Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4324/15.4T8BRG.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: COMODATO
SUBCOMODATO
CADUCIDADE
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- Não cumpre o ónus enunciado no art. 640º, n.º 1, al. b) do CPC o apelante que, em sede de impugnação da matéria de facto, se limita a indicar a prova que, na sua perspetiva, impunha decisão diversa quanto à matéria de facto que impugna, sem fazer uma análise crítica dessa prova, demonstrando o porquê da mesma impor solução diversa do julgamento feito pela 1ª Instância.

2- É de comodato o contrato celebrado entre um Município e uma Junta de Freguesia através do qual o primeiro cede à segunda a utilização de um edifício para que esta o utilize e frua como bem entenda.

3- São elementos essenciais do comodato, a gratuidade, a temporalidade e o dever de restituição.

4- Apesar da gratuidade, o comodato é, em regra, um contrato bilateral imperfeito, na medida em que envolve obrigações para o comodante e para o comodatário, não existindo nexo de interdependência e correspetividade (sinalagma) entre essas obrigações.

5- O comodato é um contrato de natureza real quod constitutionem, pelo que à sua perfeição não basta o mútuo acordo entre os contratantes, exigindo-se como elemento constitutivo do mesmo a entrega da coisa ao comodatário. No entanto, o comodato tem eficácia puramente obrigacional.

6- A legitimidade para celebrar o contrato de comodato, em relação ao qual vigora o princípio da liberdade de forma, não depende da qualidade de proprietário do comodante em relação à coisa cedida, bastando que este detenha poderes de uso e fruição sobre a mesma, seja a que título for, desde que não existam sobre a coisa outros direitos que impeçam a cedência do seu uso a terceiro.

7- Consubstancia subcomodato, o contrato celebrado entre a Junta de Freguesia e uma associação, em que a primeira, após a celebração do acordo referido em 2), cede à segunda parte das instalações que lhe tinham sido cedidas pelo Município, para que essa associação as utilize na prossecução dos seus fins estatutários.

8- Essa cedência da coisa a terceiro pelo comodatário, atenta a natureza pessoal do contrato de comodato (intuitu personae), depende de autorização do comodante, a qual pode ser concedida expressa ou tacitamente, no momento da celebração do contrato de comodato ou posteriormente.

9- Com a celebração do contrato de subcomodato, passam a existir dois contratos (comodato e subcomodato), em que a vigência do contrato de subcomodato depende da vigência do de comodato, de modo que a extinção deste acarreta a extinção do subcomodato, mas a inversa já não é verdadeira.

10- Apesar daquela dependência entre ambos os contratos, com exceção do referido em 9), os contratos de comodato e subcomodato, mantêm a sua autonomia, ficando cada um deles sujeitos à respetiva disciplina contratual e ao regime dos arts. 1129º a 1141º do CC.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. RELATÓRIO.

Junta de Freguesia da União de Freguesias de X e Y, com sede na Avenida de … X, Braga, instaurou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum, contra Associação Cultural e Recreativa de X, com sede na Rua … X, Braga, pedindo a condenação deste a:

a- restituir-lhe as dependências do 1º piso do edifício denominado “Casa E”, sito no lugar …, freguesia de X, inscrito na matriz predial urbana da união de freguesias de X e Y sob o art. 17º, e com a área aproximada de 380 m2, devidamente assinalada no documento junto na petição inicial, instalações que ilicitamente ocupa, entregando-as livre de pessoas e coisas;
b- a pagar-lhe a quantia de 1.000,00 euros por cada mês de atraso na entrega das referidas instalações, devidas desde a data de cessação do contrato de comodato, nesta data vencidos 5.000,00 euros.

Para tanto alega, em síntese, ter assumido todos os direitos e obrigações da extinta freguesia de X, a qual, há mais de 30 anos, por contrato de comodato verbal celebrado com a Câmara Municipal B, possuía o edifício denominado “Casa E”, sito no lugar das …, freguesia de X, inscrito na matriz urbana da freguesia de X e Y sob o art. 17º e registado a favor do Município B sob a descrição 753/X, a qual autorizou que a dita Junta de Freguesia usasse e fruísse aquele edifício como bem entendesse;

Nesse edifício e Junta de Freguesia de X instalou um jardim infantil;
Em 10/04/1995, com o consentimento da Câmara Municipal B, a referida Junta de Freguesia, celebrou com a Ré o contrato de comodato escrito junto aos autos a fls. 9, mediante o qual lhe cedeu a dependência desse edifício assinalada no documento de fls.10, com uma área de cerca de 380 m2, pelo prazo de vinte anos, prorrogáveis enquanto a Ré mantivesse aí a creche em funcionamento;

Acontece que a Ré, há mais de dez anos, que deixou de manter em funcionamento nessas instalações a creche em funcionamento, tendo-a transferido para as instalações da sua sede, motivo pelo qual, nos termos da cláusula 8ª daquele contrato, assiste à Autora o direito a pôr fim a esse contrato;
Em 30/10/2014, a Autora comunicou à Ré a intenção de fazer cessar o contrato com efeitos a partir de 10/04/2015, data do fim do prazo de vinte anos;

A Ré não entregou aquela dependência à Autora na referida data e não desocupou aquelas dependências;
Em 21/04/2015, a Autora, através do seu mandatário, por carta de fls.11 a 12, solicitou à Ré a desocupação daquelas instalações e comunicou que iria exigir-lhe o pagamento de mil euros por cada mês de atraso, mas esta ignorou esse pedido;

O valor mensal de mil euros, atenta a área ocupada e o fim da utilização e a falta que aquele espaço faz à Autora, nomeadamente para melhor distribuição de espaços e gestão do jardim-de-infância de que é responsável, é um valor razoável por cada mês de recusa de entrega daquelas instalações.

A Ré contestou por exceção, impugnação e deduziu reconvenção.
Invocou a exceção dilatória de ilegitimidade ativa da Autora para propor a presente ação e, bem assim a exceção dilatória da ilegitimidade passiva, sustentando não ter qualquer interesse em contradizer, sequer a Autora tem qualquer interesse em demandar, uma vez que não é, nem nunca foi, proprietária, possuidora, ocupante, comodante ou comodatária daquelas instalações, as quais são propriedade do Município B, que há mais de trinta anos, por comodato verbal cedeu-as à Autora e à Ré e autorizou a última a ampliá-las e remodelá-las;
O contrato de comodato junto pela Autora aos autos destinou-se apenas a delimitar as zonas ocupadas pela Junta de Freguesia e pela Ré, ambas comodatárias, e a permitir que a última acedesse às verbas do PIDDACC, para as obras de remodelação e ampliação necessárias efetuar naquelas instalações para a prossecução dos seus fins estatutários, durante um prazo de vinte anos, sob pena de ter de restituir as verbas concedidas;
De 1995 até 1999, a Ré construiu, de novo, e conclui parte do primeiro andar e remodelou a parte existente nesse andar, no que despendeu cerca de 163.962,09 euros, obras essas que foram autorizadas pela Câmara Municipal B e financiadas pelo PIDDACC no montante de 105.008,88 euros;
Desde 1995 até à presente data, a Ré mantém ininterruptamente o edifício afeto aos fins previstos nos seus estatutos, mantendo nele o ATL, creche e o prolongamento da creche, bem como a cantina, onde confeciona e serve as refeições;
Invocou a exceção do abuso de direito, sustentando que ao intentar a presente ação, a Autora não pretende ocupar o edifício, uma vez que não necessita do mesmo para a prossecução dos seus objetivos, pois os seus alunos que o frequentam, diminuíram e libertaram salas até agora por eles ocupadas nesse edifício, além de que possui outros edifícios, que se encontram devolutos e abandonados, e instaura a presente ação apenas para se vingar da Ré e por questões meramente políticas, pondo em causa o serviço de interesse público por esta desempenhado em prol da freguesia e das freguesias limítrofes;
As obras que a Autora realizou aumentaram o valor do edifício no montante de 58.953,21 euros e não podem ser levantadas sem detrimento deste;
Impugnou parte da matéria alegada pela Autora.
Conclui pedindo que aquela e a Autora sejam julgadas partes ilegítimas, com as legais consequências;
Que se julgue a ação improcedente por improvada e se absolva aquela do pedido;
Se condene a Autora como litigante de má-fé em multa e indemnização a favor da Ré, em quantia não inferior a 2.500,00 euros.

Deduziu reconvenção, pedindo a condenação da Autora/reconvinda a:

a- reconhecer que a Ré é legitima comodatária das dependências que ocupa no imóvel, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 753/X, identificado no art. 1º da contestação/reconvenção, por comodato verbal do proprietário do edifício, o Município B;
Subsidiariamente,
b- pagar à Ré a quantia de 58.953,21 euros, a título de indemnização pelas benfeitorias úteis, acrescida de juros legais a contar desde a citação;
c- reconhecer o direito de retenção da Ré sobre as dependências que esta ocupa, até ser integralmente ressarcida da quantia de 58.953,21 euros, a título de benfeitorias úteis.

A Autora replicou, impugnando a matéria alegada pela Ré em sede de reconvenção, sustentando que nos termos da cláusula 3ª do contrato de comodato celebrado com a última, quaisquer obras a realizar no edifício, tinham de obter consentimento prévio da Autora, o que não aconteceu;
Acresce que nos termos daquela cláusula, quaisquer obras, incluindo as de beneficiação e conservação, além de terem de obter prévio consentimento da Autora, ficavam a pertencer ao edifício findo o contrato, sem que à Ré assistisse o direito de compensação ou indemnização pela realização das mesmas;
Finalmente, a Autora é mera comodatária do edifício, pelo que nunca tem de pagar o que quer que fosse por tais obras, nunca delas resultando qualquer enriquecimento para a Autora,
Conclui como na petição inicial, pela improcedência do pedido de condenação como litigante de má-fé e do pedido reconvencional.

Designou-se audiência prévia, onde foi suspensa a instância a requerimento das partes, com vista à resolução amigável do presente litígio.

Frustrada a almejada conciliação, prosseguiu a audiência prévia antes suspensa, em que se convidou a Autora a deduzir intervenção principal provocada do Município B, como seu associado, como forma de suprimento da sua ilegitimidade na presente ação.

A Autora acatou esse convite e deduziu incidente de intervenção principal provocada do Município B, o qual foi admitido por decisão proferida a fls. 96 a 97.

