Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
119/09.2TBCMN-A.G1
Relator: ALEXANDRA VIANA LOPES
Descritores: DIREITO DE RETENÇÃO
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
O regime dos arts.755º/1-f) e 759º/1 e 2 do Código Civil não padece de inconstitucionalidade por violação dos arts.12º/1, 13º, 18º/2 e 62º/2 da Constituição da República Portuguesa, que exija a desaplicação nos termos do art.204º da mesma CRP.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório:

Nos presentes autos de reclamação de créditos, deduzidos por apenso aos autos de execução nº 119/09.2 TBCMN:

1. Reclamaram créditos:

1.1. P. F. e mulher M. C., reclamação na qual:
a) Alegaram: que celebraram um contrato-promessa de compra e venda a 2.7.2010, pelo preço de € 95 000, 00 a pagar em 3 fases até à escritura, a celebrar em 730 dias, do qual pagaram o valor de € 15 000, 00 na do contrato promessa e € 65 000, 00 após; que tomaram posse da fração em novembro de 2010 e passaram aí habitar; que falaram ao executado em finais de junho de 2012 para marcar a escritura, pressionaram-no novamente para a sua marcação e enviaram-lhe uma interpelação escrita para comparecer no dia por si marcado para o efeito, data e hora em que compareceram e o executado não compareceu, ocorrendo novos contactos posteriores sem resolução do problema; que souberam, depois, da penhora da sua fração pelo credor hipotecário a 24.03.2015;
b) Defenderam a impossibilidade de celebração do contrato por causa imputável ao executado, o direito a receber o sinal em dobro no valor de € 30 000, 00 e um direito de retenção sobre a fração penhorada; declaram que iriam instaurar a ação declarativa de resolução do contrato-promessa com pedido de indemnização de sinal em dobro;
c) Pediram: a resolução do contrato promessa; o reconhecimento do direito de crédito de € 95 000, 00 (de dobro de sinal e restituição das quantias já pagas); o reconhecimento do direito de retenção sobre o prédio penhorado, com graduação em primeiro lugar.

1.2. M. P. e mulher M. R.:
a) Alegaram: que celebraram um contrato-promessa de compra e venda a 2.7.2010, pelo preço de € 110 000, 00, a pagar no valor de € 30 000, 00 na data da celebração do contrato-promessa e € 80 000, 00 através da permuta de imóvel, preço esse que pagaram integralmente; que tomaram posse da fração em novembro de 2010 e passaram aí habitar; que falaram ao executado em maio 2012 para marcar a escritura, pressionaram-no novamente para a sua marcação e enviaram-lhe uma interpelação escrita para comparecer no dia por si marcado para o efeito, data e hora em que compareceram e o executado não compareceu, que ocorreram novos contactos sem resolução do problema; que souberam, depois, da penhora da sua fração pelo credor hipotecário a 24.03.2015;
b) Defenderam a impossibilidade de celebração do contrato por causa imputável ao executado, o direito a receber o sinal em dobro no valor de € 60 000, 00 e um direito de retenção sobre a fração penhorada; declaram que iriam instaurar a respetiva ação declarativa de resolução do contrato-promessa com pedido de indemnização de sinal em dobro;
c) Pediram: a resolução do contrato promessa; o reconhecimento do direito de crédito de € 140 000, 00 (de dobro de sinal e restituição da quantia já paga); o reconhecimento do direito de retenção sobre o prédio penhorado, com graduação em primeiro lugar.
1.3. S. C. e mulher M. S.:
a) Alegaram: que celebraram um contrato-promessa de compra e venda a 25.01.2011, pelo preço de € 105 000, 00, a pagar no valor de € 80 000, 00 na data da celebração do contrato-promessa e € 25 000, 00 até maio de 2011, preço esse que pagaram integralmente; que tomaram posse da fração em 9 de junho de 2011 e passaram aí habitar; que, apesar das várias pressões e interpelações (nomeadamente admonitória), a escritura não foi marcada; que souberam, depois, da penhora da sua fração;
b) Defenderam: a impossibilidade de celebração do contrato por causa imputável ao executado; o direito a receber o sinal em dobro no valor de € 160 000, 00; um direito de retenção sobre a fração penhorada; a possibilidade de obtenção do título executivo, nos termos do art.792º do CPC, cuja tramitação requer;
c) Pediram: o reconhecimento do incumprimento definitivo do contrato promessa; o reconhecimento do direito de crédito de € 185 000, 00 (de dobro de sinal e restituição da quantia já paga); o reconhecimento do direito de retenção sobre o prédio penhorado, com graduação em primeiro lugar.
2. A Caixa ..., SA., reclamou créditos, com fundamento na garantia real sobre os bens penhorados na execução apensa.
3. Cumpriu-se o disposto no art. 789º/1 do Código de Processo Civil.
4. A Caixa ..., SA. deduziu oposição a 1 supra, dizendo: que não foi feita prova de que os reclamantes P. F. e mulher, M. P. e mulher e S. C. e mulher instauraram dentro do prazo de reclamação de créditos uma ação para obter título judicial, tendo caducado o direito de os mesmos verem reconhecido qualquer crédito; que também não lançaram mão do incidente previsto no art. 792º nº 1 do CPC; que, de qualquer forma, não foram alegados factos essenciais (que era consumidor final, que o executado exerceu a atividade profissionalmente, que a fração era para a habitação própria), nem ocorreu uma interpelação admonitória/cominatória na qual se reservasse o direito de considerar definitivamente incumprido o contrato e a faculdade de o resolver (tanto mais que fez o pedido de resolução nestes autos), não havendo incumprimento definitivo, nos termos do art.808º/1- 2ª parte do Código Civil.
