daquele assento, exigindo, adicionalmente à sua utilização directa e imediata pelo público desde tempos imemoriais, a sua afectação à utilidade pública, i.e: que a sua utilização tivesse por objecto a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância (acusa os Doutos Acórdãos do STJ de 10/11/1993, 15/06/2000, 21/01/2003 e 10/12/2009). Para que se considere preenchido este pressuposto, afigura-se necessário que o fim visado pela utilização seja comum à generalidade dos respectivos utilizadores e que não resulte somente de uma soma de utilidades individuais.
14- Ora, mas se ficou provado que “o Tribunal valorizou os depoimentos das testemunhas CC, FF, GG e EE. Com efeito, todos eles foram inequívocos ao referir que qualquer pessoa poderia passar pelo caminho em questão (sublinhado nosso); muito embora sepudesse suspeitar da espontaneidade do depoimento da testemunha DD, em virtude de exercer funções de secretário da justa de freguesia (a autora), na medida em que foi corroborado pelos depoimentos das demais testemunhas, sem que houvessem motivos perceptíveis para duvidar do depoimento destas, o Tribunal optou por o valorar.”
15 – Acrescentando “Por seu turno, o Tribunal desvalorizou os depoimentos das testemunhas HH, II e JJ em virtude de, francamente, os ter achado comprometidos ou inconclusivos … justificando que “a testemunha HH foi a única a dizer abertamente que não permitiam a passagem pelo caminho,” e com o depoimento de II referiu mesmo “Não era um caminho público mas qualquer pessoa passava por lá«, tendo acabado por referir que qualquer pessoa passava por lá a pé; por outro lado, a testemunha JJ mostrou-se algo hesitante nas suas declarações, demonstrando não se desejar comprometer, tendo dito que »se visse lá gente, não passava por respeito« (mas nunca dizendo abertamente que estaria impedida de lá passar por não ser caminho público).”
16 – Obrigatoriamente teria de concluir o Tribunal a quo, que o dito caminho era utilizado pelos proprietários envoltos ao caminho, sim, mas também, como resulta dos depoimentos apresentados pela A. e pelos RR, “qualquer pessoa” ou seja, teria obrigatoriamente de concluir que o caminho satisfazia interesses colectivos de certo grau ou relevância.
17 – Diz então o Tribunal a quo que “não se consegue retirar dos factos provados a satisfação de »interesses colectivos relevantes« além da passagem do público” – e não será o publico o titular do interesse colectivo relevante, que outra conclusão se poderia retirar senão esta mesmo???
18 – Os caminhos são para serem utilizados pelo público, detentores de interesses públicos relevantes, e disso deu o Tribunal a quo como provado, que aquele caminho é utilizado pelo publico!!!!
19 – Referiu ainda “o qual tem à sua disposição adicionalmente o designado »Caminho ...«.” – mas no ponto 10º dos Factos Provados, o que considerou foi que apenas dois proprietários poderiam aceder pelo dito Caminho ...:
“10. Pode-se igualmente aceder aos prédios referidos nos pontos 2, c) e e) por um outro caminho designado »Caminho ...«, situado a sul dos referidos prédios.” – ou seja este caminho, é que não satisfaz interesses colectivos relevantes!!!
20 – E assim, a colocação do cadeado fechado a aloquete e começaram a lavrar o caminho referido em 3), bem como posterior edificação de parede (já no decurso da acção) que impede a passagem, viola o direito de propriedade da autora sobre o dito caminho, violando o carácter pleno e exclusivo de tal direito por parte da autora, consagrado no artigo 1305.º do CC e, como tal, não pode subsistir, não podendo os réus, em consequência, praticar outros actos que impeçam ou dificultem o acesso ao referido caminho, pelo que deve proceder o presente recurso, no que se refere ao petitório da autora.
Termos em que e nos melhores de direito e com o Mui douto Suprimento de V. Ex.ª deve o presente Recurso obter provimento, alterando a decisão de que se recorre por outra que julgue procedente os pedidos da recorrente, declarando que o caminho em questão é público, ordenado que os Réus retirem do caminho a parede que ali colocaram, de forma a que se abstenham de praticar quaisquer actos que impeçam e dificultem a passagem pelo referido caminho e assim farão,
JUSTIÇA!».
11. Os recorridos responderam ao recurso, defendendo:
(…)
12. Foi admitido o recurso de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
13. Subido o recurso a esta Relação, foi o mesmo recebido nos termos previamente admitidos, colheram-se os vistos e realizou-se a conferência.

II. Questões a decidir:

As conclusões das alegações do recurso delimitam o seu objeto, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso não decididas por decisão transitada em julgado e da livre qualificação jurídica dos factos pelo Tribunal, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 608º/ 2, ex vi do art. 663º/2, 635º/4, 639º/1 e 2, 641º/2- b) e 5º/ 3 do C. P. Civil.

Definem-se como questões a decidir:
1. A arguição de nulidade da sentença, nos termos do art.615º/1-c) e d) do C.P. Civil (conclusões 1ª a 7ª).
2. A invocação de erro de direito da sentença (conclusões 8ª a 20ª).

III. Fundamentação:
1. Matéria de facto provada e não provada na sentença recorrida (com facto 6 alterado por esta Relação em III-2.2. infra):

«a) factos provados:
1. Encontra-se inscrito em nome dos requeridos a titularidade do direito de propriedade sobre o prédio rústico sito na aldeia de ..., Freguesia ..., no concelho ..., inscrito na matriz predial sob o artigo ...24º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...15.
2. Na aldeia de ..., Freguesia ..., no concelho ..., sitam os seguintes imóveis:
a. prédio rústico inscrito na matriz rústica da Freguesia ..., sob o art.º ...47º, e descrito na conservatória do registo predial sob a ficha n.º ...42, propriedade de KK;
b. prédio rústico inscrito na matriz rústica da Freguesia ..., sob o art.º ...25º, e descrito na conservatória do registo predial sob a ficha n.º ...41, propriedade de KK;
c. prédio rústico inscrito na matriz rústica da Freguesia ..., sob o art.º ...17º, e descrito na conservatória do registo predial sob a ficha n.º ...47, propriedade de KK;
d. prédio rústico inscrito na matriz rústica da Freguesia ..., sob o art.º ...08º, não descrito na Conservatória de Registo Predial, propriedade de LL;
e. prédio rústico inscrito na matriz rústica da Freguesia ..., sob o art.º ...07º, e descrito na conservatória do registo predial sob a ficha n.º ...67, propriedade de EE e EE, na proporção de 1/2de cada;
3. O acesso aos prédios referidos em 1) e 2) é realizado através de um caminho que confronta com aqueles nos seguintes termos:
a. Nascente: Prédios referidos em 2, a), c), d),
b. Poente: prédios referidos em 1) e 2, b);
4. O caminho referido em 3) tem uma largura de pelo menos 80 cm e uma extensão de pelo menos 90 metros e inicia-se na Estrada ... ou Rua ... e faz a ligação a um caminho publico ao sul da estrada, para a qual dá acesso.
5. O caminho referido em 3) encontra-se limitado de um dos lados com um murro de pedra em toda a sua extensão, não tendo qualquer limite físico do outro lado.
6. O caminho referido em 3) encontra-se aberto desde tempos imemoriais, sendo que qualquer pessoa poderia passar pelo mesmo.
7. Há cerca de dois anos que os requeridos:
a. procederam à colocação de um cadeado fechado a aloquete;
b. começaram a lavrar o caminho referido em 3), como se integrasse a sua propriedade;
8. Entre os prédios referidos em 2, a), d) e e) e o caminho referido em 3) existe uma parede de pedra.
9. A parede referida em 11) foi edificada há mais de 100 anos, não havendo memória de quem procedeu à sua construção.
10. Pode-se igualmente aceder aos prédios referidos nos pontos 2, c) e e) por um outro caminho designado »Caminho ...«, situado a sul dos referidos prédios.
b) factos não-provados;
11. Que os requeridos tenham reconhecido no local, e na presença de ambas as mandatárias, requeridos, da requerente na pessoa do Sr. Presidente da Junta da Freguesia ..., igualmente proprietário confinante com o caminho, vários confinantes com o caminho e ainda de algumas testemunhas, que o caminho referido em 3) é ancestral e de utilidade pública.
12. Que os requeridos se tenham comprometido, no momento referido em X), que procederiam à desobstrução do caminho, ou seja, procederiam a retirada do cadeado, bem como, deixariam numa extensão de 55metros de comprimento (extensão do prédios dos requeridos) por 80cm de largura disponível, reconhecendo ser caminho público.
13. Que a requerente e seus antecessores tenham levado a cabo obras de manutenção e limpeza necessárias à sua utilização do caminho.
14. Que o prédio referido em 1) confrontasse a poente com uma parede ancestral.
15. Que GG tivesse utilizado o »Caminho ...«, referido em 10), para aceder aos seus terrenos.».

