Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
191/21.7T8CMN.G1
Relator: PEDRO MAURÍCIO
Descritores: LEGITIMIDADE PROCESSUAL EX-CÔNJUGE
ADMISSIBILIDADE RECONVENÇÃO
DIREITO PROPRIEDADE DE VEÍCULO
PRESUNÇÃO REGISTO
DANO PELA PRIVAÇÃO USO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
RECURSO SUBORDINADO: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Uma questão específica, e que tem suscitado dúvidas quanto à respectiva legitimidade processual, respeita aos casos da comunhão que se estabelece entre cônjuges após dissolução da sociedade conjugal e enquanto se não faz a partilha (“período de transição”).
II - Os bens comuns constituem uma massa patrimonial que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de um único direito sobre ela (propriedade coletiva): os vários titulares do património coletivo são sujeitos de um único direito, e de um direito uno, o qual não comporta divisão, mesmo ideal.
III – No referido “período de transição” está em causa uma forma de comunhão de direitos: embora a dissolução do casamento faça cessar as relações patrimoniais entre os cônjuges, como decorre do disposto no art. 1688º do C.Civil, é inequívoco que, até efectivação da partilha, continua a existir uma forma de comunhão de direitos.
IV - Se é certo que tal comunhão não se pode qualificar como um caso de compropriedade, foi o próprio legislador que, através do disposto no art. 1404º do C.Civil, determina que as regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos (sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles). Deste modo, não faz sentido a aplicação analógica das normas que regulam os efeitos do casamento quanto às pessoas e aos bens dos cônjuges constantes nos artigos 1671º e seguintes do Código Civil, uma vez que tais normas foram criadas para protecção da sociedade conjugal, que já não existe naquele período.
V - Perante a concreta relação contratual controvertida apresentada na contestação/reconvenção e perante o disposto no art. 1405º/2 do C.Civil (norma subsidiariamente aplicável ex vi do citado art. 1404º do mesmo diploma legal), a Ré detém legitimidade processual activa para, por si só (sem estar acompanhada do ex-marido), deduzir o pedido reconvencional de que seja «declarada a propriedade do citado veículo a favor do extinto casal que era constituído pela Ré e o seu ex-marido».
VI - No que concerne à indemnização dos danos associados à privação do uso, formaram-se na Jurisprudência três entendimentos quanto à questão da necessidade (ou não) de demonstração da ocorrência de prejuízos concretos para o lesado resultantes da impossibilidade de uso e fruição do veículo para que o denominado dano de privação seja indemnizável: uma no sentido de que a privação do direito de uso e fruição integrado no direito de propriedade configura, por si só, um dano indemnizável, independentemente da utilização que se faça, ou não, do bem em causa durante o período da privação; outra no sentido de que a atribuição de uma tal indemnização depende da prova do dano concreto, exigindo-se que o lesado concretize e demonstre a situação hipotética que existiria se não fosse a lesão (frustração de um propósito, real, concreto e efectivo de proceder à sua utilização); e uma terceira (posição intermédia) no sentido de que não chega a prova da privação da coisa, pura e simples, mas também não é de exigir a prova efetiva do dano concreto, bastando que o lesado demonstre que pretende usar a coisa, ou seja, que dela pretende retirar as utilidades (ou alguma delas) que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela actuação ilícita do lesante.
VII - Impõe adoptar-se esta posição intermédia, hoje maioritária no STJ, e que exclui a reparação do dano em abstrato, mas que se basta com a prova da utilização do veículo na actividade pessoal ou profissional do lesado à data da ocorrência do facto ilícito que impede o seu uso, presumindo-se, feita essa prova, a ocorrência de danos concretos e devendo fixar-se a indemnização mediante a ponderação das circunstâncias apuradas, com recurso à equidade, quando necessário.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES,
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1. RELATÓRIO

1.1. Das Decisões Impugnadas
           
A..., S.A. instaurou AA, acção declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que que «a) a Ré seja condenada a devolver o veículo automóvel, matrícula ..-BA-.., marca ..., bem como todos os seus documentos que com o mesmo lhe foram entregues; b) a pagar à Autora a quantia de 2.910,00€, acrescida 30,00 por cada dia que decorra, até à restituição efectiva do veículo automóvel».
           
Fundamentou a sua pretensão, essencialmente, no seguinte: «para o desenvolvimento da sua atividade, a Autora adquiriu o veículo automóvel de marca ..., com matrícula ..-BA-..; a Autora por si, e antecessores, está na posse, uso e fruição do veículo; mesmo que de outro título não dispusesse, até por usucapião, já há muito a Autora adquiriu o direito de propriedade sobre o veículo; o veículo encontra-se inscrito definitivamente na Conservatória do Registo Automóvel desta comarca a favor da Autora, e daí decorre a presunção de que o direito de propriedade existe e pertence ao seu titular; a Ré esteve casada com o administrador da Autora, BB; o qual, ainda no estado de casado, condescendeu que aquela, então sua então mulher, utilizasse o referido veículo nas suas deslocações; dissolvido o casamente e a comunhão conjugal, aquela administrador solicitou à Ré esta que lhe entregasse o veículo, o que esta vem recusando, mesmo após ter sido interpelada por carta em 24/12/2020, na qual lhe foi fixado um prazo para entrega até ao dia 15/01/2021; e face à recusa reiterada de entrega, a Autora está a suportar um prejuízo decorrente da privação da utilização da viatura».
Citada, a Ré contestou e reconveio, pugnando pela «improcedência da acção e sua absolvição do pedido» e formulando o seguinte pedido reconvencional: «que seja anulado o registo de propriedade do veículo de matrícula ..-BA-.., marca ..., a favor da Autora; e que seja declarada a propriedade do citado veículo a favor do extinto casal constituído pela aqui Ré e BB».
Fundamentou a sua defesa e a reconvenção, essencialmente, no seguinte: «o veículo foi adquirido, em finais do ano 2005, pela sociedade comercial S..., Vinhos e Produtos Alimentares, Lda de que o ex-marido da Ré, BB é sócio gerente; não foi adquirido com o intuito de o afetar à atividade desta sociedade e muito menos à actividade da Autora; o propósito da compra deste veículo foi sempre o uso privado, exclusivo e pessoal dos membros da família do sócio gerente da citada S..., Vinhos e Produtos Alimentares, Lda; este veículo, tal como o anterior que este substituiu (...) sempre foi usado para as deslocações diárias do agregado familiar da Ré e do então marido, e nessas deslocações, sempre foi conduzido exclusivamente, quer pela Ré, quer pelo seu ex-marido, mas maioritariamente pela Ré; em Fevereiro/2010, por razões que a Ré desconhece, a sociedade S..., Vinhos e Produtos Alimentares, Lda vendeu o veículo à Autora, que tem como administradores os mesmos sócios gerentes daquela; a referida venda foi efetuada apenas “no papel”, pois, nessa data, o veículo estava, sempre esteve e continua a estar na posse da aqui Ré; a Autora nunca esteve na posse deste veículo; após o divórcio, passou a ser conduzido apenas e exclusivamente pela aqui Ré; em 2010/2011, o ex-marido da Ré decidiu adquirir outro carro para seu uso exclusivo e adquiriu um veículo de marca ..., de matrícula ..-OM-..; depois de decretado o divórcio, a Ré passou a pagar as reparações mecânicas, as inspeções periódicas e o combustível, e não paga o IUC e o seguro, porque o seu ex-marido sempre fez questão de assumir tal pagamento; não estão preenchidos os requisitos previstos para aquisição por usucapião pela Autora; tal veículo sempre foi de uso familiar e é património do casal extinto; ainda que se considere que o mesmo é propriedade da Autora, é também certo, que todos os acionistas da Autora (ex-sócios) conduzem e usam na sua vida privada um veículo que é propriedade desta; sendo a Ré também acionista da Autora, tem exatamente os mesmos direitos dos restantes; a Autora não tem qualquer prejuízo pela privação de uso do veículo; o veículo foi adquirido em finais do ano 2005 pelo então casal Ré e ex-marido e administrador da Autora Sr. BB, embora tenha sido registada a propriedade do mesmo em nome da sociedade S..., Vinhos e Produtos Alimentares, Lda por motivos fiscais; apesar da falta de título, porque a Ré desde 2005, diária e ininterruptamente conduz o citado veículo em deslocações de carácter familiar e sempre com a convicção de que este veículo pertence ao acervo comum do casal, e sempre o fez de boa-fé, com o conhecimento da Autora, sem oposição desta e à vista de toda a gente; ainda que na qualidade de cônjuge do casal extinto, a Ré adquiriu o direito de propriedade sobre o veículo por usucapião».
A Autora replicou, pugnando pela «improcedência da reconvenção».
           
Em sede de saneamento, na data de 12/10/2021, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
“Da admissibilidade do pedido reconvencional:
A reconvenção é um instrumento jurídico que permite, mediante determinado circunstancialismo, reunir, no mesmo processo, pretensões substanciais contrapostas.
Trata-se de uma acção cruzada na qual o réu deduz contra o autor uma pretensão de efeitos contrários ou com objecto diferenciado.
A sua admissibilidade está, porém, sujeita a determinados condicionalismos, de carácter substancial e processual.
Quanto aos requisitos substantivos, impõe a lei a existência de uma conexão substancial entre a pretensão do autor e aquela que é deduzida em reconvenção.
Assim, nos termos do artigo 266.º n.º 2 do Código de Processo Civil (CPC), constituem pressupostos substanciais da reconvenção a verificação de uma das seguintes hipóteses:
a) o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa;
b) o réu propõe-se obter a compensação ou tornar efectivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;
c) o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.
São ainda requisitos adjectivos os seguintes:
1. O valor da causa exceda a alçada do tribunal;
2. Ao pedido reconvencional corresponda a mesma forma de processo;
3. A competência absoluta do tribunal (internacional, em razão da matéria e em razão da hierarquia).
Ora, no caso dos autos pretende a autora, entre o mais, que se reconheça o seu direito de propriedade sobre um veículo e a condenação da ré a restituí-lo. Por sua vez a ré pretende seja reconhecido o seu direito de propriedade ou, melhor dizendo, do extinto casal, sobre o mesmo veículo.
Daqui resulta que a ré pretende obter em seu benefício o mesmo efeito jurídico que pretende a autora, pelo que se enquadra a situação na previsão da alínea c) do n.º 2 do artigo 266.º do CPC.
Sucede que, quanto aos pressupostos adjectivos da admissibilidade da reconvenção, importa aqui apreciar da legitimidade da ré para, a solo, pedir que ser declare a propriedade do citado veículo a favor do extinto casal constituído pela aqui ré e BB. Tratando-se de uma comunhão conjugal de extinto casal, sempre deveriam estar em juízo ambos os cônjuges ou, pelo menos, o cabeça-de-casal do património comum a partilhar, não tendo o respectivo chamamento sido suscitado por qualquer das partes (nem também tal chamamento seria de realizar, o que sempre se traduziria na prática de acto inútil, proibido pelo artigo 130.º do CPC, atento o teor da decisão de mérito que de seguida se proferirá e que sempre conduziria, também, à improcedência do pedido reconvencional, ainda que o mesmo viesse a ser admitido).
Pelo exposto, não se admite o pedido reconvencional formulado pela ré, por ilegitimidade activa, cfr. artigos 33.º, 576.º, 577.º e), 578.º e 1133.º n.º 2 do CPC e 2019.º do CC”.