5. Os reclamantes de I- 1 supra não apresentaram impugnação aos créditos da Caixa ..., SA.
6. Foi definido como objeto do processo: a aferição dos pressupostos de resolução dos contratos-promessa subscritos pelos reclamantes P. F. e mulher, M. P. e mulher e S. C. e mulher e pelo executado H. P., em face do incumprimento definitivo dos mesmos pelo executado; conhecer dos direitos de crédito reclamados pelos primeiros; aferir dos pressupostos dos direitos de retenção invocados.
7. Realizou-se a audiência de julgamento.
8. Por sentença de 24 de maio de 2019 foi decidido:
«I. Reconhecer os créditos reclamados pela Caixa ... no montante de 1.183.695,54 €, acrescido de juros à taxa aplicável;
II. Declarar a resolução dos três contratos promessa de compra e venda em causa nos autos, por impossibilidade de cumprimento imputável ao executado;
III. Reconhecer o crédito dos requerentes P. F. e esposa, no montante de € 95.000,00 (noventa e cinco mil euros), montante acrescido de juros à taxa aplicável;
IV. Reconhecer aos requerentes P. F. e esposa o direito de retenção sobre o prédio penhorado (fracção E destinado a habitação do tipo t2, no piso 2 esquerdo do bloco sul, com área bruta de 97,85 m2, com circulação, sala, cozinha, despensa, instalação sanitária de serviço, instalação sanitária privativa, dois quartos com roupeiros embutidos, cujas áreas são descritas num quadro em anexo; a esta fracção corresponde ainda o espaço fechado destinado a garagem, ao nível da cave, referenciado pela letra EE, com área bruta de 18,90 m2 e varandas com área de 5,43 m2, descrita na Cons. Reg. Predial ... sob o nº ...-E);
V. Reconhecer o crédito dos requerentes M. P. e esposa, no montante de € 140.000,00 (cento e quarenta mil euros), montante acrescido de juros à taxa aplicável;
VI. Reconhecer aos requerentes M. P. e esposa o direito de retenção sobre o prédio penhorado (fracção F destinado a habitação do tipo t3, no piso 2 direito do bloco sul, com área bruta de 113,75 m2, com circulação, sala, cozinha, despensa, instalação sanitária de serviço, instalação sanitária privativa, três quartos com roupeiros embutidos, cujas áreas são descritas num quadro em anexo; a esta fracção corresponde ainda o espaço fechado destinado a garagem, ao nível da cave, referenciado pela letra FF, com área bruta de 17,85 m2 e varandas com área de 5,44 m2, descrita na Cons. Reg. Predial ... sob o nº ...-F);
VII. Reconhecer o crédito dos requerentes S. C. e esposa, no montante de € 185.000,00 (cento e oitenta e cinco mil euros), montante acrescido de juros à taxa aplicável;
VIII. Reconhecer aos requerentes S. C. e esposa o direito de retenção sobre o prédio penhorado (fracção D destinado a habitação do tipo t3, no piso 1 direito do bloco sul, com área bruta de 113,75 m2, com circulação, sala, cozinha, despensa, instalação sanitária de serviço, instalação sanitária privativa, três quartos com roupeiros embutidos, cujas áreas são descritas num quadro em anexo; a esta fracção corresponde ainda o espaço fechado destinado a garagem, ao nível da cave, referenciado pela letra DD, com área bruta de 18,90 m2 e varandas com área de 5,44 m2, descrita na Cons. Reg. Predial ... sob o nº ...-D);
IX. Mais se decide graduar os créditos reclamados pela Caixa ... e por P. F. e outros, pela seguinte forma (sendo que os exequentes já foram pagos):
fracções A, C, G, H, I, J, K, L, M, descritas na C.R. Predial ... sob o nº ..., respectivamente sob as letras A, C, G, H, I, J, K, L, M e inscritas na respectiva matriz sob o artigo ...:
- crédito reconhecido à Caixa ..., no montante global de 1.183.695,54 €.
fracção E, descrita na C.R. Predial ... sob o nº ..., sob a letra E e inscrita na respectiva matriz sob o artigo ...:
1º- crédito reconhecido a P. F. e esposa, no montante de 95.000 €;
2º- crédito reconhecido à Caixa ..., no montante global de 1.183.695,54 €.
fracção F, descrita na C.R. Predial ... sob o nº ..., sob a letra F e inscrita na respectiva matriz sob o artigo ...:
1º- crédito reconhecido a M. P. e esposa, no montante de 140.000 €;
2º- crédito reconhecido à Caixa ..., no montante global de 1.183.695,54 €.
fracção D, descrita na C.R. Predial ... sob o nº ..., sob a letra D inscrita na respectiva matriz sob o artigo ...:
1º- crédito reconhecido a S. C. e esposa, no montante de 185.000 €;
2º- crédito reconhecido à Caixa ..., no montante global de 1.183.695,54 €.
prédio urbano, sito no Lugar ..., da freguesia de ..., concelho de Caminha, descrito na C. R. Predial ... sob o nº .../26102, freguesia de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o nº ...:
- crédito reconhecido à Caixa ..., no montante global de 1.183.695,54 €;
As custas da execução a que haja lugar saem precípuas do produto das vendas (art. 541º do Código de Processo Civil).
Custas pelo executado/reclamado».
9. A Caixa ..., S.A., interpôs recurso de apelação, no qual:
9.1. Apresentou as seguintes conclusões:
«a) Vem o presente recurso interposto da douta sentença de 28-05-2019, com a Refª 44029879 – que julgou pela resolução dos contratos promessas celebrados entre P. F. e esposa, M. P. e esposa e S. C. esposa, celebrados em 2 de Julho de 2010 e 25 de Janeiro de 2011, respectivamente, com o Executado H. P..
b) A referida sentença reconheceu o crédito a P. F. e esposa, no montante de 95.000,00 € e o direito de retenção sobre o imóvel penhorado e identificado como fracção “E”, descrita na Conservatória de Registo Predial ... sob o nº ... e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ..., tendo-o graduado em 1.º lugar (antes do crédito hipotecária registado a favor da Caixa ..., S.A. aqui Recorrente).
