Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2443/12.8TBGMR.G2
Relator: FERNANDO BARROSO CABANELAS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO
DECISÃO FINAL
FUNDAMENTOS E REQUISITOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
A recusa da exoneração do passivo restante depende dos mesmos fundamentos e subordina-se aos mesmos requisitos previstos no artº 243º do CIRE, pelos quais poderia ter cessado antecipadamente.
Decisão Texto Integral:
Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório:

Por despacho de 25 de novembro de 2022 foi decidido alterar o rendimento disponível para toda a quantia mensalmente auferida que exceda o triplo da retribuição mínima mensal garantida vigente em Portugal.
Mais foi decidido, ao abrigo do disposto no artº 243º, nº1, alínea a), do CIRE, aplicável ex vi artº 244º, nº2, do CIRE, recusar a exoneração do passivo restante requerida pelo aqui recorrente.

Inconformado com a decisão, o insolvente apelou, formulando as seguintes conclusões:

PRIMEIRA CONCLUSÃO
A. Entende o Tribunal a quo que a falta de entrega das quantias objeto de cessão impediram a Exma. Senhora Fiduciária de distribuir valores pelos credores de modo a satisfazer os seus créditos, com evidente prejuízo para estes e decidiu autonomamente recusa a concessão da EPR, nos termos da al.a) do nº1 do art.243º, pois não cumpriu aquilo a que estava obrigado, pelo menos, com negligência grave.
B. Verifica-se o desfasamento de interpretação histórico do Tribunal a quo, já que a recente Diretiva (UE) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, reforça a posição dos devedores.
SEGUNDA CONCLUSÃO
A. A julgadora comete um pecado jurídico capital, uma vez que decidiu sem ter legitimidade para o efeito, já que nenhum credor lhe requereu tal decisão.
B. O Tribunal a quo só pode intervir se algum credor o requerer, em tempo e devidamente fundamentado, o que não aconteceu.
C. In casu, os credores nada disseram, motivo pelo qual o Juiz deve cingir a sua atividade judicante à circunferência de poderes que o legislador insolvencial, na autorictas da sua potestas de conformação, lhe atribuiu nesta sede, ou seja, de mero verificador dos pressupostos do mecanismo em causa.
D. Pelo que, não se encontram, de todo, preenchidos os pressupostos para a recusa da exoneração, ao contrário do que entende e sentencia o Tribunal a quo.
E. Aliás, andou mal o Tribunal a quo quando refere que essa violação impossibilitará a Exma. Senhora Fiduciária (…), momento de distribuição pelos credores reconhecidos os valores que lhe deveriam ter sido entregues, com evidente prejuízo para aqueles, porquanto, quem tem de alegar e comprovar o prejuízo dos credores são os próprios, pois, no entendimento do recorrente, o Tribunal não tem tal função e/ou legitimidade.
Mais: perante a ausência de qualquer alegação dos credores, a julgadora devia ter concluído que estes entendiam que os seus interesses não foram prejudicados.
(Sublinhado nosso)
F. Nesta senda, o próprio Tribunal a quo fez uma interpretação conclusiva sem demonstrar comprovar o que quer que seja, muito mais quando nenhum dos credores chorou nos autos o seu prejuízo.
G. Mais de referir, que apesar do tribunal se pronunciar sobre a equiparação do SLM, entende o tribunal como rendimento disponível a quantia de três salários mínimos mensais,
H. Ora se pergunta, consegue-se viver na ... com dignidade com três salários mínimos
I. Consegue fazer face as despesas devidamente elencadas?
J. Despesas, essas que não sequer foram valoradas;
K. Não obstante de terem sido devidamente traduzidas.
L. Contrariamente ao referido.
TERCEIRA CONCLUSÃO
A. Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do nº1, do artigo 244 o Juiz deve recusar a exoneração se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las. O que não se verificou in casu.
B. O devedor sempre cumpriu os deveres que estava adstrito-.
C. Nem toda e qualquer violação das obrigações impostas ao insolvente, como corolário da admissão liminar do pedido exoneração, releva como causa de revogação do benefício: a lei é determinante em exigir, de um aspeto, que se trate de (1) uma prevaricação dolosa ou com culpa grave e, cumulativamente, de outro, que (2) tenha prejudicado a satisfação dos credores da insolvência. A doutrina adiciona a estes dois requisitos um terceiro: o da (3) existência de um nexo causal entre a conduta dolosa do insolvente e o dano para a satisfação daqueles créditos.