Ainda em sede de saneamento e na mesma data, o Tribunal a quo entendeu que os autos reuniam todos os elementos que permitiam proferir decisão de mérito, pelo que proferiu saneador-sentença com o seguinte decisório:
“Em consequência do exposto e de harmonia com as normas legais supra citadas, decide-se julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência:
a) condenar a ré AA a restituir à autora A..., S.A. o veículo automóvel matrícula ..-BA-.., marca ..., bem como todos os seus documentos que com o mesmo lhe foram entregues;
b) absolver a ré AA do pedido indemnizatório formulado pela autora A..., S.A. pela privação do uso do veículo…”.
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1.2. Do Recurso da Ré e do Recurso Subordinado da Autora
Inconformada com as referidas decisões, a Ré interpôs recurso de apelação, pedindo que “decidindo-se pela procedência do presente recurso e, em consequência, revogando-se o douto despacho recorrido declarando-se nulo, e, em consequência, ser determinando-se a baixa do processo à primeira instância para que aí se dê cabal cumprimento ao princípio do contraditório e após se determine o prosseguimento dos autos, conforme doutos entendimentos de Direito”, e formulando as seguintes conclusões no final das respectivas alegações:
«1 – Vem o presente recurso interposto do douto despacho saneador/decisão proferido pelo Tribunal “a quo” a fls…, que não admitiu o pedido reconvencional formulado pela Ré com fundamento na ilegitimidade desta e decidiu a ação parcialmente procedente condenando a Ré a restituir à Autora o veículo automóvel de marca ..., matrícula ..-BA-.., bem como todos os documentos que com o mesmo lhe foram entregues.
2 - A Ré deduziu Pedido Reconvencional peticionando, nesta sede, que fosse anulado o registo de propriedade do veículo de matrícula ..-BA-.., marca ... a favor da Autora/Reconvinda e que fosse declarada a propriedade do citado veículo a favor do extinto casal constituído pela aqui Ré e BB.
3 – Tal Pedido Reconvencional não foi admitido por ilegitimidade ativa da Ré, com fundamento no disposto nos artigos 33º, 576º, 577º e), 578º e 1133º n.º 2 todos do CPC e 2019º do Código Civil.
4 – Entendeu o Tribunal “a quo” que tratando-se de uma comunhão conjugal de extinto casal, sempre deveriam estar em Juízo ambos os cônjuges ou, pelo menos o cabeça de casal do património comum a partilhar e o respetivo chamamento não foi suscitado por nenhuma das partes, nem seria de suscitar pois sempre seria um ato inútil, dado que, pelas razões que veio a aduzir, o pedido reconvencional sempre seria improcedente.
5 – Face ao disposto no art. 34º do CPC, ambos os cônjuges têm de estar em Juízo apenas quando esteja em causa a perda ou oneração de um bem comum.
6 – No Pedido Reconvencional formulado, a Ré, pelo contrário, pretende manter no acervo comum do ex-casal o veículo automóvel “sub judice”, não está em causa a alienação, perda ou oneração de qualquer bem do património comum; pelo que a Ré pode estar em Juízo “a solo”.
7- Seguindo o raciocínio do Tribunal “a quo”, sempre a decisão teria de ser pela ilegitimidade da Autora, porquanto propõe uma ação peticionando a condenação da Ré a entregar-lhe um veículo automóvel que, como resulta dos factos alegados em sede da própria Ação, da Contestação, da Reconvenção e da Resposta, desde 2005 foi conduzido indistintamente pelo casal e só depois do divórcio passou a ser conduzido exclusivamente pela Ré.
8 – É o próprio Tribunal “a quo” que refere expressamente “Tratando-se de uma comunhão conjugal de extinto casal…” e, sendo assim, face ao disposto no n.º 3 do art. 34º do CPC e ao abrigo do disposto na al. e) do art. 577º do mesmo diploma legal, por se tratar de uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, sempre teria que decidir pela ilegitimidade ativa da Autora.
9 – O Tribunal “a quo” decidiu pela ilegitimidade ativa da Ré, com o fundamento de que teriam de estar em Juízo ambos os cônjuges ou o cabeça-de-casal do património comum a partilhar, nos termos do disposto no art. 1133º n.º 2 do CPC (o cabeça de casal é o cônjuge mais velho); ora, não existem nos presentes autos quaisquer elementos que permitam ao Julgador “a quo” aferir a idade dos cônjuges e muito menos se a Ré é ou não a cabeça de casal desse património comum, pelo que sempre a decisão recorrida teria que especificar os fundamentos de facto que justificam a decisão de que a Ré não é a cabeça de casal do património comum do ex-casal, sob pena de nulidade nos termos do disposto na al.b) do n.º 1 do art. 615º do CPC., que desde já se reclama.
10 – A comunhão conjugal é um património de mão comum ou propriedade coletiva, que se distingue da compropriedade porque os direitos dos cônjuges sobre os bens que constituem o património comum não incidem sobre cada um dos bens, de “per si”, mas, antes, sobre todos os bens no seu conjunto, como um todo unitário.
11- Contudo, relativamente aos bens comuns, que constituem o acervo comum do casal, cada um dos cônjuges pode usar contra terceiros os meios de defesa da posse previstos na lei, quer para a defesa da própria posse, quer para a defesa da posse comum, como decorre do disposto no art. 1286º n.º 1 do Código Civil.
12 – Dispõe ainda o artigo 1291º do Código Civil “A usucapião por um compossuidor relativamente ao objeto da posse comum aproveita aos demais compossuidores”.
13 – Assim sendo, a Recorrente, na qualidade de ex-cônjuge e contitular e compossuidora do património comum do casal dissolvido pelo divórcio, sempre poderia reclamar a propriedade do veículo “sub judice” por usucapião, sem que, para tal, tenha de se apresentar em Juízo acompanhada ou com o consentimento do seu ex-marido; pelo que é parte legitima e, como tal, pode formular o Pedido Reconvencional como consta dos presentes autos.
14 - Não tendo admitido a Reconvenção, o douto despacho saneador/sentença viola o disposto nos artigos 30º, 34º n.º 1 “a contrario” e n.º 3, 615º n.º 1 al. b) todos do CPC e artigos 1286º n.º 1 e 1291º ambos do Código Civil.
15 – Decidiu o Tribunal “a quo” que a “autora beneficia quer da presunção do registo, quer da prova de uma posse titulada, de boa-fé e registada por mais de dez anos”, dado que pagou o citado veículo e é quem, ao longo de 11 anos (desde 2010) vem pagando o IUC, o seguro do veículo e assegurou todas as despesas inerentes como o gasóleo, mecânica, pneus, etc…
16 – A decisão recorrida alicerça-se em factos que nem a própria Autora alega na P.I., nem existe prova documental que os sustente; pois, nunca a Autora alega ou junta documento comprovativo do pagamento do veículo e muito menos do pagamento do IUC, seguro automóvel, gasóleo, pneus e mecânica (apenas junta documento comprovativo do pagamento do IUC e seguro automóvel referentes ao ano 2021).
17 – E, ao contrário do que se refere na douta decisão recorrida, tal não decorre de confissão da Ré, pois, esta, faz essa afirmação no art. 33º da Contestação, mas fá-lo dentro de um contexto que vem a descrever desde o art. 3º e prossegue até ao art. 71º da citada peça processual, com maior ênfase para o alegado no art. 9ºe 10ºdamesma;peloque, o Tribunal “a quo” não pode ignorar ou, pura e simplesmente, descontextualizar os factos alegados no citado artigo 33º e imprimir-lhe o valor de uma confissão que, assim, de uma forma isolada, a Ré não admite, nem corresponde à sua vontade real que na leitura contextualizada da Contestação no seu todo.
18 – Por outro lado, toda a matéria factual alegada pela Autora em sede da Petição Inicial, à exceção da vertida nos artigos 1º, 7º e 10º, foi impugnada pela Ré em sede de Contestação; pelo que, é matéria de facto controvertida sobre a qual deveria ter sido produzida a prova apresentada quer pela Ré, quer pela Autora.
19 - A Ré alega todos os factos que poderão, depois de produzida a respetiva prova, ilidir a presunção do registo de propriedade do veículo nos termos do art. 7º do Código de Registo Predial, e que podem comprovar que a Ré e, durante a pendência do casamento, também o seu ex-marido, desde 2005 têm a posse do veículo, as circunstâncias em que o citado veículo foi adquirido e o objetivo da sua aquisição, quem o conduz desde 2005 e a que título e quem, e em que circunstâncias, pagou até hoje as despesas inerentes ao mesmo.
20 - A Ré, em pleno exercício do contraditório, nos termos e para os efeitos do art. 458º do CPC alega factos suscetíveis de consubstanciar o corpus e o animus da posse do referido veículo, nomeadamente que foi a Ré e o ex-marido que decidiram adquirir o veículo em questão e que optaram pela aquisição daquele concreto modelo e marca (escolheram-no no stand), que desde o início (2005) o veículo foi conduzido pela Ré e seu ex-marido como se tratasse de um veículo próprio do casal, de forma pública, pacífica e sem qualquer oposição, nomeadamente da Autora. Mais alega e junta documentos da aquisição do veículo, dos quais não resulta claro de que modo e em que condições foi outorgado o contrato verbal de compra e venda com a aqui Autora.
21 - A Ré apresentou prova testemunhal, bem como demais prova documental, requereu que se fizesse diligências junto do Banco 1..., SA para esclarecer em que condições foi outorgado o contrato de compra e venda verbal com a Autora. Provas que a Ré pretendia ver produzidas em sede de audiência de julgamento a fim de provar a tese alegada – aquisição do veículo em causa por usucapião pelo ex-casal constituído pela Ré e o seu ex-marido.
22 - O que não foi permitido pelo Julgador “a quo” que, sem mais, dispensou a audiência prévia e sem que o estado do processo possibilitasse tal decisão, proferiu o despacho saneador/sentença ora recorrido.
23 - Não consta dos autos qualquer documento que comprove que foi a Autora que pagou o referido veículo automóvel, nem a Autora/Recorrida o alega; pelo que a aquisição do veículo pela Autora/recorrida, quem efetuou o seu pagamento ou em que circunstâncias o adquiriu, é matéria controvertida, face os documentos juntos aos autos, tanto mais que a aquisição do veículo alegada pela Autora na Petição Inicial é matéria impugnada pela Ré em sede de contestação.
24 – Também não há qualquer documento comprovativo do pagamento pela Autora do IUC desde o ano 2005 até 2019 inclusive, nem qualquer documento que comprove o pagamento do seguro pela Autora desde 2005 até 2020, como não há qualquer documento que comprove o pagamento pela Autora de qualquer outra despesa inerente ao veículo; pelo que, a conclusão inserta na douta decisão ora recorrida de que foi a Autora que pagou o veículo, bem como o IUC, o seguro e todas as despesas inerentes ao mesmo, estas durante 11 anos, não tem qualquer sustentabilidade nos autos e, tendo sido matéria impugnada pela Ré em sede de Contestação; sempre será matéria controvertida, sobre a qual deveria ter sido produzida a prova testemunhal apresentada quer pela Autora, quer pela Ré.
25 - O Julgador “a quo” fundamenta a sua decisão com matéria factual controvertida; o que, no modesto entendimento da aqui Recorrente, desvirtua e extravasa por completo o ónus de alegação consagrado nos artigos 552º, 569º e 583 todos do CPC.
26 - Com efeito, com a prolação do douto despacho recorrido, o Tribunal “a quo” impediu a Ré de fazer prova, como pretendia, de forma a ilidir a presunção do registo nos termos do disposto no art. 7º do Código de Registo Predial, como lhe incumbia.
27 – Na douta decisão recorrida o Julgador “a quo” viola de forma grosseira e manifesta os mais elementares princípios de direito como o da gestão processual e o da adequação formal que impõem ao juiz o dever de assegurar um processo equitativo orientado pelo critério da proporcionalidade em relação à complexidade da causa.
28 - Conforme entendimentos maioritários da doutrina e jurisprudência, o dever de gestão processual consagrado no artigo 547º do CPC deve ser especialmente ponderado aquando da realização da audiência prévia, ou, não se realizando esta, nos termos previstos nos arts. 597º, al. d) do mesmo diploma legal; o que, no caso “sub judice” não aconteceu, tendo sido as partes surpreendidas com uma decisão prematura, com a qual não contavam e que, no entendimento da Recorrente, é proibida nos termos do art. 3º, n.º 3 do CPC e viola o art. 591º, nº 1, al. b) do CPC.
29 - Assim, a dispensa de audiência prévia e extinção, sem mais, dos presentes autos, afiguram-se abrutas e desproporcionais e, nessa medida, violam o próprio basilar de direito de gestão processual consagrado nos arts. 6.º, 547º e 597º, todos do CPC.
30 - E nem se diga que a matéria controvertida e alegada pelas partes havia já sido debatida suficientemente nos articulados, para efeitos do disposto nos preceitos legais violados conforme exposto supra, porquanto a violação do princípio do contraditório, constitui a omissão de um ato prescrito na lei capaz de influir no exame e na decisão da causa nos termos do disposto no n.º 1 do art. 195º do CPC.
31 - Por tudo o supra exposto, mal andou o Tribunal “a quo” ao prescindir da audiência prévia e ao decidir sem que antes permitisse às partes a produção de prova, nomeadamente para permitir a audição das testemunhas arrolada quer pela Recorrente, quer pela Recorrida, pelo que deveria o douto Tribunal “a quo” ter suscitado essas dúvidas, ao invés de dar como assentes factos sobre os quais recaem dúvidas e não há qualquer sustentabilidade nos autos.
32 - O que consubstancia na violação do direito fundamental da Recorrente ao acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva previsto no artigo 20º da CRP e faz padecer a decisão recorrida do vício de falta de fundamentação, o que configura uma nulidade nos termos da al. b), do n.º 1 do art. 615.º ex vi art. 613.º, n.º 3, ambos do CPC.
33 – Nesse sentido, o direito à prova é tomado como um direito fundamental, conferindo às partes, não só o acesso aos tribunais e a tutela jurisdicional efetiva, como também a faculdade de apresentação de prova em juízo, pois que o direito à prova é um direito decorrente do direito de ação, bem como o direito de cada uma das partes oferecer as suas provas, controlar a parte contrária e discutir dentro do processo sobre o valor atribuído e o resultado concreto das mesmas.
34 - Foi violado o disposto nos artigos 30º, 34º n.1 “a contrario e nº 3, 615º n.º 1 al. b), todos do CPC e artigos 1286º e 1291 ambos do Código Civil e artigos 3º n.º 3, 6º, 547º, 597 al. d), 591 nº 1 , 195º n.º 1 e artigos 615º n.º 1 al. b) ex vi art. 613º n.º 3, todos do CPC e art. 20º da Constituição da República Portuguesa».
A Autora contra-alegou, pugnando pela “improcedência do recurso apresentado pela Ré”, e inconformada com o ponto b) do decisório constante do saneador-sentença, instaurou recurso subordinado, pedindo que seja “dado provimento ao presente recurso subordinado, apresentado pela Autora, substituindo-se a sentença proferida por acórdão que julgue a ação totalmente procedente, totalmente provada, com as legais consequências”, formulando as seguintes conclusões no final das respectivas alegações quanto ao recurso subordinado:
«2- Por outro lado, deve o recurso subordinado apresentado pela recorrida A..., S.A., deve ser julgado procedente;
3- Deve o tribunal condenar a Ré/recorrente a pagar à Autora/recorrida a indemnização peticionada, calculada desde a data limite para entrega do veículo (15.01.2021), que lhe foi comunicada via carta registada, até à efetiva entrega do mesmo, pela privação de uso do veículo.
4- Ficou provado que a Autora era a proprietária do veículo automóvel, e que a recorrente foi interpelada para proceder à entrega do mesmo;
5- A recorrida recusou entregar o veículo automóvel apesar de interpelada para tal;
6- A privação do uso de um bem é suscetível de constituir, por si, um dano patrimonial, visto que se traduz na lesão do direito real de propriedade correspondente, assente na exclusão de uma das faculdades que, de acordo com o preceituado no artigo 1305º do Código Civil, é lícito ao proprietário gozar.
7- E o dano é ressarcível atenta a indisponibilidade do bem, qualquer que fosse a atividade a que o veículo estava afeto e o mesmo não se anula pela utilização de um outro veículo, o qual apenas proporciona a utilidade inerente à deslocação que, nele, é correspondentemente efetuada.
8- A partir da data limite que lhe foi concedida para entregar o veículo, 15.01.2021, a recorrente sabia e tinha plena consciência, que estava a impedir o uso pela Autora do veículo, impedindo a utilização pelos seus colaboradores e mesmo assim recusou entregar o mesmo.
9- A recorrente causou prejuízos à Autora inerentes a privação do uso do veículo.
10- A mera privação do uso de um bem pelo seu proprietário, ainda que desacompanhada de qualquer prejuízo patrimonial concreto, constitui um dano juridicamente ressarcível na medida em que implica a substração ao lesado de uma parte das faculdades que o direito de propriedade lhe confere, designadamente a faculdade de gozar o bem.
11- Assim, andou mal o tribunal “a quo” ao decidir como decidiu, quanto à privação de uso do veículo, devendo a sentença proferida ser alterada, e condenando a Ré/recorrente no pagamento de uma indemnização pela privação de uso do veículo».
A Ré apresentou contra-alegações quanto ao recurso subordinado, pugnando pela sua improcedência.
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Através de despacho proferido em 09/03/2022, o Tribunal a quo decidiu que “Atento o exposto, nos termos do artigo 642.º n.º 2 do CPC e, não sendo possível o desentranhamento integral da peça processual porque a mesma inclui, no mesmo articulado, a resposta ao recurso da ré e a interposição de recurso subordinado, tem-se como não escrita a resposta ao recurso interposto pela ré”.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
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2. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR

Por força do disposto nos arts. 635º/2 e 4 e 639º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas (as conclusões limitam a esfera de actuação do Tribunal), a não ser que se tratem de matérias sejam de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, ou que sejam relativas à qualificação jurídica dos factos (cfr. art. 608º/2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, nº2, in fine, e 5º/3, todos do C.P.Civil de 2013).
Mas o objecto de recurso é também delimitado pela circunstância do Tribunal ad quem não poder conhecer de questões novas (isto é, questão que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismo destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis”[1] (pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida[2]).

Neste “quadro legal” e atentas as conclusões do recurso de apelação interposto pela Ré e as conclusões do recurso subordinado interposto pela Autora são quatro as questões a apreciar por este Tribunal ad quem:

1) Se a 1ªdecisão recorrida (despacho de inadmissibilidade do pedido reconvencional) e/ou a 2ªdecisão recorrida (saneador-sentença) padecem da nulidade de falta de fundamentação;
2) Se a Ré carece, ou não, de legitimidade activa para deduzir o pedido reconvencional;
3) Se o Tribunal a quo, em sede de despacho saneador, podia, em conformidade legal, ter decidido do mérito da causa;
4) E se assiste à Autora o direito a receber da Ré uma indemnização pela privação de uso do veículo (recurso subordinado).
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3. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

No saneador-sentença ora impugnado, o Tribunal a quo considerou como provados os seguintes factos:

1. Encontra-se registada, pela ap. n.º ...94 de 08/02/2006, a aquisição do veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de marca ..., com matrícula ..-BA-.., pelo Banco 1..., SA à B..., Lda. – cfr. certidão de registo automóvel junta pela ré como documento ... com o requerimento com a ref.ª ...08, e cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido.
2. Nesse mesmo dia 08/02/2006 o Banco 1..., SA celebrou um contrato de locação financeira com a empresa “S..., Vinhos e Produtos Alimentares, Lda” cujo objecto é o referido veículo dos autos – cfr. certidão de registo automóvel junta pela ré como documento ... com o requerimento com a ref.ª ...08, e cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido
3. O citado contrato de locação financeira teve início a 25/12/2005 e termo a 25/12/2009 – cfr. certidão de registo automóvel junta pela ré como documento ... com o requerimento com a ref.ª ...08, e cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido.
4. As rendas devidas na pendência do citado contrato foram liquidadas pela sociedade comercial “S..., Vinhos e Produtos Alimentares, Lda” – cfr. confissão da autora no requerimento com a ref.ª ...90.
5. Encontra-se registada, pela ap. nº. ...94, de 19/02/2010, a aquisição pela autora do veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de marca ..., com matrícula ..-BA-.. – cfr. certidão de registo automóvel junta pela autora e cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido.
6. Foi sempre a sociedade comercial, primeiro a S..., Vinhos e Produtos Alimentares, Lda e a partir de 2010 a autora, quem pagou o IUC e o seguro do veículo, enquanto proprietária do mesmo, como assumia o pagamento de todas as despesas inerentes (gasóleo, mecânica, pneus, etc..), sendo que estas últimas pelo menos até ao decretamento do divórcio entre a ré e BB, gerente da autora - cfr. confissão da autora na contestação.
7. A ré utilizava o referido veículo nas suas deslocações e da sua família. – cfr. acordo das partes nos articulados.
8. A autora enviou carta à ré em 24/12/2020, interpelando-a para que procedesse à entrega do mencionado veículo, tendo-lhe concedido um prazo para entrega até ao dia 15 de janeiro de 2021 – cfr. documento n.º ... junto com a petição inicial, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido.
No saneador-sentença ora impugnado, o Tribunal a quo considerou nenhum facto com relevo para a boa decisão da causa ficou por demonstrar.
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4. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Questão Prévia

Estatui o art 617º do C.P.Civil de 2013 (que é aplicável aos despachos ex vi do nº3 do art. 613º/3 do mesmo diploma legal):

“1. Se a questão da nulidade da sentença ou da sua reforma for suscitada no âmbito de recurso dela interposto, compete ao juiz apreciá-la no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso, não cabendo recurso da decisão de indeferimento…
5. Omitindo o juiz o despacho previsto no nº1, pode o relator, se o entender indispensável, mandar baixar o processo para que seja proferido; se não puder ser apreciado o objeto do recurso e houver que conhecer da questão da nulidade ou da reforma, compete ao juiz, após a baixa dos autos, apreciar as nulidades invocadas ou o pedido de reforma formulado, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o previsto no nº6”.
No âmbito do presente recurso, a Ré/Recorrente arguiu, expressamente, uma concreta nulidade da 1ªdecisão recorrida (inadmissibilidade da reconvenção) porque «não existem nos presentes autos quaisquer elementos que permitam ao Julgador “a quo” aferir a idade dos cônjuges e muito menos se a Ré é ou não a cabeça de casal desse património comum, pelo que sempre a decisão recorrida teria que especificar os fundamentos de facto que justificam a decisão de que a Ré não é a cabeça de casal do património comum do ex-casal» e uma concreta nulidade da 2ªdecisão recorrida (saneador-sentença) porque «mal andou o Tribunal “a quo” ao prescindir da audiência prévia e ao decidir sem que antes permitisse às partes a produção de prova, nomeadamente para permitir a audição das testemunhas arrolada quer pela Recorrente, quer pela Recorrida, pelo que deveria o douto Tribunal “a quo” ter suscitado essas dúvidas, ao invés de dar como assentes factos sobre os quais recaem dúvidas e não há qualquer sustentabilidade nos autos, o que consubstancia na violação do direito fundamental da Recorrente ao acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva previsto no artigo 20º da CRP e faz padecer a decisão recorrida do vício de falta de fundamentação» (cfr. conclusões 9ª, 32ª e 33ª).
No despacho em que admitiu o recurso, o Tribunal a quo omitiu, em absoluto, a apreciação das referidas nulidades, tal como impõe expressamente o nº1 do art. 617º.
Porém, ao abrigo do disposto na 1ªparte do nº1 do art. 617º, este Tribunal ad quem entende não ser indispensável a baixa do processo, pelo que se passará a conhecer do objecto do recurso.
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4.2. Das Nulidades do Despacho Recorrido e da Sentença Recorrida
Importa ter presente que as nulidades da decisão (sentença, ou despacho) constituem vícios intrínsecos da própria, deficiências da respectiva estrutura, o que não é confundível com o erro de julgamento, ou sequer com um alegado erro na forma de processo.
Como se explica no Ac. desta RG de 17/12/2018[3], “Os vícios determinativos de nulidade da sentença encontram-se taxativamente enunciados no referido art. 615º, do CPC, e reportam-se à estrutura ou aos limites da sentença, tratando-se de defeitos de atividade ou de construção da própria sentença, ou seja, a vícios formais da sentença ou relativos à extensão do poder jurisdicional por referência ao caso submetido ao tribunal.Respeitam a vícios da estrutura da sentença os fundamentos enunciados nas alíneas b) - falta de fundamentação - e c) - oposição entre os fundamentos e a decisão -, e respeitam a vícios atinentes aos limites da sentença, os enunciados nas alíneas d) - omissão ou excesso de pronúncia - e e) - pronúncia ultra petitum. Trata-se de vícios que «afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adoptado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)» (Abílio Neto,… Diferentemente desses vícios, são os erros de julgamento (error in iudicando), os quais contendem com erros ocorridos ao nível do julgamento da matéria de facto ou ao nível da decisão de mérito proferida na sentença/decisão recorrida, decorrentes de uma distorção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error iuris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa. Nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto, sendo que esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença (vícios formais), sequer do poder à sombra do qual a sentença é proferida, mas ao mérito da relação material controvertida nela apreciada, não a inquinam de invalidade, mas de error in iudicando, atacáveis em via de recurso (Ac. STJ. 08/03/2001…”.
Prescreve o art. 615º do C.P.Civil de 2013 (relativamente à sentença mas que também é aplicável aos despachos ex vi do nº3 do art. 613º/3 do mesmo diploma legal):“1 - É nula a sentença quando:… b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;…”.
             
Esta causa de nulidade está directamente conexionada com a obrigação de fundamentação especificamente imposta no nº3 do art. 607º (“Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final”) e com a obrigação geral de fundamentação imposta no nº1 do art. 154º (“As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”), ambos do C.P.Civil de 2013.
A necessidade de fundamentação das decisões judiciais constitui mesmo uma condição da sua própria legitimação (estatui o art. 205º/1 da C.R.Portuguesa que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”) e da verificação de um processo equitativo (exigência esta que decorre, no plano do direito fundamental internacional, do disposto no art. 6º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem das Liberdades Fundamentais, e no art. 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e, a nível constitucional, do estipulado no art. 20º/4 da C.R.Portuguesa).
           