c) Reconheceu, também, o crédito a M. P. e esposa, no montante de 140.000,00 € e o direito de retenção sobre o imóvel penhorado e identificado como fracção “F”, descrita na Conservatória de Registo Predial ... sob o nº ... e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ..., tendo-o graduado em 1.º lugar (antes do crédito hipotecária registado a favor da Caixa ..., S.A. aqui Recorrente).
d) E ainda, o crédito a S. C. e esposa, no montante de 185.000,00 € e o direito de retenção sobre o imóvel penhorado e identificado como fracção “D”, descrita na Conservatória de Registo Predial ... sob o nº ... e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ..., fracções sobre as quais a ora Recorrente detém hipotecas registadas a seu favor pela Ap. 11 de 2008/02/06, tendo-o graduado em 1.º lugar (antes do crédito hipotecária registado a favor da Caixa ..., S.A. aqui Recorrente).
e) A Recorrente, não pode conformar-se, com tal entendimento, não tendo no seu entender a decisão proferida pelo Tribunal a quo, e de que se recorre, acolhido devidamente a especificidade da matéria em causa e o âmbito jurídico da mesma.
f) Consultadas as Certidões Prediais das referidas fracções – D, E e F – verificamos que:
f.1) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ..., através da Ap. 4 de 2001/05/18 a aquisição a favor de H. P. e esposa, do prédio urbano descrito naquela CRP sob o número ... e inscrito na matriz sob o artigo ....
f.2) Através da Ap. 11 de 2008/02/06 e para assegurar o cabal cumprimento das obrigações emergentes da assinatura de contrato de financiamento foi constituída hipoteca voluntária sobre esse prédio, incluindo edificações urbanas e benfeitorias que nele fossem implantadas, a favor da Caixa ..., com o montante máximo assegurado de 1.202.800,00 €.
f.3) Pela Ap. 301 de 2014/12/17 foi constituída a propriedade horizontal sobre o prédio supra identificado.
f.4) Em resultado daquela constituição, foram atribuídas as fracções designadas pelas letras D, E e F, do acima identificado prédio urbano, aos alegados promitentes compradores S. C. e esposa, P. F. e esposa e M. P. e esposa, respectivamente.
f.5) Desde Março de 2015, que se encontra registada, naquelas fracções, penhoras dos Exequentes nos autos (Ap. 1028 de 2015/03/24).
g) Pelo exposto e conforme já referido da impugnação apresentada, verifica-se que a hipoteca registada sobre o imóvel é anterior ao início da alegada posse do promitente comprador.
h) Ademais e porque o registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio imobiliário (artigo 1.º do Código de Registo Predial), a publicidade, no caso concreto, assume eficácia constitutiva (como requisito de eficácia absoluta), cfr. o Prof. Oliveira Ascensão (Direitos Reais, 5ª ed., reimpressão, Coimbra Editora, 2000, pp. 357 e ss., nomeadamente p. 366), bem como Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 2ª, ed., 1997, Quid Juris, pp. 121 e ss.).
i) Manter a douta sentença proferido prejudica directamente a Recorrente e causa um prejuízo à Sociedade, como um todo, na medida em que ao fragilizar a solidez do crédito hipotecário, aumenta o risco, com todas as inerentes consequências em todo o processo de concessão de crédito (a colectividade nada ganha com esvaziamento de utilidade das normas que regulam a hipoteca como garantia real).
j) Razão pela qual, o direito de retenção a que se a alínea f) do art. 751° do Código Civil, na parte em que ele estende o regime de retenção prevalente sobre a hipoteca a todos os contratos promessa, por força do disposto no n° 2 do art. 759º do CC, torna praticamente inviável a cobrança dos créditos hipotecários, abrindo caminho a abusos e fraudes de prova diabólica para os bancos lesados, pondo-se em causa a certeza e a segurança jurídicas emergente do instituto da hipoteca, com isso se violando os princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade ou da proibição do excesso e da defesa dos direitos patrimoniais do credor hipotecário (artºs 12º, n° 2, 13º, n° 1, 18º nº 2 e 3 e 62º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa), pelo que não pode ser aplicado por força do disposto no artº 207º da CRP.
k) Face ao exposto, deve, nesta parte, a douta sentença recorrida ser revogada, devendo ser julgados extintos os direitos de retenção dos reclamantes P. F. e esposa, M. P. e esposa e S. C. e esposa, na medida em que não podem os mesmos prevalecer sobre a hipoteca da ora Recorrente, devendo esse crédito ser graduado depois do crédito garantido pela hipoteca.»
9.2. Pediu que se revogasse a sentença recorrida, «devendo ser julgados extintos os direitos de retenção dos reclamantes P. F. e esposa, M. P. e esposa e S. C. e esposa pois só assim se fará a costumada Justiça
10. Os reclamantes apresentaram resposta às alegações, com as seguintes conclusões:
«1.- A Caixa ... não é parte legítima no presente recurso uma vez que o seu crédito foi cedido, com efeitos anteriores à apresentação do mesmo recurso, à cessionária … SARL.
2.- A hipoteca da Caixa ... de 25.02.2008 incidiu sobre uma parcela de terreno destinada à construção e não sobre as fracções autónomas em causa, o que apenas veio a suceder após a constituição da propriedade horizontal em 2014 e após a posse dos Reclamantes sobre as mesmas fracções.
3.- Não obstante poder mesmo assim considerar-se a hipoteca da Reclamante Caixa ... anterior à posse dos aqui Recorridos, o art. 759.º.2 do CC é claro e deve ser aplicado no caso em apreço da forma como está disposto na lei.
4.- Os Recorridos subscrevem a fundamentação de Direito da sentença recorrida,
5.- Devendo a mesma permanecer inalterada, o que se requer, estando o direito de crédito dos Reclamantes Recorridos graduado anteriormente à hipoteca da Caixa ..., bem como os respectivos direitos de retenção,
6.- Tendo a prova principal dos autos sido mormente documental, e improcedendo na íntegra o recurso apresentado, far-se-á a acostumada.».