D. Embora se conceba, sem dificuldade, que a violação dos deveres do insolvente- v.g. o de entregar ao fiduciário o rendimento disponível- possa resultar da inobservância de um dever de cuidado, a verdade é que a lei não contenta, para tornar licita a recusa da exoneração, com a mera negligência: exige o dolo ou a negligência grave. Todavia, nenhum dos dois se verifica nos presentes autos, sendo certo que não foram alegados quaisquer factos que integrem o dolo ou a culpa grave do recorrente; o que há são meras afirmações conclusivas da Meritíssima Juiz a quo e estas, já o sabemos, constituem res nullius.
E. A violação, com dolo, da obrigação que vincula o insolvente há de provocar um resultado: a afetação relevante da satisfação dos créditos da insolvência. Não é suficiente um prejuízo insignificante, o qual terá de ser avaliado em termos proporcionais aos interesses em causa (arts.243º al.a) e 244º nº2 in fine do CIRE). A relevância desse prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência deve ser aferida, como regra, de harmonia com um critério qualitativo que apela à censura da conduta e não em função do quantum que não foi pago por conta dos créditos sobre a insolvência, já que este apela ao resultado. Nenhum dos dois critérios se verifica nos presentes autos, desde logo face ao princípio de proporcionalidade ou razoabilidade.
F. O pensamento da lei é, assim, em traços largos, este: o comprometimento da finalidade da exoneração do passivo restante- a concessão ao devedor insolvente de um fresh start, de uma nova oportunidade, a reabilitação económica do devedor e a sua reintegração plena na vida económica, liberto das grilhetas do passivo que sobre ele pesava- só deve ocorrer quando a violação das obrigações a que o insolvente está vinculado durante o período da cessão, cause aos credores um dano significante e desproporcionado.
(Sublinhado nosso)
G. Por seu turno, há muito que está ultrapassado o terminus do período de cessão. Resulta, assim, claro que o aludido prazo se encontra definitivamente ultrapassado e, nessa medida, tal fundamento não pode servir de fundamento ao indeferimento (final) da exoneração.
H. Nos termos do arts.243º nº1 e 244º do CIRE, admite-se que haja a concessão de EPR mesmo em caso de não entrega dos valores do rendimento disponível, basta que não se verifique dolo ou a culpa grave e que não há prejuízo, por esse facto comportamental, da satisfação dos créditos sobre a insolvência.
I. A ausência do requerimento a pedir a recusa da EPR demonstra igualmente que os credores entenderam que o valor em causa não constituía prejuízo que justificasse que o recorrente perdesse a oportunidade de se reintegrar na sociedade e reforçar a economia nacional com ganhos para toda a sociedade, inclusive para os próprios credores.
J. Em suma, uma visão global dos factos já supra expostos não permite (nem nunca permitirá!) concluir que a falta de entrega à Exma. Senhora Fiduciária das quantias cedidas teve por base uma conduta dolosa ou gravemente negligente do recorrente ou que essa conduta prejudicou os interesses dos credores, por agravar a situação de insolvência, pelo que não poderia nem tinha legitimidade o Tribunal a quo para recusar a EPR ao insolvente.
QUARTA CONCLUSÃO
A. O Tribunal a quo decidiu recusar a EPR ao insolvente, tendo alegado, entre outros factos, o prejuízo para os credores, sem que nenhum credor tivesse requerido a recusa da EPR, muito menos veio alegar qualquer prejuízo, pelo que não sobrava nada mais ao Tribunal a quo do que abster-se de “conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento”, conforme estatui o art.615º nº1 al.), segunda parte do CPC.
B. Foram violadas, entre outras, as normas dos arts.6º nº1, 615º nº1 al.d) segunda parte e620º do CPC ex vi art.17º do CIRE, arts.238º, 239º nº4, al.a), 243º, 244º e 245º do CIRE e arts.20º nº5 e 205º da CRP, art.6 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e art.47º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE.
C. Não foram relevadas nem consideradas pelo tribunal a quo os comprovativos das despesas juntas em 18.03.2021 via correio eletrónico na sequência do pedido solicitado pelo tribunal a quo onde se constata a tradução e certificação dos documentos justificativos das despesas suportadas pelo insolvente;
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE, POR PROVADO, E, EM CONSEQUÊNCIA:
A) SER REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA E SUBSTITUÍDA POR OUTRA QUE CONCEDA A EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE AO RECORRENTE, POR VERIFICAÇÃO DOS PRESSUPOSTOS DE QUE A MESMA DEPENDE, NOS TERMOS DO ARTIGO 244º DO CIRE;
B) SUBSIDIARIAMENTE, SER DECLARADA NULA A DECISÃO RECORRIDA NOS TERMOS ALEGADOS E CONCLUÍDOS, COM TODAS AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS, COMO É DA MAIS ELEMENTAR E ABSOLUTA JUSTIÇA.
Não houve contra-alegações.
Os autos foram aos vistos dos excelentíssimos adjuntos.