2. Apreciação do objeto do recurso:
2.1. Da arguição de nulidade da sentença:

A recorrente arguiu a nulidade da sentença, nos termos do art.615º/1-c) e d) do C.P. Civil, defendendo que da prova produzida resulta claramente que o caminho satisfaz «interesses colectivos relevantes», ao contrário do defendido pelo Tribunal a quo, tendo em conta: que o assento de 19.04.1989 considerou que são caminhos públicos aqueles que estão no uso direto e imediato do público desde tempos imemoriais; que da sentença resulta que o caminho é público, uma vez que o tribunal declarou valorizar os depoimentos de CC, de DD e de EE (que têm entre 94 anos e 70 anos e que referiram que já em crianças passavam pelo caminho), que a circulação verificou-se durante muitos anos segundo estes depoimentos (as pessoas da freguesia para as suas propriedades, as pessoas de outras freguesias para aldeias vizinhas) e só deixou de se fazer quando os réus colocaram o cadeado no caminho e começaram a lavrá-lo, que dos factos provados de 1º a 10º resulta que o caminho se situa dentro da aldeia de ..., Freguesia ..., concelho ..., dando acesso, no mínimo, diretamente a 5 prédios rústicos e indiretamente a um número imenso de propriedades (conclusões 1ª a 7ª).
Os recorridos defenderam que não estão preenchidos os pressupostos da nulidade do art.615º/1-c) e d) do C. P. Civil.
Impõe-se apreciar a arguição, de acordo com o regime legal aplicável.
No regime geral das nulidades da sentença, o art.615º/-1- c) do C. P. Civil prescreve que a sentença é nula quando «Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;».
Esta nulidade do art.615º/1-c) do C. P. Civil, como referem sumariamente António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, em relação a cada um dos dois fundamentos alternativos ocorre: quando «existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente.»; e nas circunstâncias em que «A decisão é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes.»[i].
Esta nulidade da sentença distingue-se da anulabilidade da decisão prevista no art.662º/2-c) do C. P. Civil, face a vícios da decisão de facto, que pode ser suprida pela Relação caso disponha de elementos para o efeito. De facto, a Relação deve, ainda, oficiosamente, «c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;». Como referem os mesmos autores assinalados supra «Quanto a segmentos da decisão que (sendo imprescindíveis para a decisão) se revelem deficientes, obscuros ou contraditórios (STJ 12-5-16, 2325/12), a Relação deverá supri-los, desde que constem do processo (ou da gravação) os elementos em que o tribunal se fundou (…). Não sendo o caso, deve anular a decisão recorrida e remeter o processo para a 1ª instância.»[ii].
A sentença proferida é nula quando «O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;» (art.615º/1-d) do C. P. Civil), sanção esta referida à inobservância da obrigação do art.608º/2 do C. P. Civil, que dispõe que «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.».
Nestas questões a resolver indicadas no art.608º/2 do C. P. Civil não se integram os factos que preenchem os fundamentos dos pedidos, factos estes que, caso seja omitida a sua apreciação, a omissão pode ser invocada como erro de direito. Neste sentido, veja-se, nomeadamente, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.03.2017, proferido no processo nº7095/10.7TBMTS.P1.S1, relatado por Tomé Gomes, que sumaria, de forma que se perfilha por inteiro: «I. O não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC. II. Tais situações reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC.»[iii].
Neste quadro jurídico, verifica-se que os fundamentos expostos pela recorrente não integram manifestamente qualquer fundamento da nulidade da sentença previsto no art.615º/1-c) do C. P. Civil, tendo em conta que a recorrente: que não invocou qualquer incompatibilidade de silogismo entre fundamentos e a decisão mas defendeu apenas a existência de um erro de apreciação dos factos provados face ao regime de direito que considerou aplicável (o que configura a invocação de um erro de julgamento) e defendeu que a prova produzida exprime factos, que não constam da matéria de facto provada, que não impugnou nos termos do art.640º do CPC; que não invocou qualquer ininteligibilidade da decisão por obscuridade ou ambiguidade.
Da mesma forma, verifica-se que os fundamentos expostos pela recorrente não integram também, e manifestamente, qualquer fundamento da nulidade da sentença previsto no art.615º/1-d) do C. P. Civil, uma vez que não invocou que ficou algum pedido por apreciar mas defendeu apenas o erro de direito face aos factos (factos provados e factos que consideraram nos seus argumentos sem que constassem do elenco de factos provados e sem que tivessem sido objeto de pedido de ampliação factual) e ao regime de direito aplicável.
Pelo exposto, julga-se improcedente a nulidade arguida.