11. Foi admitido o recurso, sendo julgada a Caixa ..., SA. parte legitima, nos termos do art.263º do CPC.
12. Foram regularizados os mandatos (nomeadamente do adquirente do direito da cedente Caixa ..., SA- …, SARL) e recebido o recurso.
13. Colheram-se os vistos.

II. Questões a decidir:

Definem-se como questões a decidir, em face do objeto de recurso apresentado pelo recorrente, nos termos do art. 635º/4 e do art.639º/1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante CPC):

1. Se ocorrem fundamentos para a extinção pedida dos direitos de retenção.
2. Se o regime do direito de retenção do art.751º/1-f) do Código Civil (doravante CC), na parte em que estende a prevalência do direito de retenção a todos os contratos-promessa, face à hipoteca, mesmo quando esta tem registo anterior, nos termos do art.759º/2 do CC, viola os princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade ou da proibição do excesso e da defesa dos direitos patrimoniais do credor hipotecário (arts.12º/1, 13º/1, 18º/2 e 3 e 62º/1 da Constituição da República Portuguesa, doravante CRP), e se não deve ser aplicado nos termos do art.204º da CRP.

III. Fundamentação:

1. Matéria de facto provada:

Na sentença recorrida de 24.05.2019:

«1) Os Requerentes P. F. e esposa, M. C. celebraram, no dia 2 de Julho de 2010, com o Executado H. P., um contrato promessa de compra e venda, através do qual o Executado prometeu vender aos Requerentes e estes comprar, pelo preço de € 95.000,00 (noventa e cinco mil euros), o seguinte bem imóvel: “fracção do terceiro andar direito, do tipo T2 e uma garagem na cave, a primeira em frente ao portão principal de acesso às garagens, a qual irá fazer parte do prédio urbano em futuro regime de propriedade horizontal, e que irá constar da respectiva Conservatória do Registo Predial ..., e estar inscrita também na correspondente matriz predial urbana, com o futuro alvará de Licença a emitir pela Câmara Municipal ....”
2) Segundo o referido contrato, os Requerentes referidos em 1) teriam que pagar ao Executado as seguintes quantias:
- € 15.000,00 na data de celebração do contrato promessa;
- € 50.000,00 durante a primeira semana de Julho de 2010;
- € 30.000,00 até à celebração da escritura pública de compra e venda, a qual teria de ser realizada no prazo de 730 dias a contar da assinatura do contrato.
3) Os ditos Requerentes pagaram então ao Executado as seguintes quantias:
a) € 15.000,00 através de transferência bancária antes da data do contrato;
b) € 50.000,00 através de cheque na data de 02.07.2010;
c) € 15.000,00 através de transferência bancária na data de 30.07.2010.
4) Os referidos Requerentes tomaram posse efectiva da fracção referida no contrato em Novembro de 2010, o que sucedeu através da entrega das chaves da fracção autónoma, entrada principal, caixa de correio, acesso à garagem, por parte do Executado, tendo este autorizado que os Requerentes passassem a habitar a referida fracção autónoma.
5) No contrato promessa de compra e venda, o Executado, na qualidade de promitente vendedor, comprometeu-se a entregar a fracção autónoma aos Requerentes P. F. e esposa, no acto da escritura pública, inteiramente livre de quaisquer ónus ou encargos e livre de responsabilidades, designadamente hipotecárias e devoluta de pessoas e bens.
6) O que o Executado garantiu que aconteceria no prazo de 730 dias após a celebração do contrato promessa.
7) Os Requerentes foram então habitar a referida fracção, após terem pago a quantia global de € 80.000,00, faltando pagar ainda a quantia de € 15.000,00 (de modo a completarem-se os € 95.000,00 acordados no contrato promessa).
8) Os consumos de água e electricidade correram sempre por conta do Executado, através dos fornecimentos operados para o bloco onde a fracção se situa.
9) Não existindo sequer contratos específicos de fornecimento de água e luz para a fracção autónoma, em virtude dos consumos estarem a ser levados a cabo tendo em conta os fornecimentos para a obra, da responsabilidade do Executado.
10) Como o tempo foi passando, os Requerentes falaram com o Executado, em finais de Junho de 2012, para que fosse marcada a escritura pública de compra e venda da fracção autónoma, visto estarem perto do prazo fixado para que a mesma fosse marcada e celebrada, para lhe pagarem os restantes € 15.000,00 e para que fossem tratados alguns problemas com o apartamento, tendo o Executado dito que por causa de desconformidades do acordado com o que estava realmente no apartamento, não precisavam os Requerentes de pagar os restantes € 15.000,00, ficando o preço integralmente pago com o que o Executado já havia recebido.
11) Como até ao dia 02.07.2012 a escritura não foi marcada, os Requerentes começaram novamente a pressionar o Executado para a sua marcação.
12) O Executado referiu que precisava de algum tempo pois ainda tinha que tratar da propriedade horizontal e outra documentação legal do imóvel.
13) Nos meses seguintes e apesar de todas as pressões dos Requerentes para a marcação da escritura pública, nunca esta foi marcada pelo Executado.
14) Os Requerentes aguardaram mais um ano e, em 2013, voltaram a pressionar o Executado para a marcação da escritura pública, a qual ainda não se realizou.
15) O Executado disse então aos Requerentes que existia um problema com a propriedade horizontal do prédio e que, por esse motivo, ainda não se havia realizado a escritura pública, a qual se realizaria assim que a propriedade horizontal estivesse efectivada, o que sucederia até final de 2013.
16) Os Requerentes, com a confiança que tinham no Executado, aguardaram mais alguns meses, sem se ter realizado a escritura pública de compra e venda.
17) Posteriormente e já em 2014, depois de verificarem que ainda não tinham recebido a comunicação para a realização da escritura pública através da marcação de data para o efeito, contactaram novamente o Executado.