Citado, o Município B apresentou o articulado de fls. 102 a 104, onde sustenta desconhecer ter celebrado o contrato de comodato com a Autora, sequer entre esta e a Ré que vêm invocados pela Autora na petição inicial;
Sustenta que apenas tem conhecimento que a Ré ocupa o edifício em causa por contrato verbal de comodato celebrado há cerca de 20 anos, mediante o qual presta apoio permanente a crianças e jovens da freguesia, com a existência de uma parceria de sucesso com o agrupamento de escolas B, sendo que a comunidade local reconhece um importante papel desenvolvido pela Ré e que ainda hoje é prestado;
Alegou que o contrato de comodato escrito invocado pela Ré como tendo sido celebrado com a Autora em julho de 2013, de acordo com os elementos constantes dos seus arquivos, nunca chegou a entrar em vigor, não existindo qualquer auto de entrega do espaço, sequer ocupação do dito espaço por parte da Autora com base nesse contrato, tanto assim que esta não faz valer o seu pretenso direito nesse alegado contrato de comodato escrito, mas num alegado contrato de comodato verbal.

Realizou-se audiência prévia, em que se fixou o valor da presente ação, admitiu-se a reconvenção, proferiu-se despacho saneador, em que se julgou improcedente as exceções da ilegitimidade ativa e passiva invocadas pela Ré e absolveu-se a Autora/reconvinda da instância quanto aos pedidos reconvencionais deduzidos sob as alíneas b) e c), prosseguindo a reconvenção apenas quanto ao pedido reconvencional formulado sob a alínea a).
Fixou-se o objeto do litígio e os temas da prova, não tendo havido reclamações.

Realizada audiência final, foi proferida sentença julgando a ação parcialmente procedente e a reconvenção improcedente, constando essa sentença da seguinte parte dispositiva:

“Pelo exposto, julga-se a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, decide-se:

- condenar a Ré a restituir à Autora as dependências no 1º piso do edifício denominado “Casa E” sito no lugar …, freguesia de X, inscrito na matriz predial urbana da união de freguesias de X e Y sob o artº 17 e com a área aproximada de 380 m2, assinaladas no doc. 3 junto com a Petição Inicial, entregando-as livre de pessoas e coisas;
- absolver a Ré do restante pedido.
- julgar totalmente improcedente a reconvenção deduzida pela Ré e, em consequência, absolver a Autora do pedido reconvencional”.

Irresignada com o assim decidido veio a Ré/reconvinte interpor a presente apelação, apresentando as seguintes conclusões de recurso:

- A Ré ocupa há mais de vinte anos, parte do 1º piso do edifício do antigo edifício escolar de X, correspondente às dependências assinaladas a castanho no documento junto com a contestação, identificado nos artigos 2 e 3 da p.i., por força de um contrato verbal de comodato que celebrou com o interveniente, dono do imóvel, o Município B, para a execução dos fins previstos na cláusula segunda dos respetivos estatutos: a promoção sócio-cultural, recreativa e desportiva dos seus associados, assim como da restante população de X, com especial incidência no que se refere ao apoio a prestar à infância, juventude e terceira idade,
- proporcionando aos habitantes de X a única alternativa letiva para os pais colocarem os filhos durante todo o ano, particularmente os portadores de NEE, antes e após o horário letivo, nas férias letivas e nas greves do ensino público.
- Simultaneamente, a A. ocupa o restante imóvel com o conhecimento do interveniente, até 2013, e a partir daí pelo contrato de comodato escrito de 18 de Julho de 2013, e nunca ocupou a parte do imóvel afeto às atividades estatutárias da Ré.
- Ao dar como assente que a A. é comodatária do piso superior deste edifício, autorizando que esta o usasse e fruísse como bem entendesse, e a ré subcomodatária autorizada pela A., a ocupar parte do piso superior, pelo prazo de 20 anos ou apenas enquanto lá mantivesse a creche, esquecendo todos os demais fins estatutários relevantes e de interesse público prosseguidos pela Ré, o tribunal cometeu manifesto erro na apreciação da matéria de facto.
- Não é verosímil, nem resulta das regras da experiência e da normalidade, que o Município B, celebrasse um novo contrato escrito de comodato, datado de 18/07/2013, cedendo o imóvel à A., com produção de efeitos a partir de 1 de Agosto de 2013, se esta já fosse comodatária do mesmo antes de 1994.
- A prova há-de ser sempre apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, tudo se resolvendo, afinal, na formação de juízos e raciocínios que, tendo subjacentes as ditas regras, conduzem a determinadas convicções refletidas na decisão dos pontos de facto sob avaliação; deve ela ainda ser considerada globalmente, conjugando todos os elementos disponíveis e atendíveis (cfr. artigo 413º do CPC).
- Se o tribunal recorrido tivesse observado os enunciados critérios e regras, na apreciação dos articulados das partes, particularmente no da interveniente, nos documentos juntos e no depoimento das testemunhas, registados em gravação áudio, nomeadamente, F. M., registado no sistema digital H@bilus Media Studio da hora 16:13:22 a 16:27:13; P. A., registado no sistema digital H@bilus Media Studio da hora 15.32:00 a 15:40:00; M. R., registado no sistema digital H@bilus Media Studio da hora 16:38:00 a 16:43:00; M. R., registado no sistema digital H@bilus Media Studio da hora 15:44:00 a 15:53:10 e M. S., registado no sistema digital H@bilus Media Studio da hora 16:01:30 a 16:09:12,
- não daria como provado que “em data anterior a outubro de 1994 a Câmara Municipal B cedeu à extinta freguesia de X a utilização do piso superior deste edifício, autorizando que esta o usasse e fruísse como bem entendesse” e,
- outrossim, consideraria provado que “entre a ré e a Câmara Municipal B, há mais de 30 anos, foi celebrado um contrato verbal mediante o qual esta cedeu àquela o uso de parte do 1º piso do edifício do antigo edifício escolar de X, correspondente às dependências assinaladas a castanho no documento junto com a contestação”, bem como, consideraria provada a matéria de facto constante das alíneas D), E), e G) dos factos não provados.
10ª - Não obstante, com base nessa mesma prova, deverá o tribunal de recurso, alterar as respostas dadas, dando como não provada a matéria de facto constante do nº 2 dos factos provados e considerar provada a matéria de facto vertida na alínea B), D) E) e G) dos factos não provados, ao abrigo do disposto no artigo 662º do CPC.
11ª- Ainda que a matéria de facto não fosse alterada, nos termos apontados, o que não se concebe, sempre estaria vedado à A. peticionar abusiva e injustificadamente a restituição da parte ocupada pela Ré., sob pena, de se legitimar um flagrante abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, (o comportamento anteriormente assumido frustra a confiança, corolário do princípio da boa fé, que esse comportamento criou naquele contra quem o direito é exercido), pois, apesar de decorrido o prazo de vinte anos, a Ré continua a executar os fins previstos na cláusula segunda dos respetivos estatutos: a promoção sócio-cultural, recreativa e desportiva dos seus associados, assim como da restante população de X, com especial incidência no que se refere ao apoio a prestar à infância, juventude e terceira idade, prestando relevantes serviços de interesse público à comunidade, alguns em exclusividade.
12ª - A manter-se a decisão recorrida, a comunidade de X ficaria privada de um relevante serviço público prestado pela Ré, em exclusividade, e lançaria no desemprego os trabalhadores desta, que prestam funções no edifício em mérito, da comodante, Câmara Municipal B.
13ª - A sentença em crise, ao decidir como decidiu, fez errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 334º, 1129º, 1131º, 1137º do Código Civil e 413º, 607º, nº 4, 615º, nº 1, al,. c), do CPC.
14ª - Da correta interpretação e aplicação das referidas normas legais, resultará uma decisão materialmente justa desta causa – a que o tribunal está vinculado pelo artº 7º, nº 1 do CPC – devendo alterar-se a resposta dada à matéria de facto, nos termos indicados, dando como não provada a matéria de facto constante do nº 2 dos factos provados e considerar provada a matéria de facto vertida na alínea B), D), E) e G) dos factos não provados, devendo, consequentemente, revogar-se e substituir-se a sentença em crise por outra, que julgue a ação totalmente improcedente, e a reconvenção procedente; ou se assim não for entendido, deve julgar-se procedente a invocada exceção do abuso de direito, assim se fazendo a habitual.

A apelada contra-alegou, apresentando as conclusões que se seguem:

A) Quanto à prova testemunhal, a recorrente identifica os depoimentos, mas depois não faz a análise crítica desses mesmos depoimentos.
B) A recorrente limita-se a indicar testemunhas e depois a concluir que com os depoimentos em causa, impunha-se retirar outras conclusões, não apresentando as razões pelas quais desses depoimentos se impunha retirar outras conclusões.
C) Relativamente à prova documental, tinha que, em concreto, identificar os documentos dos quais retira outro entendimento e o porquê desse entendimento, não podendo limitar-se a invocar que da prova documental se impunha outro entendimento. Pelo que, nessa parte não observou o ónus de impugnação previsto na al. b) do n.º 1 do art. 640.º do Código de Processo Civil.
D) Uma correta impugnação, que cumpra o ónus previsto no art. 640.º do Código de Processo Civil, passaria por identificar que determinado facto provado ou não provado foi incorretamente julgado, enunciando-o e apresentando o porquê de tal incorreção, isto é, dever-se-ia apresentar uma análise crítica do/s elemento/s de prova de que o julgador deveria retirar uma conclusão diferente da que retirou, e apresentar o facto tal como deveria ter sido dado como provado ou não provado.
E) Se relativamente ao ponto 2 dos factos provados e alínea b) do factos não provados a Recorrente ainda faz uma incipiente análise no sentido da sua alteração, já quanto às alíneas d), e) e g) dos factos não provados a recorrente nada alega de concreto de que modo aqueles factos pelo depoimento das testemunhas por si indicadas, levariam a que se alterasse a consideração daqueles factos como não provados para factos provados, pretendendo que o Tribunal de recurso faça esse percurso por si.