Explicava Alberto dos Reis[4] que “A exigência de motivação é perfeitamente compreensível. Importa que a parte vencida conheça as razões por que o foi, para que possa atacá-las no recurso que interpuser. Mesmo no caso de não ser admissível recurso da decisão o tribunal tem de justificá-la, pela razão simples de que a decisão vale, sob o ponto de vista doutrinal, o que valerem os seus fundamentos. Claro que a força obrigatória da sentença ou despacho está na decisão; mas mal vai a força quando se não apoia na justiça e os fundamentos destinam-se precisamente a convencer de que decisão é conforme à justiça. A função própria do juiz é interpretar a lei e aplicá-la aos factos em causa; por isso, deixa de cumprir o dever funcional o juiz que se limita a decidir, sem dizer como interpretou e aplicou a lei ao caso concreto. A decisão é um resultado, é a conclusão dum raciocínio; não se compreende que se enuncie unicamente o resultado ou a conclusão, omitindo-se as premissas de que ela emerge”.
           
Esta causa de nulidade da sentença, mas com igual cabimento quanto aos despachos, respeita apenas à falta absoluta de fundamentação, como tem sido unanimemente defendido pela Doutrina. Entre outros:
 - explicam A. Varela, M. Bezerra e S. Nora, Manual de Processo Civil[5] que “Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente e incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”;
- ensinava Alberto os Reis[6] que “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade”;
- referia Rodrigues Bastos[7] que “a falta de motivação a que alude a alínea b) do n.º 1 é a total omissão dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito em que assenta a decisão; uma especificação dessa matéria apenas incompleta ou deficiente não afecta o valor legal da sentença”
- afirma Teixeira de Sousa[8] que “esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciaiso dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo…  e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão… a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível”;
- e concretiza Tomé Gomes[9] que “a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica adoptada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível de um juízo de mérito negativo. A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão”.
A nível jurisprudencial também, desde há muito, que os tribunais superiores têm considerado, de forma unânime, que esta nulidade apenas se verifica quando haja falta absoluta de fundamentos, e não quando a fundamentação se mostra deficiente, errada ou incompleta: entre outros, refere-se o Ac. do STJ de 15/05/2019[10] (“Para que se verifique a nulidade de falta de fundamentação prescrita no art. 615, nº 1, al, b), do CPC, não basta que a justificação seja deficiente, incompleta ou não convincente. É preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”), o Ac. do STJ de 02/03/2021[11] (“Só a absoluta falta de fundamentação - e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação - integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil”) e o Ac. desta RG de 17/11/2004[12] (no qual se refere “O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), repetidamente aconselha que: a extensão da obrigação de motivação pode variar consoante a natureza da decisão e deve analisar-se à luz das circunstâncias do caso concreto; a motivação não deve revestir um carácter exageradamente lapidar, nem estar por completo ausente (cf. Vincent e Guinchard, Procédure Civile, Dalloz, §1232, e arestos aí citados). Mostra-se ainda útil esclarecer, a este propósito, que a exegese do disposto no art.º 668º nº1 al. b) C.P.Civ., de há muito vem entendendo que a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso… Só a ausência de qualquer fundamentação é susceptível de conduzir à nulidade da decisão. Ao aludir-se a “ausência de qualquer fundamentação” quer referir-se a falta absoluta de fundamentação, a qual porém pode reportar-se seja apenas aos fundamentos de facto, seja apenas aos fundamentos de direito”).
Em resumo: uma situação é a sentença (ou o despacho), não estar motivada ou fundamentada e outra é essa motivação ou fundamentação ser deficiente, incompleta, errada e/ou não convincente, sendo que a primeira configura a causa de nulidade prevista na alínea b) do referido art. 615º/1 e a segunda é (“apenas”) configura uma causa de recurso por erro de julgamento, de facto ou de direito (não produzindo qualquer nulidade da sentença ou do despacho, somente “enfraquecendo” o seu valor doutrinal e sujeitando-a, consequentemente, ao risco de ser revogada ou modificada em sede recurso). E podemos deixar assente ser esta a única interpretação legalmente admissível do normativo em causa.
Tal interpretação tem, aliás, inteira aplicação aos despachos: como se decidiu no Ac. desta RG de 21/05/2015[13], “É nulo um despacho que omite por completo a fundamentação em que se baseia, limitando-se a deferir o requerido”.
Em sede de recurso, a Ré/Recorrente defende que, quer a 1ªdecisão recorrida (inadmissibilidade do pedido reconvencional), quer a 2ªdecisão recorrida (saneador-sentença), padecem da nulidade prevista na alínea b) do referido art. 615º/1 porque, respectivamente, «não existem nos presentes autos quaisquer elementos que permitam ao Julgador “a quo” aferir a idade dos cônjuges e muito menos se a Ré é ou não a cabeça de casal desse património comum, pelo que sempre a decisão recorrida teria que especificar os fundamentos de facto que justificam a decisão de que a Ré não é a cabeça de casal do património comum do ex-casal» e «mal andou o Tribunal “a quo” ao prescindir da audiência prévia e ao decidir sem que antes permitisse às partes a produção de prova, nomeadamente para permitir a audição das testemunhas arrolada quer pela Recorrente, quer pela Recorrida, pelo que deveria o douto Tribunal “a quo” ter suscitado essas dúvidas, ao invés de dar como assentes factos sobre os quais recaem dúvidas e não há qualquer sustentabilidade nos autos, o que consubstancia na violação do direito fundamental da Recorrente ao acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva previsto no artigo 20º da CRP e faz padecer a decisão recorrida do vício de falta de fundamentação» (cfr. conclusões 9ª, 32ª e 33ª).
Importa começar por frisar que, atento o disposto no nº4 do mesmo art. 615º (“As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades”), dúvidas não existem que, cabendo recurso do despacho e da sentença ora impugnados, tal nulidade devia e tinha que ser invocada em sede de recurso. 
No que concerne ao despacho que não admitiu o pedido reconvencional, tal arguição mostra-se absolutamente infundada.
Com efeito, como a Ré bem sabe e resulta da sua mera leitura, em nenhum momento desta decisão o Tribunal a quo apreciou e/ou decidiu, em concreto, que aquela não era cabeça-de-casal, nem o podia fazer uma vez que a própria jamais alegou deter essa qualidade, pelo menos no âmbito da dedução do pedido reconvencional (não a invocou em sede de contestação, tal como continuou a não invocar no presente recurso, ainda que a alegação nesta sede fosse intempestiva), donde resulta o Tribunal a quo não tinha que fundamentar (nem de facto nem de direito) uma decisão que efectivamente não tomou. A decisão em causa fundamenta-se em «tratando-se de uma comunhão conjugal de extinto casal, sempre deveriam estar em juízo ambos os cônjuges ou, pelo menos, o cabeça-de-casal do património comum a partilhar», sendo que a referência ao cabeça-de-casal é apenas no âmbito da fundamentação da falta de legitimidade, e não uma apreciação sobre a existência ou não dessa qualidade quanto à Ré porque nem sequer tal foi alegado.
Logo, mostra-se completamente destituída de sentido a conclusão produzida em sede de recurso de que «teria que especificar os fundamentos de facto que justificam a decisão de que a Ré não é a cabeça de casal».
Nestas circunstâncias, relativamente à 1ªdecisão recorrida, a argumentação produzida pela Ré não consubstancia o vício de falta de fundamentação previsto na alínea b) do nº1 do art. 615º.
No que concerne ao saneador-sentença, a arguição também se revela absolutamente infundada e até “roça” a litigância de má fé.
Na verdade, através da mera análise desta decisão, é de uma evidência extrema que a mesma contém um elenco dos factos que o Tribunal a quo considerou provados, contém a indicação da inexistência de factos não provados, contém a motivação dos factos provados, e contém um vasto enquadramento jurídico, com a expressa aplicação das normas jurídicas aos factos provados, logo jamais se pode concluir no sentido de uma ausência absoluta de falta de fundamentação (de facto ou de direito).
Aliás, a argumentação em que a Ré baseou a dedução da nulidade («não devia ter decidido sem produção de prova e não devia ter dado como assentes certos factos») comprova, por si só, que a mesma discorda do entendimento sufragado pelo Tribunal a quo quanto a já estarem reunidos todos os elementos necessários à decisão do mérito da causa, sem necessidade de mais produção de prova, entendimento que pode estar errado, podendo até consubstanciar um erro de julgamento, de facto e/ou de direito, mas que não configura uma ausência total de fundamentação.
Nestas circunstâncias, também relativamente à 2ªdecisão recorrida, inexiste o vício de falta de fundamentação previsto na alínea b) do nº1 do art. 615º.
Por conseguinte e sem necessidade de outras considerações, a resposta à presente questão, que no âmbito do recurso incumbe a este Tribunal ad quem apreciar, é necessariamente no sentido de que quer o despacho recorrido quer o saneador-sentença recorrido não padecem da causa de nulidade invocada e, por via disso, o recurso tem de improceder quanto a esta questão.
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4.3. Da (I)Legitimidade Activa da Ré para Deduzir o Pedido Reconvencional
          
Importa, antes demais, fazer o enquadramento jurídico da reconvenção.
É entendimento generalizado entre os processualistas que na reconvenção há um pedido autónomo formulado pelo réu contra o autor, tratando-se de uma espécie de contra-acção, de tal forma que passa a haver no processo um cruzamento de acções. Nas palavras do Antunes Varela[14], na reconvenção «há uma contrapretensão do réu, há um verdadeiro contra-ataque desferido pelo reconvinte contra o reconvindo. Passa assim a haver uma nova acção dentro do mesmo processo. O pedido reconvencional é autónomo, na medida em que transcende a simples improcedência da pretensão do autor e os corolários dela decorrentes».
A reconvenção identifica-se, enquanto acção, através da providência solicitada e, principalmente, através do direito a ser tutelado através desse meio, sendo certo que esse direito enquanto objecto da reconvenção (acção), individualiza-se através do seu próprio conteúdo e objecto (pedido) e ainda através do acto ou facto jurídico que se pretende ter-lhe dado origem (causa de pedir).
A reconvenção configura, assim, um desvio ao princípio da estabilidade da instância, que determina que esta se deve manter imutável quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir após a citação do réu (cfr. art. 260º do C.P.Civil de 2013), tendo, por isso, um caracter excepcional. 
Mas a reconvenção não pode ser admitida indiscriminadamente: «Com a reconvenção deixa de haver uma só acção e passa a haver duas acções cruzadas no mesmo processo. E esse cruzamento de acções só pode ser admitido em certos termos, sob pena de se poder facilmente subverter toda a disciplina do processo»[15].
A sua admissibilidade da reconvenção está condicionada pela verificação de vários pressupostos, uns de carácter processual ou adjectivo e outros de natureza objectiva ou substantiva. Estes últimos exprimem a relação de conexão substantiva que deve existir entre o pedido principal e o pedido reconvencional (seguindo os ensinamentos de Alberto dos Reis[16], «traduzem-se na exigência duma certa conexão ou relação entre o objecto do pedido reconvencional e o objecto do pedido do autor»), enquanto os requisitos de natureza processual se destinam essencialmente a evitar a confusão processual que necessariamente se estabeleceria quando aos pedidos cruzados correspondessem diferentes espécies processuais.
           
Quanto aos requisitos processuais:
1) exige-se que o tribunal da acção tenha competência para conhecer do pedido reconvencional em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia (art. 93º/1 do C.P.Civil de 2013), não importando, no entanto, que a não tenha em razão do valor ou do território (basta a competência absoluta);
2) é necessário que ao pedido reconvencional corresponda a forma de processo aplicável ao pedido principal, ou seja, a mesma forma de processo, excepto se a diversidade resultar apenas do diferente valor dos pedidos ou o juiz a autorizar (art. 266º/3 do C.P.Civil de 2013);
3) e, ainda implicitamente contido no nº1 do art. 266º do C.P.Civil de 2013 (quando se afirma que “o réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor”), tem que se verificar identidade subjectiva das partes, embora em posições invertidas.
           
Quanto ao laço substantivo de conexão que deve existir entre o pedido principal e o pedido reconvencional, ou seja, quanto aos requisitos substantivos, a lei distingue taxativamente quatro tipos de situações (sendo certo que uma delas tem de se verificar para que a reconvenção seja admissível) que são as seguintes:
A) ligação através do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa, isto é, o pedido reconvencional deve brotar (emergir) do facto jurídico (real, concreto) que serve de fundamentação, seja à acção, seja à defesa (art. 266º/2a) do C.P.Civil de 2013);
B) efectivação de compensação, direito a benfeitorias ou despesas com a coisa cuja a entrega é pedida (art. 266º/2b) do C.P.Civil de 2013);
C) reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor;
D) ou reversão, a favor do réu, do efeito jurídico pretendido pelo autor, isto é, o réu pretende conseguir o mesmo efeito jurídico visado pelo autor, mas em seu benefício (art. 274º/2d) do C.P.Civil de 2013);
           
No que concerne à primeira situação, mantém toda a actualidade o entendimento sufragado no Ac. da RP de 16/09/91[17], quanto ao seu alcance, no qual se afirma: «a primeira parte da alínea a) do art. 274º/2 (o pedido do réu emergir do facto jurídico que serve de fundamento à acção), não oferece dificuldade no seu alcance... se a reconvenção, como acção que é, se identifica através do pedido e da causa de pedir, dúvidas não podem subsistir de que aquela alínea tem o sentido de a reconvenção ser admissível quando o pedido reconvencional tenha a mesma causa de pedir, a que serve de suporte ao pedido da acção... Parece-nos que nenhuma dificuldade se encontra no sentido a dar à segunda parte daquela alínea (o pedido do réu emergir do facto jurídico que serve de fundamento à defesa), quando se tenha que a expressão «defesa» se refere à «por impugnação», ou seja, «a defesa directa, aquela que ataca de frente o pedido, contradizendo os factos aduzidos pelo autor como constitutivos do seu direito seu direito, ou o efeito jurídico que deles pretende tirar o autor». Se é este o alcance da expressão «defesa», dúvidas não podem subsistir que a segunda parte da alínea a), tem o sentido de a reconvenção ser admissível quando o réu invoque, como meio de defesa, qualquer acto ou facto jurídico (causa de pedir) que a verificar-se, produza efeito útil defensivo, isto é, que tenha a virtualidade para reduzir, modificar ou extinguir a pedido do autor»[18].
           
Entendimento que foi reafirmado no recente Ac. desta RG de 20/10/2022[19]: “I. O pedido reconvencional emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção se existir identidade, total ou parcial, das causas de pedir da acção e da reconvenção. II. O pedido reconvencional emerge do facto jurídico que serve de fundamento à defesa quando faz surgir uma questão prejudicial em relação à causa principal, ou seja, quando produza «efeito útil defensivo», capaz de reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor”.
           
No caso em apreço, o Tribunal a quo considerou que “a ré pretende obter em seu benefício o mesmo efeito jurídico que pretende a autora, pelo que se enquadra a situação na previsão da alínea c) do n.º 2 do artigo 266.º do CPC” [a referência à alínea c) trata-se de um manifesto lapso de escrita, sendo óbvio e inequívoco que se pretendia referida a situação prevista na alínea d)].
           
Ora, embora alegue, na causa de pedir, para além do mais, ser titular do direito de propriedade sobre o veículo automóvel objecto da acção, é certo que a Autora não formulou concretamente qualquer pedido de reconhecimento desse direito, tendo efectivamente apenas formulado um pedido de devolução do veículo, e dos respectivos documentos, e um pedido de condenação numa quantia indemnizatória pela privação do uso do veículo. Porém, afigura-se-nos que o reconhecimento daquele direito de propriedade está necessariamente implícito contido naquela pretensão concretamente formulada de restituição/devolução, acrescendo que aquela pretensão indemnizatória também concretamente formulada é uma consequência do reconhecimento do direito e da pretensão de restituição. 
           
O pedido reconvencional concretamente formulado pela Ré consiste em «que seja anulado o registo de propriedade do veículo de matrícula ..-BA-.., marca ..., a favor da Autora» e em «que seja declarada a propriedade do citado veículo a favor do extinto casal constituído pela aqui Ré e BB», sendo certo que, embora formulado em primeiro lugar, a pretensão de anulação do registo é uma mera consequência da pretensão reconvencional de reconhecimento do direito de propriedade.
Deste modo, afigura-se-nos que existe coincidência entre o efeito jurídico pretendido pela Autora e o efeito jurídico pretendido pela Ré, estando verificado o requisito substantivo previsto na alínea d) do art. 266º/2 (tal como se concluiu no despacho recorrido).
           
Ainda que, assim não fosse, sempre estaria preenchido o requisito substantivo previsto na alínea a) do art. 266º/2: com efeito, tendo a Autora invocado, a título de causa de pedir, que é detentora do direito de propriedade sobre o veículo automóvel objecto da acção, e que, tendo exigido à Ré a sua devolução, esta recusa-se a entregá-lo, verifica-se que, em sede de contestação, a Ré nega aquele direito de propriedade da Autora e invoca que tal veículo integra o património comum do extinto casal formado entre si e o seu ex-marido porque foi adquirido para esse património através de usucapião, donde resulta inequivocamente que este «meio de defesa» produz efeito útil defensivo, porque pode ter a virtualidade de extinguir os pedidos da Autora.
           
Apesar de estar preenchido, pelo menos, um dos requisitos materiais de que depende a admissibilidade da reconvenção deduzida pela Ré, e de não terem sido colocadas dúvidas (e efectivamente não se colocam) quanto ao preenchimento dos requisitos processuais relativos à competência (em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia), à forma de processo aplicável (que é a mesma do pedido principal) e quanto à identidade subjectiva das partes, o Tribunal a quo considerou que “quanto aos pressupostos adjectivos da admissibilidade da reconvenção, importa aqui apreciar da legitimidade da ré para, a solo, pedir que ser declare a propriedade do citado veículo a favor do extinto casal constituído pela aqui ré e BB. Tratando-se de uma comunhão conjugal de extinto casal, sempre deveriam estar em juízo ambos os cônjuges ou, pelo menos, o cabeça-de-casal do património comum a partilhar, não tendo o respectivo chamamento sido suscitado por qualquer das partes”, ou seja, considerou que a Ré carecia de legitimidade activa (naturalmente se a reconvenção configura uma contra-acção, para além daqueles requisitos processuais e substantivos, também tem que “cumprir” os restantes pressupostos processuais que se aplicam a qualquer acção).