18) O Executado voltou a referir que não se tinha ainda realizado a escritura pública por existirem ainda dificuldades com a propriedade horizontal.
19) Os Requerentes P. F. e esposa enviaram então ao Executado uma missiva a marcar a data para se realizar a escritura pública.
20) O que sucedeu em 8 de Outubro de 2014, tendo sido a mesma marcada pelos Requerentes para o dia 25 de Outubro de 2014, pelas 11h00m, no Cartório Notarial da Dra. M. M., em Viana do Castelo.
21) Os Requerentes compareceram na data marcada, tendo o executado sido convocado legalmente para a realização da escritura pública, mas o mesmo não compareceu.
22) Os Requerentes foram ao encontro do Executado para o questionarem sobre a sua não comparência na escritura agendada e o Executado referiu que era por causa de documentação em falta, não especificando qual.
23) Foi então que os Requerentes questionaram o Executado sobre a propriedade horizontal, ao que o mesmo respondeu que tal já estava tratado, tendo fornecido aos Requerentes o doc. 8 junto a fls. 30 dos autos.
24) Quando os Requerentes verificaram o doc. 8, repararam que a sua fracção autónoma, aquela a que se referia o contrato promessa de compra e venda, era a fracção E, constante do mesmo.
25) Contudo, no doc. 8, tal fracção E, a mesma que os Requerentes habitam desde 2010 e que foi objecto do contrato promessa de compra e venda, estava descrita na propriedade horizontal da seguinte forma: “Fracção E destinada a habitação do tipo T2, no Piso 2 Esquerdo do Bloco Sul, com área bruta de 97,85 m2, com circulação, sala, cozinha, despensa, instalação sanitária de serviço, instalação sanitária privativa, dois quartos, cujas áreas são descritas num quadro em anexo. A esta fracção corresponde ainda o espaço fechado destinado a garagem, ao nível da cave, referenciado pela letra EE, com área bruta de 18,90 m2 e uma varanda com área de 5,43 m2”.
26) Os Requerentes questionaram o Executado acerca de tal facto, tendo o mesmo explicado que quando celebrou o contrato promessa descreveu a fracção autónoma dos Requerentes como sendo num terceiro andar em virtude de ter contado o rés-do-chão como primeiro andar da construção (o que não aconteceu aquando da constituição da propriedade horizontal) e que aparecia como sendo do lado direito no contrato promessa, em virtude de o Executado ter analisado o lado da fracção como estando de costas para o prédio e na constituição da propriedade horizontal foi analisado o lado da fracção como estando de frente para o prédio.
27) Os Requerentes disseram ao Executado que queriam ver a restante documentação, nomeadamente a licença de habitabilidade da fracção, bem como os restantes documentos.
28) O Executado referiu que não possuía ainda a documentação toda porque faltaria ainda tratar de uns assuntos para se fazer a escritura definitiva.
29) Foi então que, em final de Setembro de 2015, os Requerentes foram alertados para dificuldades económicas do Executado e que, por essa razão, haviam sido penhoradas várias fracções do prédio onde se insere a que é ocupada pelos Requerentes.
30) Foram então os Requerentes consultar a certidão da conservatória e depararam-se com uma hipoteca voluntária em vigor a favor da Caixa ... (Caixa ...) e uma penhora dos Exequentes nestes autos, a qual teve lugar em 24.03.2015.
31) Os Requerentes nunca souberam anteriormente da existência de tal penhora.
32) Nunca houve, entretanto, perda de detenção da fracção autónoma pelos Requerentes, os quais, desde Novembro de 2010 eram os únicos detentores das chaves de acesso à fracção, utilizando sempre a mesma na convicção de ser sua, mostrando-a a amigos, recebendo na mesma familiares, utilizando-a, limpando-a, fazendo obras e na mesma habitando.
33) Os Requerentes contactaram novamente o Executado, o qual confirmou a situação da penhora e da hipoteca pendentes na fracção E acima identificada e, por causa de tal facto, o mesmo emitiu o doc. 9 junto a fls. 152 dos autos.
34) Tendo o Executado referido que não tinha capacidade financeira imediata para resolver a situação da penhora e da hipoteca, que não conseguia pagar de imediato aos Exequentes e ao credor hipotecário Caixa ..., de forma a transmitir o imóvel livre de ónus ou encargos (imóvel esse que foi penhorado nos autos apensos).
35) Os Requerentes M. P. e esposa celebraram, no dia 2 de Julho de 2010, com o Executado H. P., um contrato promessa de compra e venda com permuta, através do qual o Executado prometeu vender aos Requerentes e estes comprar, pelo preço de € 110.000,00 (cento e dez mil euros), o seguinte bem imóvel: “terceiro andar esquerdo, de tipologia T3 e uma garagem na cave, a segunda em frente ao portão principal de acesso às garagens, a contar da esquerda para a direita, a qual irá fazer parte do prédio urbano em futuro regime de propriedade horizontal, e que irá constar da respectiva Conservatória do Registo Predial ..., e estar inscrito também na correspondente matriz predial urbana, com o futuro alvará de Licença a emitir pela Câmara Municipal ...”.
36) Segundo o referido contrato, os Requerentes teriam que pagar ao Executado da seguinte forma:
- € 30.000,00 na data de celebração do contrato promessa;
- a parte restante (correspondente a € 80.000,00) deveria ser paga através do imóvel a permutar, o qual se designa pelo 1º andar esquerdo, do lote 4N, sito no lugar …, ... e o qual seria alvo da respectiva transmissão de propriedade, aquando solicitado pelo primeiro outorgante.
37) Os Requerentes pagaram então ao Executado:
a) € 30.000,00 através de transferência bancária antes até da data do contrato;
b) o preço de € 80.000,00 restante foi então pago através do outro imóvel dos Requerentes que foi permutado no negócio e alvo de transmissão por parte dos mesmos Requerentes, representados pelo Executado, na data de 23 de Agosto de 2013.