2.2. Do suprimento de deficiência da matéria de facto:

Examinando a matéria de facto alegada pela autora (quer na sua petição inicial, quer no aperfeiçoamento que da mesma foi feita após a anulação do despacho saneador determinada nesta Relação a 15.06.2021), no que se revela relevante para o objeto do processo (conforme já se referira no referido acórdão de 15.06.2021), verifica-se que a autora alegou:
a) Que o caminho dava acesso: a prédios da freguesia, exemplificando com 5 prédios alegados, sem qualquer indicação taxativa («O mencionado caminho dá acesso a diversas propriedades rústicas, inclusive algumas que com o mesmo confinam, tais como: …»- art.2º da petição inicial); a outros caminhos da freguesia («Acresce que, esse caminho dá acesso a outros caminhos que, portanto, levam a outras propriedades cujo caminho obrigatoriamente tem de por ali passar para aceder a outras propriedades.»- art.8º da petição inicial);
b) Que o caminho tem sido usado desde a sua abertura, há mais de 100 anos, para circulação a pé, de forma livre e por todos as pessoas em geral, sempre que o desejassem e entendessem, em qualquer altura do ano, a qualquer hora («Permitindo a todos as pessoas em geral, sempre que o desejaram fazer, em qualquer altura do ano, a qualquer hora e as vezes que o entenderam, a pé por ali circularam livremente.», «Actos público que são praticados à mais de 100 anos, à vista de toda a gente da localidade, de forma continuada e ininterrupta, até a data em que foram impedidos pelos requeridos.»- arts.16º e 17º da petição inicial, seguidos nos artigos seguintes de alegações de características da posse para a aquisição por usucapião, impertinente no objeto desta ação).
c) Que havia necessidade de utilização de caminho por transeuntes (art.7º da petição inicial), matéria que foi clarificada e ampliada no aperfeiçoamento («Como se trata de caminho de acesso a diversas propriedades, o desaparecimento do mesmo fará com que 5 proprietários que confinam directamente com o caminho fiquem sem acesso, ou seja, passamos a ter 5 prédios “encravados” e indirectamente cerca de 50 propriedades ficam sem aquele acesso.| O acesso as propriedades pelo caminho em questão, significa que os diversos proprietários o possam fazer a pé, ou seja, o acesso as propriedades faz-se por caminho muito mais curto e sem recurso a carro, o que implica ser mais rápido.| A alternativa implica uma distância de mais de 5 km, só possível fazer com viatura automóvel, com o aumento de distância aumenta o tempo de viagem e para aqueles que não têm viaturas, pode implicar o abandono das propriedades.| Refira-se por fim que, sendo o caminho essencial à exploração agrícola de um raio de cerca de 10km, o dito caminho também é muito usado para as caminhadas pois trata-se de caminho que sempre ligou a aldeia do ... a outras aldeias, através de caminhos de terra batia que mais tarde foram substituídos por estradas camarárias, mas cujos caminhos são hoje explorados e mantidos para caminheiros.»).
Examinando a decisão da matéria de facto da sentença, verifica-se que esta não sujeitou a decisão os factos alegados pela autora (ainda que carecidos de clarificação por via instrumental), relativos: ao acesso do caminho a outros caminhos e a mais de 50 propriedades e à ligação que o caminho faz da aldeia de ... a outras aldeias; à circulação efetiva alegada como realizada sobre o caminho (ou, pelo menos, a resposta do facto 6 é deficiente e obscura) e ao uso para caminhadas; ao serviço à exploração agrícola de um raio de cerca de 10 km; às consequências do fecho do caminho implicar o uso alternativo de via de mais de 5 km, só possível de realizar de veículo automóvel.
Nesta decisão de facto da sentença recorrida, em particular: foi julgado provado no facto 6 que «O caminho referido em 3) encontra-se aberto desde tempos imemoriais, sendo que qualquer pessoa poderia passar pelo mesmo»; foi este facto fundamentado com a seguinte motivação da análise da prova:
« Em segundo lugar, no tocante à possibilidade de qualquer pessoa passar pelo caminho público, a produção de prova dividiu-se: de um lado, no sentido de qualquer pessoa poder passar pelo mesmo, tivemos os depoimentos das testemunhas CC, FF, GG e EE; contra essa possibilidade, tivemos os depoimentos das testemunhas HH, II e JJ.
A este respeito, o Tribunal valorizou os depoimentos das testemunhas CC, FF, GG e EE. Com efeito, todos eles foram inequívocos ao referir que qualquer pessoa poderia passar pelo caminho em questão; muito embora se pudesse suspeitar da espontaneidade do depoimento da testemunha DD, em virtude de exercer funções de secretário da justa de freguesia (a autora), na medida em que foi corroborado pelos depoimentos das demais testemunhas, sem que houvessem motivos perceptíveis para duvidar do depoimento destas, o Tribunal optou por o valorar. Resta acrescentar que todos depuseram com conhecimento directo dos factos, de uma maneira que o Tribunal avaliou como espontânea, não havendo motivos para duvidar da veracidade do alegado.
Por seu turno, o Tribunal desvalorizou os depoimentos das testemunhas HH, II e JJ em virtude de, francamente, os ter achado comprometidos ou inconclusivos. Com efeito, importa começar por salientar que HH e II residem em união de facto, sendo aquele irmão da ré, pelo que tem um interesse indirecto no desfecho da acção. Ora a testemunha HH foi a única a dizer abertamente que não permitiam a passagem pelo caminho, a não ser conforme a justificação apresentada, sem todavia explicar o motivo porquê; o seu depoimento contrastou francamente com o de II, sua unida de facto, a qual se mostrou consideravelmente hesitante e titubeante no seu depoimento, tendo referido que »Não era um caminho público mas qualquer pessoa passava por lá«, tendo acabado por referir que qualquer pessoa passava por lá a pé; por outro lado, a testemunha JJ mostrou-se algo hesitante nas suas declarações, demonstrando não se desejar comprometer, tendo dito que »se visse lá gente, não passava por respeito« (mas nunca dizendo abertamente que estaria impedida de lá passar por não ser caminho público). Daí que, pelo exposto, o Tribunal tenha optado por desvalorizar o depoimento destas últimas testemunhas, tendo valorado aquelas.».
A recorrente, sem impugnar a matéria de facto provada, nos termos do art.640º do C. P. Civil, defendeu, conforme se referiu em III- 2.1. supra e se referirá em III- 2.2. infra, que os depoimentos valorizados pelo tribunal provam que a circulação no caminho verificou-se durante muitos anos, sendo realizada pelos proprietários envoltos ao caminho e por qualquer pessoa, dando acesso diretamente a 5 prédios rústicos e indiretamente a um número imenso de propriedades.
Examinando o facto provado em 6, verifica-se que este é obscuro (passavam ou não passavam por lá as pessoas que poderiam passar) e é deficiente (por não se referir à utilização efetiva e a circulação poder ser descrita e com referência a matéria instrumental alegada, que clarifica o acesso provado em 4 da sentença recorrida e não impugnado).

Ora, no art.662º/1 e 2-c) do C. P. Civil, prescreve-se:

«1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
2 - A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: (…)
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta; (…)».

Assim, para apreciar a existência de elementos para suprir a obscuridade e deficiência, ouviu-se a prova produzida em audiência de julgamento.
Nesta prova, todas as testemunhas a que o Tribunal a quo declarou dar relevância referiram a ocorrência de passagens efetivas de pessoas pelo traço de terreno em terra batida, objeto da ação e da resposta dada pelo Tribunal a quo nos factos provados em 3) e ss, tanto pessoas dos prédios provados em 2) da matéria de facto provada como outras pessoas da freguesia e outras freguesias: CC (de 94 anos) referiu que antes de taparem o caminho passavam por ali pois não tinham outro caminho; DD (de 70 anos) referiu que circulavam por ali como caminho público, quer pessoas que têm ali propriedades, quer outras para não dar uma volta muito grande, sendo que havia pessoas de aldeias que passavam por ali para ir para a feira e que quem estivesse em ... e quisesse ir para ... passava por ali sem desvios; FF (que saiu de ... aos 30 anos, esteve fora mais de 20 anos e regressou pelo menos há 13 anos e foi lá pela última vez há cerca de 4 ou 5 anos) referiu que passaram muitas vezes por lá, que para si aquele caminho sempre foi um caminho público, por onde passavam pessoas- quem queria e não só as pessoas daquelas propriedades- sem que à sua passagem fossem colocados problemas; MM (tem ali propriedades há 30 anos, afirma que na documentação que tem das mesmas se diz que partia com caminho público e que conhece o caminho desde criança) referiu que vinha de ... a pé pelo caminho, que qualquer pessoa passava por ali (lembrando-se, nomeadamente, de passar a GNR ..., pelo menos duas vezes; não havia estrada de alcatrão), nomeadamente para outras aldeias em ..., ..., para a feira, que se não se passasse por ali tinha que «ir à volta» e andar 4 Km; EE (73 anos) referiu que passava-se pelo caminho a pé, que passou a lá desde sempre, que o acesso à sua propriedade também era por este caminho mas que passavam por ali senhoras das ... (para a feira, para ..., para as Festas da Senhora...) e ficavam ali a conversar.
Nesta mesma prova, entre as três testemunhas que o Tribunal a quo considerou não ter valorizado o depoimento: a própria testemunha NN (que coabita com um irmão da ré), apesar de entender que não há ali caminho público e que as passagens ocorridas eram de favor, admitiu que qualquer pessoa passava por lá; II (que passou pelo terreno em causa, pela última vez, há 30 anos), admitiu que passavam por ali porque era mais perto, apesar de referir que só o faziam se não houvesse ninguém por ali.
Ora, esta prova produzida permite suprir a obscuridade do condicional utilizado no facto 6 e clarificar a passagem provada, ao abrigo dos poderes da Relação do art.662º/2-c) do C. P. Civil (sem necessidade de anular a decisão para decidir a matéria invocada em relação às distâncias e ao encurtamento, em ampliação da matéria de facto, cuja prova, face aos demais factos provados, se revela atualmente desnecessária, conforme se verá em III-2.3. infra).
Pelo exposto, determina-se a alteração da redação do facto 6 para a seguinte redação (mantendo-se em itálico a versão inicial e acrescentando-se a matéria subsequente):
«O caminho referido em 3) encontra-se aberto desde tempos imemoriais, sendo que qualquer pessoa poderia passar pelo mesmo, e passando quer pessoas que ali detinham prédios, quer outras pessoas que se deslocavam para outras aldeias (em ..., ..., ..., ...), para a feira ou para as Festas da Senhora...».

