Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2621/20.6T8GMR.G1
Relator: ALEXANDRA VIANA LOPES
Descritores: ENCERRAMENTO DE PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
NULIDADE PROCESSUAL
ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL
CASO JULGADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. A decisão não é nula, nos termos do art.615º/1-d) do C. P. Civil, quando o Tribunal a quo, na apreciação das condições prévias para conhecer a arguição de nulidade processual invocada numa reclamação, considerou que foram proferidas decisões prévias que esgotaram a possibilidade de a conhecer de mérito a reclamação, nos termos do art.613º do C. P. Civil.
2. A apresentação de reclamação por nulidade do ato de apreensão e dos atos subsequentes, após ter sido proferida decisão de encerramento do processo de insolvência, nos termos do art.230º/1-a) do CIRE (por termo do rateio após a liquidação), entretanto transitada em julgado, impede a apreciação de mérito da arguição de nulidade, uma vez: que a prolação do despacho de encerramento da insolvência, nos termos do art.230º/1-a) do CIRE, esgotou o poder jurisdicional do Tribunal da 1ª instância; que o trânsito em julgado do referido despacho impede o Tribunal de proferir decisões contraditórias com o mesmo no mesmo processo.
Decisão Texto Integral:
As Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam no seguinte
ACÓRDÃO

I. Relatório:

No processo de insolvência de AA:
1. A 26.01.2022 foi proferido despacho de encerramento da insolvência, no qual consta:
«Foi realizado o rateio final, conforme o comprovam os documentos que antecedem.
Dispõe o artigo 230º n.º 1 al. a) que o processo de insolvência que prosseguiu após a declaração da mesma é declarado encerrado, após a realização do rateio final.
Assim e ao abrigo do supra citado preceito declara-se encerrado o processo.

Encerrado o processo:
· Cessam todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência, recuperando designadamente o devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios, sem prejuízo dos efeitos da qualificação da insolvência como culposa;
· Cessam as atribuições da comissão de credores e do administrador da insolvência, com excepção das referentes à apresentação de contas e das conferidas, se for o caso, pelo plano de insolvência;
· Os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do n.º 1 do artigo 242.o, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos ou a decisão proferida em acção de verificação ulterior, em conjugação, se for o caso, com a sentença homologatória do plano de insolvência;
· Os credores da massa podem reclamar do devedor os seus direitos não satisfeitos.
*
Registe e notifique os credores conhecidos – art. 230º nº2 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.
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Remeta certidão à Conservatória do Registo competente, no prazo de 5 dias, nos termos e para os efeitos previstos no art. 38º nº2, al. b) e nº 5 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, com a menção de que o encerramento se deve à realização do rateio final– art. 230º nº2 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.
*
Dê publicidade à presente decisão nos termos previstos no art. 38º nºs 1 e 5 em conjugação com o disposto no art. 230º nº2 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.
Expressamente se consigna o caracter fortuito desta insolvência, nos termos e para os efeitos do art. 233º n.º 6 do CIRE.»

2. A 26.01.2022 BB apresentou reclamação, na qual:

a) No intróito, declarou: «vem, sob a forma de RECLAMAÇÃO, arguir a nulidade da apreensão de um dos bens integrantes na massa insolvente e consequente venda do mesmo, nos termos e com os seguintes fundamentos: (…)».
b) Alegou que no processo de insolvência (cuja insolvência foi decretada em 2020): foi apreendido e vendido o direito do insolvente ao quinhão de uma herança, direito este que todavia não era deste insolvente por ter sido previamente comprado por si (reclamante) na ação executiva que identifica, compra titulada pelo título de transmissão de 21.10.2018; não foi citado na ação insolvência, nos termos do art.781º/1 do CPC, ex vi do art. 17º/1 do CIRE, para que pudesse vir a pedir a separação e restituição do bem, nos termos dos arts.144º e 146º do CIRE, o que causa uma nulidade da apreensão e da venda, nos termos do art.195º/1 do CPC.
c) Pediu: «Termos em que se requer a junção aos autos do presente requerimento, devendo V. Ex.ª decretar a nulidade quer da integração e apreensão do direito e acção do aqui Insolvente AA à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de CC, falecido a .../.../2011, com o NIF ... e mulher DD, falecida a .../.../2013, com o NIF ..., quer da subsequente venda do referido quinhão hereditário a EE, ordenando-se ainda o cancelamento do respectivo registo.».