Matéria de Direito – Abuso de Direito

F) Não há por parte da recorrida qual abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium ou qualquer outro.
G) Resultando como resultou dos autos, que se verificou o decurso do prazo de 20 anos e a recorrente deixou de manter em funcionamento a creche – os pontos 13, 7 e 11 dos factos provados (factos que não foram postos em causa pela recorrente na parte em que recorre da matéria de facto) - a atitude da recorrida nunca consubstancia um venire contra factum proprium.
H) O facto de a recorrida ter comodatado por determinado período temporal determinadas instalações à recorrente, nunca poderiam despertar na recorrente a convicção de que no futuro não poderia a recorrida vir exigir a restituição das mesmas.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
No seguimento desta orientação, as questões que se encontram submetidas à apreciação desta Relação reconduzem-se ao seguinte:

a- se o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento na interpretação e valorização da prova produzida quanto à matéria que julgou como provada no ponto 2 dos factos provados e, bem assim quanto à matéria que julgou como não provada sob as alíneas B, D, E e G dos factos dados como não provados e se reponderada a prova produzida, a matéria assim julgada como provada se impõe que seja julgada como não provada e a julgada como não provada se impõe que seja julgada como provada; e
b- se aquele tribunal incorreu em erro de direito ao julgar parcialmente procedente a ação e improcedente a reconvenção - quanto à alínea a) desta, única pela qual a reconvenção se encontra a prosseguir os seus legais termos, uma vez que, relembra-se, por decisão transitada em julgado, proferida em sede de audiência prévia de fls. 119, a Autora/reconvinda foi absolvida da instância reconvencional quanto aos pedidos nela formulados pela Ré/reconvinte sob as alíneas b) e c).
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A- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O tribunal a quo considerou provada e não provada a matéria que se passa a transcrever:
Discutida a causa, mostram-se provados os seguintes factos:

1. Existe um prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da união de freguesias de X e Y sob o artº 17, proveniente no artº 20 da matriz urbana da extinta freguesia de X, denominado “Casa E”, sito no lugar …, freguesia de X, concelho de Braga, descrito na 1ª. Conservatória do Registo Predial sob o nº ... e aí inscrito a favor do Município B.
2. Em data anterior a Outubro de 1994 a Câmara Municipal B cedeu à extinta freguesia de X a utilização do piso superior deste edifício, autorizando que esta o usasse e fruísse como bem entendesse.
3. No edifício em causa, a Junta da extinta freguesia de X instalou o jardim infantil ou pré-primária.
4. Em 20 de Outubro de 1994, a Junta de freguesia da extinta freguesia de X celebrou com a Ré um contrato que denominaram “Contrato de Comodato”, mediante o qual aquela declarou ceder gratuitamente a esta e com carácter meramente transitório, as dependências assinaladas a vermelho na planta anexa a esse contrato, com a área de 380 m2.
5. Ficou aí consignado que as referidas dependências apenas poderiam ser utilizadas pela Ré para a execução dos fins previstos na cláusula segunda dos respectivos estatutos:
a promoção sócio-cultural, recreativa e desportiva dos seus associados, assim como da restante população de X, com especial incidência no que se refere ao apoio a prestar à infância, juventude e terceira idade.
6. Também ficou estabelecido que o contrato vigoraria desde a data da sua assinatura até que se arranjassem instalações próprias para instalar a creche, ou a comodatária não procedesse conforme os fins a que se destinava.
7. Em 10 de Abril de 1995, a Junta de freguesia da extinta freguesia de X celebrou com a Ré um contrato que denominaram “Contrato de Comodato”, mediante o qual aquela declarou ceder gratuitamente a esta e com carácter meramente transitório, as dependências assinaladas a vermelho na planta anexa a esse contrato, com a área de 380 m2, situadas no 1º piso do referido edifício.
8. Ficou aí consignado que as referidas dependências só poderiam ser utilizadas pela Ré para a execução dos fins previstos na cláusula segunda dos respectivos estatutos: a promoção sócio-cultural, recreativa e desportiva dos seus associados, assim como da restante população de X, com especial incidência no que se refere ao apoio a prestar à infância, juventude e terceira idade.
9. Desse contrato ficou também a constar que o mesmo vigoraria pelo período de vinte anos prorrogáveis e enquanto a Ré mantivesse a creche em funcionamento.
10. A Câmara Municipal B teve conhecimento da celebração deste contrato e não se opôs ao mesmo, nunca tendo exigido a restituição do imóvel.
11. Desde Fevereiro de 2007 que a Ré deixou de manter a creche em funcionamento nas dependências referidas em 3º, funcionando no local o ATL e o prolongamento do jardim infantil.
12. A partir daquela data a Ré transferiu a creche para as instalações da sua sede, sita na Rua …, em X.
13. No passado dia 30-10-2014 a A., por intermédio do seu presidente, comunicou à Ré a intenção de fazer cessar o contrato com efeitos a partir de 10-04-2015.
14. A Ré na referida data não fez a desocupação nem a entrega das dependências, bem como não entregou as chaves de acesso às mesmas à Autora.
15. Por documento escrito, datado de 18 de Julho de 2013 que denominaram “Contrato de Comodato”, a Câmara Municipal B declarou entregar à Junta de Freguesia de X, livre, sem quaisquer ónus ou encargos e no estado em que se encontra, em regime temporário e com início em 1 de Agosto de 2013, o piso superior do antigo edifício escolar, sito no lugar das cruzes, freguesia de X, concelho de Braga, a desanexar do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 753 e da matriz respectiva no art. 20º.
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Não resultaram provados quaisquer outros factos com relevo para a discussão da causa, nomeadamente os seguintes:

a) A ocupação do espaço pela Ré, atenta a área ocupada, o fim da utilização e a falta que aquele espaço faz à Autora, corresponde ao valor mensal de € 1.000,00.
b) Entre a Ré e a Câmara Municipal B, há mais de 30 anos, foi celebrado um contrato verbal mediante o qual esta cedeu àquela o uso de parte do 1º piso do edifício do antigo edifício escolar de X, correspondente às dependências assinaladas a castanho no documento junto com a contestação.
c) No local, a Ré mantém em funcionamento a creche e o prolongamento da creche.
d) O contrato referido em 6º destinou-se apenas a delimitar as zonas ocupadas pela junta de freguesia e pela Ré e a permitir que a Ré acedesse às verbas do PIDDAC, para as obras de remodelação e ampliação, ficando com a obrigação de manter o edifício afecto às suas actividades, durante um prazo mínimo de vinte anos, sob pena de restituir as verbas concedidas.
e) Com a declaração referida em 13º a Câmara Municipal B não pretendeu entregar à Autora a parte remodelada, construída e ocupada pela Ré.
f) A antiga escola originariamente era composta por rés-do-chão e apenas por parte de primeiro andar.
g) A Autora não pretende ocupar o edifício, pois não necessita dele para a prossecução dos seus objectivos, uma vez que os alunos que o frequentam diminuíram e libertaram salas até agora por eles ocupadas no edifício em questão.
h) Além disso, possui na freguesia outros edifícios que se encontram devolutos e abandonados.
i) Fá-lo para se vingar da Ré, por questões meramente políticas.
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B- FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

Como se deixou dito, a primeira questão que a apelante submete à apreciação desta Relação é a impugnação da matéria de facto quanto à materialidade dada como provada sob o ponto 2º dos factos provados, propugnando que face à prova produzida, essa matéria devia ter sido julgada como não provada, bem como quanto à matéria dada como não provada sob as alíneas B, D, E e G, sustentando que essa matéria devia antes ter merecido resposta de provada.
No entanto, como questão prévia suscita-se a questão de se saber se a apelante cumpriu com os ónus que sobre si impendiam em sede de impugnação da matéria de facto, até porque a apelada conclui em sentido negativo, sustentando que quanto à prova testemunhal, a apelante identifica os depoimentos, mas depois não faz a análise crítica desses depoimentos, limitando-se a indicar testemunhas e depois a concluir que com os depoimentos em causa, impunha-se retirar outras conclusões, não apresentando as razões pelas quais desses depoimentos se impunha retirar outras conclusões.

Quanto à prova documental, sustenta que a recorrente tinha que, em concreto, identificar os documentos dos quais retira outro entendimento e o porquê desse entendimento, não podendo limitar-se a invocar que da prova documental se impunha outro entendimento, concluindo que, nessa parte, a apelante não observou o ónus da impugnação previsto na al. b) do n.º 1 do art. 640º do CPC.

Continua sustentando que uma correta impugnação, que cumpra o ónus previsto no art. 640º do CPC, passaria por identificar que determinado facto provado ou não provado foi incorretamente julgado, enunciando-o e apresentando o porquê de tal incorreção, isto é, dever-se-ia apresentar uma análise crítica do/s elemento/s de prova de que o julgador deveria retirar uma conclusão diferente de que retirou, e apresentar o facto tal como deveria ter sido dado como provado ou não provado.

Conclui que se relativamente ao ponto 2º dos factos provados e alínea b) do facto não provados, a apelante ainda faz uma incipiente análise no sentido da sua alteração, já quanto às alíneas d), e) e g) dos factos não provados a recorrente nada alega de concreto de que modo aqueles factos pelo depoimento das testemunhas por si indicadas, levariam a que se alterasse a consideração daqueles factos como não provados para factos provados, pretendendo que o tribunal de recurso faça esse percurso por si.
Vejamos se assiste razão à apelada.

B.1- Da impugnação da matéria de facto em geral.

Com a reforma introduzida pelos Decretos-Leis n.ºs 39/95, de 15/02 e 329-A/95, de 12/12, ao CPC, o legislador introduziu o registo da audiência final, com a gravação integral da prova produzida, e conferiu às partes o duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, de modo que a alteração da matéria de facto, que no anterior regime processual era excecional, passou a ser uma função normal da Relação.

Nessa operação foi propósito do legislador que o tribunal de segunda instância realize um novo julgamento em relação à matéria impugnada, assegurando um efetivo duplo grau de jurisdição, sendo isto que resulta expressamente do estatuído no art. 662º, n.º 1 do CPC, quando nele se expressa que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento supervenientes impuserem decisão diversa.

Como vem sendo repetidamente afirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça, na sequência daquelas alterações, são de rejeitar todas as interpretações minimalistas do enunciado art. 662º que, refugiando-se nas dificuldades relacionadas com a audição dos depoimentos testemunhais captados sem registo de imagem, com prejuízo do princípio da imediação (prejuízo esse que, é de resto, uma realidade), se limitam a fazer um controlo meramente formal da fundamentação vertida pelo tribunal a quo, assim como aquelas que se limitam a fundamentar, de forma genérica, sem referência aos concretos meios de prova e a conectá-los entre si e com as regras da experiência comum, por forma a demonstrar o acerto ou desacerto da decisão proferida pelo tribunal a quo em relação à matéria impugnada em sede recursória.

Com efeito, o desiderato do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto pressupõe um novo julgamento quanto à matéria de facto impugnada e “somente será alcançado se a Relação, perante o exame e análise crítica das provas produzidas, a respeito dos pontos de facto impugnados, puder formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das prova, sem estar limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida, em função do princípio da imediação da prova, princípio este, que tido por absoluto, transformaria este duplo grau de jurisdição em matéria de facto, numa garantia praticamente inútil” (1).