2.3. Da invocação de erro de direito da sentença:

A sentença recorrida, depois de um enquadramento jurídico (sobre a distinção doutrinária entre caminhos públicos e atravessadouros e sobre o assento de 19.04.1989 e a jurisprudência que o restringiu), concluiu que não existia caminho público por se dever aplicar a doutrina da restrição ao assento de 1989 (por o caminho restringir o direito fundamental da propriedade privada) e por não existir interesse coletivo relevante, pelo facto do caminho apenas permitir a passagem do público, que tinha à sua disposição também outro caminho, nos seguintes termos:
«Isto posto:
Em primeiro lugar, importa começar por referir que existe uma controvérsia jurisprudencial no sentido da interpretação do conceito de »caminho público« em face do Assento de 19/04/1989, a qual poderá ser resumida nos seguintes termos: se além da utilização directa e imediata pelo público, será de exigir a satisfação de interesses colectivos relevantes. Existe Jurisprudência com argumentos muito ponderosos em qualquer das orientações, pelo que a questão se mantém em aberto.
Em segundo lugar, na medida em que existe essa polémica Jurisprudencial, na medida em que se trata de uma restrição ao direito fundamental de propriedade privada, constitui nosso entendimento que o Tribunal deverá optar pela solução que salvaguarda em maior extensão a expressão prática do direito fundamental, ao abrigo do requisito da proporcionalidade no teste de compressão de direitos fundamentais (arts 18º e 62º da CRP). Nestes termos, para se onerar a passagem de um prédio com a permissão da passagem pelo público, será de exigir a satisfação de interesses colectivos relevantes.
Em terceiro lugar, somente resulta dos factos provados que caminho referido em 3) encontra-se aberto desde tempos imemoriais, sendo que qualquer pessoa poderia passar pelo mesmo e que se pode igualmente aceder aos prédios referidos nos pontos 2, c) e e) por um outro caminho designado »Caminho ...«, situado a sul dos referidos prédios (pontos 6) e 10)).
Ora não se consegue retirar dos factos provados a satisfação de »interesses colectivos relevantes« além da passagem do público, o qual tem à sua disposição adicionalmente o designado »Caminho ...«.
Não tendo sido feita essa prova, a acção tem necessariamente que improceder, por omissão de um pressuposto essencial para que a autora fizesse valer a sua pretensão.».
A recorrente arguiu o erro de direito desta sentença, por entender: que os factos provados (em 1, 2, 4 e 6) demonstrarem que o caminho foi aberto desde tempos imemoriais e que qualquer pessoa tinha possibilidade de passar pelo mesmo, o que revelava que satisfazia interesses públicos relevantes; que os depoimentos das testemunhas indicadas (com valorização de depoimentos de CC, GG e EE, DD e com desvalorização de outros depoimentos indicados) deveriam ter levado o Tribunal a concluir que o caminho era utilizado pelos proprietários com prédios junto ao caminho e por qualquer pessoa, e, nessa medida, que o caminho satisfazia interesses coletivos de certo grau ou relevância, uma vez que da passagem do público apenas se pode extrair a satisfação desse interesse; que o Tribunal referiu erradamente que se encontrava disponível o Caminho ..., quando o facto provado em 10º provava que este apenas daria acesso à propriedade de dois prédios; que as ações dos réus de colocação de cadeado e de edificação da parede na pendência da ação violam o direito de propriedade da autora sobre o caminho nos termos do art.1305º do C. Civil (conclusões 8ª a 20ª).
Os recorridos contestaram, defendendo que, quer da matéria alegada pela autora, quer da matéria de facto provada, não se pode concluir pela verificação do pressuposto da afetação do caminho à utilidade pública e à satisfação de interesses coletivos relevantes, mas apenas a existência de um uso circunscrito e subordinado de interesses de caráter meramente privatístico.
Impõe-se apreciar o recurso, mediante os factos alegados e provados e o regime de direito aplicável, face à invocação pela autora de que o caminho objeto da ação corresponde a um caminho público.

2.3.1. Enquadramento jurídico:
2.3.1.1. Classificação de caminhos como públicos:

A. O Código Civil de Seabra de 1867 distinguia as coisas como públicas, comuns e particulares, definindo: «São públicas as coisas naturais ou artificiais, apropriadas ou produzidas pelo Estado e corporações públicas e mantidas debaixo da sua administração, das quais é lícito a todos, individual e colectivamente, utilizar-se com as restrições impostas por lei, ou pelos regulamentos administrativos.», vindo a enumerá-los como «as estradas, pontes, viadutos construídos e mantidos a expensas públicas, municipais ou paroquiais» (art.380º); «São comuns as coisas naturais ou artificiais não individualmente apropriadas, das quais só é permitido tirar proveito, guardados os regulamentos administrativos, aos indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa ou que fazem parte de certa corporação pública» (art.381º); «São particulares as coisas cuja propriedade pertence a pessoas singulares ou colectivas e de que ninguém pode tirar proveito senão essas pessoas ou outras com o seu consentimento» (art.382º).
O atual Código Civil aprovado pelo Decreto-Lei nº47344, de 25 de novembro de 1966, que revogou o Código Seabra, passou a definir apenas «1. Diz-se coisa tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas. 2. Consideram-se, porém, fora do comércio todas as coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por sua natureza, insusceptíveis de apropriação individual.» (art.202º).
Apesar de haver autores que defenderam que a orientação do Código Civil de Seabra de 1967 se mantinha em vigor depois da aprovação do Código Civil de 1966- Pires de Lima e Antunes Varela referem que «não figurando no Código Civil actual qualquer regra sobre bens do domínio público, deve entender-se que continua em vigor o artigo 380.º do Código de Seabra, pois o artigo 3.º do Decreto- Lei n.º47 344 apenas revogou a legislação relativa às matérias que o novo Código abrange»[iv]- existem dúvidas e controvérsia jurídica sobre a natureza pública de uma coisa[v], sobretudo quando esta não está classificada como pertencente ao Estado ou não é por este administrada.