3. O administrador da insolvência e os insolventes apresentaram oposição, nas quais:
3.1. O administrador da insolvência defendeu que não ocorre qualquer nulidade, uma vez: que, apesar de petição inicial constar que os insolventes não tinham bens, das buscas realizadas na Conservatória de Registo Predial resultou a existência do quinhão hereditário do insolvente na herança aberta por óbito de CC e DD, que integra três imóveis inscritos nas matrizes prediais urbanas de ... (...) sob os arts.597º, 68º e 1121º; que, face à discrepância entre a informação da petição e a do registo, contactou os insolventes, que declararam que o quinhão hereditário era propriedade sua; que, após isto, realizou a apreensão, sem que os insolventes tivessem dito à avaliadora que o direito não lhes pertencia; que os insolventes tiveram conhecimento da venda eletrónica promovida a 16.11.2020, quer através de um requerimento junto aos autos a 30.11.2020, quer através de comunicação de 11.03.2021, à sua mandatária; que a proposta foi apresentada pelo filho dos insolventes, depois de ter ficado deserto o leilão decorrido até 31.03.2021; que só conheceu que o quinhão já não pertencia  aos insolventes, através do requerimento de BB em 26.01.2022.
3.2. Os insolventes declararam: que, após a surpresa da apreensão do quinhão hereditário que há muito havia sido adjudicado a BB, informaram de imediato o administrador da insolvência; que o filho licitou o quinhão, pois ficaram convencidos da existência de qualquer erro com a referida adjudicação que legitimasse a apreensão a favor da massa insolvente.
4. A 26.05.2022 foi proferido despacho sobre a reclamação referida em I-2 supra, notificado por ato de 27.05.2022, que decidiu «Nestes termos, este Tribunal neste momento, entendendo estar esgotado o seu poder jurisdicional e não tendo sido interposto recurso, não conhece da pretendida nulidade da apreensão do bem.», por considerar: que, apesar da presunção de propriedade de um bem não sujeito a registo poder ser ilidida pelo executado ou terceiro, nos termos do art.764º/3 do C. P. Civil, não foi deduzida qualquer impugnação, nem o Tribunal e o senhor administrador da insolvência tiveram conhecimento da mesma relativamente à propriedade do bem alienado até 26.01.2023, dia em que foram encerrados os presentes autos; que, apesar de entender que o regime do art.163º do CIRE, em referência aos arts.161º e 162º do CIRE, não impede a discussão da nulidade da venda por vícios procedimentais no próprio processo de insolvência, não devendo o lesado dispor apenas de ação indemnizatória autónoma, de acordo com o defendido no Ac. STJ de 04.04.2017, no presente caso em concreto não pode ser apreciado, uma vez que o requerente não recorreu do despacho de apreensão de bens, do despacho de liquidação, da sentença proferida no apenso de liquidação, do rateio efetuado aos credores e do despacho de encerramento do processo, considerando estar esgotado o poder jurisdicional quanto à matéria da causa, nos termos do art.613º do C. P. Civil e ficar precludida a possibilidade de o juiz conhecer de qualquer questão relativa a atos processuais do processo que até esse momento não tenha sido suscitada, oficiosamente ou a requerimento;
5. A 17.06.2022 o reclamante de I-2 supra declarou interpor recurso de apelação do despacho de encerramento do processo de insolvência de 26.01.2022 e, subsidiariamente, do despacho proferido a 26.05.2022 sobre a sua reclamação de 26.01.2022, recurso no qual apresentou as seguintes conclusões:
«I. Vem o presente recurso interposto do despacho de encerramento dos autos principais proferido a 21.01.2022 e, subsidiariamente, do despacho datado de 26.05.2022, no qual o Tribunal de 1.ª instância indeferiu a reclamação apresentada pelo ora Recorrente.
II. É contra a bondade do assim decidido que se insurge o aqui apelante, porquanto tem ele como certo que se verifica a nulidade quer da integração e apreensão do direito e acção do Insolvente AA à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de CC, falecido a .../.../2011, com o NIF ... e mulher DD, falecida a .../.../2013, com o NIF ..., quer de todos os actos subsequentes, por absolutamente dependentes daquele, mormente a venda do referido quinhão hereditário a EE, pelo que há desacerto da solução jurídica dada ao caso sub judice, uma vez que, por um lado, os autos nunca poderiam ter sido encerrados e, por outro, impunha-se ao Tribunal recorrido o conhecimento de tal nulidade, arguida pelo aqui Recorrente mediante reclamação.
III. Relativamente ao despacho de encerramento dos autos, importa primeiramente referir que o mesmo, apesar de ter sido proferido a 26.01.2022, é ainda passível de recurso, e isto porque, nesse mesmo dia, o ora Recorrente apresentou a competente reclamação, arguindo a nulidade referida no ponto anterior, incluindo a do aludido despacho, ao abrigo do disposto no art. 195.º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil, aplicável por via do art. 17.º, n.º 1 do CIRE, por se tratar de acto subsequente à apreensão do bem referido no art. 2.º supra, pelo que o prazo para o trânsito em julgado apenas se iniciou no passado dia 31.05.2022, data na qual foi proferida a decisão final quanto à reclamação.
IV. Dito isto, a 12.10.2013, o Recorrente apresentou procedimento cautelar de arresto contra os ora Insolventes, peticionando, para o que aqui interessa, o arresto do direito e acção de AA à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de CC, falecido a .../.../2011, com o NIF ... e mulher DD, falecida a .../.../2013, com o NIF ..., procedimento este que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo de Competência Genérica ..., com o n.º 496/13...., tendo a respectiva sentença sido proferida a 30.12.2013, julgando-o totalmente procedente.
V. Face a tal, a 29.11.2013, o Recorrente intentou contra os Insolventes a acção principal de que aquele procedimento cautelar era dependente, a qual correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo de Instância Central ..., ... Secção Cível – Juiz ..., com o n.º 557/13...., com vista a obter a condenação destes últimos no pagamento da quantia de 84.777,46€, acrescida de juros moratórios legais, sendo que a 26.10.2015 foi proferida sentença homologatória do acordo celebrado entre as partes e no qual os Insolventes se confessaram devedores ao Recorrente da quantia de 39.295,46€ (trinta e nove mil, duzentos e noventa e cinco euros e quarenta e seis cêntimos).