Deste modo, perante as regras positivas enunciadas na atual lei processual civil, tendo o recurso por objeto a impugnação da matéria de facto, a Relação deve proceder a um novo julgamento, limitado à matéria de facto impugnada, procedendo à efetiva reapreciação da prova produzida, devendo, nessa tarefa, considerar os meios de prova indicados no recurso, assim como, ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda relevantes, tudo da mesma forma como o faz o juiz da primeira instância.

Como verdadeiro tribunal de substituição, a Relação aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto impugnado, exceto no que respeita a factos para cuja prova a lei exija formalidades especiais ou que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documento, acordo ou confissão (art. 607º, n.º 5 do Cód. Proc. Civil).
Nessa sua livre apreciação, a Relação não está condicionada pela apreciação e fundamentação do tribunal recorrido uma vez que o objeto da apreciação em 2ª instância é a prova produzida, tal como na 1ª instância, e não a apreciação que a 1ª instância fez dessa mesma prova, podendo na formação dessa sua convicção autónoma, recorrer a presunções judiciais ou naturais nos mesmos termos em que o faz o juiz da primeira instância (2).

Não obstante o que se acaba de dizer, não foi propósito do legislador que o julgamento a realizar pela Relação em sede de matéria de facto se transformasse na repetição do julgamento realizado em Primeira Instância, sequer permitir recursos genéricos, e daí que tenha rodeado o recurso da impugnação da matéria de facto à imposição ao recorrente de determinados ónus, que enuncia no art. 640º do CPC.

Deste modo, com vista a obstar que o recurso da matéria de facto se transformasse numa repetição dos julgamentos e a rejeitar a admissibilidade de recurso genéricos, contra a errada decisão da matéria de facto, o legislador optou “por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de factos controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente”, pelo que se mantém o entendimento que, como tribunal de 2ª instância que é, este deverá ter competência residual em sede de reponderação ou reapreciação da matéria de facto (3), estando subtraída ao seu campo de cognição a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo que não seja alvo de impugnação.

Acresce que tal como se impõe ao juiz a obrigação de fundamentar as suas decisões, também ao recorrente é imposto, como correlativo do princípio da autorresponsabilidade e dos princípios estruturante da cooperação, da lealdade e da boa-fé processuais, a obrigação de fundamentar o seu recurso, demonstrando o desacerto em que incorreu o tribunal a quo em decidir a matéria de facto impugnada em determinado sentido, quando se impunha decisão diversa, devendo no cumprimento desses ónus, indicar não só a matéria que impugna, como a concreta solução que, na sua perspetiva, reclamava que tivesse sido proferida, os concretos meios de prova que ancoram essa solução diversa, com a respetiva análise crítica, isto é, o porquê dessa prova imporem decisão diversa daquela que foi julgada pelo tribunal a quo.

Deste modo é que o art. 640º, n.º 1 do CPC, estabelece que “quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Depois, caso os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (al. a), do n.º 2 do art. 662º).
Note-se que cumprindo a exigência de conclusões nas alegações a missão essencial da delimitação do objeto do recurso, fixando o âmbito de cognição do tribunal ad quem, é entendimento jurisprudencial uniforme que, nas conclusões, o recorrente tem de delimitar o objeto da impugnação de forma rigorosa, indicando os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados.

Já quanto aos demais ónus, os mesmos, porque não têm aquela função delimitadora do objeto do recurso, mas se destinam a fundamentar o último, não têm de constar das conclusões, mas sim das motivações.

Sintetizando, à luz deste regime, seguindo a lição de Abrantes Geraldes (4), sempre que o recurso de apelação envolva matéria de facto, terá o recorrente:

a) em quaisquer circunstâncias indicar sempre os concretos factos que considere incorretamente julgados, com a enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões
b) especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.

O cumprimento dos referidos ónus tem, como adverte Abrantes Geraldes, a justificá-lo a enorme pressão, geradora da correspondente responsabilidade de quem, ao longo de décadas, pugnou pela modificação do regime da impugnação da decisão da matéria de facto e se ampliasse os poderes da Relação, a pretexto dos erros de julgamento que o sistema anterior não permitia corrigir; a consideração que a reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida; a ponderação de que quem não se conforma com a decisão da matéria de facto realizada pelo tribunal de 1ª instância e se dirige a um tribunal superior, que nem sequer intermediou a produção da prova, reclamando a modificação do decidido, terá de fundamentar e justificar essa sua irresignação, sendo-lhe, consequentemente, imposto uma maior exigência na impugnação da matéria de facto, mediante a observância de regras muito precisas, sem possibilidade de paliativos, sob pena de rejeição da sua pretensão e, bem assim o princípio do contraditório, habilitando a parte contrária de todos os elementos para organizar a sua defesa, em sede de contra-alegações. É que só na medida em que se conhece especificamente o que se impugna e qual a lógica de raciocínio expandido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a parte contrária a poder contrariá-lo em sede de contra-alegações.
A apreciação do cumprimento das exigências legalmente prescritas em sede de impugnação da matéria de facto deve ser feita à luz de um “critério de rigor” como decorrência dos referidos princípios de autorresponsabilização, de cooperação, lealdade e boa-fé processuais e salvaguarda cabal do princípio do contraditório a que o recorrente se encontra adstrito, sob pena da impugnação da decisão da matéria de facto se transformar numa “mera manifestação de inconsequente inconformismo” (5).
Como consequência do que se vem dizendo, impõe-se a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto quando ocorra: “a) falta de conclusões sobre a impugnação da matéria de facto (art. 635º, n.º 4 e 6411º, n.º 2, al. b); b) falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, n.º 1, al. a); c) falta de especificação na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); d) falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e) falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido a cada segmento da impugnação” (6).
Os critérios que se acabam de enunciar têm sido aqueles que têm sido seguidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, conforme evidenciam, a título exemplificativo, os acórdãos proferidos em 18/11/2008, Proc. 08A3406; 15/09/2011, Proc. 1079/07.0TVPRT.P.S1; 04/03/2015, Proc. 2180/09.0TTLSB.L1.S2; 01/10/2015, Proc. 824/11.3TTLSB. L1. S1; 26/11/2015, Proc. 291/12.4TTLRA.C1; 03/03/2016, Proc. 861/13.3TTVIS.C1.S1; 11/02/2016; Proc. 157/12.8TUGMR.G1.S1, todos in base de dados da DGSI.

Enuncie-se que aquela instância superior tem operado uma distinção entre: a) ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto do recurso em sede de impugnação da matéria de facto, onde os requisitos impostos à parte se encontram ligados com o mérito ou demérito da pretensão; e b) ónus secundários, que se prendem com os requisitos formais.
Quanto aos requisitos primários ou fundamentais de delimitação do recurso, onde inclui a obrigação do recorrente de formular conclusões e nestas especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e a falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados e falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação, requisitos estes sobre que versa o n.º 1 do art. 640º-A do CPC, a jurisprudência tem considerado que aquele critério de rigor se aplica de forma estrita, não admitindo quaisquer entorses, pelo que sempre que se verifique o incumprimento de algum desses ónus por parte do recorrente se impõe rejeitar o recurso.
Já no que respeita aos ónus da impugnação secundários, que são os enunciados no n.º 2 daquele art. 640º-A, em que se consagra a obrigação do recorrente, quando os meios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas que tenha sido gravada, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, a jurisprudência considera que embora a observância desse ónus deva ser apreciado à luz de um critério de rigor, não convém exponenciar esse critério ao ponto de ser violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador” (7).
Sustenta-se que se está perante meros requisitos de forma, destinados a facilitar a localização dos depoimentos relevantes no suporte técnico que contém a gravação da audiência, pelo que o cumprimento desse ónus tem de ser “interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não se justificando a imediata e liminar rejeição do recurso quando, apesar da indicação do recorrente não for totalmente exata e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento” (8).
Conforme se lê no acórdão do STJ, cujo excerto se acaba de transcrever e infra identificado, “na interpretação da norma que consagra este ónus de indicação exata a cargo do recorrente que impugna prova gravada, não pode deixar de se ter em consideração a filosofia subjacente ao atual CPC, acentuando a prevalência do mérito e da substância sobre os requisitos ou exigências puramente formais, carecidos de um interpretação funcionalmente adequada e compaginável com as exigências resultantes do princípio da proporcionalidade e da adequação – evitando que deficiências ou irregularidades puramente adjetivas impeçam a composição do litígio ou acabem por distorcer o conteúdo da sentença de mérito, condicionado pelo funcionamento de desproporcionadas cominações ou preclusões processuais”.
Não obstante ser entendimento unânime do STJ no sentido de que aquele ónus de impugnação secundário tem de ser apreciado à luz de um critério da proporcionalidade, não sendo de rejeitar a impugnação da matéria de facto quando não exista dificuldade relevante na localização dos excertos da gravação em que a parte tenha fundado a sua impugnação, já existe discordância sobre as concretas condições que têm de ser observadas para que à luz do enunciado critério de proporcionalidade se considere estar cumprido minimamente esse critério.
Deste modo, enquanto no Ac. do STJ. de 09/07/2015, proferido no Proc. 284040/11.0YIPRT.G1.S1, se considerou que “tendo o apelante, nas suas conclusões de recurso (i) identificado os pontos de facto que considerava mal julgados, por referência aos quesitos da base instrutória, (ii) indicado o depoimento das testemunhas, que entendeu mal valorados, (iii) fornecido a indicação da sessão no qual foram prestados e do início e termo dos mesmos, apresentado a sua transcrição, (iv), bem como referido qual o resultado probatório que no seu entender deveria ter tido lugar, relativamente a cada quesito e meio de prova, tanto bastava para que a Relação tivesse procedido à reapreciação da matéria de facto, ao invés de a rejeitar” (9), outros entendem que o cumprimento daquele ónus por referência ao princípio da proporcionalidade não se satisfaz com a indicação do início e termo dos depoimentos em que se funda o recurso, sequer com a apresentação da transcrição integral desses depoimentos, mas exige a indicação da concreta passagem ou passagens da gravação do excerto ou excertos do(s) depoimento(s) em que se funda o recurso (início e termo do excerto ou excertos em relação aos depoimentos que o recorrente considere relevantes) ou a transcrição desse excerto ou excertos.
Neste último sentido pronunciou-se o Ac. STJ. de 14/09/2006, Proc. n.º 06B1998, onde se lê que: “Deve ser rejeitado o pedido de alteração da matéria de facto formulado na apelação que se refira unicamente aos depoimentos de determinadas testemunhas, mas omita os concretos pontos gravação das declarações daquelas que impunham uma decisão diversa sobre os trechos da matéria de facto impugnada”.
Também no Ac. do STJ. de 19/01/2016, Proc. n.º 3326/10.4TBLRA.C1.S1, pondera-se que “ a falta de indicação exata e precisa do segmento da gravação em que se fundamenta o recurso, nos termos da alínea a) do n.º 2 do art. 640º do CPC não implica, só por si a rejeição do pedido de impugnação sobre a decisão da matéria de facto, desde que o recorrente se reporte à fixação eletrónica/digital e transcreva os excertos que entenda relevantes de forma a permitir a reanálise dos factos e o contraditório.
Ainda no Ac. do STJ. de 19/02/2015, Proc. 405/09.1TMCBR.C1.S1, escreve-se que “… que a apresentação das transcrições globais dos depoimentos não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640º do Cód. Proc. Civil”.
Sem se perder de vista que o ónus enunciado no n.º 2 do art. 640º é meramente processual, destinando-se a facilitar a localização pelo tribunal ad quem, mas também pela recorrida, dos depoimentos relevantes no suporte técnico que contém a gravação, habilitando-a a exercer cabalmente o seu direito de defesa em sede de contra-alegações e a apreender o raciocínio seguido nessa impugnação pelo recorrente por referência a esses concretos elementos probatórios, e que a filosofia subjacente ao atual CPC acentua a prevalência do mérito e da substância sobre os requisitos ou exigências meramente formais, reclamando que se interprete o art. 640º, n.º 2, al. a) de forma funcionalmente adequada atento o fim a que se destina, o que exige o recurso ao princípio da proporcionalidade na apreciação do cumprimento daquele ónus, sendo de rejeitar toda e qualquer interpretação do enunciado normativo no sentido de impor o indeferimento do recurso da matéria de facto como decorrência automática do incumprimento do ónus que prescreve, propendemos para este segundo entendimento.
É que, de contrário, não só estaríamos a fazer tábua rasa daquele preceito legal, que é expresso no sentido de impor ao recorrente a indicação com exatidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, ou em alternativa, proceder à transcrição das mesmas, falando, aliás, em “transcrição de enxertos” de depoimento ou depoimentos que o recorrente “considere relevantes”, como se estaria a minorar os princípios da autorresponsabilidade das partes que, em sede de recurso, independentemente do valor da causa, têm de estar representadas por técnico habilitado com os indispensáveis conhecimentos jurídicos – advogado -, além de se estar a restringir, minorando-os, os deveres de cooperação, lealdade e boa-fé processuais a que se encontram adstritas e, inclusivamente, se poder fazer perigar os direitos de defesa do recorrido, que desconheceria quais os concretos e específicos fundamentos probatórios em que o recorrente funda a sua impugnação e o raciocínio por ele seguido a partir desses fundamentos, por forma a poder cabalmente defender-se, em sede de contra-alegações, carreando para os autos outros excertos do depoimento daquela ou de outras testemunhas ou partes que sustentariam, na sua perspetiva, o julgamento feito pelo tribunal a quo.
Resulta do que se vem dizendo, que não pudemos deixar de sufragar a posição jurisprudencial que sustenta que ao cumprimento do ónus enunciado no art. 640º, n.º 2, al. a), não basta ao recorrente que pretende atacar a decisão quanto aos concretos pontos da matéria de facto dados como provados e/ou não provados pelo tribunal a quo indicar o início e o termos dos depoimentos que, na sua perspetiva, impõem solução diversa, sequer a transcrição integral desses depoimentos, mas antes reclama que o recorrente indique a(s) concreta(s) passagem(ens) do(s) depoimentos(s)em que se funda o seu recurso, indicando o início e termo do(s) excerto(s) dos depoimentos das partes e/ou testemunhas que impõem essa solução diversa ou proceda à transcrição desse(s) excerto(s).
Por último, precise-se que porque se mantêm em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, o uso pela Relação dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Deste modo, a alteração da matéria de facto só deve ser efetuada pelo Tribunal da Relação quando, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância. O que se acaba de dizer encontra sustentação na expressão “imporem decisão diversa” enunciada no n.º 1 do art. 662º, bem como na ratio e no elemento teleológico desta norma.
Tal significa que, “em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte” (10).

