Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
771/17.5PBGMR-J.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: PERDÃO DE PENA
CÚMULO JURÍDICO
PENA ÚNICA
LIMITE MÍNIMO DA PENA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- No âmbito da Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, em caso de cúmulo jurídico entre um crime excluído do perdão e outro não excluído do perdão, a aplicação do perdão à pena única não pode ter como consequência que o seu remanescente (depois da aplicação do perdão) seja inferior à medida da pena parcelar aplicada pelo crime excluído de tal benefício.
II- Esta interpretação, diretamente resultante da conjugação dos artigos 3.º, n.º 4 e 7.º, nº 3, ambos da Lei n.º 38-A/2023, não padece da inconstitucionalidade, por violação do disposto nos artigos 13.º (Princípio da igualdade) e 32.º (Garantias de processo criminal) da Constituição da República Portuguesa.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.
(Secção Penal)

I. RELATÓRIO

No processo comum coletivo nº 771/17...., do Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., em que é arguido AA, foi proferido o seguinte despacho, datado de 04.10.2023:

«(…)
2.Condenado AA:
2.1. Da aplicabilidade do perdão ao abrigo da Lei 38-A/2023, de 02.08, apreciação do requerimento apresentado pelo arguido refª ...27 e da promoção refª:...55:
Por requerimento refª ...27, AA requereu que seja perdoada a pena que lhe foi aplicada nos presentes autos.
A Exma Magistrada do Ministério Público na promoção refª ...55, além do mais, pronunciou-se no sentido de não ser aplicado o perdão de um ano, previsto na Lei 38-A/2023, de 2.08, à pena única a que AA foi nestes autos condenado, em virtude de ter sido condenado como reincidente, estando assim excluído do perdão, por força do disposto no artº 7º, nº 1, al. j) da referida lei.
Vejamos:
A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto (a que se referirão os demais normativos citados, sem distinta indicação), entrada em vigor em 1.09.2023, que estabelece perdão de penas e amnistia de infracções, é aplicável a sanções penais por ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19.06.2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (cf. arts. 2.º, n.º 1, e 3.º, n.º 1).
Nos termos do art.º 3º, nº 1, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.
Em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única - art.º 3º, nº 4.
Constituem circunstâncias que excluem a aplicação do perdão as enunciadas no art.º 7º. E entre essas exclusões constam os casos em que, no que concerne a determinado crime, o agente é considerado como reincidente e como tal condenado - cf. nº 1, al. j) da citada norma.
O perdão é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada - art.º 8º, nº 1.
O perdão é ainda concedido sob a condição resolutiva do pagamento da indemnização ou reparação a que o beneficiário também tenha sido condenado - art.º 8º, nº 2.
*
Por acórdão proferido nos autos, transitado em 07.12.2020, AA, nascido em .../.../1989, foi condenado pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º do D.L. nº 15/93 de 22 de Janeiro, com reincidente, cometido entre 08.2016 e 6.12.2016, na pena parcelar de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão e pela prática de um crime de detenção e arma proibida p. e p. pelo art.º 86º/1 d) da Lei 5/2006, de 23/02, cometido em .../.../2018, na pena parcelar de 8 (oito) meses de prisão. Em cúmulo jurídico, foi AA condenado na pena única de 3 anos de prisão.
O condenado tinha idade inferior a 30 anos à data da prática dos ilícitos em concurso, cometidos antes das 00h00 do dia 19.06.23.
O crime de detenção de arma proibida não consta das excepções elencadas no artº 7º.
De igual modo, o crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25º do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro, considerado em si mesmo, não está incluído nas referidas excepções. Com efeito, a simples referência, efectuada no art.º 7º, f), ix) da Lei 38-A/2023, ao tipo de crime base previsto no artº 21º daquele diploma legal, sem qualquer referência às situações de menor gravidade, não permite concluir que também tenha sido intenção do legislador excluir as mesmas da aplicação do perdão, sendo certo que no elenco dos crimes que determinam a exclusão da aplicação das medidas estabelecidas pela dita Lei atendeu-se não só ao bem jurídico protegido e aos elementos constitutivos dos respetivos tipos de crime, mas também à pena aplicável.
Todavia, no caso em apreço, AA, foi condenado, com a agravante da reincidência, no que ao crime de tráfico de menor gravidade respeita, pelo que, atento o disposto no 7º, al. j), da mesma Lei 38-A/23, não beneficia do perdão de pena aí previsto quanto a esta condenação.
Já quanto ao crime de detenção de arma, não foi condenado como reincidente, pelo que, no que a esta condenação se refere estaria em condições de beneficiar do perdão.
Conforme assinala Pedro José Esteves de Brito, Juiz de Direito, in “Notas práticas referentes à Lei 38- A/2023, de 2 de agosto que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião
da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”, publicado na Revista Julgar online, Agosto de 2023 (citando, neste sentido, o artigo de Sérgio Poças e Carlos Almeida, “Notas relativas ao Projecto de Lei de perdão genérico e amnistia de pequenas infracções”, Centro de Estudos Judiciários, 3.05.99, pags 1 e 2, nota 49), a exclusão prevista no artº 7º, nº 1, al. j) abrange os casos em que, no que concerne a determinado crime o agente é condenado como reincidente. Por seu turno, no caso de concurso de crimes, sendo o arguido apenas condenado como reincidente quanto a um ou uns deles, face ao disposto no artº 7º, nº 3, da Lei em apreço, nada obsta à aplicação do perdão à respectiva pena única (cfr. art.º 3º, nº 4), verificados que sejam os necessários requisitos.
No caso em análise, engoba a pena única de prisão aplicada uma pena parcelar por crime excluído do perdão (pena de dois anos e nove meses de prisão pela prática crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25º do D.L. 15/93, com a agravante da reincidência) e uma pena parcelar aplicada por crime não excluído do perdão (pena de oito meses de prisão por crime de detenção de arma proibida).
Tal circunstância não afasta a aplicabilidade do perdão, como resulta da conjugação do disposto nos artºs 3º, nº 4 e 7º, nº 3.
Todavia, impõe ainda a interpretação das mesmas normas um limite à medida do perdão, por forma a que o remanescente da pena única, depois de aplicado o perdão, não seja inferior à medida da pena parcelar aplicada por crime excluído do perdão.
Partilha-se a este propósito o entendimento expresso no citado artigo “Notas práticas referentes à Lei 38-A/2023, de 2 de agosto que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”, no sentido que nestes casos “ a conjugação dos artºs 3º, nº 4 e 7º, nº 3, da Lei em apreço impõe que o remanescente da pena única resultante da aplicação  àquela do perdão não pode ser inferior à pena parcelar aplicada pelo crime excluído do perdão”, citando-se, no mesmo artigo, a propósito deste limite o Ac. da Relação do Porto de 29.11.2000, processo 10861, relator Manuel Braz, in www.datajuris. pt.
Explicitam-se, de seguida, no mesmo artigo, as seguintes considerações que se subscrevem: “É certo que a pena única sobre a qual incide o perdão é uma nova e autónoma pena que se distingue das penas parcelares. Contudo (…) perante um único crime, caso o mesmo esteja excluído do perdão, entendeu o legislador que a respectiva pena não deveria ser reduzida. Desta forma seria ilógico que, após a aplicação do perdão à pena única, o condenado tivesse que cumprir um remanescente inferior à medida da pena aplicada pelo único crime excluído de tal benefício”
Assim sendo, neste caso o perdão a aplicar à pena única de prisão de 3 anos, será limitado a 3 meses, por forma a que o remanescente da pena única, depois de aplicado o perdão, não seja inferior a 2 anos e 9 meses (medida da pena parcelar aplicada pelo crime excluído do perdão).
Pelo exposto, ao abrigo das disposições legais acima citadas,
Declaro perdoado 3 (três) meses de prisão à pena única de 3 (três) anos de prisão aplicada nestes autos a AA sob a condição resolutiva de o mesmo condenado não praticar infração dolosa até .../.../2024, inclusive, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da parte da pena perdoada.
2.2. Da liquidação da pena aplicada ao condenado AA, já considerado o perdão:
Como se refere na promoção ref.ª ...55, e resulta dos elementos dos autos:
O condenado AA foi detido para cumprimento da pena de prisão aplicada nestes autos em 01.02.2021 e nessa sequência foi liquidada a pena de prisão nos termos constantes de refª ...67 de 02.02.2021, e ...34 de ...34, tendo-se procedido ao desconto de um dia de prisão nos termos do artigo 80.º do Código Penal uma vez que o condenado foi detido à ordem destes autos a 22.10.2018 e restituído à liberdade no mesmo dia (cfr. fls.4 a 8 e 26 e 54 do Inquérito Apenso E, NUIPC 341/18....).
Em 04.02.2021 foi o condenado desligado destes autos e ligado ao processo 453/20.... (refª ...98 de 08.02.2021). Assim, o condenado esteve ligado a estes autos, em cumprimento de pena, nos dias 01, 02, 03.02.2021 – período a atender no novo cômputo.
Foi novamente ligado a estes autos para cumprimento da pena de prisão a que foi condenado em 01.09.2023 (cfr. refª ...69).
*
Conforme resulta do acima exposto, decidiu-se aplicar ao condenado o perdão de 3 meses à pena única de 3 anos de prisão, o que não foi considerado na promoção que se vem de referir, por se ter entendido não haver lugar a qualquer perdão.
Apenas por esse motivo, se não concorda com a liquidação aí efectuada e se procede ao cômputo da pena única, depois de aplicado o perdão ora declarado, do seguinte modo:
Atendendo ao exposto, procedendo ao desconto de um dia de detenção, tendo em conta ainda que o condenado esteve anteriormente em cumprimento de pena nestes autos aplicada durante 3 dias e que foi novamente ligado a estes autos em 1.09.2023, bem como considerando o perdão de três meses de prisão agora declarado, o condenado AA atingirá:
½ da pena em 12.01.2025
2/3 da pena em 27.06.2025
Termo da pena em 28.05.2026
Notifique o condenado e seu Exmo Defensor e comunique ao TEP, EP e DGRSP - artº 477º, nº 4 e 35º da Portaria nº280/2013 de 26.08.»
*
Inconformado, o arguido AA interpôs recurso, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:

«1. AA, não se conforma com o douto despacho prolatado em 04.10.2023, pelo qual se decidiu apenas aplicar um perdão de 3 (três) meses, ao abrigo da Lei 38-A/2023, de 02.08;
2. O Tribunal a quo fez uma interpretação restritiva da Lei 38-A/2023, de 02.08, nomeadamente do n.º 4 do artigo 3º;
3. O arguido não só preenchia e preenche todos os pressupostos formais para poder beneficiar do perdão previsto Lei 38-A/2023, de 02.08, como nos termos do disposto no artigo 3º, n.º 4 da Lei 38-A/2023, de 02.08, esse perdão, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena única, não se estabelecendo aí quaisquer outros limites ou outras condições para a aplicação do mesmo, não permitindo a interpretação conjugada do artºs 3º, nº 4 e 7º, nº 3, suportar entendimento diverso;
4. Acresce que, no caso concreto dos autos, e se é verdade que o arguido, aqui recorrente, não pode beneficiar da aplicação da referida lei, pelo facto de ser reincidente quanto a um dos crimes (o de tráfico de menor gravidade), por outro a pena única engloba uma pena parcelar aplicada por crime não excluído do perdão, mais precisamente a pena de 8 (oito) meses de prisão por crime de detenção de arma proibida, a qual, se não estivesse em concurso com a pena do crime excluído, seria considerada integralmente perdoada por ser inferior aquele ano de perdão, resultando a interpretação restritiva do Tribunal numa derrogação do direito do condenado ver aquela pena perdoada quando o legislador não o previu;
5. A interpretação do Tribunal a quo, das normas conjugadas dos artºs 3º, nº 4 e 7º, nº 3, ambas da Lei 38-A/2023, de 02.08 no sentido pena única resultante da aplicação àquela do perdão não poder ser inferior à pena parcelar aplicada pelo crime excluído do perdão, é inconstitucional por violação do disposto nos artigos 13º e 32º da Constituição da República Portuguesa, o que aqui se invoca para os devidos e legais efeitos;
6. Disposições violadas: Foram violadas a disposições referidas supra, nomeadamente o disposto nos artigos artºs 3º, nº 4 e 7º, nº 3 da Lei 38-A/2023, de 02.08 e os artigos 13º e 32º 8 da CRP da Constituição da República Portuguesa, e as demais disposições que V. Exias suprirão.»
*
A Senhora Procuradora da República que representou o Ministério Público na 1ª instância respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
Nesta Relação, a Exma. Senhora Procuradora-Geral adjunta emitiu parecer, igualmente no sentido do não provimento do recurso.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem resposta.
*
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer[1].