VI. Posteriormente, o Recorrente foi obrigado a intentar acção executiva contra os Insolventes, a qual correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo de Execução ... – Juiz ..., com o n.º 7669/15...., sendo que em tais autos: 1) foi penhorado o direito e acção de D..., aqui Insolvente e Recorrido, à herança aberta por óbito de CC e DD, tendo sido imediatamente efectuado o correspondente registo, ...) foi promovida a venda de tal quinhão hereditário, mediante propostas em carta fechada e 3) através de tal venda, foi adjudicado ao Recorrente o “direito e acção do executado varão (aqui Insolvente D...) à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de: CC, falecido em .../.../2011, com o NIF ... e mulher DD, falecida em .../.../2013, com o NIF ..., do qual fazem parte, entre outros, os seguintes imóveis: a) Prédio urbano, correspondente a uma morada de casas de vivenda, quinteiros e cortes com horta, sito em ..., freguesia ... (...), concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o número ...15/... (...) e inscrita na respectiva matriz sob o artigo ...8; b) Prédio urbano, correspondente a uma casa para habitação de cava, ..., andar e logradouro, sita em ..., freguesia ... (...), concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o número ...28/... (...), inscrita na respectiva matriz sob o artigo ...97; c) Prédio urbano, destinado a garagem, sito no lugar ..., freguesia ... (...), concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o número ...16/... (...) e inscrita na respectiva matriz sob o artigo ...21.”.
VII. Posto isto, a 26.10.2018, o Sr. Agente de Execução FF, com a cédula profissional n.º ...13, emitiu o respectivo título de transmissão, o que significa que a partir de tal data o aludido quinhão hereditário passou a pertencer única e exclusivamente ao ora Recorrente.
VIII. Contudo e sem que nada o fizesse prever, no final do mês de Janeiro do presente ano, o Recorrente tomou conhecimento que o referido quinhão hereditário, sua propriedade, foi apreendido e posteriormente vendido a EE, no âmbito dos presentes autos.
IX. Ora, o disposto no art. 781.º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil, aplicável por via do art. 17.º, n.º 1 do CIRE e em qualquer momento do processo de insolvência, impunha a citação do Recorrente aquando da integração de tal bem na massa insolvente dos aqui Recorridos e consequente apreensão do mesmo, o que não sucedeu.
X. Veja-se que esta aplicabilidade das regras da penhora à apreensão dos bens em processos de insolvência, mormente quanto às citações e notificações de terceiros, tem sido abundantemente defendida na doutrina e jurisprudência, nomeadamente por José Lebre de Freitas e Emília Palma, exatamente por se entender que tal apreensão é um acto executivo.
XI. A massa insolvente foi então constituída com um bem de terceiro, em clara violação do art. 46.º do CIRE, sendo que a falta de citação do Recorrente constituiu uma omissão de formalidade prescrita por lei, irregularidade essa que constitui nulidade, por influir no exame e decisão da causa, uma vez que caso este último tivesse sido oportunamente citado teria a possibilidade de, até à liquidação da massa, requerer a separação e restituição do bem em causa, (cfr. os arts. 144.º, n.º 1, ou 146.º, ambos do CIRE), evitando, assim, a posterior venda do dito quinhão hereditário, sua propriedade, a outrem, mais concretamente ao filho dos aqui Insolventes e que invocou, em sede executiva, o direito de remição relativamente ao bem aqui em causa, o qual apenas não lhe foi adjudicado por não ter sido atempadamente depositado o respectivo preço.
XII. Posto isto, torna-se evidente que os Insolventes, mediante a inobservância das formalidades legais, utilizaram, conscientemente e de má-fé, o presente processo de insolvência para obter o que não lograram conseguir em sede executiva, bem sabendo que, à data da integração e apreensão, o quinhão era já propriedade do aqui Recorrente desde 2018, facto este que ocultaram propositadamente do Sr. Administrador da Insolvência, mais se fazendo passar como verdadeiros proprietários de tal bem, o que ficou desde logo provado aquando das respostas apresentadas quer pelos Insolventes, quer posteriormente pelo Sr. Administrador de Insolvência, à reclamação apresentada pelo ora Recorrente, através dos requerimentos datados de, respectivamente, 17.02.2022 e 20.04.2022.
XIII. Acresce que, o próprio Tribunal de 1.ª instância, apesar de não ter conhecido da arguida nulidade, por entender ser este o meio adequado para o efeito, reconheceu no despacho de indeferimento
a má-fé dos Insolventes.
XIV. Por fim, mesmo que se entenda pela aplicabilidade ao caso vertente do art. 163.º do CIRE – o que não se concede, nem concebe e apenas se equaciona por mero dever e cautela de patrocínio, uma vez que não está em causa a violação do disposto nos dois artigos anteriores – deverá ter-se em linha de conta o decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04 de Abril de 2017, no qual se concluiu pela possibilidade de um lesado, neste caso um terceiro completamente alheio ao processo de insolvência, poder invocar nos próprios autos a nulidade da venda por preterição das formalidades legalmente exigidas para o efeito, sob pena de violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva.
XV. Deste modo e por tudo quanto ficou exposto, deve julgar-se procedente a presente apelação,
declarando-se nula a integração e ulterior apreensão do bem em causa e todos os actos subsequentes, inclusive quer a posterior venda e registo, quer inevitavelmente o despacho ora recorrido, ao abrigo do disposto no art. 195.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil, por violação, entre outras, das disposições legais contidas nos arts. 2.º, 781.º, n.º 1, ambos do Cód. Proc. Civil, aplicáveis por via do disposto no art. 17.º, n.º 1 do CIRE, 1.º, n.º 1, 46.º, 144.º, n.º 1, 146.º, 149.º e seguintes, todos do CIRE, 892.º do Cód. Civil e ainda dos direitos e princípios a um processo justo e equitativo, de acesso ao direito e aos tribunais e ainda de contraditório e contrariedade, os quais se encontram previstos no art. 20.º, n.ºs 4 e 5, ínsitos ainda no princípio do Estado de Direito Democrático previsto no art. 2.º, todos da Constituição da República Portuguesa.
XVI. Subsidiariamente e caso se entenda que, ao contrário da posição defendida pelo Tribunal de 1.ª instância, o meio processualmente adequado para invocar a nulidade supra arguida é mediante reclamação, a decidir pelo próprio Tribunal da causa, e não através de recurso do despacho de encerramento dos autos, vem então o Recorrente interpor apelação do despacho de indeferimento da aludida reclamação.
XVII. Deste modo e em primeiro lugar, de forma a evitar fastidiosas repetições e por mera cautela e dever de patrocínio, dá-se aqui por integralmente reproduzido tudo o referido nos pontos III. A