B. Que bens integram o domínio público?
De acordo com o Decreto-Lei n.º 477/80, de 15 de Outubro, que define competências para o inventário do património do Estado (conjunto de bens do seu domínio público e privado, e dos direitos e obrigações com conteúdo económico de que o Estado é titular, como pessoa coletiva de direito público) e discrimina bens do domínio público, no art.4º/h) define-se que integram o domínio público do Estado «As linhas férreas de interesse público, as auto-estradas e as estradas nacionais com os seus acessórios, obras de arte, etc.;»
De acordo com a Constituição da República Portuguesa na revisão de 1989, passou a definir-se que pertencem ao domínio público e impassível de apropriação individual, nomeadamente, as «estradas» e «outros bens classificados por lei como tal» (art.84º/1-d) e f) da CRP), sendo que a «lei define quais os bens que integram o domínio público do Estado, o domínio público das regiões autónomas e o domínio público das autarquias locais, bem como o seu regime, condições de utilização e limites.» (art.84º/2 da CRP). Jorge Miranda e Rui Medeiros, em relação a este regime constitucional enunciado, defendem que «A teleologia do conceito de domínio público reside na submissão de certos bens a um regime jurídico-público protetor da finalidade administrativa ou pública a que eles estão por natureza ou são por decisão pública destinados. Com o elenco dos bens dominiais do n.º1 do artigo 84.º, a Constituição pretende, por conseguinte, afirmar a sua vinculação, em termos jurídico-públicos, a determinados fins administrativos, seja através do seu uso pelo público seja através do seu uso pela própria Administração. Está, desse modo, vedado ao legislador ordinário sujeitar tais bens a um regime que não assegure, de forma adequada, a sua afetação, direta e permanente, ao fim público a que estão destinados. O domínio público é, pois, essencialmente um conceito funcional- um estatuto administrativo aplicável a um bem, com o telos referido, seja quem for o respetivo proprietário. O legislador pode bastar-se com a exigência deste elemento funcional (afetação) ou, pelo contrário, na esteira da visão clássica romano-francesa do domínio público, exigir complementarmente uma titularidade pública. A Constituição, também neste domínio, tem suficiente abertura para comportar e amparar ambas as alternativas.» (bold da penúltima frase aposto por esta Relação)[vi].
No regime jurídico do património imobiliário público, aprovado pelo DL nº280/2007, de 07.08., passou a definir-se, nomeadamente: quanto à classificação, que os imóveis do domínio público são os «classificados pela Constituição ou por lei, individualmente ou mediante a identificação por tipos» (art.14º); quanto à titularidade, que a «titularidade dos imóveis do domínio público pertence ao Estado, às Regiões Autónomas e às autarquias locais e abrange poderes de uso, administração, tutela, defesa e disposição nos termos do presente decreto-lei e demais legislação aplicável» (art.15º); quanto à afetação, que «Sempre que o interesse público subjacente ao estatuto da dominialidade de um imóvel não decorra directa e imediatamente da sua natureza, compete ao respectivo titular afectá-lo às utilidades públicas correspondentes à classificação legal» (art.16º/1); quanto à inalienabilidade, que os «imóveis do domínio público estão fora do comércio jurídico, não podendo ser objecto de direitos privados ou de transmissão por instrumentos de direito privado» (art.18º); quanto à imprescritibilidade, que os «imóveis do domínio público não são susceptíveis de aquisição por usucapião» (art.19º); quanto à autotutela, que a «Administração tem a obrigação de ordenar aos particulares que cessem a adopção de comportamentos abusivos, não titulados, ou, em geral, que lesem o interesse público a satisfazer pelo imóvel e reponham a situação no estado anterior, devendo impor coercivamente a sua decisão, nos termos do Código do Procedimento Administrativo e demais legislação aplicável.».
Ora, os caminhos públicos não estão previstos como bens do domínio público do Estado ou das Autarquias locais na Constituição da República Portuguesa, nem na lei ordinária.
C. A controvérsia referida em 2.2.1.1.- A assume particular relevância em relação aos caminhos que são de uso público mas não pertencem a entidades públicas (conforme se refere em 2.2.1.1.-B supra).
O assento do STJ nº7/1989, de 19.04.1989, publicado no DR 1ª Série de 02.06.1989, com valor atual de uniformização de jurisprudência, depois de ter equacionado as duas posições jurisprudenciais («Segundo uma delas - que foi a seguida no acórdão recorrido - , consideram-se públicos os caminhos sempre que eles estejam no uso directo e imediato do público. A outra orientação - adoptada no Acórdão de 10 de Abril de 1970 - e a de que só devem considerar-se caminhos públicos aqueles que, alem de se encontrarem no uso directo e imediato do público, tenham sido administrados pelo Estado ou outra pessoa de direito público e se encontrem sob a sua jurisdição.»), decidiu e fixou jurisprudência «São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público.» de acordo com a seguinte fundamentação:
«De acordo com o artigo 380, n.1, do citado Código Civil de 1867, pertencem a categoria das coisas publicas as estradas, pontes e viadutos construídos e mantidos a expensas publicas, municipais ou paroquiais.
O actual Código Civil não se refere as coisas publicas, limitando-se, no artigo 202, n. 2, a estabelecer que se consideram fora do comercio todas as coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio publico e as que são, por sua natureza, insusceptiveis de apropriação individual.
No Decreto-Lei n. 47344, de 25 de Novembro de 1966, que aprovou o Código Civil, dispõe-se que, desde que principie a vigorar tal Código, fica revogada toda a legislação civil relativa as matérias que esse diploma abrange.
Não sendo definidas as coisas publicas no Código Civil actual e não estando já em vigor o artigo 380 do Codigo Civil de 1867 – cuja enumeração de coisas publicas e, alias, exemplificativa -, verifica-se que a nossa lei nada estabelece quanto a caracterização das coisas publicas.
O Decreto-Lei n. 23565, de 12 de Fevereiro de 1934, no qual se regulou o cadastro dos bens do domínio publico do Estado e que, no seu artigo 1, alinea g), dizia estarem incluídos em tais bens, alem de outros, todos os demais bens que estivessem no uso directo e imediato do publico, não e de atender, dado ter sido revogado pelo Decreto-Lei n 477/80, de 15 de Outubro (artigo 18).
Este Decreto-Lei n. 477/80 enumera, para efeitos de inventario geral do património do Estado, os bens que estão no seu domínio publico e privado.
Entre aqueles bens, ao referir-se a vias de comunicação terrestre, indica apenas as linhas férreas de interesse publico, as auto-estradas e as estradas nacionais, com os seus acessórios, obras de arte, etc. [alinea e) do artigo 4].
As restantes vias de comunicação terrestre, como as estradas municipais e os caminhos públicos, não fazem parte do domínio publico do Estado.
Ora, entende-se que, quando a dominialidade de certas coisas não esta definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes esta inerente.
E suficiente para que uma coisa seja publica o seu uso directo e imediato pelo publico, não sendo necessária a sua apropriação, produção, administração ou jurisdição por pessoa colectiva de direito publico.
Assim, um caminho é público desde que seja utilizado livremente por todas as pessoas, sendo irrelevante a qualidade da pessoa que o construiu e prove a sua manutenção.
Como bem se refere no acórdão recorrido, esta orientação e a que melhor se adapta as realidades da vida, visto ser com frequência impossível encontrar registos ou documentos comprovativos da construção, aquisição ou mesmo administração e conservação dos caminhos, e assim se obstar a apropriação de coisas publicas por particulares, com sobreposição do interesse publico por interesses privados.
Basta, portanto, para a qualificação de um caminho como caminho publico o facto de certa faixa de terreno estar afecta ao transito de pessoas sem discriminação.
E, assim, de manter o acórdão recorrido, que entendeu ser suficiente para um caminho ser considerado publico o uso directo e imediato pelo publico, não se tornando necessário que ele tenha sido apropriado ou produzido por pessoa colectiva de direito publico e que esta haja praticado actos de administração, jurisdição ou conservação.».
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, depois deste acórdão de uniformização de jurisprudência, veio a restringir o seu alcance em variada jurisprudência, em situações em que as faixas de terreno classificáveis como caminhos atravessavam prédios particulares, por entenderem que a doutrina do assento não permitia a distinção entre a figura do caminho público e a figura do atravessadouro (abolida no art.1383º do C. Civil de 1966).
Neste sentido, enunciam-se, nomeadamente: o Ac. STJ de 10.11.1993, proferido no processo nº084192, relatado por Martins Costa (que sumariou- «I - O Assento de 19 de Abril de 1989 deve ser interpretado restritivamente, no sentido de a publicidade dos caminhos exigir a sua afectação à utilidade pública ou seja, à satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância. II - Quando assim não aconteça, e se destinem apenas a fazer a ligação entre os caminhos públicos por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distância, os caminhos devem classificar-se de atravessadouros, figura esta que não foi excluída por aquele Assento e que está prevista no artigo 1383 do Código Civil.»); Ac. STJ de 15.06.2000, proferido no processo nº00B429, relatado por Miranda Gusmão (que considerou em conclusão da fundamentação- «1) O assento de 19 de Abril de 1989 - hoje simples acórdão de uniformização de Jurisprudência - deve ser interpretado restritivamente, no sentido de a publicidade dos caminhos exigir ainda a sua afectação a utilidade pública, ou seja, o uso do caminho visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância, e, ainda de forma extensiva quando afirma que deixou subsistir, em alternativa, o critério segundo o qual é público um caminho pertencente à entidade pública e estar afecta à utilidade pública. 2) O assento de 19 de Abril de 1989 - hoje simples acórdão de uniformização de jurisprudência - permite, face à interpretação dada, a distinção entre caminhos públicos e atravessadouros nos seguintes termos: - um caminho no uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais, que atravesse prédio particular, será público se estiver afectado à utilidade pública, ou seja, visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância; - de contrário (na falta desse requisito) e, em especial, quando se destinem a fazer a ligação entre caminhos públicos, por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distâncias, os caminhos devem classificar-se como atravessadouros.»); o Ac. STJ de 10.12.2009, proferido no processo nº897/04.5TBPTM.E1.S1, relatado por Alves Velho (concluiu, em relação a caminho que atravessa prédios particulares, «A dominialidade das coisas pode directamente ser reconhecida em razão da presença dos índices de utilidade pública inerentes. Bastará para a qualificação de um caminho como público que a faixa de terreno que lhe constitui o leito esteja afecta ao trânsito de pessoas sem discriminação, desde que tal se verifique com imemorialidade e a satisfação do interesse colectivo se revista de um atendível grau de relevância.»).
Gabriela Páris Fernandes, em sumário de jurisprudência sobre o «uso público relevante» e «relevante interesse coletivo», refere: «Para que se considere preenchido o requisito de uso público relevante, de interesse público, é de exigir que o fim visado pela utilização seja comum à generalidade dos respectivos utilizadores e que não resulte apenas de uma soma de utilidades individuais (Acs. STJ 13.01.2004, 10.12.2009, 06.10.2011, 07.02.2017 e 22.06.21). Assim, por exemplo, segundo o STJ, existirá relevante interesse colectivo se o caminho é de uso intensivo, generalizado e comum a diversas povoações, revelando uma utilização associada à vida social e económica dos locais servidos pelo caminho, ainda que possa servir também (mas não apenas) para encurtar distâncias entre vias públicas (Acs. STJ 28.05.2009, 02.03.2011, 06.10.2011 e 14.02.2012), se o caminho permite um encurtamento significativo de distâncias entre populações, «de molde a beneficiar de um modo muito particular certos segmentos da população, como é o caso das crianças, das pessoas idosas, dos doentes ou deficientes físicos, por se tratar de pessoas mais carenciadas e vulneráveis, logo, especialmente necessitadas de apoio ou de facilidades» (ac.STJ 19.11.2002), se permite o acesso ao local onde decorre a prática de costumes enraizados da população, à luz das suas tradições, como cerimónias religiosas e festejos (Acs. STJ 13.01.2004 e 18.09.2014), se o percurso é utilizado pelas gentes da terra para se deslocarem à freguesia vizinha e à feira (Ac. STJ 07.02.2017), ou ao fontanário e lavadouro (Ac. STJ 09.02.1992)- esclarecendo o tribunal, neste último aresto, que «o grau de relevância do interesse colectivo satisfeito pelo caminho em causa não deverá depender de um juízo quantitativo sobre o número de utilizadores, bastando-se com a existência objectiva de certo equipamento colectivo, de uso potencialmente público pela generalidade da comunidade que, porventura, tenha interesse em a ele aceder (independentemente do número real de interessados que, em cada momento, a ele efectivamente aceda)». Em contrapartia, não existirá «relevante interesse colectivo» se estiver apenas em causa o interesse próprio de cada um dos proprietários de aceder ao seu terreno, que confine com o caminho (Ac. STJ 10.12.2009), nem quando se trate de fazer uma ligação entre caminhos públicos por prédio particular tão só com vista a um encurtamento não significativo de distâncias (Ac. STJ 10.11.1993, Ac. STJ11.01.1996, Ac RP14.03.2000, Ac. STJ 15.06.2000, Ac. STJ21.01.2003, Ac. RP 29.11.2004, Ac. STJ 10.12.2009).»[vii].
Em jurisprudência posterior, o Ac. STJ de 28.05.2013, proferido no processo nº 3425/03.6TBGDM.P2.S1, relatado por Salazar Casanova, foi ressalvado ainda que a versão restritiva do assento não se aplicaria aos casos em que o caminho não atravessa prédios particulares, casos em que, a ligação que um caminho fizesse entre duas ruas seria suficiente para assegurar a utilidade pública: «I – A interpretação restritiva do assento de 19-04-1989, de acordo com a qual os caminhos devem considerar-se públicos quando, desde tempos imemoriais, estão no uso direto e imediato público e afetados a interesses coletivos de certo grau ou relevância, pressupõe que tais caminhos atravessam propriedades privadas. II - Por isso, não se verificando a previsão constante do aludido assento interpretado restritivamente, tais caminhos são atravessadouros e, consequentemente, devem considerar-se abolidos face ao disposto no art. 1383.º do CC, ressalvados os casos contemplados no art. 1384.º do CC. III - No caso de passagem ou caminho, que não se integra em nenhuma propriedade privada, existente num lugar e que desde tempos imemoriais liga duas ruas desse lugar, a prova do seu uso imemorial pela população basta para se considerar tal caminho como caminho público, não se impondo nenhuma interpretação restritiva do assento.».
Esta posição foi seguida por outra jurisprudência, nomeadamente, no Ac. RG de 226.06.2017, proferido no processo nº142/14.5TBMTR.G1, relatado por Fernandes Freitas, que concluiu, que «III- Se um caminho não se integra em nenhuma propriedade privada a prova do seu uso imemorial pela população é suficiente para se considerar tal caminho como público, não se impondo, neste caso, a interpretação restritiva do “Assento” que definiu o conceito de “caminhos públicos”, já que esta interpretação restritiva pressupõe o atravessamento de propriedade alheia».
Na doutrina, Rui Pinto Duarte reafirma a validade da doutrina do assento, sem necessidade de restrição:
«(…) a não pertença de um bem a uma entidade pública não tem como consequência necessária que esse bem seja privado.
Para fundamentar esta posição, recordamos que a Constituição, a par do sector público e do sector privado, prevê o sector cooperativo e social- o qual compreende, além do mais, “os meios de produção comunitários, possuídos e geridos por comunidades locais (art.82.º, nº.4, alínea b)). Como é sabido, o principal exemplo de bens abrangidos por tal preceito são os baldios. Ora, entre estes e os caminhos públicos- no sentido do assento do STJ de 19/04/1989- há várias analogias. Quer uns, quer outros, são bens que nem pertencem ao Estado (ou a outra pessoa colectiva de direito público) nem pertencem a privados, sendo apropriados colectivamente, mas sem a mediação de qualquer pessoa colectiva de direito público. São coisas comuns, no sentido tradicional, recolhido no Código de Seabra, que atrás se lembrou. É verdade que os caminhos públicos estão ao dispor de quaisquer cidadãos- e não apenas das “comunidades locais”. Não é, porém, menos verdade que os seus utilizadores primaciais e quase únicos são os membros dessas comunidades. A figura dos baldios é, em grande medida, um lugar paralelo da figura dos caminhos públicos.
De tudo isto resulta que a doutrina do assento se harmoniza com os outros elementos do nosso sistema jurídico e que não é necessário, nem útil, alterar, ou interpretar restritivamente, a norma que o Supremo Tribunal de Justiça estabeleceu em 1989.»[viii].
D. Na sucessão de leis que definiram a competência das autarquias em relação a caminhos e estradas (v.g. arts.1º/5-a) e b9, 6º e 7º do DL nº34593, de 11.05.1945, revogado pelo DL nº380/85, de 26.09.1985; arts.13º, 14º e 16º da Lei nº159/99, de 14.09., revogada pelo art.3º/1-c) da Lei nº75/2013, de 12.09.; arts.17º/1-h), 34º/1-e) e 66º/1 e 2-a) da Lei nº169/99, de 18.09., revogada pelo art.3º/1-c) da Lei nº75/2013, de 12.09; arts.16º/1-ff) e 33º/1-ee) e qq) do Anexo I da Lei nº75/2013, de 12.09.; art.38º/2-b) da Lei nº50/2018, de 16.08. e art.2º/1-b) do DL nº57/2019, de 30.04.), verifica-se, atualmente: que no regime jurídico das autarquias locais e de transferência de competências do Estado para as Autarquias locais, aprovado pela Lei nº75/2013, de 12.09, definiu-se que compete à Junta freguesia «Proceder à manutenção e conservação de caminhos, arruamentos e pavimentos pedonais» (art.16º/1-ff) do Anexo I aprovado pela Lei); que na Lei nº50/2018, de 16.08., que estabeleceu o quadro da transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais, se definiu, em relação a competências que eram dos municípios, que os órgãos das freguesias têm as competências de «Limpeza das vias e espaços públicos, sarjetas e miradouros» (art.38º/2-b) do Capítulo IV das Novas competências dos órgãos das freguesias); que no Decreto-Lei nº57/2019, de 30.04., que concretizou a transferência de competências dos municípios para os órgãos das freguesias, foi definido que é da competência dos órgãos das freguesias «A limpeza das vias e espaços públicos, sarjetas e sumidouros» (art.2º/1-b) do DL).
Assim, verifica-se que cabe às Juntas de Freguesia manter e conservar os caminhos pedonais da área da freguesia.