1. Questão a decidir:

Saber se, no âmbito da Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, em caso de cúmulo jurídico entre um crime excluído do perdão e da amnistia e outro não excluído do perdão, a aplicação do perdão à pena única pode, ou não, ter como consequência que o seu remanescente (depois da aplicação do perdão) seja inferior à medida da pena parcelar aplicada pelo crime excluído de tal benefício.
***
III. APRECIAÇÃO DO RECURSO

No âmbito dos presentes autos, por acórdão transitado em julgado em 07.12.2020, o arguido/recorrente AA, nascido em .../.../1989, foi condenado:
- como reincidente, pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º do D.L. nº 15/93, de 22.01, cometido entre 08.2016 e 6.12.2016, na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão; e
- pela prática de um crime de detenção e arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, nº 1, al. d) da Lei 5/2006, de 23.02, cometido em 22.10.2018, na pena de 8 (oito) meses de prisão;
- em cúmulo jurídico dessas duas penas parcelares, foi o arguido AA condenado na pena única de 3 (três) anos de prisão.
O arguido/recorrente, nascido em .../.../1989, tinha menos de 30 anos nas datas em que praticou esses dois crimes, encontrando-se assim abrangido pela  Lei n.º 38-A/20023, de 02.08[2], como estabelece o seu artigo 2.º.
O crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, nº 1, al. d) da Lei 5/2006, de 23.02, está excluído da amnistia de infrações penais prevista no artigo 4.º da citada Lei de clemência, porquanto não reúne os pressupostos aí exigidos para tal; mas não se enquadra no elenco das exceções previstas no artigo 7.º da mesma Lei, que excluem o perdão e a amnistia.
Por sua vez, a condenação como reincidente pelo crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º do D.L. nº 15/93, de 22.01, está contemplada na al. j) do artigo 7.º da mesma Lei, como uma das exceções que exclui o perdão e a amnistia.
Estamos, pois, perante a coexistência entre um crime excluído do perdão e da amnistia com crime não excluído do perdão, o que, como estabelece o artigo 7.º, nº 3 da Lei 38-A/20023, 02.08, não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e 4.º do mesmo diploma.
Porém, respeitando a situação a um caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única, sem qualquer desvio às regras dos artigos 77.º e 78.º do Código Penal, por ser precisamente nesse sentido a previsão expressa do nº 4 do artigo 3º, da Lei de clemência em análise.
Sendo ainda que, nesta mesma situação, da conjugação dos artigos 3.º, nº 4, e 7.º nº 3, da mesma lei, resulta que a medida do perdão sobre a pena única não pode ser superior à pena parcelar aplicada pelo crime que determina a aplicação do perdão; e, por outro lado, que o remanescente da pena única resultante da aplicação àquela do perdão não pode ser inferior à pena parcelar aplicada pelo crime excluído do perdão.
Como escreve a propósito Pedro José Esteves de Brito[3], «É certo que a pena única sobre a qual incide o perdão é uma nova e autónoma pena que se distingue das penas parcelares. Contudo, seria ilógico aplicar um perdão na pena única de prisão em medida superior à pena parcelar de prisão aplicada pelo único crime que demanda a aplicação de tal benefício ou à soma das únicas penas parcelares de prisão aplicadas por diferentes crimes que determinam a aplicação desse benefício, caso a mesma seja inferior a um ano, que é a medida máxima do perdão estabelecido na Lei. Por outro lado, perante um único crime, caso o mesmo esteja excluído do perdão, entendeu o legislador que a respetiva pena de prisão não deveria ser reduzida. Desta forma, seria ilógico que, após a aplicação do perdão à pena única de prisão, o condenado apenas cumprisse um remanescente inferior à medida da pena parcelar de prisão aplicada pelo único crime excluído de tal benefício ou, no caso de serem várias as penas parcelares de prisão aplicadas por crimes excluídos de tal benefício, à mais elevada de tais penas. Aliás, quando uma pena é englobada num cúmulo jurídico não perde a sua existência, as penas parcelares cumuladas são descritas nas decisões de punição do concurso, sendo que, apesar da efetivação do cúmulo jurídico, continuam a constar do registo criminal, são mencionadas e ponderadas individualmente no elenco dos antecedentes criminais do agente numa sentença condenatória, são novamente individualmente consideradas em caso de necessidade de reformulação do cúmulo jurídico, pelo que as punições parcelares integradas no cúmulo jurídico, apesar de perderem autonomia, não desaparecem da ordem jurídica»
Nenhuma censura nos merece assim a decisão recorrida, quando determinou que o perdão a aplicar à pena única de prisão de 3 (três) anos, seria limitado a 3 (três) meses, por forma a que o remanescente da pena única, depois de aplicado o perdão, não fosse inferior a 2 (dois) anos e 9 (nove) meses (que é a medida da pena parcelar aplicada pelo crime excluído do perdão).