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II – Questões a decidir:

Nos termos do disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4, e 639º, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso.
As questões a decidir são, assim, apurar se a decisão recorrida padece de nulidade e, na negativa, se estão verificados os pressupostos para recusa da exoneração do passivo restante.
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III – Fundamentação:

A. Fundamentos de facto:
Os factos provados com relevância para a decisão do presente recurso são os que constam do relatório antecedente e ainda, seguindo-se a fixação feita pela 1ª instância:

Quanto à alteração do rendimento disponível:
− O insolvente encontra-se emigrado na ...;
− O insolvente auferiu os seguintes vencimentos mensais líquidos desde o ano de 2019


O tribunal recorrido, quanto à alteração do rendimento disponível, considerou não provados os seguintes factos:

− Que o insolvente despendesse €1.350 mensais em renda;
− Que o insolvente despendesse €350 mensais em despesas de saúde;
− Que o insolvente pagasse mensalmente ao filho uma prestação de alimentos no valor de €400;
− Que o insolvente despendesse mensalmente €264 em despesas de deslocação para o seu local de trabalho;
− Que o insolvente suportasse despesas de alimentação de €500/mês.
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Quanto à decisão final do incidente de exoneração do passivo restante, o tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:

− Por sentença datada de 04.07.2014, a fls. 66 ss, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de AA, na sequência da apresentação à insolvência efetuada pelo devedor;
− Por decisão datada de 20.11.2012, a fls. 176ss, transitada em julgado, foi decidido admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo insolvente, tendo-se fixado o rendimento disponível nas quantias que excedessem o salário mínimo nacional;
− O processo de insolvência foi encerrado por despacho datado de 13.07.2015, a fls. 293, transitado em julgado;
− O insolvente cedeu à Exma. Sra. Fiduciária, durante o período de cessão, a quantia global de €833,78, correspondente a €150 em cada um dos meses de março, abril, maio, junho e agosto de 2018 e €83,78 em julho de 2018 (cfr. relatórios juntos aos autos a fls. 341, 416, 489/490, 703/704 e 849/850):
− O insolvente auferiu os seguintes valores mensais líquidos durante o período de cessão: (cfr. informações do ISS a fls. 370/371, recibos de vencimento a fls. 379v a 381, 452v a 456, 590 a 607, 666 a 671 e 742 a 747)
− Em outubro de 2017 o insolvente denunciou o contrato de trabalho, para que os efeitos da cessão se produzissem a partir de dezembro de 2017 (cfr. fls. 457);
− Em dezembro de 2018 o insolvente informou que havia cessado o contrato de trabalho por os pagamentos dos vencimentos mensais e subsídios serem irregulares, por haver trabalho suplementar não remunerado e por ter sido aliciado com um contrato de trabalho no estrangeiro, ao qual se não adaptou e tendo por isso regressado a Portugal (cfr. fls. 511);
− O insolvente inscreveu-se no IEFP em 27.11.2018, tendo a sua inscrição sido anulada em 26.12.2018 por ter faltado injustificadamente a uma convocatória registada; (cfr. informação do IEFP a fls. 518)
− O insolvente encontra-se emigrado na ... desde janeiro de 2018; (cfr. requerimento a fls. 543, apresentado em resposta a pergunta expressa do Tribunal)
− Ao insolvente não são conhecidos antecedentes criminais (cfr. CRC a fls. 764).
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B. Fundamentos de direito.