Em sede de recurso, a Ré/Recorrente defende, essencialmente, que (cfr. conclusões 2ª a 8ª e 10ª a 13ª):
- «face ao disposto no art. 34º do CPC, ambos os cônjuges têm de estar em Juízo apenas quando esteja em causa a perda ou oneração de um bem comum; no pedido reconvencional formulado, a Ré, pelo contrário, pretende manter no acervo comum do ex-casal o veículo automóvel “sub judice”, não está em causa a alienação, perda ou oneração de qualquer bem do património comum, pelo que a Ré pode estar em Juízo “a solo”»;
- «seguindo o raciocínio do Tribunal “a quo”, sempre a decisão teria de ser pela ilegitimidade da Autora, porquanto propõe uma ação peticionando a condenação da Ré a entregar-lhe um veículo automóvel que, como resulta dos factos alegados em sede da própria Ação, da Contestação, da Reconvenção e da Resposta, desde 2005 foi conduzido indistintamente pelo casal e só depois do divórcio passou a ser conduzido exclusivamente pela Ré; é o próprio Tribunal “a quo” que refere expressamente “Tratando-se de uma comunhão conjugal de extinto casal…” e, sendo assim, face ao disposto no n.º 3 do art. 34º do CPC… por se tratar de uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, sempre teria que decidir pela ilegitimidade ativa da Autora»;
- «a comunhão conjugal é um património de mão comum ou propriedade coletiva, que se distingue da compropriedade porque os direitos dos cônjuges sobre os bens que constituem o património comum não incidem sobre cada um dos bens, de “per si”, mas, antes, sobre todos os bens no seu conjunto, como um todo unitário; relativamente aos bens comuns, que constituem o acervo comum do casal, cada um dos cônjuges pode usar contra terceiros os meios de defesa da posse previstos na lei, quer para a defesa da própria posse, quer para a defesa da posse comum; a usucapião por um compossuidor relativamente ao objeto da posse comum aproveita aos demais compossuidores; a Recorrente, na qualidade de ex-cônjuge e contitular e compossuidora do património comum do casal dissolvido pelo divórcio, sempre poderia reclamar a propriedade do veículo “sub judice” por usucapião, sem que, para tal, tenha de se apresentar em Juízo acompanhada ou com o consentimento do seu ex-marido; pelo que é parte legitima e, como tal, pode formular o Pedido Reconvencional.
Portanto, a impugnação recursiva da 1ªdecisão recorrida (para além da nulidade arguida que, como supra se concluiu, improcede) baseia-se em três fundamentos distintos, importando analisar cada um deles em separado, embora antes se imponha fazer o enquadramento jurídico do pressuposto processual da legitimidade.
A nossa Lei define a legitimidade (como poder dirigir o processo) através da titularidade do interesse em litígio. Prescreve o nº1 do art. 30º do C.P.Civil de 2013: “O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer”.
Porém, como salienta Antunes Varela[20], «à legitimidade não satisfaz a existência de qualquer interesse, ainda que jurídico, na procedência ou improcedência da acção. Exige-se que as partes tenham interesse directo, seja em demandar ou em contradizer; não basta um interesse indirecto, reflexo ou derivado».
Neste sentido, dispõe o nº2 do referido art. 30º: “O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada na procedência da acção; o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha”.
Assim, a legitimidade não é uma qualidade pessoal das partes (como a capacidade), mas uma certa posição delas em face da relação material controvertida: “é o poder de dispor do processo - de o conduzir ou estipular no papel de parte”[21].
O objectivo essencial do pressuposto processual legitimidade é o de que a causa seja julgada perante os verdadeiros e principais interessados na relação jurídica, de modo a não voltar a repetir-se[22].
Isto significa, em geral, que apenas se consideram partes legítimas os titulares directos e imediatos da relação jurídica controvertida, ou seja, os sujeitos activos e passivos dessa relação.
Dando-se consagração legal à «tese» de Barbosa de Magalhães[23], o nº3 do referido art. 30º prescreve expressamente que “Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para efeito da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como ela é configurada pelo autor”[24].
Tenha-se, no entanto, em atenção que não revela para o efeito da determinação dos sujeitos da relação jurídica material controvertida o enquadramento jurídico proposto pelo autor para a factualidade que invocou como “causa petendi”. A relação material controvertida é desenhada pela factualidade inserida na petição inicial e não pela norma jurídica que, segundo o autor, lhe é aplicável. Doutra forma, haveria que concluir pela ilegitimidade “ad causem” do réu sempre que a petição inicial seja omissa sobre a regra de direito aplicável ou enfermasse de erro de direito relativamente ao enquadramento jurídico do facto do qual se pretende fazer proceder a pretensão material do autor.
E a propósito da distinção entre legitimidade processual e legitimidade substantiva, remete-se para o decidido no Ac. do STJ de 18/10/2018[25]: “I - A legitimidade processual, constituindo uma posição do autor e do réu em relação ao objecto do processo, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como o autor a desenhou. II - A legitimidade material, substantiva ou “ad actum” consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa”.
Como resulta do disposto no art. 33º/1 do C.P.Civil de 2013, a preterição de litisconsórcio necessário (que pode ter origem na lei, no negócio jurídico ou decorrer da própria natureza da relação jurídica controvertida) é geradora da excepção dilatória da ilegitimidade, de conhecimento oficioso.
Uma questão específica, e que tem suscitado dúvidas quanto à respectiva legitimidade processual, respeita aos casos da comunhão que se estabelece entre cônjuges após dissolução da sociedade conjugal e enquanto se não faz a partilha (isto, naturalmente, nos regimes de comunhão).
Porque se nos afigura constituir o entendimento mais correcto da referida questão, acolhemos e seguimos a fundamentação do Ac. da RP de 18/11/2021[26] e do Ac. do STJ de 26/04/2012[27].
           
Explica Guilherme de Oliveira[28] que “os bens comuns constituem uma massa patrimonial que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de um único direito sobre ela. Adere-se assim à doutrina da propriedade coletiva. O património coletivo é um património que pertence em comum a várias pessoas, mas sem se repartir entre elas por quotas ideias, como na propriedade. Enquanto, pois, esta é uma comunhão por quotas, aquela é uma comunhão sem quotas. Os vários titulares do património coletivo são sujeitos de um único direito, e de um direito uno, o qual não comporta divisão, mesmo ideal”.
Esta natureza de propriedade colectiva da comunhão conjugal, que se molda na antiga comunhão de tipo germânico, que a delimita nitidamente da comunhão de tipo romano (de tipo individualista), resulta de vários pontos do seu regime jurídico, sendo que o aspecto mais relevante desse regime é, notoriamente, o seguinte: antes de dissolvido o casamento, ou de se decretar a separação judicial de pessoas e bens entre os cônjuges, nenhum deles pode dispor da sua meação, nem lhes é permitido pedir a partilha dos bens que a compõem antes da dissolução do casamento[29].
Mas quando ocorre dissolução do vínculo conjugal surgem dúvidas (e divergências) sobre qual deve ser o regime que se aplica no período que medeia entre o momento após tal dissolução e o momento em que se realiza a efectiva partilha dos bens, sendo certo que a lei nada prevê quanto ao “regime de transição”.
Refere Eva Dias Costa[30] que “Nos regimes em que exista comunhão, os cônjuges são, regra geral, compossuidores pro indiviso dos bens que integram o património comum, à semelhança dos comproprietários e dos condóminos, e podem reclamar a proteção possessória caso sejam turbados, esbulhados, ou ameaçados em sua posse, contra terceiros ou mesmo seus consortes. De facto, o exercício da composse deve regular-se ou modelar-se pelos princípios que disciplinam a comunhão do direito correspondente e, quanto aos efeitos, parece deverem aplicar-se a cada compossuidor, individualmente considerado, as regras do instituto possessório, salvo quando a lei estabeleça um regime especial, como acontece em relação à defesa da posse e à usucapião”.
Podemos, portanto, afirmar que neste período está em causa uma forma de comunhão de direitos: embora a dissolução do casamento faça cessar as relações patrimoniais entre os cônjuges, como decorre expressamente do disposto no art. 1688º do C.Civil, é inequívoco que, até efectivação da partilha, continua a existir uma forma de comunhão de direitos.
E, se é certo que tal comunhão não se pode qualificar como um caso de compropriedade, foi o próprio legislador que, através do disposto no art. 1404º do C.Civil, determina que as regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos (sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles), ou seja, prevê-se aqui, de forma expressa, a aplicação dos normativos deste instituto (compropriedade) à comunhão de quaisquer outros direitos.
Deste modo, ao referido período de “transição” (entre a dissolução do casamento e a partilha dos bens comuns) mostram-se subsidiariamente aplicáveis as normas que regem o regime da compropriedade.
É exactamente este o ensinamento elucidativo de Henrique Mesquita[31]: “Como é sabido, a dissolução de um casamento em que existam bens comuns não faz cessar automaticamente a comunhão. Esta só termina com a partilha. Mas opera-se uma importante alteração no regime dos bens comuns: os direitos ou poderes dos ex-cônjuges sobre estes bens - que continuam a constituir uma propriedade colectiva (ou, como também se lhe chama, uma comunhão de mão comum) - devem aferir-se, não pelas normas que, no direito da família, regulam as relações patrimoniais entre marido e mulher, mas sim pelas normas do direito das coisas que disciplinam a comunhão de bens ou direitos. Nos termos do artigo 1404° do Código Civil, «as regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos(...)»” (o sublinhado é nosso).
É também neste sentido que vai a posição de Pires de Lima e Antunes Varela[32] quando, na anotação ao referido art. 1404º, referem que “Entre os casos de comunhão assumem especial relevo a contitularidade de direitos reais, a chamada comunhão de mão comum (Gemeinschaft zur gesaten Hand) ou propriedade coletiva (vide a nota 7 do artigo 1403º) e ainda a comunhão que se estabelece entre cônjuges, após dissolução da sociedade conjugal e enquanto se não faz a partilha, nos regimes de comunhão”.
Igualmente o STJ, no já citado aresto de 26/04/2012[33], se pronunciou no sentido da mesma posição: “face ao trânsito em julgado da sentença, na parte que decretou o divórcio, e por efeito deste, cessaram as relações patrimoniais entre os cônjuges (art. 1688.º do CC), o certo é que, até à partilha, se mantém a chamada comunhão de mão comum ou propriedade colectiva (contitularidade de direitos reais), desaparecida que foi a razão de ser do regime específico instituído para o património comum dos ex-cônjuges, com aplicação à mesma das regras da compropriedade (art. 1404.º do CC)”. Ainda neste sentido se pronunciou o Ac. da RC de 11/06/2016[34] (“Dito de outra forma: a comunhão dos bens que integravam o património conjugal, passa a constituir uma “comunhão de mão comum” ou “propriedade colectiva”, à qual se aplica, mutatis mutandis, o regime legal da compropriedade, de harmonia com o disposto no falado art. 1404º do C.Civil”).
Explica-se, de forma muito assertiva, no já citado Ac. da RP de 18/11/2021[35]: “(…) se por um lado, estamos perante uma forma de comunhão que ainda não se encontra extinta, por outro, sempre podemos «lançar mão» das regras da compropriedade perante o silêncio da lei e respeitando a sua subsidiariedade prevista na lei. Afigura-se-nos, assim, que o Apelante, a esta luz, tem legitimidade para intentar a acção de reivindicação do imóvel sem estar acompanhado da ex-mulher, e sem necessitar de uma acção de suprimento de consentimento para o fazer, até pelos contornos específicos do caso em apreço. Ademais, já não estaríamos na presença de um litisconsórcio necessário activo do artigo 33º do Código de Processo Civil mas sim de um litisconsórcio voluntário activo ao abrigo do artigo 32º n.º 2 do Código de Processo Civil visto que a lei permite «que o direito seja exercido por um só… basta que um deles intervenha para assegurar a legitimidade». Acresce que, o regime previsto no artigo 34º do Código de Processo Civil é aplicável aos cônjuges e enquanto vigorar a sociedade conjugal, não fazendo sentido a sua aplicação aos ex-cônjuges até porque não existe qualquer correspondência na letra da lei, não devendo o intérprete, considerar uma interpretação «que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso». Com efeito, a sentença que decreta o divórcio dissolve o vínculo conjugal e faz cessar as relações patrimoniais entre os cônjuges, e cada um dos ex-cônjuges passa a ter na sua esfera jurídica um direito indiviso correspondente à respectiva meação nos bens que o integram. (…) existem várias teorias quanto à natureza jurídica dessa comunhão, havendo posições distintas na doutrina, uma vez que a lei não regula as relações patrimoniais que se estabelecem entre os ex-cônjuges durante o período transitório que ocorre após a dissolução da sociedade conjugal e a partilha. Mas o facto é que em causa está uma forma de comunhão de direitos, não fazendo sentido a aplicação analógica das normas que regulam os efeitos do casamento quanto às pessoas e aos bens dos cônjuges constantes nos artigos 1671º e seguintes do Código Civil, uma vez que tais normas foram criadas para protecção da sociedade conjugal, que não existe no caso concreto(os sublinhados são nossos).
Tecidas estas necessárias considerações jurídicas, apreciemos os supra identificados fundamentos deste primeiro recurso aqui em causa.
           