2.3.1.2. Responsabilidade extracontratual:
Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação (art.483º do C. Civil), o que exige: a prática de um ato objetivamente controlável pela vontade humana; a violação de um direito subjetivo (de conteúdo pessoal ou patrimonial) ou de uma norma que proteja também interesses alheios; a censurabilidade do ato ao agente a título de culpa, mera culpa ou dolo e, lato sensu, apreciada nos termos do nº2 do art.487º do C. Civil; a ocorrência de um dano (material ou pessoal, presente ou futuro, danos emergentes ou lucros cessantes); a ocorrência  de uma causalidade jurídica entre a ação e a produção do dano[ix].
A obrigação de indemnizar prevista nos arts.562º ss do C. Civil, com primeiro princípio de restauração natural, obriga o lesante a reconstituir a situação que existiria se não tivesse ocorrido o evento lesivo relativamente aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (arts.562º e 563º do C. Civil).
A vedação de um caminho que for considerado judicialmente comum tem levado a jurisprudência a determinar a restauração natural do mesmo, nomeadamente: no Ac. STJ de 18.05.2006, proferido no recurso com referência nº..., relatado por Salvador da Costa, sumariou que «A obstrução do caminho público impediente do acesso de algum dos proprietários confinantes aos seus prédios afecta o respectivo direito de propriedade predial, pelo que o agente se constitui na obrigação de indemnizar no quadro da responsabilidade civil, designadamente pela via da restauração natural.»; no Ac. STJ de 28.05.2013, proferido no processo nº 3425/03.6TBGDM.P2.S1, relatado por Salazar Casanova, concluiu-se, em relação à obstrução de caminho que considerou público, «IV - Incorre em responsabilidade civil pelos danos causados às pessoas que ficaram impedidas de circular nessa via o proprietário de imóvel que fechou o acesso a esse caminho, construindo no topo sul um muro com portão, impondo-se-lhe também repor o acesso à referida passagem no estado em que se encontrava, ou seja, destruindo o muro e portão (arts. 562.º e 564.º do CC).»