B.1.1 – Do caso concreto.

Assente nestas premissas, sustenta a apelada que a apelante não cumpriu com os enunciados ónus em sede de impugnação da matéria de facto, na medida em que se limita a indicar testemunhas e depois a concluir que os depoimentos em causa impunham que se retirasse outras conclusões, sem que indique as razões, isto é, o porquê desses depoimentos imporem que se retirasse outras conclusões, o mesmo acontecendo quanto à prova documental, em relação aos quais também não indica o porquê da mesma imporem outra conclusão diversa.
(…)
Resulta do exposto que a impugnação da matéria vertida nas alíneas D, E e G dos factos julgados como não provados vai rejeitada, uma vez que a apelante não deu cumprimento ao ónus enunciado no art. 640º, n.º 1, al. b) do CPC, sendo certo que ainda que assim não fosse, sempre se imporia concluir pela não prova desse matéria, cujas resposta sempre se imporia manter inalterada.

B.1.2- Da impugnação da matéria do ponto 2º dos factos provados e da al. B dos factos não provados.

Resta apreciar a impugnação da matéria de facto dada como provada sob o ponto 2º e a dada como não provada sob a alínea B dos factos julgados como não provados, relembrando-se que a apelante propugna que a dada como provada (ponto 2º) seja julgada como não provada e a dada como não provada (alínea B) seja julgada provada.
(…)
Destarte, sem maiores delongas, improcede a impugnação da matéria de facto feita pela apelante quanto ao ponto 2º dos factos dados como provados e, bem assim quanto à matéria de facto da alínea B dos factos julgados como não provados, que assim se mantêm inalterados.

B.2- Do direito.

Resta verificar se mantendo-se inalterada a matéria de facto julgada como provada e não provada pelo tribunal a quo, a sentença recorrida se pode manter.
Tal como se pondera na sentença recorrida, o contrato celebrado entre a Câmara Municipal B e a Junta de Freguesia de X, em data anterior a outubro de 1994, mediante a qual a primeira cedeu à segunda a utilização do piso superior do edifício construído no prédio urbano, denominada “Casa E”, sito no lugar …, freguesia de X, concelho de Barga, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... e aí inscrito a favor do Município B, para que esta o usasse e fruísse como bem entendesse (cfr. pontos 1 e 2 da matéria apurada), consubstancia um contrato de comodato, tal como vem definido no art. 1129º do CC., onde se estatui que “comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir”.
O contrato de comodato encontra-se regulado nos arts. 1129º a 1141º do CC., tratando-se, por isso, de um contrato típico e nominado, cujos elementos essenciais são a sua gratuidade, temporalidade e o dever de restituição.
Subjacente ao contrato de comodato estão normalmente relações de gentileza, marcadas pela disponibilidade gratuita da coisa, móvel ou imóvel, ao comodatário.

Apesar da gratuidade do contrato de comodato, decorre do art. 1135º do CC., que dele decorrem algumas obrigações também para o comodatário, não representando, contudo, essas obrigações qualquer contrapartida pelo do uso da coisa que lhe é proporcionado pelo comodante.

Segundo a maior parte da doutrina, o comodatário deve, de resto, suportar as despesas inerentes ao uso normal da coisa durante o período de tempo em que teve essa faculdade, obrigação esta que transparece do art. 1138º, n.º 2 do CC, relativamente ao empréstimo de animais (11).

O caráter gratuito do contrato de comodato significa apenas que não há a cargo do comodatário prestações que constituam o equivalente ou o correspetivo da atribuição efetuado pelo comodante de lhe entregar a coisa para que aquele se sirva desta, isto é, para que a use, sem que daqui decorra a inexistência de quaisquer obrigações emergentes deste tipo contratual para o comodatário.
É que como realçam Pires de Lima e Antunes Varela (12) “apesar de gratuito, o comodato não deixa de ser em regra um contrato bilateral imperfeito: o contrato envolve obrigações, não só para o comodatário, mas também para o comodante. Não há, porém, entre umas e outras, a relação de interdependência e reciprocidade que, através do sinalagma, define os contratos bilaterais ou sinalagmáticos”.
Precise-se que quanto às obrigações que emergem para o comodante do contrato de comodatário, impende sobre o mesmo a obrigação de se abster de atos que impeçam ou restrinjam o uso da coisa pelo comodatário, mas não é obrigado a assegurar-lhe o uso desta (art. 1133º, n.º 1 do CC), podendo mesmo, se tal vier a acontecer, o comodatário lançar mão dos meios de defesa possessórios colocados ao dispor do possuidor contra o comodante, nos termos dos arts. 1276º e segs. (n.º 2 daquele art. 1133º).
Do lado do comodatário avultam, reafirma-se, as obrigações enunciadas no art. 1135º do CC.
Acresce que a gratuidade do comodato não impede a possibilidade de o comodante impor ao comodatário cláusulas modais, apenas sendo necessário que o encargo não seja e tal valor que faça desaparecer o benefício do comodatário, como razão determinante do contrato (13).
Note-se que pelo contrato de comodato o comodante entrega a coisa ao comodatário para que esta a use, tratando-se, por conseguinte, da simples atribuição do uso da coisa para os fins entre eles, expressa ou tacitamente, convencionados ou, na ausência de acordo, para todos os fins lícitos, dentro da função normal das coisas de igual natureza (art. 1131º do CC).
O contrato de comodato é de natureza real, quod constitutionem, o que significa que não basta para a sua perfeição o acordo das partes, mas exige-se, ainda, como elemento constitutivo desse contrato a entrega da coisa ao comodatário para que este se sirva dela, pelo que o contrato não se conclui, ainda que exista mútuo consenso entre os contraentes, sem que o comodante entrega a coisa ao comodatário.
No entanto, a eficácia do contrato de comodato é puramente obrigacionais (14), facto este que salvo o devido respeito por entendimento contrário, a apelante não leva em devida consideração, ao sustentar que se o Município B, não pretende exigir a restituição das divisões do imóvel ocupadas pela comodatária, não se vislumbra como possa exigir a Autora essa restituição, esquecendo que a presente ação não é uma ação de reivindicação, isto é, uma obrigação real, mas antes uma ação puramente obrigacional, alicerçada no contrato de subcomodato que a Autora, que celebrou aquele contrato de comodato com a Câmara Municipal B, mediante o qual esta lhe cedeu o uso daquele edifício, cedeu o 1º piso desse edifício à Ré.
De resto, a legitimidade para celebrar o contrato de comodato não depende da qualidade de proprietário da coisa cedida por parte do comodante, posto que dispõe dessa legitimidade todos aqueles que têm poderes de uso e fruição da coisa, seja qual for o título desse seu direito, desde que não existam sobre a coisa outros direitos que impeçam a cedência do seu uso a terceiro (15).
Apesar do contrato de comodato ser de natureza real quoad constitucionem, precise-se que no art. 1129º do CC. e segs., não se estabelece qualquer desvio ao princípio da liberdade de forma enunciado no art. 219º do CC., o que significa que quer o contrato de comodato tenha por objeto coisas móveis, quer imóveis, o mesmo não se encontra sujeito a qualquer formalidade legal, podendo ser celebrado verbalmente entre comodante e comodatário, com o único requisito de que a coisa tem se ser entregue ao comodatário, o que significa que o contrato de comodato celebrado entre a Câmara Municipal B e a Autora, em data anterior a outubro de 1994, ainda que tenha por objeto um imóvel, como tem, é formalmente válido.
O contrato de comodato é um contrato de execução continuada ou periódica, por prolongar-se a utilização da coisa pelo comodatário até que este seja obrigado a restitui-lo.
No entanto, como referido, o contrato de comodato é por definição, sendo este, aliás, um elemento essencial deste tipo contratual, temporário, na medida em que a cedência do uso da coisa feita pelo comodante ao comodatário é sempre por um período temporalmente limitado.