Quanto ao primeiro fundamento invocado, não pode o mesmo merecer acolhimento: com efeito, por um lado, a Ré invoca uma norma jurídica (art. 34º do C.P.Civil de 2013) que é aplicável às acções que têm de ser propostas por ambos ou contra ambos os cônjuges, quando alegou expressamente, em vários artigos da contestação, que antes da propositura da presente acção se divorciou do seu ex-marido, administrador da Autora (foi nestes termos que, para além do mais, a Ré também desenhou a relação material controvertida pela factualidade inserida na contestação/reconvenção), donde resulta que tal normativo é inaplicável ao caso em apreço porque foi previamente extinta a relação conjugal; e, por outro lado, ainda que assim não fosse (o que só se admite por mera hipótese de raciocínio), ao contrário do alega (e até está em contradição com outras alegações que produziu em sede de contestação), é inequívoco que a improcedência do pedido reconvencional deduzido (designadamente, o relativo à «declaração da propriedade do veículo a favor do extinto casal») sempre representaria a perda de um bem (no caso, o veículo) que, perante a relação material controvertida desenhada pela factualidade inserida na contestação/reconvenção (porque alegadamente integra o património comum do extinto casal), só poderia ser alienado por ambos os (ex) cônjuges.
Deste modo, improcede integralmente este fundamento.
No que concerne ao segundo fundamento, revela-se absolutamente ininteligível já que a alegação de que «o veículo cuja entrega a Autora pretende, integra o património comum do extinto casal» é insusceptível de configurar uma causa de ilegitimidade activa da Autora (quando muito, e num campo de mera hipótese, poderia alicerçar a dedução de uma excepção dilatória de ilegitimidade passiva da Ré, em razão do seu ex-marido não ter sido demandado - hipotético caso de litisconsórcio necessário), ilegitimidade activa da Autora que, efectivamente, não se verifica perante a relação material controvertida desenhada em razão da factualidade inserta na petição inicial (onde se alegou que «a Autora é detentora do direito de propriedade sobre o veículo, tendo condescendido que a Ré utilizasse o veículo nas suas deslocações enquanto esteve casada o administrador da Autora, mas dissolvido o casamento, apesar de lhe ter sido solicitado que o entregasse e lhe tivesse sido fixado um prazo para o fazer, a Ré recusa-se a entregá-lo», pelo que, no “quadro” desta relação jurídica, os titulares directos e imediatos da mesma são apenas e tão só a Autora e a Ré - pela utilidade da procedência da acção, aquela tem manifestamente interesse em demandar, e, pelo prejuízo que lhe pode advir dessa procedência, é esta que tem interesse em contradizer).
Nestes termos, também improcede, na íntegra, este fundamento.
Já relativamente ao terceiro fundamento, assiste razão à Ré/Recorrente.
Na contestação/reconvenção, configurou a seguinte relação material controvertida: o direito de propriedade sobre o veículo em causa foi adquirido pelo casal formado pela Ré e marido, administrador da Autora, casal que se veio dissolver em virtude de divórcio ocorrido antes da propositura da presente acção, pelo que tal bem faz parte do património comum do extinto casal.
 Da relação contratual controvertida assim configurada emerge que o veículo em causa, a ter sido adquirido pelo casal (como é alegado), na sequência da dissolução do casamento, passou a integrar uma situação de «propriedade colectiva» ou «comunhão de mão comum», não tendo sido invocado que já tenha ocorrido a respectiva partilha do património comum do extinto casal, então, como supra se concluiu, no período de “transição” mostram-se subsidiariamente aplicáveis as normas que regem o regime da compropriedade, não lhe sendo aplicáveis as normas legais substantivas que regulam os efeitos do casamento quanto às pessoas e aos bens dos cônjuges nem as normas processuais que regulam a legitimidade processual das acções propostas por ambos os cônjuges ou contra ambos os cônjuges.
Ora, como bem refere a Ré, nos termos do nº2 do art. 1405º do C.Civil, “Cada consorte pode reivindicar de terceiro a coisa comum, sem que a este seja lícito opor-lhe que ela lhe não pertence por inteiro”. Este normativo do instituto da compropriedade é precisamente uma das normas que se mostra subsidiariamente aplicável ao regime da «propriedade colectiva» ou «comunhão de mão comum» que existe no aludido período de “transição” e, por isso, é aplicável quando um dos ex-cônjuges formula uma pretensão reivindicatória relativamente a um bem que integra aquela «propriedade colectiva».
Logo, perante a concreta relação material controvertida apresentada na contestação/reconvenção e perante o disposto no referido art. 1405º/2, a Ré detém legitimidade processual activa para, por si só (sem estar acompanhada do ex-marido), deduzir o pedido reconvencional de que seja «declarada a propriedade do citado veículo a favor do extinto casal constituído pela aqui Ré e BB», bem como para o pedido reconvencional consistente em que «seja anulado o registo de propriedade do veículo de matrícula ..-BA-.., marca ..., a favor da Autora», o qual, como supra já se referiu, apesar de deduzido em primeiro lugar, mais não constitui que uma consequência daquele pedido de reconhecimento do respectivo direito de propriedade.
Acresce que igualmente não se mostra necessária qualquer prévia acção de suprimento de consentimento para o fazer, já que, como supra já se referiu, não são aplicáveis as normas substantivas sobre a alienação ou oneração de bens móveis no âmbito do casamento prevista no art. 1682º do C.Civil, e já que o pedido reconvencional de reivindicação não se reporta sequer à casa de morada de família.
Assim sendo, este Tribunal ad quem não pode subscrever a 1ªdecisão recorrida quando, de uma forma um pouco simplista, concluiu que “Tratando-se de uma comunhão conjugal de extinto casal, sempre deveriam estar em juízo ambos os cônjuges ou, pelo menos, o cabeça-de-casal do património comum a partilhar”, não se verificando, no caso em apreço, nenhuma situação de litisconsórcio necessário.
Obviamente que, perante a conclusão supra alcançada, está absolutamente prejudicada a apreciação da argumentação do Tribunal a quo relativamente a “não tendo o respectivo chamamento sido suscitado por qualquer das partes (nem também tal chamamento seria de realizar, o que sempre se traduziria na prática de acto inútil, proibido pelo artigo 130.º do CPC, atento o teor da decisão de mérito que de seguida se proferirá e que sempre conduziria, também, à improcedência do pedido reconvencional, ainda que o mesmo viesse a ser admitido)”.
Importa aqui salientar que, mesmo que se verificasse uma situação de ilegitimidade processual, a verificação desta excepção dilatória teria como consequência a declaração de absolvição da Autora da instância, não configurando uma causa de inadmissibilidade da reconvenção. 
Nestas circunstâncias, sem necessidade de outras considerações, perante tudo o que ficou exposto, a resposta à presente questão, que no âmbito do recurso da 1ªdecisão recorrida incumbe a este Tribunal ad quem apreciar, é necessariamente no sentido de que, ao contrário do que o Tribunal a quo decidiu no despacho recorrido, a Ré/Recorrente tem legitimidade processual activa para, por si só, deduzir contra a Autora/Recorrida o pedido reconvencional que integra a contestação e, por via disso, deverá revogar-se o despacho de inadmissibilidade de reconvenção e declarar-se que a Ré/Recorrente tem legitimidade processual activa para deduzir o pedido reconvencional e que é admissível a reconvenção.
A influência que a revogação do despacho de inadmissibilidade da reconvenção (1ªdecisão recorrida) e a consequente admissão da reconvenção têm no prosseguimento dos autos, será decidida após ser apreciada a questão seguinte, a qual, embora já respeite à impugnação recursiva da 2ªdecisão recorrida, envolve a apreciação sobre se, em sede de saneador, o Tribunal a quo podia, de acordo com as normas legais aplicáveis, decidir do mérito da causa sem necessidade de prosseguimento dos autos para produção de prova.
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4.4. Da Legalidade da Apreciação do Mérito da Causa em sede de Despacho Saneador
Nos termos do disposto nos arts. 1302º/1 e 1305º do C.Civil, as coisas móveis podem ser objeto do direito de propriedade, sendo que o titular desse direito (proprietário) “goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso e fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”.
No que concerne aos modos de aquisição do direito de propriedade, estatui o art. 1306º do C.Civil que ser “por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei”.
O modo mais corrente de aquisição deste direito real, é o contrato de compra e venda (negócio real quod effectum), dado o efeito translativo operar por mero efeito do contrato, independentemente da entrega da coisa (cfr. arts. 408º/1 e 879º/a) do C.Civil)
A compra e venda constitui uma forma de aquisição derivada mas mostrando-se a mesma inscrita a favor do comprador no registo predial, por força do disposto no art. 7º do C.R.Predial, este beneficia da presunção legal de que o direito de propriedade existe e lhe pertence, nos precisos termos em que o registo o define (configura apenas uma presunção juris tantum, pelo que é ilidível mediante prova em contrário – cfr. art. 350º/ do C. Civil).
O referido art. 7º do C.R.Predial é subsidiariamente aplicável ao registo de veículos automóveis.
Com efeito, estatui o art. 29º do Dec. Lei nº54/75, de 12/02, que são aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao registo de automóveis as disposições relativas ao registo predial, mas apenas na medida indispensável ao suprimento das lacunas de regulamentação própria e compatível com a natureza de veículos automóveis e das disposições contidas neste diploma e respectivo regulamento” (os sublinhados são nossos).
Inexistindo norma especifica no referido Dec.-Lei nº54/75, que regule directamente a matéria, então terão que se aplicar, ao registo de automóvel, os normativos do Código Registo Predial, por via de “integração de uma lacuna que o próprio referido art. 29º do Dec.-Lei nº54/75 resolve quando estabelece que serão aplicadas ao registo de automóveis as normas do registo de propriedade. Ocorre, neste caso, uma aplicação subsidiária ou remissivo/integradora de uma situação jurídica lacunosa, não regulada num diploma específico, que o legislador pretendeu colmatar com recurso a uma remissão para o regime geral. Neste caso, o legislador não terá entendido que o registo automóvel merecia um tratamento em diploma especifico, certamente por estimar que tratando de um móvel sujeito a registo se deveria aplicar o regime geral consagrado no diploma que rege para os demais móveis sujeitos a registo, bem como para os imóveis”[36].
Logo, por via da conjugação dos arts. 7º do C.R.Predial e 29º do Dec.-Lei 54/75, também o registo de veículo automóvel cria uma presunção de que o direito registado, na amplitude e com o conteúdo em que o foi, existe na titularidade do sujeito em nome de quem se encontra registado (presunção que é igualmente juris tantum, pelo que o valor do facto inscrito no registo automóvel também pode ser infirmado e elidido mediante prova em contrário)[37].
Para além da supra indicada fonte negocial, a aquisição do direito de propriedade pode advir da usucapião, que constitui um modo de aquisição originária deste direito, que se funda na posse reiterada e exercida durante certo lapso de tempo do direito real correspondente (cfr. art. 1287º do C.Civil), ou seja, a aquisição deste direito (mas também de outros direitos reias de gozo) por esta via “depende apenas da verificação de dois elementos: a posse e o decurso de certo lapso de tempo, que varia em função da natureza do bem (móvel ou imóvel) sobre que incide e de acordo com os caracteres da mesma posse”[38].
A noção de posse está legalmente consagrada no art. 1251º do C.Civil: “é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”. Este poder traduz-se na prática de actos que o exteriorizam, no exercício de poderes de facto (corpus) reveladores da aparência do direito e que exprimem ou fazem presumir a vontade de quem os pratica, na relação material que mantém com coisa, de agir como titular do direito real correspondente (animus possidendi). Como se decidiu no Ac. do STJ de 21/02/2019[39], “III. A posse é integrada por dois elementos: o corpus e o animus. IV. O corpus, elemento material, corresponde aos atos materiais praticados sobre a coisa com o exercício de certos poderes sobre a mesma, enquanto o animus, elemento psicológico, equivale à intenção de agir como titular do direito a que o exercício do poder de facto se refere”.
Mas nem toda a posse é idónea à constituição de direitos reais por usucapião (incluindo o direito de propriedade): como decorre do disposto no art. 1297º do C.Civil, só a posse pública (a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados) e pacífica (a que foi adquirida sem violência), é apta para a aquisição, ou seja, é susceptível de conduzir à constituição do direito real de propriedade por usucapião. Assim, “revestindo a posse essas características - pública e pacífica – e sendo exercida por certo lapso de tempo, pode o possuidor exercer, com base nela, o direito potestativo que o artigo 1287º do Código Civil lhe confere, posto que a usucapião não é de verificação automática, muito embora a sua invocação determine a aquisição originária do direito real, o qual nasce ex novo na data do início da posse, como decorre do estatuído no artigo 1288º do Código Civil”[40].
Já quanto ao prazo exigido para a mesma operar, no que concerne a direitos reais sobre coisas móveis sujeitas a registo, havendo título de aquisição e registo deste, varia consoante a posse seja de boa ou má fé: sendo de boa fé, é de 2 anos, mas sendo de má fé, esse prazo será de 4 anos. Mas não havendo registo, o prazo de 10 anos independentemente da boa fé do possuidor e da existência de título (cfr. art. 1298º do C.Civil).
Como um dos meios de defesa do direito de propriedade, o legislador consagrou a acção de reivindicação (rei vindicatio) no art. 1311º do C.Civil: “O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence” (nº1).
Esta acção de reivindicação caracteriza-se por dois pedidos: o reconhecimento do direito de propriedade sobre a coisa (pronuntiatio) e o pedido de condenação do réu na restituição da mesma (condemnatio), sendo que o primeiro pode estar implícito no segundo. Já a sua causa de pedir é constituída pelo direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa (aquisição originária ou derivada) e pela “lesão” que desse direito provocada pela pessoa que detém ou possui a coisa indevidamente, sendo essencial que o reivindicante tenha um título legítimo de aquisição do seu direito de propriedade, e que se apresente como não tendo dúvidas acerca deste seu direito sobre a coisa e respectivos limites[41].
Revertendo ao caso em apreço, verifica-se que a Autora interpôs a presente acção contra a Ré, pedindo que esta seja condenada a devolver o veículo automóvel objecto da acção e respectivos documentos, e a pagar-lhe a quantia de 2.910,00€, acrescida 30,00 por cada dia que decorra, até à restituição efectiva do veículo, invocando, a título de causa de pedir, que «adquiriu o veículo, estando na posse do mesmo, por si e antecessores; se outro título não dispusesse adquiriu o direito de propriedade sobre o mesmo por ; o veículo está registado a seu favor pelo que beneficia da presunção de que o direito de propriedade lhe pertence; a Ré esteve casada com um seu administrador que, ainda no estado de casado, condescendeu que aquela, então sua mulher, utilizasse o veículo nas suas deslocações; dissolvido o casamento, foi solicitada à Ré a entrega do veículo, o que esta recusa fazer». Logo, estamos perante uma verdadeira acção reivindicação.
Em sede de saneamento, o Tribunal a quo decidiu do mérito da causa, proferido o saneador-sentença ora recorrido, no qual considerou provados factos relativos aos registos na CRA do veículo, ao contrato de locação financeira de que o mesmo foi objecto, à identificação de quem pagou as rendas deste contrato e pagou o IUC, o seguro e outras despesas do veículo, a quem utilizava o veículo e à interpelação para entrega, no qual considerou inexistirem outros factos alegados que fossem relevantes para a decisão, tendo concluído que a Autora é titular do direito de propriedade sobre o veículo, com base na seguinte fundamentação:
“(…) no caso dos autos, a autora beneficia quer da presunção do registo, quer da prova de uma posse titulada, de boa-fé e registada por mais de dez anos. E assim é porque o registo do direito de propriedade da autora só é possível com o respectivo título e também porque, conforme confessa a própria ré, foi sempre a sociedade comercial, primeiro a S..., Vinhos e Produtos Alimentares, Lda e a partir de 2010 a autora, quem pagou o IUC e o seguro do veículo, enquanto proprietária do mesmo, como assumia o pagamento de todas as despesas inerentes (gasóleo, mecânica, pneus, etc..), sendo que estas últimas pelo menos até ao decretamento do divórcio entre a ré e BB, gerente da autora - cfr. confissão da autora na contestação. Que outros actos de posse seriam exigíveis para além destes? Não obstante tenha sido permitido à ré circular com o referido veículo, o facto de o veículo ter sido adquirido por justo título e pago pela autora, ainda que por motivações fiscais que para o caso são irrelevantes, bem como o facto de ser a autora quem ao longo de pelo menos 11 anos (desde 2010) pagou o IUC e o seguro do veículo, enquanto proprietária do mesmo, como assumiu o pagamento de todas as despesas inerentes (gasóleo, mecânica, pneus, etc..), são matéria provada suficiente de que a autora é a verdadeira possuidora, com corpus e animus, do referido veículo.
Por outro lado, a autora sempre beneficiaria da presunção de registo decorrente do artigo 7.º do Código de Registo Predial, presunção essa que não foi eficazmente colocada em causa pela ré, nem por via da factualidade que alegou. Ora, reconhecendo a ré que o veículo foi adquirido por justo título e pago pela autora, ainda que por motivações fiscais que para o caso, como se disse, são irrelevantes, bem como que é autora quem vem pagando, ao longo de pelo menos 11 anos (desde 2020) o IUC e o seguro do veículo, enquanto proprietária do mesmo, como assumiu o pagamento de todas as despesas inerentes (gasóleo, mecânica, pneus, etc..), desde logo afastam qualquer invocação de que se pudesse querer fazer valer para ilidir a presunção decorrente do registo. O simples facto de a sociedade ter adquirido o veículo para que um dos seus gerentes e a sua família o pudessem usar e o efectivo uso por parte destes é manifestamente insuficiente para fazer prova do corpus e, sobretudo, do animus possessório por parte da ré e respectiva família. A ré e a sua família usaram o veículo - e o mero uso não se confunde com a posse - sabendo e não podendo deixar de saber que o mesmo não lhes pertencia, porque não o adquiriram por justo título, porque não o pagaram, nem pagaram as despesas decorrentes da sua utilização, actos tais, estes sim, próprios de quem é proprietário. A ré e a sua família usaram o referido veiculo – e, mais uma vez, o mero uso não se confunde com a posse - sabendo que este era propriedade da autora, que o adquiriu por justo título, que o pagou e que vem suportando todas as despesas relativas ao mesmo. A ré não invocou, assim, factos susceptíveis de consubstanciar uma verdadeira posse em seu nome ou do extinto casal, com corpus e animus, mas uma mera detenção, um mero uso, manifestamente insuficientes para ilidir a presunção decorrente do registo e claramente insuficientes para justificar uma aquisição por usucapião por parte da ré ou do extinto casal (…)”.
Diga-se, desde já, que esta fundamentação merece, no seu sentido global, a concordância deste Tribunal ad quem, sendo que o presente recurso não contém qualquer alegação/argumentação susceptível de a colocar em causa.
Concretizando.
Em sede de recurso, a Ré/Recorrente defende a revogação do saneador-sentença recorrido, essencialmente, com base em cinco razões/causas distintas que, seguidamente, se irão analisar de forma autónoma.
Primeira - «a decisão funda-se em factos não alegados e relativamente aos quais não existe prova documental nem decorrem da confissão da Ré» (cfr. conclusões 16ª, 17ª, 24ª e 25ª).
Importa começar por salientar que, embora não tenha impugnado esta 2ªdecisão recorrida relativamente à matéria de facto nos termos do art. 640º do C.P.Civil de 2013, através das presentes conclusões, ainda que sem o afirmar directamente, a Ré coloca manifestamente em causa o entendimento do Tribunal a quo em considerar provado o seguinte facto: «Foi sempre a sociedade comercial, primeiro a S..., Vinhos e Produtos Alimentares, Lda e a partir de 2010 a autora, quem pagou o IUC e o seguro do veículo, enquanto proprietária do mesmo, como assumia o pagamento de todas as despesas inerentes (gasóleo, mecânica, pneus, etc..), sendo que estas últimas pelo menos até ao decretamento do divórcio entre a ré e BB, gerente da autora» (facto provado nº6)[42].
Sucede que tais conclusões são infundadas, e de tal forma que até “roçam” a litigância de má fé.
Invoca-se que «nunca a Autora alega ou junta documento comprovativo do pagamento do veículo», quando basta uma mera leitura do teor daquele facto (ou de qualquer outro dos factos provados) para se verificar que o mesmo não contém qualquer segmento que se reporte ao pagamento do veículo, acrescendo que basta igualmente uma mera leitura da petição inicial para se verificar que a Autora jamais alegou ter realizado algum pagamento do veículo ou alegou juntar documento comprovativo de tal pagamento. Esta “parcela” das conclusões é destituída de fundamento.
Também se invoca que «nunca a Autora alega ou junta documento comprovativo (…) do pagamento do IUC, seguro automóvel (…)». Ora, esta “parcela” das conclusões é completamente desmentida e contrariada pelo teor do art. 7º da petição inicial, onde a Autora alegou expressamente que «é também a autora quem efectua o pagamento dos respectivos seguro automóvel e imposto único de circulação» (sendo que este artigo até foi expressamente admitido pela Ré no art. 1º da contestação), pelo que carece de fundamento.
Por outro lado, verifica-se que o teor do facto provado nº6 corresponde na íntegra ao teor do facto alegado no art. 33º da contestação, como aliás a própria Ré reconhece neste recurso («fez essa afirmação no art. 33º da Contestação» - cfr. conclusão 17ª).
Ora, ao contrário do que a Ré quer fazer agora crer (de uma forma totalmente ilógica, incoerente e até contraditória), o facto alegado naquela art. 33º é completamente autónomo e independente do teor das alegações constantes dos arts. 3º a 32º e 34º a 71º do articulado de defesa, podendo (inequivocamente) ser considerado provado (ou não provado), sem qualquer dependência ou necessidade de prova de qualquer outra matéria de facto que possa estar contida naqueles restantes artigos, importando mesmo frisar que o teor do art. 33º até é reafirmado, reforçado e explicado pelo teor do alegado no art. 34º do articulado de defesa. Logo, o Tribunal a quo, ao considerar provado tal facto, não o descontextualizou nem “ignorou” qualquer contexto (o que, em sede de recurso, a Ré nem explica nem concretiza, sendo certo que a referência aos arts. 9º e 10º da contestação mostra-se irrelevante já que a matéria que integra estes dois artigos não está dependente (seja em que sentido for) da matéria de facto alegado no art. 33º, nem vice-versa.
Por fim, como no “quadro” da presente acção, a Autora alega que é titular do direito de propriedade (para além do mais) por via de usucapião e, na contestação, a Ré nega que tal direito tenha sido adquirido por aquela, e mais alega que tal direito de propriedade foi adquirido, por via de usucapião, pelo casal formado por si e pelo seu marido, então o facto admitido pela Ré no citado art. 33º da contestação [«Foi sempre a sociedade comercial, primeiro a S..., Vinhos e Produtos Alimentares, Lda e a partir de 2010 a Autora, que pagou o IUC e o seguro do veículo, enquanto proprietária do mesmo, como assumia o pagamento de todas as despesas inerentes (gasóleo, mecânica, pneus, etc..)»] configura e integra, inequivocamente, uma confissão já que, como resulta do disposto no art. 352º do C.Civil, “Confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária”. Assim, mostram-se totalmente destituídas de sentido e de fundamento as conclusões de recurso de que «o Tribunal “a quo” não pode (…) imprimir-lhe o valor de uma confissão que a Ré não admite» (esta admite expressamente esta factualidade, a qual representa a admissão de uma realidade que lhe é desfavorável e, simultaneamente, favorável à Autora) e de que «não tem qualquer sustentabilidade nos autos, tendo sido matéria impugnada pela Ré em sede de Contestação, sendo matéria controvertida» (no referido art. 7º da petição, a Autora já alegava o pagamento do IUC e do seguro, sendo que esta realidade, como supra já se referiu, foi expressamente admitida pela Ré no art. 1º da contestação, e sendo que, no referido art. 33º da contestação, a Ré não só confirma tal pagamento, como mais admite que, anteriormente, o pagamento sempre foi por outra sociedade, e que tais pagamentos ainda incluíam outras despesas, realidades que são contrárias à sua defesa/reconvenção).
Por conseguinte, a realidade fáctica que integra o facto provado nº6 está demonstrada por confissão da Ré (não constituindo matéria controvertida).
Portanto, improcede esta primeira razão/fundamento.
Segunda - «foram alegados factos pela Autora na petição que estão controvertidos» (cfr. conclusões 18ª e 25ª).
Estas conclusões são ininteligíveis já que a Ré/Recorrente não identifica nem concretiza minimamente quais são os factos da petição a que se reporta, o que, por si só, impede que este Tribunal ad quem descortine quais são esses factos e apreciar da sua relevância (ou não) para a decisão da causa, pelo que esta razão/causa tem que improceder.
Terceira - «a Ré alegou factos que podem ilidir a presunção do registo de propriedade do veículo» (cfr. conclusões 19ª a 22ª, 25ª e 26ª).
Importa frisar que, em sede de recurso, a Ré não coloca em causa que a Autora beneficia da presunção legal de que o direito de propriedade sobre o veículo existe e lhe pertence, a qual decorre da conjugação disposto nos arts. 7º do C.R.Predial e 29º do Dec.-Lei 54/75, de 12/02, e do facto provado nº5: «encontra-se registada, pela ap. nº. ...94, de 19/02/2010, a aquisição pela autora do veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de marca ..., com matrícula ..-BA-..».
Limita-se a invocar que «na contestação, alegou factos que, a provarem-se, comprovam que a Ré e o seu então marido, desde 2005 têm a posse do veículo», o que ilidiria a referida presunção.
Sucede que, embora nas respectivas conclusões (tal como nas alegações) se aluda a que «alega todos os factos que poderão, depois de produzida a respetiva prova, ilidir a presunção do registo de propriedade do veículo», a que «podem comprovar que a Ré e, durante a pendência do casamento, também o seu ex-marido, desde 2005 têm a posse do veículo», a que «alega factos suscetíveis de consubstanciar o corpus e o animus da posse do referido veículo», e a que «pretendia ver produzidas provas em sede de audiência de julgamento a fim de provar a tese alegada - aquisição do veículo em causa por usucapião pelo ex-casal constituído por si e o seu ex-marido», certo é que (de uma forma que atesta bem a sua falta de razão) a Ré não indica nem concretiza quais são os precisos factos relatados e alegados na contestação que podem configurar a alegada posse (e inerente usucapião) e que, em seu entender, estão controvertidos e necessitam de ser sujeitos a prova: não identificou sequer quais os artigos da contestação em que poderiam estar contidos esses supostos “factos”.
E mais se realce que, não discriminando um único desses “factos”, a Ré também não explicou nem justificou, de que forma, algum deles poderia, a provar-se, consubstanciar a existência da invocada posse.
Tais omissões, para além de, por si só, tornarem infundada esta parte da pretensão recursória, atestam que a própria Ré sabe que inexiste qualquer facto essencial que tenha alegado e que, a provar-se, determinasse (ou pudesse determinar) a modificação da sentença recorrida quer no sentido de que foi ilidida a presunção legal do direito de propriedade, quer no sentido de que ela, e o seu então marido, adquiriram, por usucapião, o direito de propriedade sobre o veículo (isto é, que conduzisse ao reconhecimento da sua pretensão reconvencional).
Mas fazendo o exercício que a Ré convenientemente omitiu, isto é, analisando o conteúdo dos artigos da contestação, temos que concordar e acompanhar o saneador-sentença quando afirma que “A ré não invocou, assim, factos susceptíveis de consubstanciar uma verdadeira posse em seu nome ou do extinto casal, com corpus e animus, mas uma mera detenção, um mero uso, manifestamente insuficientes para ilidir a presunção decorrente do registo e claramente insuficientes para justificar uma aquisição por usucapião por parte da ré ou do extinto casal. Está, assim, inteiramente demonstrado, por via da própria alegação da ré, que a autora é a verdadeira proprietária do referido veículo”.
Com efeito, verifica-se que, nos arts. 4º e 9º do articulado de defesa, a Ré reconhece e admite que o veículo foi adquirido em 2005 pela sociedade S..., Vinhos e Produtos Alimentares, Lda, e que, nos arts. 16º, 18º, 19º, 64º e 65º do mesmo articulado, mais reconhece e admite que, em Fevereiro de 2010, o veículo foi vendido pela sociedade S..., Vinhos e Produtos Alimentares, Lda à Autora, e que esta o adquiriu. Daqui resulta que, na contestação, é a própria Ré quem aceita que primeiro aquela sociedade e depois a sociedade Autora adquiriram o direito de propriedade sobre o veículo através de contrato, o que representa e significa uma admissão de que o veículo nunca foi adquirido por si ou pelo seu então marido (aliás, afirma-o expressamente na parte final do art. 35º do articulado em referência), ou pelo casal que era constituído por ambos. E, neste “quadro”, a alegação meramente jurídico-conclusiva (e destituída de qualquer facto alegado que a concretize e sustente) que consta do art. 61º da contestação («O veículo “sub judice” foi adquirido em finais do ano 2005 pelo então casal Ré e ex-marido e administrador da Autora Sr. BB») mostra-se completamente contraditória e ininteligível perante as alegações anteriores, sendo, aliás, imediatamente “desmentida” pelas alegações que constam dos subsequentes arts. 64º e 65º do articulado de defesa («Apesar da propriedade do citado veículo estar registada em nome da Autora, é certo que, quando a Autora adquiriu o veículo à “S..., Vinhos e Produtos Alimentares, Lda…» e «Após a aquisição deste veículo a Autora…). 
Nos arts. 6º, 9º, 13º a 15º, 22º a 26º, 40º, 62º, 63º, e 69º do mesmo articulado, embora alegue que o veículo (desde a sua aquisição pela sociedade S..., Vinhos e Produtos Alimentares, Lda e depois pela Autora) foi sempre utilizado como “carro de família”, conduzido pelo seu ex-marido e por si para deslocações relacionadas com o agregado familiar, sendo maioritariamente conduzido por si, certo é que a Ré nunca alegou um único facto que, a provar-se, possa consubstanciar uma vontade sua, ou do seu ex-marido, ou uma vontade conjunta, de agirem como donos/proprietários do veículo. Aliás, muito pelo contrário, já que, em simultâneo com tais alegações, é a própria Ré que alega e explica qual a concreta causa de aquisição ter sido pelas sociedades e não pelo casal (ou por algum dos cônjuges): foram razões fiscais (cfr. arts. 9º, 18º, 34º e 35º da contestação), com vista a que todos impostos, seguros e despesas inerentes ao veículo fossem pagas pelas empresas, o que efectivamente sempre aconteceu (cfr. arts. 33º a 35º da contestação), o que, por si só, significa que a própria Ré admite que foram aquelas sociedades que praticaram sempre os referidos actos de pagamento que são completamente típicos (inerentes) e da responsabilidade (obrigação) de quem é titular do respectivo direito de propriedade (ainda que sejam apenas razões fiscais que presidam à aquisição do bem). Neste “quadro”, a alegação que consta do art. 70º («… sempre com a convicção de que este veículo pertence ao acervo comum do casal…»), para além de ter apenas uma natureza jurídico-conclusiva e de não estar alicerçada em qualquer facto, assume-se como absolutamente contraditória e ininteligível perante todas as alegações anteriores.
A Ré também não alegou um único facto que, a provar-se, pudesse consubstanciar a prática de actos por si ou pelo seu ex-marido, ou conjuntamente, no sentido de eles próprios terem procedido ao pagamento de tais “encargos” (enquanto se manteve o casamento) e/ou de se oporem ao seu pagamento pelas referidas sociedades, por serem eles os proprietários do veículo (enquanto se manteve o casamento), e/ou de se oporem mesmo direito de propriedade de qualquer das referidas sociedades e pretenderem agir como proprietários (enquanto se manteve o casamento). É certo que no art. 36º da contestação se alega que «Após o divórcio, a Ré passou a assumir o pagamento das reparações na oficina, revisões periódicas, inspeções periódicas e não paga o IUC e o seguro, porque o seu ex-marido sempre fez questão de assumir tal pagamento, fazendo-lhe chegar os comprovativos de pagamento». Mas esta alegação é absolutamente conclusiva, não tendo a Ré concretizado sequer um único facto que fosse susceptível de prova e que pudesse demonstrá-la: não alegou em que data se concretizou o divórcio, não alegou quais foram os anos em que concretamente o seu ex-marido pagou o IUC e o seguro, não alegou quais os anos em que pagou as revisões periódicas e/ou as inspecções periódicas e não alegou quais foram essas reparações e quando ocorreram. Frise-se que, como a Ré refere e admite no próprio recurso (conclusão 16ª), a Autora pagou o IUC e o seguro automóvel em 2021, donde resulta que, pelo menos, relativamente a tal imposto e a tal seguro, o teor daquele art. 36º só poderia reportar-se ao ano de 2022 (ou seja, a momento posterior ao da entrada em juízo da presente acção - 07/05/2021). Por outro lado, tal alegação mostra-se, em si mesma, absolutamente insusceptível de comprovar a invocada aquisição do veículo pelo extinto casal por via de usucapião já que se reporta ao momento em que já não existe casal («Após o divórcio…»), e já que os termos em que a alegação foi produzida impedem, em absoluto, que à data da apresentação em juízo da contestação/reconvenção (em 14/06/2021) pudesse estar decorrido o prazo de 10 anos exigido para se verificar a usucapião do possuidor que não tem registo. Por conseguinte, a alegação do art. 36º é inócua e irrelevante.
Nos arts. 37º e 64º da contestação, a Ré consignou que «estava na posse do veículo», o que constitui apenas a alegação de um conceito de direito, desacompanhada da invocação dos factos concretos que, a provarem-se, poderiam permitir ao Tribunal concluir pela existência de uma efectiva situação de posse.
E a matéria que integra os arts. 7º, 8º, 10º, 11º, 28º a 31º, 45º a 49º, e 51º do articulado de defesa é absolutamente irrelevante para comprovar qualquer situação de posse do veículo e o teor dos arts. 20º, 38º, 39º e 71º do mesmo articulado integra apenas matéria de direito.
Em resultado desta análise do efectivo conteúdo da contestação, é inequívoco que a própria Ré que admite e confessa respectivamente que «o veículo foi adquirido pela sociedade S..., Vinhos e Produtos Alimentares, Lda e depois pela Autora» e que «foram estas sociedades que pagaram sempre o IUC, o seguro do veículo, e todas as despesas inerentes (gasóleo, mecânica, pneus, etc..) até à dissolução do casal», o que, em si mesmo, representa o exercício do direito de posse sobre o veículo pela Autora e pela sua antecessora. Refira-se que o titular do direito de propriedade de determinado bem pode exercer a posse do mesmo por intermédio de terceiro - cfr. art. 1252º/1 do C.Civil -, podendo conceder o uso e utilização do mesmo a terceiro sem que isso signifique uma transferência ou perda da posse, sendo a transmissão do direito de propriedade, mesmo quando a coisa é detida por terceiro, não impede a transferência da posse mesmo que tal detenção continue - cfr. art. 1264º/2 do C.Civil).
Logo, quando se alega a utilização do veículo pela Ré e pelo seu ex-marido desde 2005, tal realidade, mesmo a provar-se integralmente, mais não consubstancia do que uma simples detenção, o que, aliás, está em total e absoluta consonância com as referidas alegações (produzidas em simultâneo) de que «o veículo foi adquirido pelas referidas sociedades, e não em nome do seu ex-marido e/ou da Ré» e de que «o IUC, o seguro automóvel e todas as outras despesas do veículo sempre foram pagos pelas referidas sociedades e não pelo ex-marido e/ou pela Ré», situação que, como é patente na contestação, o então casal sempre quis e sempre esteve em acordo, sendo que só o divórcio (dissolução do casamento) provocou na Ré (mas não no seu ex-marido) “desconforto” com  a mesma, passando a partir do divórcio e da exigência da entrega do veículo (quando já nem sequer existia casal) a ter “intenção” e “vontade” diferentes relativamente ao veículo (frise-se que o próprio pedido da Autora para a Ré restituir/devolver o veículo após o divórcio, revela-se totalmente consentâneo com a factualidade efectivamente alegada pela Ré, já que, se o veículo foi adquirido pelas sociedades para ser utilizado pela família do gerente/administrador, então se aquela deixou de ser da «família» deste, então é absolutamente lógico que tenha sido formulado tal pedido porque a utilização pela Ré deixou de se inserir naquela «finalidade»).
Nestas circunstâncias, impõe concluir-se que a contestação não contém a alegação de qualquer facto concreto que, a provar-se, pudesse conduzir à elisão da presunção do registo de propriedade do veículo a favor da Autora, não tendo, para o efeito, qualquer relevância a prova requerida na contestação pela Ré, pelo que igualmente improcede esta terceira razão/fundamento.
Quarta - «a Autora não alega nem comprova documentalmente que pagou o veículo, sendo matéria controvertida» (cfr. conclusão 23ª e 25ª).
Assiste razão à Ré numa parte da conclusão, uma vez que, na petição inicial, a Autora não alegou ter efectuado qualquer pagamento relativamente ao veículo e, naturalmente, também não juntou qualquer documento comprovativo desse pagamento. Logo, não se pode subscrever o saneador-sentença recorrido quando nele se refere «e pago pela autora» (para além de não ter sido alegado tal facto, o Tribunal a quo também não o contemplou nos factos provados).
Porém, já não lhe assiste qualquer razão quando invoca que tal pagamento é «matéria controvertida» (!?), porque, como é óbvio, não sendo matéria invocada, não pode constituir matéria controvertida.
Ora, embora não tenha sido alegado tal pagamento, certo é que tal falta de alegação e de prova, não é suficiente para afectar a conclusão que o Tribunal a quo formulou no sentido de que a Autora é titular do direito de propriedade sobre o veículo quer por beneficiar da presunção do registo de propriedade a seu favor da Autora, quer porque o adquiriu por posse titulada, de boa fé e registada (por usucapião): com efeito, a prova de tal pagamento não constitui requisito para o funcionamento da presunção decorrente do registo, e não impede que a posse seja titulada, uma vez que está provado o registo da aquisição a favor da Autora (cfr. facto provado nº5) e tal registo só é possível com o respectivo título de aquisição (e, assim sendo, a prova do pagamento não é facto essencial para a verificação do direito de posse, primeiro da sociedade S..., Vinhos e Produtos Alimentares, Lda, e depois da Autora, importando aqui frisar que, porque se trata de posse titulada e registada, a usucapião ocorre ao fim de dois anos por se tratar de possuidor de boa fé - cfr. art. 1298º/2 do C.Civil -, e não ao fim de 10 anos, como certamente por lapso se refere no saneador-sentença recorrido, acrescendo que os efeitos da usucapião se retroagem ao início da posse e a posse transfere-se com o respectivo direito real - cfr. arts. 1288º e 1264º/1 do C.Civil).
Logo, tem que improceder esta quarta razão/fundamento.
Quinta - «a decisão é prematura, violando o dever gestão processual, o dever de adequação formal, o princípio do contraditório, e o direito fundamental ao acesso ao direito e tutela jurisdicional (cfr. conclusões 27ª a 31ª e 33ª).
Decorre do Princípio do Estado de Direito a exigência de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito. Como a realização do direito é determinada pela conformação jurídica do procedimento e do processo, a C.R.Portuguesa integra princípios e normas designados por garantias gerais de procedimentos e de processo[43].
Estatui o art. 20º da C.R.Portuguesa que “1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos… 4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”.
Um dos direitos fundamentais processuais consiste precisamente no direito à prova, que emerge como corolário do direito de acção e defesa aludido no nº1 do referido art. 20º.