Por força do disposto no artº 218º do CPC, o presente recurso tinha que ser distribuído ao mesmo relator, como foi (e consequentemente ao mesmo coletivo). Daí que face ao anteriormente decidido, o inesperado renovar de algumas questões não terá solução diferente da já prolatada, seguindo-se de perto o ali deliberado.
Desde logo, a primeira questão a resolver é a da arguida nulidade da sentença, como impõe o artº 608º, nº1, do CPC, ex vi artº 663º, nº2, do CPC, inexistindo fundamento adjetivo para a alegada arguição subsidiária, como fez o recorrente.

Dispõe o artº 244º, nº2, do CIRE, que “A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.”
O recorrente insurgiu-se contra a circunstância de o tribunal recorrido ter oficiosamente decidido pela recusa da exoneração do passivo sem que tal questão haja sido suscitada pelos credores.
O tribunal recorrido baseou a sua decisão no disposto no artº 243º, nº1, alínea a), do CIRE, por remissão do artº 244º, nº2, do mesmo diploma.
Desde logo, a interpretação do artº 243º, nº1, alínea a), do CIRE, e mesmo o argumento literal, impõem a solução interpretativa (artº 9º do Código Civil) de que o mecanismo do nº1 seja espoletado a requerimento dos interessados ali indicados, ao invés do nº4 do mesmo preceito, onde o legislador utilizou expressamente o advérbio oficiosamente.

Se o legislador houvesse querido que o nº 1 fosse aplicado oficiosamente, tê-lo-ia dito.
Aliás, constitui jurisprudência pacífica que o incidente de cessação antecipada do procedimento de exoneração não pode ser iniciado oficiosamente pelo tribunal, como resulta de vários arestos:

(…) A cessação antecipada da exoneração ocorre:
- logo que se verifique a satisfação integral dos créditos da insolvência – artº 243º, nº4, do CIRE;
- sempre que o procedimento venha a ser extinto antes de ser concedida ao devedor a exoneração do passivo restante; e
- sempre que se verifique supervenientemente que o devedor não se mostra digno de obter a exoneração. Esta última situação ocorrerá a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência se ainda se encontrar em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, nos casos tipificados no nº1 do artº 243º do CIRE. (…) – AcRC de 7/04/2016, processo nº 3112/13.7TJCBR.C1, disponível em www.dgsi.pt, tal como os demais infra citados.
(A cessação antecipada do procedimento de exoneração) Deve ser pedida ao juiz através de requerimento apresentado por qualquer credor, pelo administrador da insolvência, se ainda estiver em funções ou pelo fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor (…) – AcRP de 11/10/2017, processo nº 1050/13.2TBOAZ.P1.
(…) O juiz não pode, oficiosamente, determinar a cessação antecipada do procedimento de exoneração com fundamento em violação, pelo devedor, das obrigações que lhe foram impostas. (…) – AcRC de 6/03/2018, processo nº 3221/12.0TBLRA.C1.
O artigo 243º do CIRE dispõe, no que tange à cessação antecipada do procedimento de exoneração, o seguinte: 1. Antes ainda de terminado o período de cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando: a) o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artº 239º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência. – AcSTJ de 9/04/2019, processo nº 279/13.8TBPCV.C1.S2.
A decisão de recusa da exoneração compete ao juiz mediante requerimento fundamentado de algum credor ou administrador da insolvência (se ainda estiver em funções), ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido pela assembleia de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor (cf. Artºs 243º, nº1, in fine, e 241º, nº3, do CIRE). Está, por isso, vedado ao Tribunal desencadear tal incidente oficiosamente. – AcRG de 22/10/2020, processo nº 1335/17.9T8GMR.G1.
O Tribunal não pode conhecer oficiosamente a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, a que alude o artº 243º, nº1, alíneas a), b), e c), do CIRE, uma vez que, ao contrário do nº4 do preceito, o impulso processual deve ser promovido pelos credores, do Administrador da Insolvência ou do fiduciário. – AcRE de 3/12/2020, processo nº 92/14.5T8OLH.E1.
(…) 3. O incidente de cessação antecipada do procedimento de exoneração não pode ser iniciado oficiosamente pelo tribunal, mas apenas mediante requerimento de credor da insolvência, do administrador de insolvência, caso este ainda se encontre em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, em que o requerente requeira essa cessação antecipada do procedimento de exoneração (pedido) e indique os fundamentos (causa de pedir) em que sustenta esse pedido. (…) – AcRG de 19/05/2022, processo nº 4112/18.6T8VCT.G1.
Compulsados os autos, inexiste qualquer requerimento por qualquer dos referidos no artº 243º, nº1, alínea a), do CIRE, a pedir a cessação antecipada do procedimento de exoneração, nem posteriormente, nos termos artº 244º, nº1, do CIRE, qualquer deles se pronunciou.
A questão que então se coloca é a de saber se essa impossibilidade de conhecimento oficioso pelo juiz de concretas causas de cessação previstas no artº 243º, nº1, do CIRE que não mereceram reação por parte do fiduciário e/ou dos credores, também vale para os casos em que não está em causa a cessação antecipada mas já a decisão final do artº 244º do CIRE. E a resposta não pode deixar de ser afirmativa. Com efeito, a remissão constante do artº 244º, nº2, do CIRE não faz qualquer ressalva. Depois, parece-nos carecer de sentido que ao juiz estivesse vedado o conhecimento oficioso ainda antes de decorrido o prazo de cessão, mas que já pudesse conhecer oficiosamente dessas mesmas causas em sede de decisão final, sem que, ouvidos o fiduciário e os credores qualquer deles haja requerido a não concessão da exoneração do passivo restante, ou seja, tinha de deixar decorrer o prazo todo para depois chegar a uma conclusão que antes lhe estava vedada. Manifestamente, tal seria uma interpretação desconforme ao imposto pelo artº 9º do Código Civil.
Concluímos, assim, que também em sede de decisão final da exoneração é vedado ao juiz o conhecimento oficioso dos factos referidos no artº 243º, nº1, do CIRE, aplicável por remissão, factos que não motivaram qualquer reação do fiduciário e/ou dos credores.