Quanto ao momento em que ocorre a obrigação de restituição da coisa pelo comodatário ao comodante, esse momento pode ser expressamente estipulado por convenção das partes, que convencionam que a restituição ocorrerá em determinado dia, mês e ano, ou resultar por via indireta dos termos do contrato, como seja, quando se entrega a coisa ao comodatário para este usá-la para um uso determinado (ex: no período de férias, no casamento x, etc.).

Neste caso, o comodatário deve restituir a coisa logo que o use finde, independentemente de interpelação (art. 1137º, n.º 1 do CC.).
Não sendo convencionado prazo para a restituição, sequer determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que esta lhe seja exigida pelo comodante (n.º 2 do art. 1137º).
Finalmente, o comodato é um contrato de natureza pessoal, constituído intuitu personae, uma vez que é celebrado no interesse ou benefício do comodatário, devendo entender-se que o comodante apenas quer beneficiar o comodatário e não terceiros, designadamente, os herdeiros deste.
É assim que o contrato de comodato caduca com a morte do comodatário, conforme estabelece expressamente o art. 1141º do CC.

Acresce que nos termos do disposto no art. 1135º, al. f), impende sobre o comodatário a obrigação de não proporcionar a terceiro o uso da coisa, exceto se o comodante o autorizar.

No entanto, tal como o aquele art. 1141º do CC., ao estabelecer que o contrato de comodato caduca pela morte do comodatário, se limita a estabelecer uma mera presunção, podendo os herdeiros do comodatário ilidir essa presunção, alegando e provando em como comodante e comodatário, expressa ou tacitamente, pactuaram entre eles que, no caso de morte do último, o contrato de comodato se transferiria para os herdeiros do comodatário (16), também a autorização do comodante a que alude aquela al. f), do art. 1135º, para que o comodatário proporcione a coisa a terceiro, pode ser conferida pelo comodante expressa ou tacitamente.
Significa isto, que embora nos termos do art. 1135º, al. f), atento o caráter intuitu personae do comodato, esteja proibida a cessação da coisa a terceiro, quer a título oneroso, quer a título gratuito, assim como o subcomodato e a locação da coisa, o comodante pode autorizar o comodatário a proporcioná-la a terceiro.