XIV. das presentes conclusões.
XVIII. Assim sendo, no aludido despacho ora recorrido, a Mm.ª Juiz de Direito 1) defendeu que não
pode conhecer do mérito da causa por a lei insolvencial não contemplar a possibilidade de anulação de actos praticados pelo Administrador da Insolvência, excepto no caso previsto no art. 163.º do CIRE e 2) citou e afirmou a sua total concordância com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça ao qual se fez referência nos arts. 58.º e 59.º supra, (e para os quais, por brevidade, se remete), tendo, no entanto, concluído que, mercê das decisões já transitadas em julgado, não podia conhecer da arguida nulidade, encontrando-se extinto o seu poder jurisdicional.
XIX. Salvo melhor opinião, não assiste qualquer razão ao Tribunal recorrido, e isto porque, em primeiro lugar, o Recorrente, enquanto terceiro completamente alheio ao processo, só teve conhecimento do andamento do mesmo após a reclamação por si apresentada, o que significa que não poderia – mesmo que assim o quisesse - ter recorrido dos diversos despachos que foram sendo proferidos, quer quanto à apreensão, quer quanto à liquidação dos bens, pois só agora teve conhecimento dos mesmos.
XX. Em segundo lugar, a opção processual do Recorrente em arguir a nulidade em causa mediante
reclamação e não através de recurso ordinário teve por base a posição doutrinal e jurisprudencial defendida, nomeadamente, pelo Prof. Alberto dos Reis, segundo a qual a arguição de nulidades mediante reclamação deve ser utilizada quando as partes ou os funcionários judiciais praticam ou omitem actos que a lei não admite ou prescreve, ou seja, quando a nulidade não decorre ou é consequência de decisão judicial, o que se verifica nos presentes autos, uma vez que quer a integração na massa insolvente e posterior apreensão do bem, quer a falta de citação do Recorrente aquando da mesma, dizem respeito a actos e omissões praticados pelo Sr. Administrador da Insolvência em clara violação das normas legais aplicáveis ao caso, ao abrigo dos amplos poderes que lhe são conferidos.
XXI. Em terceiro lugar, o despacho de encerramento dos autos ainda não transitou em julgado, tal como foi expressamente reconhecido pela Mm.ª Juiz de Direito, pelo que é destituído de qualquer razão o fundamento invocado pelo Tribunal de 1.ª instância quando refere que, mercê das decisões transitadas em julgado, não pode decidir do mérito da causa.
XXII. Veja-se que, enquanto não se formar o caso julgado, o que ocorre apenas quando uma decisão e/ou despacho é já insusceptível de impugnação por meio de reclamação ou através de recurso ordinário, é legalmente permitido ao Tribunal que proferiu a decisão e/ou o despacho judicial, alterá-lo ou revogá-lo, pois o mesmo ainda não se sedimentou na ordem jurídica portuguesa.
XXIII. Deste modo, considerando que a reclamação foi apresentada no próprio dia do despacho de encerramento dos autos principais, é manifesto que o Tribunal recorrido podia e devia ter conhecido da arguida nulidade.
XXIV. Aliás, entender-se em sentido contrário seria totalmente descabido, pois se o próprio legislador permitiu de forma expressa, através do disposto no art. 163.º do CIRE e mediante a violação das normas anteriores, a possibilidade do Tribunal anular actos do Sr. Administrador da Insolvência, mesmo contendo essa anulação com as decisões anteriores, deverá aplicar-se igual entendimento ao caso vertente e quanto à nulidade arguida pelo Recorrente, através de uma interpretação sistemática da lei.
XXV. Por fim, e ao contrário do defendido pelo Tribunal recorrido, a nulidade em causa cabe indiscutivelmente no âmbito dos arts. 613.º, n.º 2 e 615.º, n.º 1, al. d), ambos do Cód. Proc. Civil, pois, em primeiro lugar, tais normativos são aplicados, com as necessárias adaptações e segundo o n.º 3 do citado artigo 613.º, aos despachos e, em segundo lugar, em todos os despachos posteriores à apreensão e integração na massa insolvente do bem aqui em discussão, mormente no despacho de encerramento dos autos, a 1.ª instância conheceu de matéria de que não podia ter conhecimento, uma vez que, sendo as ditas integração e subsequente apreensão nulas, todos os actos posteriores, por serem directamente dependentes daqueles, encontram-se também feridos com o vício da nulidade, o que significa que o Tribunal recorrido se pronunciou quanto a questões violadoras da lei, o que nunca poderia ter ocorrido.
XXVI. Posto isto, indeferindo o Tribunal recorrido a reclamação apresentada pelo ora Recorrente, violou este, entre outras, as disposições legais contidas nos arts. 2.º, 613.º, 615.º, 628.º, 781.º, n.º 1, todos do Cód. Proc. Civil, aplicáveis por via do disposto no art. 17.º, n.º 1 do CIRE, 1.º, n.º 1, 46.º, 144.º, n.º 1, 146.º, 149.º e seguintes, todos do CIRE, 892.º do Cód. Civil e ainda dos direitos e princípios a um processo justo e equitativo, de acesso ao direito e aos tribunais e ainda de contraditório e contrariedade, os quais se encontram previstos no art. 20.º, n.ºs 4 e 5, ínsitos ainda no princípio do Estado de Direito Democrático previsto no art. 2.º, todos da Constituição da República Portuguesa.
XXVII. Deste modo e por tudo quanto ficou exposto, deve julgar-se procedente a presente apelação, revogando-se o despacho de indeferimento da reclamação apresentada pelo ora Recorrente e substituindo-o por outro que ordene o Tribunal de 1.ª instância a pronunciar-se sobre a ali arguida nulidade.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V.ªs Ex.ªs doutamente suprirão, deve conceder-se provimento ao presente recurso, em conformidade com as conclusões acabadas de alinhar e com todas as legais consequências.
Assim decidindo, farão V.ªs Ex.ªs, como se espera, a habitual JUSTIÇA!».
6. Não foram apresentadas contra-alegações.        
7. Por despacho de 01.07.2022 foi admitido tabelarmente o recurso de apelação, sem apreciação da questão suscitada previamente.
8. Subido o recurso a esta Relação de Guimarães, e após terem sido sanadas questões prévias, a 15.12.2022 ordenou-se o cumprimento do contraditório sobre a intempestividade do recurso do despacho de 26.01.2022.
9. Cumprido o contraditório ordenado: o administrador da insolvência e o insolvente defenderam que o recurso era intempestivo; o reclamante defendeu a tempestividade do recurso do despacho de 26.01.2022.
10. Por despacho de 08.02.2023: foi rejeitado o recurso do despacho de encerramento de 26.01.2022, por intempestividade; foi admitido o recurso de apelação subsidiário do despacho de 25.05.2022, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