Por sua vez, o poder/dever de gestão processual que compete ao juiz encontra-se consagrado no art. 6º do C.P.Civil de 2013:

“1 - Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.
2 - O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo”.

Para reforço do poder/dever de gestão processual, confluem, entre outras, a norma que integra o art. 547º do C.P.Civil de 2013: “O juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo” (princípio da adequação processual).
Quanto ao princípio do contraditório, que é um dos princípios estruturantes do processo civil, encontra-se previsto no art. 3º/3 do C.P.Civil de 2013: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

Sobre o sentido e alcance deste princípio, revela o entendimento sufragado no Ac. do STJ de 19/12/2018[44]: “I - O que se quis impedir, com o princípio do contraditório consagrado no art.3º, nº3, do CPC, foi que, a coberto do princípio «jus novit curia», emergente do art.5º, nº3, e do princípio da oficiosidade no conhecimento da generalidade das excepções dilatórias e das excepções peremptórias, constantes dos arts.578º e 579º, as partes fossem confrontadas com soluções jurídicas inesperadas, por não terem sido objecto de discussão no processo (…) IV - Sendo certo que, no caso, estamos perante questão jurídica susceptível de se repercutir, como se repercutiu, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão, não sendo exigível que as partes interessadas a houvessem perspectivado no decurso do processo. V - Se o diferente enquadramento jurídico só foi encontrado pelo juiz quando se propôs proferir a sentença final, deveria ter sobrestado na decisão, confrontando as partes com a possível e inovatória solução de direito e convidando-as a deduzir sobre tal matéria os argumentos que considerassem pertinentes, só depois proferindo decisão. VI - Consequentemente, tendo-se omitido o convite às partes para aquele efeito, foi cometida nulidade, a apreciar nos termos gerais do art.195º” (o sublinhado é nosso).
Nesta mesma linha de entendimento, referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa[45]: “(…) Tal dispensa é prevista a título excecional, apenas se justificando quando a questão já tenha sido suficientemente  discutida ou quando a falta de  audição das partes não prejudique de modo algum o resultado final. O cumprimento de tal dever é especialmente exigido quando se trate de apreciar questões de conhecimento oficioso que não foram objecto de discussão (…) Antes de decidir, o juiz deve facultar às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a matéria, o que poderá evitar decisões precipitadas, ou no mínimo decisões que surjam contra a corrente do processo ou contra as expectativas que legitimamente  foram criadas quanto à evolução no sentido da prolação de uma decisão de mérito.(…) A audição das partes apenas pode ser dispensada em casos de “manifesta necessidade” (conceito indeterminado que deve ser encarado sob uma perspetiva objetiva) quando se trate de indeferimento de nulidades ( art. 201º) e sempre que as partes não possam, objetivamente  e de boa-fé, alegar o desconhecimento das questões de direito ou de facto a decidir e respectivas consequências (…)”.
 