Ora, não estando aqui em causa uma cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo, mas antes a decisão final a que se refere o artº 244º do CIRE, não se pode considerar que o tribunal recorrido haja prolatado oficiosamente decisão que lhe estava vedada, antes prolatou uma decisão a que estava obrigado, não havendo por isso qualquer excesso de pronúncia. A situação será antes subsumível a hipotético erro de julgamento, improcedendo por isso a arguida nulidade.
Afastada a arguida nulidade, importa agora apreciar o mérito da decisão recorrida, nomeadamente perceber se houve erro de julgamento.
Desde logo, a partir do momento em que foi fixado o rendimento indisponível, e transitada em julgado tal decisão, todas as quantias que excedessem tal montante deveriam ter sido entregues ao fiduciário. Como é de meridiana clareza, não tendo o devedor feito prévia e tempestivamente requerimento a pedir alteração daquele montante, não pode depois vir alegar a insuficiência do mesmo para prover às suas necessidades, com efeitos retroativos, salvaguardada uma situação absolutamente inesperada que não permitisse obter o prévio consentimento em tempo útil, o que não foi manifestamente o caso. Mais, o devedor só comunicou a alteração de domicílio, para a ..., depois de instado a fazê-lo.
Paulo Mota Pinto defende que “A boa fé dever-se-ia presumir quando a insuficiência patrimonial resultasse de doença grave ou prolongada, acidente ou outro evento fortuito ou imprevisto, de modificação imprevisível da situação laboral, de alteração significativa do agregado familiar ou das suas condições de existência, ou de exploração, pelo credor, da situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de caráter da contraparte” – in “Exoneração do passivo restante: Fundamento e Constitucionalidade”, III Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2015, pág. 177.
Manifestamente, não se pode defender aqui a boa fé do devedor.

Mas será que tal permite, no caso concreto, recusar a exoneração do passivo restante?

Como se decidiu no acórdão do Tribunal Constitucional 733/2021, (no caso relativamente a uma cessação antecipada de exoneração do passivo) “Envolvendo a exoneração do passivo restante uma colisão de direitos ou valores constitucionalmente protegidos – de um lado, a proteção constitucional dos créditos, no quadro da proteção geral do património; do outro lado, a proteção da liberdade económica e do direito ao desenvolvimento da personalidade, e, também, o princípio, próprio do Estado Social de Direito, da proteção social dos mais fracos – apenas os interesses do devedor insolvente não culposo foram considerados pelo legislador como devendo prevalecer sobre os dos credores, tanto mais que para a exoneração não é exigida sequer uma satisfação parcial dos créditos destes.
Sendo de sufragar este entendimento, cumpre em todo o caso afastar a ideia de um qualquer automatismo ou efeito necessário da condenação: a recusa da exoneração do passivo restante tem de ser requerida e devidamente fundamentada por um dos interessados (cf. o corpo do nº 1 do artigo 243º do CIRE); e o juiz tem de ouvir, além dos demais interessados, o próprio devedor, de modo a poder formular um juízo valorativo sobre o respetivo comportamento (cf. a primeira parte do nº 2 do mesmo preceito).
Ora, dispensando-nos aqui de repetir as considerações que já fizemos aquando da apreciação da arguida nulidade, face ao disposto no artº 244º, nº2, do CIRE, a exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo 243. E nenhum dos legitimados ali referidos a pediu neste caso concreto.
Por outro lado, nem sequer estão verificados os pressupostos da parte final do nº3 do artº 243º do CIRE, nos termos da qual “a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.” Nenhum dos incumprimentos do insolvente se subsume a qualquer destes requisitos. Ou seja, mesmo que sufragássemos o entendimento (e não o fazemos) de que a segunda parte do nº 3 do artº 243º, do CIRE, constitui causa autónoma de cessação antecipada e de recusa de exoneração do passivo, não dependendo dos requisitos do nº1, sempre os respetivos pressupostos estariam ausentes. Mais, entendemos que os factos provados nem sequer permitem reputar a atuação do insolvente como dolosa ou com culpa grave.
Entendemos, assim, que no caso concreto inexistem fundamentos para recusar a concessão da exoneração do passivo restante (vide, neste mesmo sentido, o AcRP de 19/05/2022, processo nº 58/14.5TBPNF.P1, in www.dgsi.pt).
Há, assim, que considerar procedente o recurso interposto.
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V – Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto, revogando o despacho recorrido, e concedendo ao insolvente a exoneração do passivo restante, com os efeitos previstos no artº 245º do CIRE.
Custas pela massa insolvente.
Notifique.
Guimarães, 2 de março de 2023.

Relator: Fernando Barroso Cabanelas.
1ª Adjunta: Maria Eugénia Pedro.
2º Adjunto: Pedro Maurício.