II. Questões a decidir:

As conclusões das alegações do recurso delimitam o seu objeto, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso não decididas por decisão transitada em julgado e da livre qualificação jurídica dos factos pelo Tribunal, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 608º/ 2, ex vi do art. 663º/2, 635º/4, 639º/1 e 2, 641º/2- b) e 5º/3 do C. P. Civil.

Definem-se como questões a decidir:

a) Se ocorre alguma nulidade da decisão recorrida de 26.05.2022, nos termos do art.615º/1-d) do C. P. Civil.
b) Se existe erro de direito da decisão recorrida de 26.05.2022, que julgou esgotado o poder jurisdicional (com o despacho encerramento do processo de insolvência, proferido nos termos do art.230º/1-a) do C.I.R.E.) e não apreciou de mérito a arguição de nulidade processual de falta de cumprimento do art.781º/1 do C. P. Civil, ex vi do art.17º do CIRE (que o recorrente defende causar nulidade da apreensão e da venda subsequente).

III. Fundamentação:

1. Matéria de facto provada:
1.1. No processo de insolvência de GG e de AA, requerido por estes, que correu termos sob o nº2621/20...., a 09.06.2020 foi proferida sentença, sobre a qual não recaiu recurso, na qual, nomeadamente, foi declarada a insolvência dos devedores/requerentes, foi fixado o prazo de 30 dias para a reclamação de créditos e foi determinada a apreensão de bens.
1.2. No apenso de apreensão nº2621/20...., a 08.09.2020 foi realizada a apreensão de bens, mediante o seguinte auto:
«Aos oito dias do mês de setembro de dois mil e vinte, eu, HH, na qualidade de Administrador de Insolvência de GG e AA, declarados insolventes no âmbito do processo n.º 2621/20...., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Comércio ..., Juiz ..., procedi à apreensão do direito que a seguir se descreve:
Verba nº 1
Direito e ação à herança ilíquida e indivisa, aberta por óbito de CC e DD, cujos bens imóveis que integram a herança são:
a) Prédio urbano, composto por casa para habitação de cave, ... e andar com logradouro, confronta a norte com ... a sul com CC a nascente com Dr. II e a poente com lage pública, com área total de 723,00m2, sito em ..., ... (n. Senhora Do ...), ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...28/... (n. Senhora Do ...) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...97 da freguesia ... (n. Senhora Do ...), com valor patrimonial urbano de 53.815,30€.
b) Prédio urbano, composto por uma morada de casa de vivenda, quinteiros e cortes com sua horta junta, confronta a norte com JJ a sul com KK a nascente com caminho público e a poente com baldio, sito em ..., ... (n. Senhora Do ...), ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...15/... (n. Senhora Do ...) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...8 da freguesia ... (n. Senhora Do ...), com valor patrimonial urbano de 88.203,50€.
c) Prédio urbano, destinado a garagem, confronta a norte, sul e poente com CC e a nascente com estrada municipal, com área total de 200,00m2, sito em ..., ... (n. Senhora Do ...), ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...16/... (n. Senhora Do ...) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...21 da freguesia ... (n. Senhora Do ...), com valor patrimonial urbano de 8.272,25€.
Observação: À herança concorrem cinco herdeiros, entre eles o insolvente, sendo a quota ideal nesta herança de 1/5.».       
1.3. Após 1.2. supra, não foi deduzido pedido de restituição e separação de bens da massa insolvente, por apenso ao processo de insolvência.
1.4. No processo de liquidação nº2621/20...., apenso ao processo de insolvência, por sentença de 23.06.2021, notificada aos insolventes, administrador da insolvência e Ministério Público, foi julgada finda a liquidação.
1.5. No processo de insolvência de GG e de AA, requerido por estes, que correu termos sob o nº2621/20....:
a) A 26.01.2022 foi proferido despacho de encerramento da insolvência, nos termos do art.230º/1-a) do CIRE, referido em I-1 supra e transitado em julgado.
b) Ocorreram os atos processuais referidos em I-2 a 4 supra, seguidos dos atos de recurso do despacho de 26.05.2022.