2.3.2. Apreciação da situação em análise:
Importa apreciar os factos provados em III-1, com a correção determinada em III-2.2. supra, face ao regime de direito aplicável referido em III-2.3.1. supra.
Por um lado, examinando a matéria de facto provada (em referência também à alegada, que a parte contrária se limitou a impugnar) quanto à localização, descrição e situação do caminho, verifica-se que esta, depois de descrever a situação de 6 prédios sitos na aldeia de ... (em 1 e 2)-a) a e), julgou provado apenas :
«3. O acesso aos prédios referidos em 1) e 2) é realizado através de um caminho que confronta com aqueles nos seguintes termos:
a. Nascente: Prédios referidos em 2, a), c), d),
b. Poente: prédios referidos em 1) e 2, b);
(…)
5. O caminho referido em 3) encontra-se limitado de um dos lados com um murro de pedra em toda a sua extensão, não tendo qualquer limite físico do outro lado.».
Ora, esta matéria de facto: situou o traço de terreno que classificou como caminho, como confrontando com prédios privados; não localizou o referido caminho como atravessando quaisquer prédios privados.
Assim, perante a matéria de facto provada: não tem fundamento o primeiro pedido da autora de reconhecimento que o caminho atravessava o prédio dos réus, pedido este que não se fundava sequer nos factos alegados pela autora (a autora no art.3º da petição inicial apenas alegou que o caminho confrontava com o prédio dos réus;); nem tem fundamento também a restrição que o Tribunal a quo declarou realizar à doutrina do assento por o caminho limitar propriedade privada, quando não deu como provado qualquer facto que permitisse concluir que o caminho se situava no prédio dos réus ou que o atravessava (sendo que os réus limitaram-se a impugnar a matéria alegada pela autora da existência do caminho com trânsito público, não alegando que o referido traço de terreno integrava a área do seu prédio, em relação à qual tivessem praticados atos determinantes da sua aquisição originária).
Por outro lado, examinando a matéria de facto provada em relação ao conteúdo do uso do caminho, verifica-se que os factos provados demonstram que o caminho: para além do acesso privado aos prédios provados em 1 e 2 (conforme facto 3. supra transcrito), acesso que apenas dois prédios têm possibilidade alternativa de acesso pelo Caminho ... («Pode-se igualmente aceder aos prédios referidos no ponto 2-c) e e) por um outro caminho designado «Caminho ...», situado a sul dos referidos prédios.»»), faz também a ligação entre uma estrada municipal e um caminho público («4. O caminho referido em 3) tem uma largura de pelo menos 80 cm e uma extensão de pelo menos 90 metros e inicia-se na Estrada ... ou Rua ... e faz a ligação a um caminho publico ao sul da estrada, para a qual dá acesso.») e é usado desde tempos imemoriais, transitando pelo mesmo população geral, não só dos prédios que o rodeiam, para acesso a outras aldeias («O caminho referido em 3) encontra-se aberto desde tempos imemoriais, sendo que qualquer pessoa poderia passar pelo mesmo, e passando quer pessoas que ali detinham prédios, quer outras pessoas que se deslocavam para outras aldeias (em ..., ..., ..., ...), para a feira ou para as Festas da Senhora...»).
Esta matéria de facto provada- que demonstra a existência de um traçado aberto desde tempos imemoriais, que não dá apenas acesso aos prédios com que confronta mas que faz a ligação entre duas vias públicas, traçado pelo qual qualquer pessoa poderia passar e passava, dentro da freguesia e para acesso a outras aldeias- permite reconhecer a existência de um caminho público, de acordo com a doutrina do assento nº7 de 19.04.1989, com valor de acórdão do STJ uniformizador de jurisprudência, aplicável sem necessidade de restrição (nomeadamente face à falta de alegação e prova que o caminho provado passasse por prédios particulares, em particular, dos réus). 
Assim, não se reconhece acerto às conclusões retiradas pelo Tribunal a quo, quando considerou que o caminho servia sobretudo interesses privatísticos, que havia acesso alternativo (só provado em relação a dois prédios) e que a passagem de público não era relevante.
Por fim, a prova que «7. Há cerca de dois anos que os requeridos: a. procederam à colocação de um cadeado fechado a aloquete; b. começaram a lavrar o caminho referido em 3), como se integrasse a sua propriedade;» consubstancia a violação de um direito de acesso geral ao caminho, classificável como público, que prejudica também o direito de propriedade das pessoas que não têm acesso aos seus prédios.
Esta situação deve ser removida, em restauração natural da situação existente antes da violação, nos termos dos arts.562º ss do C. Civil.
Desta forma, procede o recurso e a ação quanto aos pedidos dos efeitos jurídico-prático principais, ainda que não proceda quanto ao segmento do pedido que identificou o caminho como atravessando o prédio dos réus (não sustentado em factos que tivessem sido alegados e que pudessem ter sido julgado provados), nem quanto à classificação imprecisa que o caminho integra o domínio público da Junta de Freguesia (sendo que integra a área da freguesia e a Junta tem competência para o conservar e manter).
As custas devem ser suportadas pelos réus, que decaíram nos efeitos prático-jurídicos da ação e do recurso, sem que o decaimento assinalado revista autonomia económica (art.527º/1 do C. P. Civil).