No que concerne à tramitação processual posterior aos articulados nas acções comuns de valor não superior a metade da alçada da Relação (como é o caso da acção em apreço, cujo valor da causa é de € 7.910,00), estatui o art. 597º do C.P.Civil de 2013 que “findos os articulados, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 590.º, o juiz, consoante a necessidade e a adequação do ato ao fim do processo: a) Assegura o exercício do contraditório quanto a exceções não debatidas nos articulados; b) Convoca audiência prévia; c) Profere despacho saneador, nos termos do no n.º 1 do artigo 595.º; d) Determina, após audição das partes, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º; e) Profere o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º; f) Profere despacho destinado a programar os atos a realizar na audiência final, a estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e a designar as respetivas datas; g) Designa logo dia para a audiência final, observando o disposto no artigo 151.º”.
Explicam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa[46] que “(…) nas ações cujo valor não supere a metade da alçada da Relação (€ 15.000,00) é ao juiz que cabe definir quais os trâmites processuais que devem ser seguidos, tendo em conta a natureza e a complexidade da ação e a necessidade e adequação dos atos ao seu julgamento(…)”. E como os mesmos Autores referem na anotação ao art. 591º do mesmo diploma legal[47], “(…) a situação é diversa nos casos do art. 597º, em que a audiência prévia corresponde a uma mera opção do juiz, consoante a necessidade e a adequação do ato ao fim do processo”.
Importa considerar o entendimento desenvolvido no Ac. da RC de 22/09/2021[48]: “Na interpretação/aplicação do art.º 597º também se deverá concluir que a ponderação acerca da necessidade da realização da audiência prévia é uma decisão levada a cabo no uso dos poderes de gestão e adequação processual (art.ºs 6º e 547º). Contudo, enquanto nas acções de valor superior a metade da alçada da Relação o juízo de ponderação tem de ser feito em interacção com as partes, que em última análise têm de ser convencidas do bem fundado da decisão do juiz (sendo-lhes atribuído o poder de impor a realização da audiência prévia), nas acções que não atinjam aquele valor, diminuem as necessidades de interacção com as partes e os poderes destas na conformação do resultado (eliminando-se a possibilidade prevista no n.º 3 do art.º 593º), aproximando (se não equiparando) a actividade de ponderação do juiz nesse caso do ‘uso legal de um poder discricionário’ (art.º 630º, n.º 1). O art.º 597º regula os termos posteriores aos articulados nas acções de valor não superior a metade da alçada da Relação, conferindo ao juiz um amplo poder de gestão e adequação processual, norteado pela necessidade e a adequação do acto ao fim do processo. No entanto, mesmo em tais situações, a audiência prévia deve ser convocada sempre que seja a forma mais eficiente de obter a satisfação dos princípios processuais que dela carecem (nesta fase) - maxime, os princípios do contraditório e da cooperação processual. A decisão é discricionária, mas a satisfação dos princípios não o é, pelo que, se o juiz não convocar a audiência, deve oferecer o contraditório por escrito, sempre que, por exemplo, seja necessário ouvir as partes” (os sublinhados são nossos).
Sobre o «Despacho saneador», dispõe o art. 595º do C.P.Civil de 2013 (na parte que aqui releva): “1 - O despacho saneador destina-se a:… b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção peremptória”.
Como ensinam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa[49], “O juiz deve ainda conhecer do pedido ou dos pedidos formulados, sempre não exista matéria controvertida susceptível de justificar a elaboração de temas da prova e a realização da audiência final.  A antecipação do conhecimento de mérito pressupõe que, independentemente de estar em jogo matéria de direito ou de facto, o estado do processo possibilite tal decisão, sem necessidade de mais provas, e independentemente de a mesma favorecer uma ou outra das partes… Assim acontecerá quando: a) Toda a matéria de facto relevante esteja provada por confissão, expressa ou tácita, por acordo ou por documento: nestas circunstâncias, é inviável a elaboração de temas da prova e, por isso mesmo, mostra-se dispensável a audiência final, nada obstando a que o juiz proceda à imediata subsunção jurídica; b) Quando seja indiferente para qualquer das soluções plausíveis a prova dos factos que permaneçam controvertidos: se, de acordo com as soluções plausíveis da questão de direito, a decisão final de modo algum puder ser afetada com a prova dos factos controvertidos, não existe qualquer interesse na enunciação dos temas da prova e, por isso, nada impede que o juiz profira logo decisão de mérito; se o conjunto dos factos alegados pelo autor (factos constitutivos) não preenche de modo algum as condições de procedência acção, torna-se indiferente a sua prova e, por conseguinte, inútil o prosseguimento da acção para audiência final; mutatis mutandis quando se trate de apreciar de que forma os factos alegados pelo réu poderão interferir na decisão final, pois se tais factos, enquadrados na defesa por excepção, ainda que provados, se revelam insuficientes ou inócuos para evitar a procedência da acção, inexiste qualquer razão justificativa para o adiamento da decisão…”.
Tendo em considerações as considerações jurídicas supra expostas e procedendo (em face das mesmas) à análise do teor das conclusões formuladas no âmbito desta razão/fundamento, evidencia-se, de forma tão manifesta quanto necessária, que mais não representam do que a invocação abstracta e genérica de supostas infracções dos princípios/deveres supra identificados, mas sem estabelecer qualquer efectiva concretização e conexão com o caso apreço.
Por um lado, nas conclusões 27ª a 30ª refere-se a violação simultânea dos deveres de gestão processual e adequação processual e do princípio do contraditório apenas com base em que «as partes foram surpreendidas com uma decisão prematura, com a qual não contavam», em que «a dispensa de audiência prévia e extinção, sem mais, dos presentes autos, afiguram-se abrutas e desproporcionais», e em que «nem se diga que a matéria controvertida e alegada pelas partes havia já sido debatida suficientemente nos articulados», mas sem nada concretizar e justificar, o que, por si só, demonstra a sua falta da fundamentação.
Ainda assim, importa frisar que, como estamos no âmbito de uma acção comum de valor não superior a metade da alçada da Relação, como decorre da conjugação do disposto nos arts. 595º/1b) e 597º do C.P.Civil de 2013, a realização da audiência prévia é uma opção do Juiz, sendo que só é legalmente exigível a sua efectiva realização quando o fim do processo o tornem necessário e adequado, acrescendo que o despacho saneador também neste tipo de acção é um momento processualmente adequado ao conhecimento imediato do mérito quando a apreciação dos pedidos e/ou excepções peremptórias não depende da produção de mais provas.
Sucede que não se vislumbra (nem a Ré o indica) qual seria, ou poderia ser, o acto de simplificação e agilização processual e/ou o acto de suprimento da falta de pressupostos processuais (cfr. art. 6º) e/ou o acto adequado à especificidade desta acção e que assegurasse a equidade do processo (cfr. art. 547º) que o Tribunal a quo deveria ter praticado/realizado/promovido em sede de audiência prévia, pelo que, no caso em apreço, a opção do Juiz pela não realização da audiência prévia não consubstancia qualquer violação do poder/dever de gestão processual nem do princípio da adequação processual.
E mais sucede que, tendo o Tribunal a quo considerado que se encontrava provada toda a matéria de facto relevante para o conhecimento de mérito e que eram irrelevantes os (poucos) factos que permaneciam controvertidos [o que é legalmente permitido pelo disposto nos referidos arts. 595º/1b) e 597º/c)], não se vislumbra (nem a Ré o justifica) qual foi a solução jurídica inserta no saneador-sentença recorrido que não tivesse sido objecto de discussão na presente acção e/ou que tivesse sido inesperada/inovatória perante as questões suscitadas nos articulados: o Tribunal a quo apreciou e julgou procedente a pretensão de devolução do veículo com base no direito de propriedade invocado pela Autora e assente quer na presunção do registo quer na usucapião, e julgou improcedente a pretensão indemnizatória pela provação do uso, tudo questões constantes da petição inicial e sobre as quais a Ré se pronunciou na contestação, na qual mais invocou um direito de propriedade do extinto casal sobre o veículo por via de usucapião, direito que o Tribunal a quo considerou inexistir por falta de alegação de factos, sendo que a Autora se pronunciou sobre este invocado direito de propriedade no articulado de réplica, e, como resulta da mera análise do seu teor, a fundamentação do saneador-sentença recorrido respeita apenas à argumentação e fundamentação deduzidas pelas partes naqueles articulados. Deste modo, a opção do Juiz pela não realização da audiência prévia e decisão de conhecer imediatamente o mérito da causa não representa qualquer violação concreta do princípio do contraditório.
Por um lado, nas conclusões 31ª a 33ª refere-se a violação direito fundamental do acesso ao direito e tutela jurisdicional apenas com base em que «ao prescindir da audiência prévia e ao decidir sem que antes permitisse às partes a produção de prova, nomeadamente para permitir a audição das testemunhas arrolada quer pela Recorrente, quer pela Recorrida, pelo que deveria o douto Tribunal “a quo” ter suscitado essas dúvidas, ao invés de dar como assentes factos sobre os quais recaem dúvidas e não há qualquer sustentabilidade nos autos». Também aqui nada se concretiza e justifica (quais são esses factos sobre os quais recaem dúvidas?), o que, por si só, comprova a sua falta da fundamentação.
Mesmo assim, importa salientar que, como supra já se explicou e concluiu, a matéria que integra o facto provado nº6 do saneador-sentença recorrido está efectivamente demonstrada e por confissão da própria Ré, e a contestação não contém a alegação de qualquer facto concreto que, a provar-se, pudesse conduzir à elisão da presunção do registo de propriedade do veículo a favor da Autora (através da demonstração de uma alegada aquisição desse direito por via de usucapião a favor do extinto casal), não se vislumbrando (nem a Ré indica) qualquer facto relevante que exija a produção de mais prova (nomeadamente, testemunhal) em sede audiência final. Assim sendo, o conhecimento imediato do mérito da causa, sem prosseguimento dos autos para a realização da audiência final, não configura qualquer efectiva violação do direito fundamental do acesso ao direito e tutela jurisdicional, designadamente do direito à prova.
Portanto, também tem que improceder esta quinta razão/fundamento.
Por conseguinte e sem necessidade de outras considerações, a resposta à presente questão, que no âmbito do recurso incumbe a este Tribunal ad quem apreciar, é necessariamente no sentido de que estavam preenchidos todos os requisitos legais para o Tribunal a quo, em sede de despacho saneador, ter decidido do mérito da causa quanto aos pedidos formulados pela Autora, não havendo necessidade de qualquer produção de prova.
Perante a resposta alcançada na resolução desta questão, deverá improceder o recurso de apelação interposto pela Ré/Recorrente quanto a esta questão.
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4.5. Do Conhecimento do Pedido Reconvencional (em substituição)
Tendo em consideração a conclusão que supra se alcançou na resolução da questão sob o ponto «4.3.», mais especificamente no sentido de que deverá ser revogado o despacho de inadmissibilidade de reconvenção (1ªdecisão recorrida) e ser declarado que a Ré/Recorrente tem legitimidade processual activa para deduzir a reconvenção e que é admissível a reconvenção, coloca-se a questão de se saber se este Tribunal ad quem pode substituir-se ao Tribunal a quo, nos termos e para os efeitos do art. 665º/2 do C.P.Civil de 2013, o qual dispõe: “Se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários”.
Como explica António Abrantes Geraldes[50], “O mesmo ocorre nos casos em que, apesar de não se verificar uma situação de nulidade da sentença, o tribunal a quo tenha deixado de apreciar determinada questão considerada prejudicada pela solução dada a outra. Neste caso, se existirem elementos para conhecer das questões que ficaram excluídas da primitiva decisão, a Relação apreciá-las-á também, sem necessidade sequer de expressa iniciativa da parte… Vejamos algumas situações: a) No despacho saneador o juiz conheceu, oficiosamente ou não, de uma exceção dilatória e, por isso, absolveu o réu da instância e, por isso, absolveu o réu da instância com fundamento na sua ilegitimidade. Se a Relação expressar um entendimento oposto quanto a tal decisão, deve determinar a baixa do processo para se conheça do mérito se acaso houver factos controvertidos que devam ser objecto de prova. Na situação inversa, verificando-se que, pela posição adotada pelas partes ou pela análise dos autos, todos os elementos de facto necessários ao enquadramento jurídico do mérito da causa se encontram presentes, deve proferir decisão de mérito…”.
No caso em apreço, verifica-se precisamente a situação exemplificada no trecho supra transcrito: em sede de saneador, o Tribunal a quo considerou verificada a excepção dilatória da ilegitimidade activa da Ré para deduzir o pedido reconvencional, não tendo admitido a reconvenção; porém, como resulta da resolução da questão sob o ponto «4.3.», este Tribunal ad quem entendeu não se verificar tal excepção dilatória e que a reconvenção devia ser admitida.
Ora, como decorre necessariamente das conclusões alcançadas na resolução da questão sob o ponto «4.4.», na contestação/reconvenção não foram alegados quaisquer factos concretos e precisos que pudessem ser susceptíveis de prova e que pudessem comprovar a existência da aquisição a favor do extinto casal do direito de propriedade sobre o veículo por via de usucapião (e, por consequência, elidir a presunção que decorre do registo a favor da Autora). Assim sendo, inexistem quaisquer factos controvertidos relativamente ao pedido reconvencional, pelo que não se verifica qualquer necessidade dos presentes autos prosseguirem os seus trâmites com vista à realização da audiência final (e inerente produção de prova).
E, importa salientar que, como emerge quer dos articulados, quer do saneador-sentença, quer das próprias alegações e contra-alegações de recurso, todos aspectos factuais e jurídicos que respeitam ao pedido reconvencional deduzido pela Ré, foram amplamente discutidos pelas partes. Com efeito, embora sem apreciar em concreto o mérito do pedido reconvencional (porque não a admitiu), como resulta da parte da decisão que anteriormente se transcreveu, o Tribunal a quo apreciou toda a matéria que a Ré alegou para fundamentar a sua pretensão de aquisição, por via de usucapião, do direito de propriedade sobre o veículo pelo extinto casal (e que, em simultâneo, elidiria a presunção decorrente do registo a favor da Autora), e concluiu que aquela «não invocou factos susceptíveis de consubstanciar uma verdadeira posse em seu nome ou do extinto casal», mais acrescendo que parte relevante do recurso interposto pela Ré (cfr. conclusões 13ª a 33º) visou precisamente colocar em causa tal entendimento do Tribunal a quo. Perante isto, o conhecimento do mérito do pedido reconvencional por este Tribunal ad quem jamais pode configurar ou representar uma decisão-surpresa.
Neste “quadro”, este Tribunal ad quem entende que os autos reúnem todos os elementos necessários ao conhecimento do mérito do pedido reconvencional, o que se passava a fazer ao abrigo do disposto no art. 665º/2 (não havendo fundamento legal para se dar cumprimento ao nº3 do mesmo preceito).
Como é manifesto perante todas as considerações supra realizadas (quer no âmbito da presente questão, quer no âmbito da questão sob o ponto «4.3.»), a apreciação e decisão sobre o pedido reconvencional mostra-se simples e de sentido evidente: tendo-se já explicado e concluído que a contestação não contém a alegação de qualquer facto concreto que, a provar-se, pudesse conduzir à elisão da presunção do registo de propriedade do veículo a favor da Autora, ou seja, que pudesse comprovar uma situação de usucapião sobre o veículo a favor do extinto casal constituído pela Ré e o seu então marido, então o pedido reconvencional relativo a que «seja declarada a propriedade do citado veículo a favor do extinto casal constituído pela aqui Ré e BB» carece em absoluto de fundamento legal e tem que improceder, tal como tem que improceder o pedido reconvencional consistente em que «seja anulado o registo de propriedade do veículo de matrícula ..-BA-.., marca ..., a favor da Autora» já que, não tendo sido invocado qualquer fundamento concreto de anulação do registo, tal pretensão mais não constitui e represente do que uma mera consequência daquela invocada (mas improcedente) aquisição de propriedade por usucapião (aliás, a Ré não alegou qualquer causa concreta e autónoma para a anulação do registo).
Por conseguinte e sem necessidade de outras considerações, em substituição do Tribunal a quo, deverá julgar-se improcedente o pedido reconvencional deduzido pela Ré e absolver-se a Autora do mesmo.
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4.6. Do Recurso Subordinado - Da Indemnização pela Privação de Uso
No que concerne à indemnização dos danos associados à privação do uso de bens, designadamente de veículos automóveis, seguimos aqui, de perto, o entendimento expresso no Ac. desta RG de 05/05/2022[51].
Na Jurisprudência formaram-se três entendimentos quanto à questão da necessidade (ou não) de demonstração da ocorrência de prejuízos concretos para o lesado resultantes da impossibilidade de uso e fruição do veículo para que o denominado dano de privação seja indemnizável, como se dá nota no Ac. do STJ de 28/01/2021[52]: “(…) sobre a problemática do direito à indemnização pela privação do uso de um determinado bem formaram-se três correntes (…) segundo uma tese, defendida, designadamente por Abrantes Geraldes (…) e Menezes Leitão (…) e perfilhada mormente no Acórdão do STJ, de 05.07.2007 (processo  nº 07B18496), a privação do direito de uso e fruição integrado no direito de propriedade configura, por si só,  um dano indemnizável, independentemente da utilização que se faça, ou não, do bem em causa durante o período da privação. Já para os defensores de uma segunda tese, defendida entre outros, nos Acórdãos do STJ, de 10.07.2012 (processo nº3482/06.3TVLSB.L1.S1), de 04.07.2013 (processo nº5031/07.7TVLSB.L1.S1) e de 10.01.2012 (processo nº189/04.0TBMAI.P1.S1), a atribuição de uma tal indemnização depende da prova do dano concreto, ou seja,  para a determinação do dano deve o lesado concretizar e demonstrar a situação hipotética que existiria se não fosse a lesão (ocupação ou privação do uso). Assim, no que concerne à privação do uso de um bem imóvel, afirmou-se, nos Acórdãos do STJ, de 08.05.2007 (processo nº 07A1066) e de 06.05.2008 (processo nº 08A1389) , que  a mera privação (de uso) da fração reivindicada ou do prédio reivindicado «impedindo, embora, o proprietário do gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição nos termos do art. 1305º do CC, só constitui dano indemnizável se alegada e provada, pelo dono, a frustração de um propósito real, concreto e efetivo de proceder à sua utilização, os termos em que o faria e o que auferiria, não fora a ocupação-detenção, pelo lesante». No mesmo sentido, afirmou-se no acórdão do STJ, de 10.07.2008 (processo nº 08A2179) que «A mera privação (de uso) do prédio esbulhado, impedindo, embora, possuidor do gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição (nos termos do artigo 1305.º do Código Civil) só constitui dano indemnizável se alegada e provada, por aquele a frustração de um propósito, real, concreto e efectivo de proceder à sua utilização, os termos em que o faria e o que auferiria, não fora a ocupação-detenção, pelo lesante. Por sua vez, para os defensores de uma terceira tese, sufragada entre outros, nos Acórdãos do STJ de 02.06.2009 (processo nº1583/1999.S1), de 12.01.2012 (processo nº 1875/06.5TBVNO.C1.S1), de 03.10.2013 (processo nº1261/07.0TBOLHE.E1.S1) e de 14.07.2016 (processo nº3102/12.7TBVCT.G1.S1), apesar de não chegar a prova da privação da coisa, pura e simples, também não é de exigir a prova efetiva do dano concreto, bastando, antes, que o lesado demonstre que pretende usar a coisa, ou seja, que dela pretende retirar as utilidades (ou alguma delas) que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela atuação ilícita do lesante. Em sentido próximo, escreve Paulo Mota Pinto que a indemnização do dano da privação do uso pressupõe a demonstração da possibilidade de certa utilização concreta ou da afetação da possibilidade dessa utilização, como integradora das faculdades do proprietário. Assim, sendo a coisa em questão um prédio urbano, decidiu-se no Acórdão do STJ, de 26.05.2009 (processo nº09A0531), que «será suficiente demonstrar que se destinava a ser colocado no mercado de arrendamento ou que o seu destino era a habitação própria, se pudesse dispor dele em condições de normalidade. Mas será dispensável a prova efectiva que estava já negociado um concreto contrato de arrendamento e a respetiva renda acordada ou os prejuízos efectivos decorrentes de o não poder, desde logo, habitar»” (os sublinhados são nossos).
Como se salienta no Ac. do STJ de 17/06/2021[53], a terceira corrente (posição intermédia) é hoje tendencialmente maioritária na Jurisprudência do STJ: como explica Maria da Graça Trigo[54], “em paralelo com o aprofundamento do problema surgiu uma posição intermédia que parte da exclusão da reparação do dano em abstrato mas que, num segundo nível, admite como suficiente a prova da ocorrência de danos concretos com base numa presunção. Ao lesado pede-se apenas a prova que utiliza habitualmente a viatura na sua vida diária, presumindo-se que, da respetiva privação, derivem danos efetivos”.
           