38) Os Requerentes tomaram posse efectiva da fracção referida no contrato do doc. 1 em Novembro de 2010, o que sucedeu através da entrega das chaves da fracção autónoma, entrada principal, caixa de correio, acesso à garagem, por parte do Executado, tendo este autorizado que os Requerentes passassem a habitar a referida fracção autónoma.
39) No contrato promessa de compra e venda, o Executado, na qualidade de promitente vendedor comprometeu-se a entregar a fracção autónoma aos Requerentes, no acto da escritura pública, inteiramente livre de quaisquer ónus ou encargos e livre de responsabilidades, designadamente hipotecárias e devoluta de pessoas e bens.
40) O que o Executado garantiu que aconteceria no prazo de 730 dias após a celebração do contrato promessa.
41) Os Requerentes M. P. e esposa foram então habitar a referida fracção, após terem pago a quantia global de € 110.000,00.
42) Os consumos de água e electricidade correram sempre por conta do Executado, através dos fornecimentos operados para o bloco onde a fracção se situa.
43) Não existindo sequer contratos específicos de fornecimento de água e luz para a fracção autónoma, em virtude dos consumos estarem a ser levados a cabo tendo em conta os fornecimentos para a obra, da responsabilidade do Executado.
44) Como o tempo foi passando, os Requerentes falaram com o Executado, em Maio de 2012, para que fosse marcada a escritura pública de compra e venda da fracção autónoma, visto estarem perto do prazo fixado, para que a mesma fosse marcada e celebrada, visto estarem, nessa altura, perto do Verão, época de férias em que os Requerentes estariam em Portugal mais tempo seguido, tendo o Executado dito que marcaria a respectiva escritura de compra e venda.
45) Como até ao dia 02.07.2012 a escritura não foi marcada, os Requerentes começaram novamente a pressionar o Executado para a sua marcação.
46) O Executado referiu que precisava de algum tempo pois ainda tinha que tratar da propriedade horizontal e outra documentação legal do imóvel.
47) Nos meses seguintes e apesar de todas as pressões dos Requerentes para a marcação da escritura pública, nunca esta foi marcada pelo Executado.
48) Os Requerentes aguardaram mais um ano e, em 2013, voltaram a pressionar o Executado para a marcação da escritura pública, a qual ainda não se realizou.
49) O Executado disse então aos Requerentes que existia um problema com a propriedade horizontal do prédio e que, por esse motivo, ainda não se havia realizado a escritura pública, a qual se realizaria assim que a propriedade horizontal estivesse efectivada, o que sucederia até final de 2013.
50) Os Requerentes, com a confiança que tinham no Executado, aguardaram mais alguns meses, sem se ter realizado a escritura pública de compra e venda.
51) Posteriormente e já em 2014, depois de verificarem que ainda não tinham recebido a comunicação para a realização da escritura pública através da marcação de data para o efeito, contactaram novamente o Executado.
52) O Executado voltou a referir que não se tinha ainda realizado a escritura pública por existirem ainda dificuldades com a propriedade horizontal.
53) Os Requerentes enviaram então ao Executado uma missiva a marcar a data para se realizar a escritura pública.
54) Tendo sido a mesma marcada pelos Requerentes para o dia 25 de Outubro de 2014, pelas 11h00m, no Cartório Notarial da Dra. M. M., em Viana do Castelo.
55) Os Requerentes compareceram na data marcada, tendo o executado sido convocado legalmente para a realização da escritura pública, mas o mesmo não compareceu.
56) Completamente desconfiados, os Requerentes foram ao encontro do Executado para o questionarem sobre a sua não comparência na escritura agendada e o Executado referiu que era por causa de documentação em falta, não especificando qual.
57) Foi então que os Requerentes questionaram o Executado sobre a propriedade horizontal, ao que o mesmo respondeu que tal já estava tratado, tendo fornecido aos Requerentes o doc. 7 junto aos autos pelos mesmos.
58) Quando os Requerentes verificaram o doc. 7, repararam que a sua fracção autónoma, aquela a que se referia o contrato promessa de compra e venda, era a fracção F, constante do mesmo.
59) Contudo, no doc. 7, tal fracção F, a mesma que os Requerentes habitam desde 2010 e que foi objecto do contrato promessa de compra e venda, estava descrita na propriedade horizontal da seguinte forma: “Fracção F destinada a habitação do tipo T3, no Piso 2 Direito do Bloco Sul, com área bruta de 113,75 m2, com circulação, sala, cozinha, despensa, instalação sanitária de serviço, instalação sanitária privativa, três quartos com roupeiros embutidos, cujas áreas são descritas num quadro em anexo. A esta fracção corresponde ainda o espaço fechado destinado a garagem, ao nível da cave, referenciado pela letra FF, com área bruta de 17,85 m2 e varandas com área de 5,44 m2”.
60) Os Requerentes questionaram o Executado acerca de tal facto, tendo o mesmo explicado que, quando celebrou o contrato promessa, descreveu a fracção autónoma dos Requerentes como sendo num terceiro andar, em virtude de ter contado o rés-do-chão como primeiro andar da construção (o que não aconteceu aquando da constituição da propriedade horizontal) e que aparecia como sendo do lado esquerdo no contrato promessa, em virtude de o Executado ter analisado o lado da fracção como estando de costas para o prédio e na constituição da propriedade horizontal foi analisado o lado da fracção como estando de frente para o prédio.
61) Com a explicação, os Requerentes disseram ao Executado que queriam ver a restante documentação, nomeadamente a licença de habitabilidade da fracção, bem como os restantes documentos.
62) O Executado referiu que não possuía ainda a documentação toda porque faltaria ainda tratar de uns assuntos para se fazer a escritura definitiva.
63) Foi então que, em final de Setembro de 2015, os Requerentes foram alertados para dificuldades económicas do Executado e que, por essa razão, haviam sido penhoradas várias fracções do prédio onde se insere a que é ocupada pelos Requerentes.