IV. Decisão:

Pelo exposto, as Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam:

1. Revogar a sentença recorrida.
2. Condenar os réus:
2.1. A reconhecer que é público o caminho com largura de 80 cm, extensão de pelo menos 90 m, que confronta a nascente com os prédios inscritos nas matrizes prediais rústicas da Freguesia ... art....47..., ...17... e ...08º e a poente com os prédios inscritos nas matrizes prediais rústicas da Freguesia ... sob o art....24... e ...25º, e que se inicia na Estrada ..., ... (Rua ...) e faz ligação a um caminho ao sul da estrada (conforme factos provados de 3 a 6).
2.2. A abster-se da prática de quaisquer atos que possam perturbar, impedir ou limitar a circulação pelo caminho referido em IV- 2 supra.
2.3. A reporem o caminho referido em IV- 2 supra, de forma a deixar livre a passagem.
*
Custas pelos réus (art.527º/1 do CPC).
*
Guimarães, 30.03.2023
Assinado eletronicamente pelas Juízes Desembargadoras Relatora, 1ª Adjunta e 2ª Adjunta   

Alexandra Viana Lopes
Rosália Cunha
Lígia Venade

Sumário da Relatora:

A existência de um traçado aberto desde tempos imemoriais, que não dá apenas acesso aos prédios com que confronta mas que faz a ligação entre duas vias públicas, pelo qual qualquer pessoa poderia passar e passava, dentro da freguesia e para acesso a outras aldeias, permite classificá-lo como caminho público, de acordo com a doutrina do assento nº7 de 19.04.1989, com valor atual de acórdão uniformizador de jurisprudência, aplicável sem necessidade de restrição (nomeadamente face à falta de alegação e prova que o caminho provado atravessasse prédios particulares). 


[i] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2ª edição, 2021, Reedição, Almedina, notas 11 e 12, págs.763 e 764.
[ii] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, in obra citada, nota 14, pág. 826.
[iii] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.03.2017, proferido no processo nº7095/10.7TBMTS.P1.S1, disponível in
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/C3E13ED356928302802580ED0053E3BA.
[iv] Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 2ª Edição revista e atualizada com a colaboração de Henrique Mesquita, 1987, anotação 3 ao art.1384º, pág.282.
[v] Veja-se, sobre sínteses de posições da Doutrina e Jurisprudência, nomeadamente:
Rui Pinto Duarte, in Código Civil Anotado, coordenado por Ana Prata, Almedina, Vol I de 2019, em anotação ao art.202º, págs.281 ss (anotação 10 e seguintes), e Vol. II, 2020, em anotação ao art.1383º, págs.199 ss;
Maria Clara Sottomayor e Ana Teresa Ribeiro, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Portuguesa, 2014, págs.450 ss (em anotação ao art.202º do C. Civil), e
Gabriela Paris Fernandes in Comentário ao Código Civil, Direito das Coisas, Universidade Católica Editora, anotações ao art.1383º, anotação 4- III ss, págs.333 ss.
[vi] Jorge Miranda e Rui Medeiros, in Constituição da República Portuguesa Anotada, volume II, Universidade Católica Portuguesa, 2ª Edição Revista e Atualizada, 2018, anotação XXI, pág.90.
[vii] Gabriela Paris Fernandes in obra citada, págs.336 e 337.
[viii] Rui Pinto Duarte, in Caminhos Públicos (comentário de jurisprudência), in Cadernos de Direito Privado, nº13- Janeiro/Março de 2006, pág.8, disponível in  https://blook.pt/publications/fulltext/81d2274ef9a6/
[ix] Ana Prata, in Código Civil Anotado, com coordenação de Ana Prata, Volume I, Almedina, 2ª Edição Revista e Atualizada, 2019, págs.663 ss.