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Esta interpretação, diretamente resultante da conjugação dos artigos 3.º, n.º 4 e 7.º, nº 3, ambos da Lei 38-A/20023, de 02.08, não padece da inconstitucionalidade que lhe atribui o recorrente, por violação do disposto nos artigos 13.º (Princípio da igualdade) e 32.º (Garantias de processo criminal) da Constituição da República Portuguesa.
Em primeiro lugar, o direito de graça ou de clemência, no qual se inclui a amnistia e o perdão genérico têm sempre uma natureza excecional, não comportando interpretação analógica nem extensiva, devendo ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas. Como se pode ler a propósito, com inteira atualidade, no então designado Assento n.º 2/2001, de 25.10.2001, publicado no DR 264 SÉRIE I-A, de 14.11.2001, “(…) o direito de graça subverte princípios estabelecidos num moderno Estado de direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, porquanto permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça, tarefa para a qual só o poder judicial se encontra vocacionado, sendo por muitos consideradas tais medidas como instituições espúrias que neutralizam e até contradizem as finalidades que o direito criminal se propõe.
Razão pela qual aquele direito é necessariamente considerado um direito de «excepção», revestindo-se de «excepcionais» todas as normas que o enformam.
É pela natureza excepcional de tais normas que elas «não comportam aplicação analógica» — artigo 11.º do Código Civil —, sendo pacífico e uniforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que, pela mesma razão, não admitem as leis de amnistia interpretação extensiva ou restritiva, «devendo ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas» (…)”
Assim sendo, respeitando a situação em apreço, como já se viu, a um caso de cúmulo jurídico de penas parcelares de prisão aplicadas por crime excluído do perdão e por crime dele não excluído, foram ambas englobadas no cúmulo, com aplicação do perdão na pena única de prisão fixada, mas sempre de modo a que o remanescente da pena única de prisão resultante da aplicação àquela do perdão fique em medida inferior à pena parcelar de prisão aplicada pelo único crime excluído do perdão, como impõem os artigos 3.º, n.º 4 e 7.º, n.º 3, da lei em análise.
De outro modo, a pena do crime excluído do perdão acabaria por beneficiar de uma redução não decretada na lei de clemência. Sendo por isso inconcebível que após a aplicação do perdão à pena única de prisão nos termos pretendidos pelo recorrente, ele viesse a cumprir um remanescente inferior à medida da pena parcelar de prisão aplicada pelo crime excluído de tal benefício.
O que não é suscetível de violar o princípio constitucional da igualdade, pois que o mesmo se impõe a todos os cidadãos na situação do recorrente e não assenta em critérios arbitrários.
Como tem vindo a ser repetidamente proclamado pelo próprio Tribunal Constitucional, «Numa perspetiva material ou substantiva, a igualdade jurídica corresponde a um conceito relativo e valorativo assente numa comparação de situações: estas, na medida em que sejam consideradas iguais, devem ser tratadas igualmente; e, na medida em que sejam desiguais, devem ser tratadas desigualmente, segundo a medida da diferença. Com efeito, a Constituição não proíbe todo e qualquer tratamento diferenciado. Proíbe, isso sim, as discriminações negativas atentatórias da (igual) dignidade da pessoa humana e as diferenças de tratamento sem uma qualquer razão justificativa e, como tal, arbitrárias. Nesse sentido, afirmou-se no Acórdão n.º 39/88: «A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado: a justiça, como princípio objetivo, “reconduz-se, na sua essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade” – acentua Rui de Alarcão (Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, lições policopiadas de 1972, p. 29). O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes.
Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13.º. Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados. O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante.»[4].
*
Quanto à invocação pelo recorrente do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, a singela alegação da sua violação, sem a mínima fundamentação, obsta ao seu conhecimento nesta sede de recurso.
Não se vislumbrando como a aplicação do perdão à pena única nos termos decretados na decisão recorrida possa violar garantias de processo criminal consagradas na lei fundamental.
***
IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 (três) Ucs a taxa de justiça.
**
Guimarães, 6 de fevereiro de 2024
(Texto integralmente elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal –, encontrando-se assinado na primeira página, nos termos do artigo 19.º da Portaria nº 280/2013, de 26.08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20.09.)

Fátima Furtado (Relatora)
Cristina Xavier da Fonseca (1ª Adjunta)
Anabela Varizo Martins (2ª Adjunta)


[1] Cf. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[2] Que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, tendo entrado em vigor a 01.09.2023.
[3] Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, Revista Julgar Online, agosto de 2023, páginas 16 e seguintes
[4] Acórdão n.º 565/2018, Processo n.º 524/18, 2.ª Secção, Relator: Conselheiro Pedro Machete