64) Foram então os Requerentes consultar a certidão da conservatória e depararam-se com uma hipoteca voluntária em vigor a favor da Caixa ... (Caixa ...) e uma penhora dos Exequentes nestes autos.
65) Os Requerentes nunca souberam anteriormente da existência de tal penhora.
66) Nunca houve, entretanto, perda de detenção da fracção autónoma pelos Requerentes, os quais, desde Novembro de 2010 eram os únicos detentores das chaves de acesso à fracção, utilizando sempre a mesma na convicção de ser sua, mostrando-a a amigos, recebendo na mesma familiares, utilizando-a, limpando-a, fazendo obras, e na mesma habitando.
67) Os Requerentes contactaram novamente o Executado, o qual confirmou a situação da penhora e da hipoteca pendentes na fracção E acima identificada e, por causa de tal facto, o mesmo emitiu o doc. 8 junto a fls. 149.
68) Tendo o Executado referido que não tinha capacidade financeira imediata para resolver a situação da penhora e da hipoteca, que não conseguia pagar de imediato aos Exequentes e ao credor hipotecário Caixa ..., de forma a transmitir o imóvel livre de ónus ou encargos (imóvel esse que foi penhorado nos autos principais).
69) No dia 25 de Janeiro de 2011, entre os Reclamantes S. C. e M. S. e o Reclamado e Executado H. P. foi celebrado um contrato promessa de compra e venda, segundo o qual os Reclamantes prometeram comprar e o Executado Reclamado prometeu vender, o seguinte bem imóvel: “primeiro andar direito, tipo T3, e uma garagem na cave, a qual irá fazer parte do prédio urbano futuro em regime de propriedade horizontal, e que irá constar da respectiva Conservatória do Registo Predial ..., e estar inscrito também na correspondente matriz predial urbana, com o futuro alvará de Licença a emitir pela Câmara Municipal ...”.
70) A fracção autónoma objecto do contrato promessa de compra e venda, na data da celebração do mesmo, estava identificada, dada a falta de constituição da propriedade horizontal que posteriormente teve lugar, como sendo integrada no bloco habitacional, cujo processo de licenciamento a que se referia estava identificado com o n.º 242/05 e licença de obras n.º 68/08, sito nos “Pinhais de …”, freguesia de ..., concelho de Caminha.
71) Em Agosto de 2014, foi constituída a propriedade horizontal do referido bloco habitacional resultando assim as fracções descritas na segunda página do doc. 2 junto aos autos pelos reclamantes, da qual consta a fracção autónoma objecto do contrato, como sendo a fracção “D”, identificada da seguinte forma: “FRACÇÃO D – Destinada a habitação do tipo T3, no Piso 1 Direito do Bloco Sul, com a área bruta de 113,75m2, com circulação, sala, cozinha, dispensa, instalação sanitária de serviço, instalação sanitária privativa, três quartos com roupeiros embutidos, cujas áreas são descritas num quadro em anexo. A esta fracção corresponde ainda o espaço fechado destinado a garagem, ao nível da cave, referenciado pela letra DD, com a área bruta de 18,90m2, e varandas com áreas de 5,44m2; a esta fracção é atribuído o valor de 72.545€, correspondente a 71,43%o”.
72) A fracção autónoma objecto do contrato está identificada actualmente na Conservatória do Registo Predial ..., através do nº .../20080131-D, com a composição seguinte: “BLOCO SUL – PRIMEIRO DIREITO, no piso um – destinado a habitação – T3, e espaço fechado destinado a garagem, o quarto do lado direito, ao nível da cave”.
73) Pelo contrato supra-referido, os Reclamantes S. C. e esposa e o Executado H. P. celebraram uma promessa de compra e venda, segundo a qual (cláusula 2ª), o Executado e Reclamado H. P. prometeu vender aos Reclamantes a fracção autónoma acima identificada pelo preço de € 105.000,00, pago da seguinte forma:
a) a título de sinal e na data do contrato (25.01.2011), seria (e foi) paga a quantia de € 80.000,00 (oitenta mil euros), de que o Executado deu logo quitação;
b) até ao final de Maio de 2011, os Reclamantes fariam (e fizeram) uma entrega de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) ao Reclamado Executado, o que sucedeu.
74) Os outorgantes do referido contrato promessa prescindiram do reconhecimento notarial das assinaturas, conforme era usual neste tipo de negócios, tendo-se comprometido ainda os Reclamados H. P. e mulher a comunicar aos Reclamantes S. C. e M. S. a data, hora e Cartório Notarial onde seria celebrada a escritura competente de compra e venda, a qual teria de ser celebrada no prazo de 15 dias após a obtenção da Licença de Utilização (cláusula 4.ª do doc. 1).
75) Nunca os Reclamados H. P. e mulher comunicaram aos Reclamantes S. C. e M. S. a data, hora e Cartório Notarial onde seria celebrada a escritura competente de compra e venda.
76) Não obstante as sucessivas interpelações dos Reclamantes aos Executados na pessoa do Reclamado H. P..
77) Tendo existido mesmo interpelação de cariz admonitório que os Executados e Reclamados ignoraram, não tendo sido marcada a respectiva escritura pública de compra e venda.
78) Com o pagamento da totalidade do preço da fracção autónoma em causa, os Reclamantes ficaram autorizados a ocupar a dita fracção tendo a mesma sido entregue pelo Executado aos Reclamantes na data de 09.06.2011, tendo sido nessa data que receberam dos Executados as chaves do apartamento e da porta principal.
79) E a partir dessa data, de 09.06.2011, os Reclamantes passaram a ocupar e a possuir, ininterruptamente, a fracção autónoma em causa.
80) No contrato promessa de compra e venda, o Executado, na qualidade de promitente vendedor comprometeu-se a entregar a fracção autónoma aos Requerentes, no acto da escritura pública, inteiramente livre de quaisquer ónus ou encargos.