2. Apreciação do objeto do recurso:
2.1. Arguição de nulidade da decisão, nos termos do art.615º/1-d) do C.P. Civil:
O recorrente defendeu que o Tribunal a quo conheceu de matéria que não podia tomar conhecimento por ser violadora da lei, nos termos do art.615º/1-d) do C. P. Civil, uma vez que, sendo nulas a integração do direito ao quinhão hereditário na massa insolvente e a sua apreensão, todos os atos posteriores, por serem diretamente dependentes daqueles, encontram-se também feridos de nulidade.
2.1.1. Enquadramento jurídico:
A sentença proferida é nula quando «O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;» (art.615º/1-d) do C. P. Civil), sanção esta referida à inobservância da obrigação do art.608º/2 do C. P. Civil, que dispõe que «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.».
José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre referem, a este propósito:
«Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art.608-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da da sentença, que as partes hajam invocado (…).
Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de exceções não deduzidas na exclusiva na disponibilidade das partes (art.608-2), é nula a sentença que o faça.»[i].
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.03.2017, proferido no processo nº7095/10.7TBMTS.P1.S1, relatado por Tomé Gomes, sumaria-se, em relação às questões a resolver do art.608º/2 do C. P. Civil:
«I. O não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC.
II. Tais situações reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC.
III. O mesmo se deve entender nos casos em que o tribunal considere meios de prova de que lhe não era lícito socorrer-se ou não atenda a meios de prova apresentados ou produzidos, admissíveis necessários e pertinentes. Qualquer dessas eventualidades não se traduz em excesso ou omissão de pronúncia que impliquem a nulidade da sentença, mas, quando muito, em erro de julgamento a considerar em sede de apreciação de mérito.»[ii].
2.1.2. Situação em análise:
Importa apreciar a decisão recorrida, de acordo com o regime de direito enunciado.
Nesta apreciação, verifica-se que não existe qualquer fundamento para reconhecer a nulidade da decisão, nos termos do art.615º/1-d) do C. P. Civil, tendo em conta que o Tribunal a quo não apreciou qualquer questão diferente daquela que lhe foi suscitada pelo reclamante, ainda que se tenha abstido de conhecer do mérito da mesma, por entender que estava esgotado o poder jurisdicional, nos termos do art.613º do C. P. Civil.
De facto, na apreciação das condições prévias para conhecer a arguição da nulidade processual invocada na reclamação considerou que a decisão de encerramento da liquidação e a decisão de encerramento do processo de insolvência, que não foram objeto do recurso, esgotavam a possibilidade de conhecer o mérito de nulidades processuais ocorridas antes da sua prolação, atos processuais dos autos que podiam ter sido conhecidos oficiosamente pelo Tribunal a quo, nos termos do art.5º/2-c) do C. P. Civil, para efeitos do conhecimento oficioso que lhe cabe do disposto no art.613º do C. P. Civil.
Desta forma, improcede a arguição de nulidade processual, sem prejuízo de apreciar se a decisão incorreu em erro de direito.
2.2. Arguição de erro de direito:
O reclamante/recorrente, na invocada qualidade de adquirente desde 2018 do direito ao quinhão hereditário apreendido e vendido no processo de insolvência em 2020 e 2021, como se fosse do insolvente, arguiu que na apreensão do direito não foi notificado como contitular nos termos do art.781º do C. P. Civil, ex vi do art.17º do CIRE, o que o impediu de pedir a separação de bem nos termos dos arts.144º e 146º do CIRE, gerando a nulidade da apreensão e da venda, nos termos do art.195º do C. P. Civil.
Tendo sido proferida decisão no Tribunal a quo, pela qual foi rejeitado o conhecimento da nulidade processual por estar esgotado o poder jurisdicional, nos termos do art.613º do C. P. Civil, importa conhecer neste recurso da mesma se pode ser conhecida a nulidade processual arguida quando a mesma foi feita após a prolação do despacho de encerramento da insolvência, nos termos do art.230º/1-a) do CIRE, entretanto transitado em julgado.
2.2.1. Enquadramento jurídico:
2.2.1.1. Esgotamento do poder jurisdicional e caso julgado:
A Constituição da República Portuguesa, no seu art.205º, sob a epígrafe «Decisões dos tribunais», prescreve «1. (…) 2. As decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades. 3. A lei regula os termos da execução das decisões dos tribunais relativamente a qualquer autoridade e determina as sanções a aplicar aos responsáveis pela sua inexecução.».
Proferida sentença ou despacho «fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa» (art.613º/1 e 3 do C. P. Civil), salvo a possibilidade de retificar erros materiais (art.614º do C. P. Civil), suprir nulidades (art.615º do C. P, Civil) e reformar a sentença ou despacho (arts.616º e 617º do C. P. Civil), possibilidades que, quando a sentença ou despacho admitam recurso ordinário, devem ser pedidas nas alegações de recurso. Como refere Rodrigues Bastos «Já os praxistas ensinavam que a sentença fazia terminar o ofício do juiz, por aplicação da regra contida nas Ordenações de que «depois que o julgador der a sentença e a publicar, não tem mais poder de a revogar.»»[iii].
Por esta razão, também se tem defendido maioritariamente que, tendo sido praticada uma nulidade processual, que vem a ser coberta por uma decisão judicial, a invocação da mesma deve ser feita no recurso desta decisão. Abrantes Geraldes, a este propósito refere:
«A sujeição ao regime das nulidades processuais, nos termos dos arts.195.º e 199.º levaria a que a decisão que deferisse a nulidade se repercutisse na invalidação da sentença, com a vantagem adicional de tal ser determinado pelo próprio juiz, fora das exigências e dos encargos (inclusive financeiros) inerentes à interposição de recurso.
Porém, tal solução defronta-se com o enorme impedimento constituído pela regra praticamente inultrapassável, ínsita no art.613.º, norma a que presidem razões de certeza e de segurança jurídica que levam a que, proferida sentença (ou qualquer outra decisão), esgota-se o poder jurisdicional, de modo que, sendo admissível recurso, é exclusivamente por esta via que pode ser alcançada a revogação ou modificação do teor da decisão»[iv].
A sentença ou despacho, por sua vez, «considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação» (art.628º do C. P. Civil). Assim, a definitividade de uma decisão sujeita a recurso ordinário consuma-se quando estiver esgotada a possibilidade de recurso ordinário (arts.629º ss do C. P. Civil, sem prejuízo da renúncia do art.632º do C. P. Civil) e a definitividade de uma decisão sem recurso ordinário ocorre no fim do prazo de 10 dias para reclamação por eventual arguição de nulidades ou de reforma de sentença (arts.149º, 615º, 616º do C. P. Civil).
A decisão definitiva, de acordo com um critério da eficácia, terá força obrigatória: dentro do processo e fora dele, se for sentença ou despacho saneador que decida do mérito da causa- caso julgado material, nos termos do art.619º do C. P. Civil (nos limites fixados pelos arts.580º e 581º do C. P. Civil, ressalvado recurso extraordinário de revisão dos arts.696º do C. P. Civil e sem prejuízo da oposição à execução baseada em sentença transitada em julgado, nos termos do art.729º do C. P. Civil); ou apenas dentro do processo, se for sentença ou despacho que tenha recaído apenas sobre a relação processual- caso julgado formal, nos termos do art.620º do C. P. Civil.
Esta imutabilidade e indiscutibilidade da decisão transitada em julgado, como «garantia processual de fonte constitucional enquanto expressão do princípio da segurança jurídica, própria do Estado de Direito (cf. artigo 2.º da Constituição)»[v], manifesta-se, de acordo com a construção doutrinária e jurisprudencial do caso julgado:
a) Num efeito negativo e formal, que opera como exceção dilatória e que evita que o Tribunal julgue a ação repetida (entre os mesmos sujeitos e sobre o mesmo objeto processual) e reproduza ou contradiga a decisão anterior, nos termos dos arts.577º/i), 578º, 580º e 581º do C. P. Civil:
«Entre as mesmas partes e com o mesmo objeto (isto é, com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir), não é admissível nova discussão: o caso julgado opera negativamente, constituindo uma exceção dilatória que evita a repetição da causa (efeito negativo do caso julgado)»[vi].
Neste caso, a decisão anterior impede o conhecimento do objeto posterior[vii].
b) Num efeito positivo e material, que opera no conhecimento de mérito da causa, através da autoridade do caso julgado, quando, apesar de existir identidade de sujeitos ou via equiparada a esta, se está perante objetos processuais distintos.