Essa autorização pode ser concedia pelo comodante ao comodatário de modo expresso ou tácito, isto é, através de comportamentos que, com toda a probabilidade, a revelam (art. 217º, n.º 1 do CC).
A referida autorização pode ainda ser concedida pelo comodante ao comodatário no momento da celebração do contrato de comodato ou posteriormente (17).
No caso, como dito, o contrato celebrado verbalmente em data anterior a outubro de 1994, entre a Câmara Municipal B e a Junta de Freguesia de X, mediante o qual a primeira cedeu à segunda a utilização do piso superior do edifício da “Casa E”, autorizando que esta o usasse e fruísse como bem entendesse, consubstancia um contrato válido de comodato, contrato este que como bem ponderou o tribunal a quo é um contrato de natureza pessoal, real, mas com eficácia meramente obrigacional, gratuito, de execução continuada e consensual.
Este contrato veio a ser revogado por mútuo acordo entre a Câmara Municipal B e a Autora, já que tal como se quedou provado, estas, por razões não concretamente apuradas, mas a que não será certamente alheia a circunstância de não tendo aquele primeiro contrato de comodato verbal prazo certo, sequer uso determinado do 1º piso do edifício cedido, a Câmara Municipal B (comodante) podia denunciá-lo quando bem lhe aprouvesse junto da Autora (comodatária) - art. 1137º, n.º 2 do CC. -, outorgaram o contrato de comodato escrito, datado de 18 de julho de 2013, mediante o qual a Câmara declarou entregar à Autora aquele 1º piso do prédio, em regime temporário, com início em 01/08/2013, pelo período de 12 anos (cfr. ponto 15 dos factos apurados e doc. de fls. 53 a 54).
Acontece que conforme resulta da matéria apurada sob os pontos 4 a 6, ainda na vigência daquele contrato de comodato verbal que a Autora tinha celebrado com a Câmara Municipal B em data anterior a outubro de 1994, a Autora, em 20/10/1994, celebrou com a Ré o contrato escrito de fls. 135, que denominaram “contrato de comodato”, mediante o qual declarou ceder, e cedeu, gratuitamente à Ré, as dependências assinaladas a vermelho na planta anexa a esse contrato, com a área de 380 m2, nos termos e condições enunciadas nos pontos 5 e 6 dos factos apurados, instalações essas que são parte das instalações que lhe tinham sido anteriormente cedidas pela Câmara Municipal B por via daquele contrato de comodato verbal.
Por sua vez, este contrato veio a ser revogado por mútuo acordo entre Autora e Ré, já que estas, em 10/04/1995, celebraram entre elas o contrato escrito junto aos autos a fls. 9 e 10, que também intitularam de “contrato de comodato”, mediante o qual a Autora declarou ceder gratuitamente à dita Ré, com caráter meramente transitório, as dependências assinaladas a vermelho na planta anexa a esse contrato, com a área de 380 m2, situadas no 1º piso do referido edifício, ou seja, precisamente as dependências que anteriormente a Autora tinha cedido à mesma Ré no âmbito do contrato que celebraram em 20/10/1994, pelo que, neste contexto, a única ilação que se pode extrair, é que este último contrato (de 10/04/1995) revogou e substituiu, por mútuo acordo das contratantes, o anterior contrato que tinham celebrado em 20/10/1994.
Não obstante Autora e Ré tenham intitulado estes dois contratos de “contrato de comodato”, trata-se efetivamente de dois contratos de subcomodato, uma vez que a Autora era comodatária das dependências que através, inicialmente, do contrato celebrado com a Ré, em 20/10/1994 e, posteriormente, através do contrato celebrado com a mesma Ré em 10/04/1995, cedeu à última, pelo que se acompanha e subscreve integralmente a qualificação jurídica destes dois contratos celebrados entre Autora e Ré.
Já não se acompanha integralmente a sentença recorrida ou as ilações jurídicas que eventualmente dessa afirmação (sem mais) dela se possam extrair, quando nela se escreve que o contrato de subcomodato é equiparado a uma cessão da posição contratual do contrato de comodato inicial, sem que no entanto deixe de coexistir o contrato inicial (o que já não se verifica na cessão da posição contratual propriamente dita).
É que no caso de cessão da posição contratual continua apenas a existir um único contrato, com substituição de uma das partes, enquanto que no subcontrato (subcomodato, sublocação, subempreitada, etc.) passam a coexistir dois contratos diferenciados: o contrato de comodato, no caso, celebrado entre a Câmara Municipal B e a Autora, e o contrato de subcomodato, no caso, celebrado entre a comodatária – a Autora – e a subcomodatária – a Ré (18).
Os contratos de comodato e de subcomodato não se fundem num único negócio jurídico, antes pelo contrário, mantêm-se distintos e individualizados, o que significa que cada um deles se encontra submetido à respetiva disciplina contratual e à legal enunciada nos arts. 1129º a 1141º do CC.
É certo que o subcomodato é um contrato subordinado a um contrato precedente (o comodato), de modo que a extinção deste acarreta inevitavelmente a extinção do contrato de subcomodato, mas a inversa já não é verdadeira.
A Autora, enquanto comodatária, fica obrigada às obrigações contratuais emergentes do contrato de comodato assumidas para com a Câmara Municipal B (comodante) e à disciplina jurídica aplicável a esta relação contratual enunciada nos referidos arts. 1128º a 1141º do CC, pelo que em caso de caducidade desse contrato de comodato (art. 1141º do CC), denúncia (art. 1137º, n.º 2 CC) ou resolução do mesmo (art. 1140º), essa extinção do contrato de comodato não deixa de operar a extinção automática do contrato de subcomodato, dado a dependência funcional deste em relação àquele.
No entanto, a relação comodatário e subcomodatário, é regulada, única e exclusivamente, pelo contrato de subcomodato e, bem assim pelos arts. 1129º a 1141º do CC, pelo que a caducidade, denuncia ou resolução do contrato de subcomodato nenhuma repercussão tem no contrato de comodato, que se mantém incólume e em vigor entre Câmara Municipal B (comodante) e Autora (comodatária).
Feita esta precisão à douta sentença recorrida, como nela se escreve e como já dito, embora o caráter intuitu personae do comodato proíba que o comodatário proporcione o uso da coisa que o comodante lhe entregou a terceiro, o comodante pode autorizar essa cedência.
Essa autorização pode ser expressa ou tácita, como é o caso. É que, conforme se apurou, a Câmara Municipal B teve conhecimento da celebração do contrato de subcomodato que a Autora (comodatária) celebrou com a Ré (subcomodatária) em 10/04/1995 e nunca se opôs ao mesmo, sequer exigiu a restituição do imóvel (cfr. ponto 10º dos factos apurados), o que significa que aquela comodante concordou com a celebração deste contrato e com a consequente cedência de parte das dependências que tinha cedida à Autora à Ré.
O contrato de subcomodato, tal como o contrato de comodato, pode extinguir-se por caducidade (art. 1141º), por denúncia (art. 1137º, n.º 2 do CC.) ou por resolução (art. 1140º.
A caducidade, como é sabido, opera a extinção automática do contrato, como consequência da verificação dos factos a que a lei ou a convenção das partes ligam esse efeito extintivo.
No que respeita ao contrato de comodato (ou subcomodato), o art. 1141º do CC. presume que esses contratos caducam por morte, respetivamente, do comodatário e do subcomodatário.
Por sua vez, a denuncia consiste numa forma de extinção dos contratos de execução duradoura e sem prazo, que opera pela comunicação de uma das partes à outra de que não deseja a manutenção do contrato, traduzindo-se, pois, numa manifestação unilateral, discricionária e recetícia de vontade de uma das partes, declarando que não quer a manutenção do contrato, produzindo-se os respetivos efeitos extintivos do contrato apenas para o futuro (19).
Como referido, no contrato de comodato (e por inerência, também no contrato de subcomodato), se as partes não tiverem convencionado prazo para a restituição da coisa, sequer determinado o uso desta, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 1137º do CC., o comodatário (ou no caso de subcomodato, o subcomodatário) é obrigado a restitui-la logo que o comodante (ou no caso de subcomodato, o comodatário), lhe exija essa restituição, o que significa que, nesses casos, assiste ao comodante (no caso de subcomodato, ao comodatário) o direito potestativo de fazer extinguir, por declaração unilateral sua, respetivamente, o contrato de comodato ou de subcomodato, denunciando-os.
Finalmente, a resolução do contrato é uma forma de extinção dos contratos por vontade unilateral e vinculada (a um dos fundamentos legais ou convencionais a que a lei liga esse direito resolutivo) de um dos contraentes ao outro (20), de onde resulta que contrariamente à denúncia, aqui a parte que resolve o contrato tem de ter fundamento legal ou convencional ligado ao inadimplemento da outra parte para pôr termo ao contrato.
Assim, é que em sede de contrato de comodato, nos termos do disposto no art. 1140º do CC, “não obstante a existência de prazo, o comodante pode resolver o contrato se para isso tiver justa causa”, comando legal este que igualmente se aplica ao subcomodante, isto é, o comodatário pode resolver o contrato de subcomodato celebrado com o subcomodatário se para isso tiver justa causa.
No caso presente, conforme apurado, no âmbito do contrato de subcomodato celebrado entre Autora e Ré em 10/04/1995, ao abrigo do qual a última se mantem a ocupar as dependências que a primeira lhe cedeu, ficou consignado que as referidas dependências só poderiam ser utilizadas pela Ré para a execução dos fins previstos na cláusula segunda dos respetivos estatutos: a promoção sócio-cultural, recreativa e desportiva dos seus associados, assim como da restante população de X, com especial incidência no que se refere ao apoio a prestar à infância, juventude e terceira idade (cfr. ponto 8 da matéria apurada e cláusula segunda do contrato junto aos autos a fls. 9 e 10).
Também ficou consignado que o referido contrato vigoraria pelo período de vinte anos, prorrogáveis e enquanto a Ré mantivesse a creche em funcionamento (cfr. ponto 9 da matéria apurada e cláusula oitava daquele contrato junto aos autos a fls. 9 e 10).
Urge interpretar esta última cláusula, no sentido de se apurar o respetivo alcance, designadamente, se nela se estabelece um prazo de caducidade, como nos parece ser o caso, ou uma cláusula resolutiva.
Em sede interpretativa, como é sabido, como regra legal essencial na interpretação dos contratos, nos termos do art. 336º, n.º 1 do CC., a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”.
Ao assim estatuir, é pacífico que o legislador consagrou a denominada doutrina da impressão do destinatário, de cariz objetivista, da qual decorre que, em homenagem aos princípios da proteção da confiança e da segurança do tráfico jurídico, se dá prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário, mas não do seu ponto de vista subjetivo, isto é, aquilo que aquele concreto declaratário realmente compreendeu, mas na sua dimensão objetiva, ou seja, aquilo que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, depreenderia daquela declaração.
Assim é que, conforme refere Mota Pinto, (21)”(…) a declaração deve valer com o sentido que um destinatário razoável, colocado na posição concreta do real declaratário lhe atribuiria; considera-se o real declaratário nas condições concretas em que se encontra e tomam-se em conta os elementos que ele conhece efetivamente mais os que uma pessoa razoável, quer dizer, normalmente esclarecida, zelosa e sagaz, teria conhecido e figura-se que ele racionou sobre essas circunstâncias como o teria feito um declaratário razoável”.
Acresce que no domínio da interpretação de um contrato podem surgir como elementos essenciais a que deve recorrer-se para a fixação do sentido das declarações: "a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respetivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e os costumes por ela recebidos" (22); ou, dito de outra maneira, “… os termos do negócio, os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento), a finalidade prosseguida, etc…” (23).
Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações (art. 237º do CC).
Nos negócios formais a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (art. 238º, nº 1 do CC), podendo, no entanto, esse sentido valer se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuseram a essa validade (n.º 2 daquele art. 238º).
Resulta do exposto e em síntese, que: a) em geral, se se conhecer a vontade real dos declarantes, a declaração vale de acordo com a mesma (art. 236º, nº 2 do CC); b) se tal vontade real não for conhecida, a declaração vale com o sentido que um declaratário normal – bónus pater família -, medianamente instruído, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele; c) no domínio da interpretação de um contrato surgem como elementos essenciais a que deve recorrer-se para a fixação do sentido das declarações: a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respetivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e os costumes por ela recebidos; d) nos negócios formais a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso, não se aplicando, no entanto, tal exigência se for conhecida a vontade real dos declarantes e as razões determinantes da forma do negócio não se opuserem a tal validade (art. 238º, nº 2 do CC);
Feitas estas precisões jurídicas, revertendo ao caso em análise, conforme resulta da cláusula oitava do contrato de subcomodato celebrado entre Autora e Ré, aquelas acordaram que aquele “contrato vigorará pelo período de vinte anos prorrogáveis e enquanto a comodatária mantiver a creche em funcionamento”, suscitando-se a dúvida se este clausulado – “enquanto a comodatária mantiver a creche em funcionamento” - se refere tão-somente a uma condição necessária para a prorrogação do contrato, obstando à caducidade do mesmo decorridos que sejam os vinte anos estipulados pelos contratantes para a sua vigência, ou se o alcance desse clausulado é no sentido de que, independentemente do decurso desse prazo de vinte anos, à Autora assistia o direito a resolver o contrato se a Ré não mantivesse a creche em funcionamento naquele espaço, ou seja, se se está perante uma cláusula resolutiva.
A este propósito, cumpre referir que sem grande esforço interpretativo, o sentido interpretativo a dar a essa cláusula é sem dúvida alguma o primeiro que enunciamos.
Com efeito, conforme resulta da mera leitura da cláusula segunda desse contrato de subcomodato (fls. 9 e 10 e ponto 8 da matéria apurada), a Autora não condicionou a utilização das dependências cedidas à Ré ao funcionamento nas mesmas de uma creche, mas antes, à utilização pela Ré dessas instalações “para a execução dos fins previstos na cláusula segunda dos respetivos estatutos: a promoção sócio-cultural, recreativa e desportiva dos seus associados, assim como da restante população de X, com especial incidência no que se refere ao apoio a prestar à infância, juventude e terceira idade”.

Significa isto, que durante o período de utilização dessas instalações estipulado pelas partes (20 anos), a Ré podia utilizar as mesmas na execução de qualquer uma dessas suas finalidades estatutárias, que não necessariamente o funcionamento da creche.
No entanto, decorrido que fosse o prazo de vinte anos fixado para a vigência do contrato, ou a Ré mantinha em funcionamento, nessas instalações, a creche e o contrato de subcomodato se prorrogaria no tempo ou, caso contrário, este extinguir-se-ia automaticamente.
É isto e só isto que, na ausência de outros elementos interpretativos carreados (e provados) para os autos, a interpretação conjugada das enunciadas cláusulas 2ª e 8ª do contrato de subcomodato junto aos autos a fls. 9 e 10 consente, ou seja, a enunciada cláusula 8ª consagra uma cláusula de caducidade e estabelece os termos em que essa caducidade do contrato não ocorreria – se a comodatária (Ré) mantivesse a creche em funcionamento.
Acontece que desde fevereiro de 2007, a Ré deixou de manter a creche em funcionamento nas referidas instalações, funcionando nas mesmas o ATL e o prolongamento do jardim de infância (ponto 11º da matéria apurada).
Resulta do exposto que, em 10/04/2015, data em que decorreram os vinte anos, livremente fixados, por acordo, entre Autora e Ré ao abrigo da sua liberdade contratual para a vigência daquele contrato de subcomodato, a Ré não mantinha nas dependências que lhe foram cedidas pela Autora no âmbito desse contrato, a creche em funcionamento, pelo que, nessa data de 10/04/2015, não se verificava a condição acordada para a prorrogação de vigência desse contrato, pelo que o mesmo se extinguiu, automaticamente, por caducidade, estando, por conseguinte, a Ré obrigada a restituir à Autora essas dependências por deixar de possuir o título – contrato de subcomodato - que lhe conferia o direito a utilizá-las.
Pretende a apelante que a restituição daquelas instalações à Autora configura abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, uma vez que a mesma continuou, e continua, a desenvolver nessas instalações os seus fins estatutários, além de que o comportamento anteriormente assumido pela Autora frustra a confiança daquela que depositou nesse comportamento da última, mas com manifesta sem razão.

Vejamos.

Estabelece o art. 334º do CC que “é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Infere-se deste preceito que os titulares de um direito subjetivo se encontram condicionados no exercício do mesmo a certos limites, como seja a boa-fé, os bons costumes e o fim social e económico do direito, de modo que quando esses limites são ultrapassados, o exercício desse direito, ainda que formal e aparentemente legítimo, não o é materialmente, porque contrário aos valores estruturantes do sistema jurídico, devendo, em tais casos, neutralizar-se a conduta do agente, declarando-a ilícita, com as consequências de todo o ato ilegítimo, designadamente, em sede indemnizatória.
Precise-se que porque se trata da neutralização de um direito, cujo exercício pelo respetivo titular, reafirma-se, é aparente e formalmente válido e legítimo, para que essa neutralização seja legitimada, é necessário que o excesso cometido seja manifesto, isto é, que o titular do direito o exerça em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante.
Deste modo, a ilegitimidade não resulta da violação formal de qualquer preceito legal concreto, mas da utilização manifestamente anormal, excessiva, do direito pelo respetivo titular.
Acresce que para haver abuso de direito não é necessária que o respetivo titular tenha intenção de prejudicar outrem, sequer o animus ou até a consciência ou perceção do caráter abusivo do seu comportamento e que, consequentemente, está a exceder os limites que enformam o seu direito, porque a conceção adotada pelo legislador de abuso de direito é a objetiva, não obstante tal não signifique que se deva prescindir de fatores subjetivos, como seja, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido.
Na concretização do abuso de direito impõe-se, assim, atender de modo especial às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade à data do exercício do direito, o que exige o apelo a considerações políticas, sociológicas, históricas e culturais vigentes naquela determinada comunidade e naquele concreto momento histórico por forma a valorar se os enunciados limites foram ou não ultrapassados e em que medida.
O abuso de direito assenta, essencialmente, no princípio geral de que “as pessoas devem ter um comportamento honesto, correto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros” (24).
Na tipologia do abuso de direito sobressai o venire contra factum proprium, que na terminologia de Meneses Cordeiro se denomina de supressio.