Precisamente sobre a privação do uso de veículo automóvel, e seguindo a tese intermédia, explica-se no Ac. do STJ de 09/03/2010[55] que “quando a privação do uso recaia sobre um automóvel, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente (o que na generalidade das situações concretas constituirá um facto notório ou poderá resultar de presunções naturais a retirar da factualidade provada) para que possa exigir-se ao lesante uma indemnização a esse título, que corresponderá, regra geral, ao custo do aluguer de uma viatura de idênticas características, mesmo que o lesado não tenha recorrido ao aluguer de um veículo de substituição, uma vez que bem pode acontecer que não tenha disponibilidades económicas para isso, sem que tal signifique que não sofreu danos ou prejuízos pela privação do uso do seu veículo. Não necessita, por isso, de provar directa e concretamente prejuízos efectivos, como, por exemplo, que deixou de fazer esta ou aquela viagem de negócios ou de lazer, que teve de utilizar outros meios de transporte (táxi, transportes públicos, etc.) com o custo correspondente. Tudo isso estará abrangido pela privação do uso do veículo a ressarcir nos termos referidos ou, em última análise, se necessário, segundo critérios de equidade, sem prejuízo de se poder, evidentemente, alegar e provar outros danos emergentes ou lucros cessantes”.
           
Seguindo também a posição intermédia, decidiu-se no Ac. do STJ de 16/03/2011[56]: “I - A privação injustificada do uso de uma coisa pode constituir um ilícito susceptível de gerar obrigação de indemnizar, uma vez que, na normalidade dos casos, impedirá o respectivo proprietário do exercício dos direitos inerentes à propriedade, impedindo-o de usar a coisa, de fruir as utilidades que ela normalmente lhe proporcionaria e de dela dispor como melhor lhe aprouver, violando o seu direito de propriedade. II - Porém, podem configurar-se situações da vida real em que o titular da coisa não tenha interesse algum em usá-la, não pretenda retirar as utilidades que aquele bem normalmente lhe podia proporcionar ou pura e simplesmente não usa a coisa. Nessas situações, não poderá falar-se de prejuízo ou dano decorrente da privação do uso, visto que não existe uso, e, não havendo dano, não há, evidentemente, obrigação de indemnizar. III - Competindo ao lesado provar o dano ou prejuízo que quer ver ressarcido, não chega alegar e provar a privação da coisa, pura e simplesmente, mostrando-se ainda necessário que o autor alegue e demonstre que pretendia usar a coisa, ou seja, que dela pretende retirar as utilidades (ou algumas delas) que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela actuação ilícita do lesante. IV - Quando a privação do uso recaia sobre um veículo automóvel, danificado num acidente de viação, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente (o que na generalidade das situações concretas constituirá um facto notório ou poderá resultar de presunções naturais a retirar da factualidade provada) para que possa exigir-se do lesante uma indemnização a esse título, sem necessidade de provar directa e concretamente prejuízos efectivos. V - Se se provar que o proprietário lesado utilizava na sua vida corrente e normal o veículo sinistrado, ficando privado desse uso ordinário em consequência dos danos sofridos pela viatura no acidente, provado está o prejuízo indemnizável durante o período da privação, ou, tratando-se de inutilização total, enquanto não for indemnizado da sua perda nos termos gerais. É neste contexto que a privação do uso constitui, por si só, um prejuízo indemnizável” (os sublinhados são nossos).
E prosseguindo o mesmo entendimento (tese intermédia), no Ac. do STJ de 26/01/2021[57] realça-se que a privação do uso poderá constituir uma obrigação de indemnização sem necessidade de comprovação de certos e concretos prejuízos, mas desde que o lesado alegue e prove previamente que a privação da coisa frustrou um propósito real, concreto e efetivo do seu uso, fruição ou disposição. É o que se passa com um veículo automóvel de que se sabe que é regularmente utilizado pelo seu dono, é o que se passa com um terreno de que se sabe que o seu dono dele se serve normalmente, não se limitando simplesmente a ser dono. Nestes casos salta à vista que a intromissão de terceiros no uso e disponibilidade da coisa acaba por ser sempre fonte de algum tipo de prejuízo para o respetivo dono” (os sublinhados são nossos).
Impõe adoptar-se esta posição intermédia, hoje maioritária no STJ, e que exclui a  reparação do dano em abstrato,  mas que se basta com a prova da utilização do veículo na actividade pessoal ou profissional do lesado à data da ocorrência do facto ilícito que impede o seu uso, presumindo-se, feita essa prova, a ocorrência de danos concretos  e  devendo  fixar-se  a indemnização  mediante a ponderação das  circunstâncias apuradas, com recurso à equidade, quando necessário [como se refere no Ac. do STJ de 17/11/2021[58], “Dano emergente da privação do uso em que, face às dificuldades de prova que existem em matéria de quantificação da indemnização por equivalente, a equidade (cfr. art. 566.º/3 do C. Civil) tem um amplo campo de intervenção”].
No saneador-sentença recorrido, o Tribunal a quo julgou improcedente a pretensão da Autora relativa ao pedido indemnizatório pela privação do uso do veículo, com base na seguinte fundamentação:
“(…) no caso dos autos, a própria autora reconhece que o veículo foi sendo usado pela ré, pelo seu ex-marido e respectiva família, pelo que, em rigor, não era um veículo com que a sociedade contasse e de que necessitasse para a sua actividade normal. Reconhecendo-se que possa ser um bem útil à sociedade, a verdade é que, no caso concreto, a alegação da autora mostra-se insuficiente para a conclusão de um concreto prejuízo pela sua não utilização, razão pela qual se considera ser improcedente o pedido indemnizatório por si formulado”.
Em sede de recurso subordinado, a Autora/Recorrente defende a revogação desta parte do saneador-sentença recorrido, essencialmente, com base no seguinte: «ficou provado que a Autora era a proprietária do veículo automóvel; a recorrida recusou entregar o veículo automóvel apesar de interpelada para tal; a partir da data limite que lhe foi concedida para entregar o veículo, 15.01.2021, a recorrente sabia e tinha plena consciência, que estava a impedir o uso pela Autora do veículo, impedindo a utilização pelos seus colaboradores e mesmo assim recusou entregar o mesmo; a recorrente causou prejuízos à Autora inerentes a privação do uso do veículo; a mera privação do uso de um bem pelo seu proprietário, ainda que desacompanhada de qualquer prejuízo patrimonial concreto, constitui um dano juridicamente ressarcível na medida em que implica a substração ao lesado de uma parte das faculdades que o direito de propriedade lhe confere, designadamente a faculdade de gozar o bem» (cfr. conclusões 4ª a 10ª).
É manifesto que não assiste qualquer razão à Autora/Recorrente.
Por um lado, como resulta das considerações jurídicas supra realizadas, este Tribunal ad quem não adere nem subscreve a tese/corrente segundo a qual «a privação do direito de uso e fruição configura, por si só, um dano indemnizável, independentemente da utilização que se faça, ou não, do bem em causa», sendo que é unicamente nesta tese que se encontra alicerçada a presente pretensão recursória.
Por outro lado, para além de no recurso também nada invocar nesse sentido, certo é que, analisando o teor da petição inicial, se verifica que a Autora não alegou um único facto concreto e preciso no sentido de demonstrar que, antes da carta de interpelação datada de 24/12/2020 (cfr. facto provado nº8), o veículo em causa era habitualmente utilizado pela sociedade, estando até provado facto de sentido completamente contrário (já que o mesmo era utilizado pela Ré nas suas deslocações família - cfr. facto provado nº7). Com efeito, para além de admitir a utilização do veículo pela Ré (ainda que enquanto mulher do seu administrador - cfr. art. 13º da petição), a Autora omitiu, em absoluto, a alegação sobre o concreto uso profissional que o administrador (então marido da Ré) dava ao veículo (a parte final do art. 14º da petição mais não constitui do que uma consideração genérica e vaga), e/ou sobre a concreta utilização veículo por um qualquer seu colaborador ou trabalhador (o teor do alegado nos arts. 4º a 6º da petição é absolutamente genérico, abstracto e até contraditório, não se vislumbrando como é que se conciliava uma eventual utilização do veículo por outro administrador, e/ou colaborador, com a utilização pela própria Ré).
E, por fim, a Autora igualmente não alegou, em sede de petição inicial, qualquer dano concreto emergente da falta de entrega do veículo pela Ré na sequência do prazo fixado na carta de interpelação (cfr. facto provado nº8), isto é, não invocou naquele articulado qualquer matéria de facto que pudesse traduzir um propósito real, concreto e efetivo do uso, fruição ou disposição do veículo, limitando-se a invocar, mais uma vez de forma genérica e vaga que a entrega era «para que o mesmo voltasse a ser utilizado exclusivamente por si e demais colaboradores da Autora» (mas sem nada concretizar e precisar – cfr. 2ªparte do art. 15º da petição).
Deste modo, impõe concluir-se que, no articulado inicial, a Autora não alegou factos concretos suficientes para comprovar que a falta de entrega do veículo a impediu de continuar a utilizá-lo como o fazia habitualmente ou lhe causou um dano concreto.
Por conseguinte e sem necessidade de outras considerações, a resposta à presente questão, que no âmbito do recurso subordinado incumbe a este Tribunal ad quem apreciar, é necessariamente no sentido de que não assiste à Autora o direito a receber da Ré uma indemnização pela privação de uso do veículo e, por via disso, improcede o fundamento deste recurso
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4.5. Do Mérito dos Recursos
Perante as respostas alcançadas quanto às questões que se impunham decidir, deverá julgar-se apenas parcialmente procedente recurso de apelação interposto pela Ré/Recorrente e deverá julgar-se integralmente improcedente o recurso subordinado interporto pela Autora/Recorrente.
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4.6. Da Responsabilidade quanto a Custas
Procedendo apenas parcialmente o recurso interporto pela Ré/Recorrente, porque ficaram ambas vencidas, deverão aquela e a Autora/Recorrente suportar as custas na proporção do respectivo decaimento, que deverá ser fixado em 2/3 e em 1/3 respectivamente (art. 527º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013).
Improcedendo totalmente o recurso subordinado, porque ficou vencida, deverá a Autora/Recorrente suportar as respectivas custas (art. 527º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013).
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5. DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação:

1) Em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pela Ré/Recorrente e, em consequência,
a) revogam o despacho de inadmissibilidade de reconvenção e declara-se que a Ré tem legitimidade processual activa para deduzir o pedido reconvencional e que é admissível a reconvenção;
b) mantêm o saneador-sentença quanto ao ponto a) do decisório;
c) e, em substituição, julgam totalmente improcedente o pedido reconvencional deduzido pela Ré, absolvendo a Autora do mesmo;
2) E em julgar integralmente improcedente o recurso subordinado interposto pela Autora/Recorrente e, em consequência, mantêm o saneador-sentença quanto ao ponto b) do decisório.
Custas do recurso de apelação interporto pela Ré/Recorrente, a cargo desta e da Autora/Recorrente na proporção de 2/3 e de 1/3 respectivamente.
Custas do recurso subordinado, a cargo da Autora/Recorrente.
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Guimarães, 19 de Janeiro de 2023.
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
 
Relator - Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício;
1ºAdjunto - José Carlos Pereira Duarte;
2ºAdjunto - Maria Gorete Roxo Pinto Baldaia de Morais.

[1]António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ªedição actualizada, Almedina, p. 139.
[2]Ac. STJ de 07/07/2016, Juiz Conselheiro Gonçalves da Rocha, proc. nº156/12.0TTCSC.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[3]Juiz Desembargador José Moreira Dias, proc. nº1867/14.0TBBCL-F.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[4]In Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, Coimbra Editora, 1945, p. 172/173
[5]In Coimbra Editora, 2ªedição, 1985, p. 687.
[6]In Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1981, Vol. V, p. 140.
[7]In Notas ao Código de Processo Civil, III, p. 194.
[8]In Estudos sobre o Processo Civil, p. 221.
[9]In Da Sentença Cível, p. 39.
[10]Juiz Conselheiro Ribeiro Cardoso, proc. nº835/15.0T8LRA.C3.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[11]Juíza Conselheira Leonor Cruz Rodrigues, proc. nº3157/17.8T8VFX.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[12]Juiz Desembargador Vieira e Cunha, proc. nº1887/04-1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[13]Juíza Desembargador Ana Cristina Duarte, proc. nº1/08.0TJVNF-EK.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[14]In Manual de Processo Civil, 2ªedição, p. 323.
[15]Antunes Varela, in obra citada, p. 324.
[16]In Comentário ao Código Processo Civil, Vol. III, p. 98.
[17]In CJ, 1991, IV, p. 247.
[18]No mesmo sentido, quanto ao alcance da segunda parte da alínea a), Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código Processo Civil, vol. II, p. 28; Ac. STJ de 19/07/63, in BMJ, 129º, p. 410 e Ac. STJ de 15/06/89, in AJ, 0º/90, p. 13.
[19]Juíza Desembargadora Maria Eugénia Pedro, proc nº5870/20.3T8BRG-B.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg (neste aresto, o aqui Relator foi 1ºAdjunto).
[20]In Manuel de Processo Civil, 2ªedição, p. 135.
[21]Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 82.
[22] Neste sentido, Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil II, p. 167 e Antunes Varela, in RLJ, 114º, p. 141.
[23]Entendia que a legitimidade se afere pela posição das partes na relação material controvertida, tal como ela configurada na petição inicial pelo autor - in Gazeta da Relação de Lisboa, 32º, p. 247.
[24]Cfr. o preâmbulo do Dec.-Lei nº329-A/95, de 12/12.
[25]Juiz Conselheiro Bernardo Domingos, proc. nº5297/12.0TBMTS.P1.S2, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[26]Juiz Desembargador Paulo Dias da Silva, proc nº1403/20.0T8PVZ.P1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.
[27]Juiz Conselheiro Serra Baptista, proc. nº33/08.9TMBRG.G1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[28]In Manual de Direito da Família, p. 224.
[29]Cfr. o citado Ac. RP 18/11/2021, Juiz Desembargador Paulo Dias da Silva, proc nº1403/20.0T8PVZ.P1.
[30]In “Breves considerações acerca do regime transitório aplicável às relações patrimoniais dos ex-cônjuges entre a dissolução do casamento e a liquidação do património do casal”, p. 7, disponível in http://repositorio.uportu.pt/jspui/bitstream/11328/665/1/Eva_Dias_Costa.1.pdf.
[31]In RLJ, ano 129°, p. 335.
[32]In Código Civil Anotado, volume III, 2ª Edição Revista e atualizada, Coimbra Editora, pág.350, na anotação que faz ao artigo 1404º do Código Civil
[33]Juiz Conselheiro Serra Baptista, proc. nº33/08.9TMBRG.G1.S1.
[34]Juiz Desembargador Luís Cravo, proc nº3146/12.9TBLRA.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.
[35]Juiz Desembargador Paulo Dias da Silva, proc nº1403/20.0T8PVZ.P1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.
[36]Ac. STJ 10/07/2012, Juiz Conselheiro Gabriel Catarino, proc. nº115/03.3TBCCH.E1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. No mesmo sentido, Ac. STJ 19/02/2004, Juiz Conselheiro Ferreira de Almeida, proc. nº03B4369, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[37]Cfr. o citado STJ 10/07/2012, Juiz Conselheiro Gabriel Catarino, proc. nº115/03.3TBCCH.E1.S1.
[38]Ac. do STJ de 06/04/2017, Juiz Conselheiro Nunes Ribeiro, proc. nº1578/11.9TBVNG.P1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[39]Juiz Conselheiro Olindo Geraldes, proc. nº423/11.0TBHRT.L2.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[40]Cfr. Ac. do STJ de 08/10/2015, Juíza Conselheira Fernanda Isabel, proc. nº1143/06.2TBCLD.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[41]Cfr. Ac. desta RG de 28/01/2021, Juíza Desembargadora Margarida Almeida Fernandes, proc. nº138/18.8T8MGD.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[42]Relativamente a este facto, o Tribunal a quo consignou que “… cfr. confissão da autora na contestação”, o que se trata de um manifesto lapso de escrita uma vez que a confissão é da Ré, através do teor do art. 33º da contestação.
[43]Cfr. Ac. RE 10/03/2022, Juiz Desembargador Tomé de Carvalho, proc. nº7679/19.8T8STB-A.E1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtre.
[44]Juiz Conselheiro Hélder Roque, proc. nº543/05TBNZR.C1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[45]In Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ªedição, p.22 e 23.
[46]In obra citada, p.755.
[47]In obra citada, p. 738.
[48]Juiz Desembargador Fonte Ramos, proc. nº3854/18.0T8PBL-A.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.
[49]In obra citada, p. 749.
[50]In obra referida, p. 381 e 382.
[51]Juíza Desembargadora Maria Eugénia Pedro, proc. nº148/20.5T8MAC.G1, cuja publicação se desconhece (aresto no qual o aqui Relator foi 1ºAdjunto).
[52]Juíza Conselheira Rosa Tching, proc. nº14232/17.9T8LSB.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[53]Juiz Conselheiro João Cura Mariano, proc. nº879/17.7T8EVR.E1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[54]In Responsabilidade Civil - Temas Especiais, Universidade Católica Editora, 2015, p. 60.
[55]Juiz Conselheiro Alves Velho, proc. nº1247/07.4TJVNF.P1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[56]Juiz Conselheiro Moreira Alves, proc. nº3922/07.2TBVCT.G1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[57]Juiz Conselheiro José Rainho, proc. nº6122/17.1T8FNC.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[58]Juiz Conselheiro Barateiro Martins, proc. nº6686/18.2T8GMR.G1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.