«Entre as mesmas partes mas com objetos diferenciados, entre si e ligados por uma relação de prejudicialidade, a decisão impõe-se enquanto pressuposto material da nova decisão: o caso julgado opera positivamente, já não no plano da admissibilidade da ação mas no do mérito da causa, com ele ficando assente um elemento da causa de pedir (efeito positivo do caso julgado).[viii]»
Este efeito «admite a produção de decisões de mérito sobre objetos materiais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão»[ix].
Neste caso, a decisão anterior vincula a decisão de mérito do distinto objeto posterior[x].
2.2.1.2. Caso julgado da decisão de encerramento do processo de insolvência, nos termos do art.230º/a) do CIRE:
Prosseguindo o processo de insolvência após a declaração desta, o juiz declara o seu encerramento, nomeadamente, após a realização do rateio final, sem prejuízo do rateio final apenas poder determinar o encerramento do processo, nos casos em que tenha havido recurso do despacho inicial de cessão de rendimento disponível, depois do trânsito em julgado dessa decisão (arts.230º/1-a) e 239º/6 do CIRE).
No caso de encerramento do processo de insolvência por estar terminado o rateio final, nos termos do art.230º/1-a) do CIRE, a decisão de encerramento tem como efeitos: a cessação de efeitos da insolvência, de atribuições de órgãos, das restrições do exercício de direitos dos credores da insolvência e da massa, nos termos previstos no art.233º/1-a), b), c) e d) do CIRE («a) Cessam todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência, recuperando designadamente o devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios, sem prejuízo dos efeitos da qualificação da insolvência como culposa e do disposto no artigo seguinte; b) Cessam as atribuições da comissão de credores e do administrador da insolvência, com excepção das referentes à apresentação de contas e das conferidas, se for o caso, pelo plano de insolvência; c) Os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do n.º 1 do artigo 242.º, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos ou a decisão proferida em acção de verificação ulterior, em conjugação, se for o caso, com a sentença homologatória do plano de insolvência; d) Os credores da massa podem reclamar do devedor os seus direitos não satisfeitos.»); o prosseguimento autónomo de ações apensas ao processo de insolvência e não extintas, nos termos do nº4 do art.230º do CIRE («4 - Exceptuados os processos de verificação de créditos, qualquer acção que corra por dependência do processo de insolvência e cuja instância não se extinga, nos termos da alínea b) do n.º 2, nem deva ser prosseguida pelo administrador da insolvência, nos termos do plano de insolvência, é desapensada do processo e remetida para o tribunal competente, passando o devedor a ter exclusiva legitimidade para a causa, independentemente de habilitação ou do acordo da contraparte.»); a restituição da documentação do devedor, nos termos do nº5 do art.230º do CIRE («5 - Nos 10 dias posteriores ao encerramento, o administrador da insolvência entrega no tribunal, para arquivo, toda a documentação relativa ao processo que se encontre em seu poder, bem como os elementos da contabilidade do devedor que não hajam de ser restituídos ao próprio.»); a declaração do caráter fortuito da insolvência se não estiver pendente incidente de qualificação, nos termos do nº6 do art.230º do CIRE («6 - Sempre que ocorra o encerramento do processo de insolvência sem que tenha sido aberto incidente de qualificação por aplicação do disposto na alínea i) do n.º 1 do artigo 36.º, deve o juiz declarar expressamente na decisão prevista no artigo 230.º o caráter fortuito da insolvência.»).
Apenas nos casos em que o encerramento do processo de insolvência ocorre no despacho inicial do incidente de exoneração de passivo restante, para efeitos da contagem do período de cessão, é que o mesmo, excecionalmente, «determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível.», sendo que a existirem bens a liquidar, a liquidação pode prosseguir (arts.230º/1-e) e 233º/7 do CIRE)[xi].
2.2.1.3. Caso julgado da decisão de extinção da instância executiva:
A extinção da instância executiva, nos termos do art.849º do C. P. Civil («a) Logo que se efetue o depósito da quantia liquidada, nos termos do artigo 847.º; b) Depois de efetuada a liquidação e os pagamentos, pelo agente de execução, nos termos do Regulamento das Custas Processuais, tanto no caso do artigo anterior como quando se mostre satisfeita pelo pagamento coercivo a obrigação exequenda; c) Nos casos referidos no n.º 3 do artigo 748.º, no n.º 2 do artigo 750.º, no n.º 6 do artigo 799.º e no n.º 4 do artigo 855.º, por inutilidade superveniente da lide; d) No caso referido na alínea b) do n.º 4 do artigo 779.º; e) No caso referido no n.º 4 do artigo 794.º;»), faz terminar o processo executivo.
Esta extinção, todavia, não impede a sua renovação nos casos circunscritos previstos por lei, nos termos do art.850º do C. P. Civil: no caso de ter sido dada execução um título com trato sucessivo e vencerem-se novas prestações após a extinção («1 - A extinção da execução, quando o título tenha trato sucessivo, não obsta a que a ação executiva se renove no mesmo processo para pagamento de prestações que se vençam posteriormente.»); no caso da extinção ter ocorrido por pagamento ao exequente e existir credor reclamante sem graduação de créditos e bem que garanta a dívida do mesmo («2 - Também o credor reclamante, cujo crédito esteja vencido e haja reclamado para ser pago pelo produto de bens penhorados que não chegaram entretanto a ser vendidos nem adjudicados, pode requerer, no prazo de 10 dias contados da notificação da extinção da execução, a renovação desta para efetiva verificação, graduação e pagamento do seu crédito. 3 - O requerimento faz prosseguir a execução, mas somente quanto aos bens sobre que incida a garantia real invocada pelo requerente, que assume a posição de exequente. 4 - Não se repetem as citações e aproveita-se tudo o que tiver sido processado relativamente aos bens em que prossegue a execução, mas os outros credores e o executado são notificados do requerimento.»); no caso da execução se ter extinto por falta de bens ou de indicação de bens a penhorar («5 - O exequente pode ainda requerer a renovação da execução extinta nos termos das alíneas c), d) e e) do n.º 1 do artigo anterior, quando indique os concretos bens a penhorar, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no número anterior.»).
2.2.2. Situação em análise:
O reclamante pretendeu que se reconhecesse a nulidade processual da apreensão do direito quinhão hereditário e atos subsequentes (onde se integram a venda e o rateio da insolvência), por o quinhão ter sido por si adquirido em processo executivo anterior ao processo da insolvência, por não ter sido notificado da apreensão nos termos do art.781º do C. P. Civil, por esta omissão o ter impedido de exercer os direitos de restituição ou separação do direito apreendido, nos termos dos arts.144º e 146º do CIRE, e ter determinado, após, a venda no processo de insolvência de coisa alheia ao insolvente.
Todavia, o reclamante deduziu este pedido de nulidade do ato de apreensão e subsequentes após ter sido proferida decisão de encerramento do processo de insolvência, nos termos do art.230º/1-a) do CIRE (por termo do rateio após a liquidação), decisão esta de encerramento de processo que o reclamante deixou transitar em julgado por não recorrer da mesma tempestivamente.
Desta forma, verifica-se: que na altura em que apresentou a reclamação encontrava-se esgotado o poder jurisdicional do Tribunal da 1ª instância com o despacho de encerramento da insolvência, nos termos do art.230º/1-a) do CIRE; que com a definitividade da decisão de encerramento do processo de insolvência por ter sido realizado o rateio subsequente à liquidação ficou o Tribunal impedido de proferir decisões contraditórias com esta no mesmo processo (como o reconhecimento da nulidade processual da apreensão do direito ao quinhão hereditário, que anulasse subsequentemente a venda e o rateio posterior, julgado terminado no despacho de encerramento da insolvência).
Ainda que se considerasse aplicável ao processo da insolvência o regime da renovação da instância executiva previsto no art.850º do C. P. Civil, ex vi do art.17º do CIRE (por a mesma operar uma execução universal), para além de não estar verificada qualquer causa para a mesma, manter-se-ia o impedimento do caso julgado do despacho de declaração de encerramento a insolvência em relação às irregularidades de apreensão e liquidação prévias.
Desta forma, confirma-se a decisão de impossibilidade de conhecimento da reclamação, face ao esgotamento do poder jurisdicional do despacho de encerramento da insolvência, nos termos do art.230º/1-a) do C. P. Civil, e ao seu trânsito em julgado.