Esta modalidade de abuso de direito traduz-se “de um modo geral, na pretensão de alguém de extinguir certa relação subjetiva, recorrendo ao direito de anular, resolver, revogar ou denunciar o negócio que lhe serviu de fonte, depois de fazer ver à parte contrária (…) que não exerceria tal direito” (25).
De acordo com Baptista Machado, são pressupostos do venire contra factum proprium: a) a verificação de uma situação objetiva de confiança: a conduta de alguém que possa ser entendida como vinculante em relação a uma situação futura; b) o investimento na confiança e irreversibilidade desse investimento: a outra parte, com base na situação criada, organiza planos de vida de que surgirão danos se a sua confiança legítima lhe vier a ser frustrada; e c) a boa-fé da contraparte que confiou: nos casos de divergência entre a intenção aparente do responsável pela confiança e a sua intenção real, a contraparte só é merecedora de proteção jurídica se estiver de boa fé (por desconhecer aquela divergência ) e tenha agido com cuidado e precaução usuais ao tráfico jurídico” (26).

No caso, apelante e apelada acordaram, no exercício da respetiva liberdade contratual, pedra angular do sistema civilístico nacional, decorrência da autonomia privada, que acredita na liberdade de cada indivíduo, em que o Estado apenas deve intervir para salvaguardar a parte contratualmente mais fraca, por forma a garantir o equilíbrio negocial ou preservar o interesse público, que o contrato de subcomodato que celebraram teria um prazo de vigência de vinte anos e que esse prazo apenas se prorrogaria caso a Ré (subcomodatária) mantivesse a creche a funcionar nas instalações cedidas pela Autora (comodatária).

Acontece que, conforme se pondera na sentença recorrida, é conhecida a distinção entre creche e jardim de infância, distinção essa que a Ré não podia ignorar, sequer ignora, até por via das funções a que de dedica, em que tem, ou já teve, creche e jardim de infância em funcionamento.

A Ré também não ignora, sequer podia ignorar, aquilo que tinha livremente acordado com a Autora e que, consequentemente, em função desse acordo, o contrato de subcomodato que tinha celebrado com a Autora apenas seria prorrogado no tempo caso aquela mantivesse nas instalações que lhe tinham sido cedidas pela Autora a creche em funcionamento e que, de contrário, esse contrato cessaria automaticamente, extinguindo-se por caducidade, decorrido que fosse aquele prazo de vinte anos.
Acontece que a Ré, não obstante tudo o quanto se acaba de referir, desde fevereiro de 2007, deixou de manter a creche em funcionamento nas referidas instalações, funcionando nas mesmas o ATL e o prolongamento do jardim de infância.

Deste modo, a não prorrogação do contrato de subcomodato e a sua consequente caducidade apenas se deve à própria conduta omissiva da Ré, que sabendo nas cominações contratuais em que incorreria caso não mantivesse, nessas instalações, a creche em funcionamento, desde fevereiro de 2007, apesar de continuar a exercer naquelas instalações as funções estatutárias que lhe estão confiadas, não cuidou em manter a creche em funcionamento.
Precise-se que não se descortina qual o comportamento a que a Ré alude ter sido assumido pela Autora e que a terá levado, fundada e legitimamente, a acreditar que a Autora iria obstar a que o contrato de subcomodato entre ambas celebrado caducasse, uma vez decorrido que fosse aquele prazo de vinte anos que pactuaram para a respetiva vigência.

Se a Ré se está a referir à circunstância de, desde fevereiro de 2007 ter deixado de manter em funcionamento, naquelas instalações, a creche, sem reação da Autora, é manifesta a sua falta de razão.
Com efeito, conforme dito, nos termos da cláusula segunda do contrato de subcomodato que a Autora celebrou com a Ré (vide fls. 9 e ponto 8 dos factos apurados), esta, durante o período de vigência do contrato (20 anos), podia utilizar as referidas instalações para a execução dos seus fins estatutários.
Deste modo, por muito que tivesse desagradado à Autora o facto de a Ré ter, em fevereiro de 2007, deixado de manter, nessas instalações, em funcionamento a creche, na medida em que nelas a Ré mantinha em funcionamento o ATL e o prolongamento do jardim de infância (ponto 11 da matéria apurada), o que sem dúvida alguma se insere nos fins estatutários da Ré, aquela Autora nada podia fazer, nomeadamente, não lhe assistindo o direito potestativo a resolver aquele contrato de subcomodato com fundamento em “justa causa”, já que a Ré em nenhum inadimplemento contratual estava a incorrer, restando-lhe aguardar pelo decurso do prazo de vinte anos para que aquele contrato se extinguisse, por caducidade, nos termos da respetiva cláusula 9ª.
Uma última nota. Apesar do contrato de subcomodato apenas caducar em 10/04/2015, a Autora, em 30/10/2014, isto é, com uma antecedência superior a cinco meses sobre a data da extinção do contrato, comunicou à Ré a intenção de fazer cessar o contrato com efeitos a partir de 10/04/2015 (ponto 13 da matéria apurada), cumprindo, inclusivamente, uma formalidade que não era obrigada a cumprir, posto que a caducidade opera automaticamente, pelo mero decurso do prazo de vinte anos sobre a data início de vigência do contrato de subcomodato, com o que, a Autora teve para com a Ré, inclusivamente, uma conduta altamente conforme aos valores éticos, alertando-a para uma consequência contratual que iria ocorrer daí a mais de cinco meses por forma a que esta, eventualmente, esquecida daquilo que tinha acordado com a Autora, se preparasse para esse desfecho contratual.
Resulta do que se vem dizendo que nenhum abuso de direito se descortina no comportamento da Autora, que com a instauração da presente ação, se limita tão-só a exercer os seus direitos contratuais face ao comportamento inadimplente da Ré, que não obstante a extinção, por caducidade, do contrato de subcomodato entre elas celebrado, se recusa a restituir-lhe as instalações cuja utilização lhe cedeu no âmbito daquele contrato.
Termos em que improcedem todos os fundamentos de recurso invocados pela apelante, impondo-se confirmar a bem estruturada e elaborada sentença recorrida.
**
Decisão:

Nestes termos, os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a presente apelação totalmente improcedente e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
*
Custas pela apelante (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Notifique.
Guimarães, 15 de fevereiro de 2018

(Dr. José Alberto Moreira Dias)
(Dr. António José Saúde Barroca Penha)
(Dra. Eugénia Maria Marinho da Cunha)


1. Ac. STJ. de 14/02/2012, Proc. 6823/09.3TBRG.G1.S1, in base de dados da DGSI.
2. Ac. RG. de 01/06/2017, Proc. 1227/15.6T8BGC.C1, in base de dados da DGSI.
3. António Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 4ª ed., 2017, pág. 153.
4. ob. cit., pág. 155.
5. Abrantes Geraldes, in ob. cit., pág. 159. No mesmo sentido vide Acs. S.T.J. de 18/11/2008, Proc. 08A3406; 15/09/2011, Proc. 1079/07.0TVPRT.P.S1; 04/03/2015, Proc. 2180/09.0TTLSB.L1.S2; 01/10/2015, Proc. 824/11.3TTLSB. L1. S1; 26/11/2015, Proc. 291/12.4TTLRA.C1; 03/03/2016, Proc. 861/13.3TTVIS.C1.S1; 11/02/2016; Proc. 157/12.8TUGMR.G1.S1, todos in base de dados da DGSI.
6. Abrantes Geraldes
7. Abrantes Geraldes, in ob. cit., págs. 160 e segs.
8. Ac. STJ. 29/10/2015, Proc. n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, in base de dados da DGSI.
9. Base da dados da DGSI, pronunciando o Ac. STJ, de 29/10/2015, Proc. 233/09.4TBVNG.G1.S1,
10. Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e Reapreciação Sobre a Matéria de Facto”, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, vol. IV, pág. 609.
11. Júlio Manuel Vieira Gomes, in “Do Contrato de Comodato”, Cadernos de Direito Privado, n.º 17 (jan – março de 2007), pág. 29.
12. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. II, 3ª ed., Coimbra Editora, pág. 661.
13. Neste sentido Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 661.
14. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 660; Acs. RC. de 14/09/2010, Proc. 1275/05.4TBCTB.C1; RE. de 8/11/2007, Proc. 1613/07-2, in base de dados da DGSI.
15. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág, 662.
16. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 679.
17. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 671.
18. Ac. RE de 08/11/2007, Proc. 1613/07-2 in base de dados da DGSI.
19. Neste sentido, vide Ana Prata, in “Dicionário Jurídico”, vol. I, 5ª ed., Almedina, pág. 463.
20. Ana Prata, in ob. cit., pág. 1298.
21. Carlos Mota Pinto, in “Teoria Geral Do Direito Civil”, 3ª ed., Coimbra Editora, pág. 447.
22. Luís Carvalho Fernandes, in “Teoria Geral do Direito Civil, II, Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica, pág. 416/417.
23. Prof. Manuel de Andrade, in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, vol. II, pág. 213.
24. Coutinho de Abreu, in “Do Abuso de Direito”, pág. 55.
25. Antunes Varela, in “Centros Comerciais”, pág. 90. No mesmo sentido, vide entre outros, Ac. STJ. de 11/12/2013, Proc. 629/10.9TTBRG.P2.S1, in base de dados da DGSI, onde se lê que “Na elaboração dogmática do instituto do abuso de direito, o venire contra factum proprium assume una das suas manifestações mais características, cuja estrutura pressupõe duas condutas, sucessivas mas distintas, temporalmente distanciadas e de sinal contrário, protagonizadas pelo mesmo agente: o “factum proprium”, seguido, em contradição, do “venire”.
26. Batista Machado, in “Obra Dispersa”, vol.. I, págs. 416 e ss..