IV. Decisão:

Pelo exposto, as Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar improcedente o recurso de apelação, mantendo a decisão recorrida.
*
Custas pelo recorrente (art.527º/1 do C. P. Civil).
*
Guimarães, 27.04.2023
Assinado eletronicamente pelas Juízes Relatora, 1ª Adjunta e 2ª Adjunta     
      
Alexandra M. Viana P. Lopes
Rosália Cunha
Lígia Venade


[i] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 4ª edição, fevereiro de 2019, Almedina, pág.737.
[ii] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.03.2017, proferido no processo nº7095/10.7TBMTS.P1.S1, disponível in
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/C3E13ED356928302802580ED0053E3BA.
[iii] Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, 3ª Edição Revista e Atualizada, Lisboa, 2001, anotação ao art.666º do C.P. Civil de 1961, pág.191.
[iv] António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, 2018, Almedina, pág.27.
[v] Rui Pinto, in Código de Processo Civil anotado, Almedina, vol. II, Almedina, 2018, nota 2-I ao art.619, pág.185.
[vi] Lebre de Freitas, in «Um polvo chamado Autoridade do Caso Julgado», pág.693, in www.portal.oa.pt
[vii] Ac. RG de 07.08.2014, relatado por Jorge Teixeira no processo nº600/14.TBFLG.G1.
[viii] Lebre de Freitas, in artigo citado in ii, pág.693.
[ix] Rui Pinto, in obra citada in i, nota 2- II ao art.619, pág.186.
[x] Ac. RG de 07.08.2014, referido supra.
[xi] Alexandre Soveral Martins, in «Um Curso de Direito da Insolvência», vol. I, 3ª edição revista e atualizada, 2021, Almedina, pág. 491.