81) Os consumos de água e electricidade correram sempre por conta do Executado, através dos fornecimentos operados para o bloco onde a fracção se situa, uma vez que o prédio em causa era alimentado pela luz de obra, dada a falta de licenciamento definitivo do mesmo nunca obtida pelos Executados.
82) Não existindo sequer contratos específicos de fornecimento de água e luz para a fracção autónoma, em virtude dos consumos estarem a ser levados a cabo tendo em conta os fornecimentos para a obra, da responsabilidade do Executado, como foi contratado.
83) Durante o tempo em que a escritura não foi marcada, os Requerentes pressionaram sempre o Executado para a sua marcação, tendo este referido que precisava de algum tempo, pois ainda tinha que tratar da propriedade horizontal e outra documentação legal do imóvel.
84) Apesar de todas as pressões dos Requerentes para a marcação da escritura pública, nunca esta foi marcada pelo Executado.
85) Os Requerentes aguardaram e, em 2013, voltaram a pressionar o Executado para a marcação da escritura pública, a qual ainda não se realizou.
86) O Executado disse então aos Requerentes que existia um problema com a propriedade horizontal do prédio e que, por esse motivo, ainda não se havia realizado a escritura pública, a qual se realizaria assim que a propriedade horizontal estivesse efectivada, o que sucederia até final de 2013.
87) Os Requerentes, com a confiança que tinham no Executado, aguardaram mais alguns meses, sem se ter realizado a escritura pública de compra e venda.
88) Posteriormente e já em 2014, depois de verificarem que ainda não tinham recebido a comunicação para a realização da escritura pública através da marcação de data para o efeito, contactaram novamente o Executado.
89) O Executado voltou a referir que não se tinha ainda realizado a escritura pública por existir ainda dificuldades com a propriedade horizontal.
90) Os Reclamantes confiaram nos Executados, aguardando pela marcação, não obstante as sucessivas interpelações ao mesmo.
91) No passado dia 12 de Fevereiro de 2018, os Reclamantes foram avisados através de um ofício afixado na sua porta para informarem o Agente de Execução dos dados constantes de tal aviso, ao abrigo do Proc. nº 119/09.2TBCMN.1.
92) Foi então que os Reclamantes, preocupadíssimos, contactaram os vizinhos que receberam notificações idênticas, tendo sido avisados pelo vizinho de cima, P. F., de que existia um processo executivo com penhoras das fracções do prédio em causa, tendo contactado de imediato o mandatário subscritor, igualmente mandatário do citado P. F., credor retentor nos autos.
93) Os Reclamantes nunca souberam anteriormente da existência de tal penhora.
94) Nunca houve, entretanto, perda de detenção da fracção autónoma pelos ora Reclamantes, os quais, desde 09.06.2011, eram e são os únicos detentores das chaves de acesso à fracção, utilizando sempre a mesma na convicção de ser sua, mostrando-a a amigos, recebendo na mesma familiares, utilizando-a, limpando-a, fazendo obras, e na mesma habitando, pois que, apesar de os Reclamantes terem residência também em Melgaço, sempre habitaram a fracção objecto destes autos desde 09.06.2011, sendo tal facto conhecido de todos os vizinhos.
95) Mesmo assim, os Reclamantes contactaram novamente o Executado, o qual confirmou a situação da penhora e da hipoteca pendentes na fracção D acima identificada e, por causa de tal facto, o mesmo emitiu o doc. 7 junto a fls. 324 dos autos.
96) Tendo o Executado referido que não tinha capacidade financeira imediata para resolver a situação da penhora e da hipoteca, que não conseguia pagar de imediato aos Exequentes e ao credor hipotecário Caixa ..., de forma a transmitir o imóvel livre de ónus ou encargos.
97) No exercício da actividade creditícia da Caixa ..., foram celebrados com os aqui executados os seguintes contratos:
A) OPERAÇÃO Nº PT 003509010028…, de 25.02.2008, 18.01.2011, 25.02.2012, 10.08.2012, 26.08.2013 e 25.08.2014
a) tipo: contrato de abertura de crédito inicialmente até ao montante de 800.000,00, posteriormente fixado em € 839.352,03;
b) finalidade: financiamento à construção de um empreendimento imobiliário;
c) taxa de juro: taxa nominal variável indexada à Euribor a 6 meses, arredondada, acrescida de um spread de 5%;
d) em caso de mora, a taxa é a mais elevada dos juros remuneratórios que, em cada um dos dias, estiver em vigor na Caixa ... para operações activas da mesma natureza, actualmente de 11,45%, acrescida de uma sobretaxa até 4%, a título de cláusula penal.
B) OPERAÇÃO Nº PT 0035090100086…2, de 18.03.2003
a) tipo: contrato de abertura de crédito com hipoteca até ao montante de € 150.000,00, com alteração final em € 250.000,00;
b) finalidade: apoio a cliente a necessidades temporárias de tesouraria;
c) taxa de juro: taxa nominal variável indexada à Euribor a 6 meses, arredondada, acrescida de um spread de 4,75%;
d) em caso de mora, a taxa é a mais elevada dos juros remuneratórios que, em cada um dos dias, estiver em vigor na Caixa ... para operações activas da mesma natureza, actualmente de 11,45%, acrescida de uma sobretaxa até 4%, a título de cláusula penal.
98) Para assegurar o cabal cumprimento das obrigações emergentes do contrato de financiamento supra mencionado em A), nomeadamente no que tange ao pagamento atempado de capital, juros e despesas, entre outras, foi constituída pelos executados hipoteca sobre o seguinte prédio, incluindo as edificações urbanas e benfeitorias que neles fossem implantadas: prédio urbano, composto por parcela de terreno destinada a construção, sita no Lugar de …, descrito na C.R. Predial ... sob o nº ..., da freguesia de ..., inscrito na matriz provisória sob o nº ….
99) Na sequência do contrato celebrado foi construído naquele imóvel um prédio constituído em regime de propriedade horizontal, do qual fazem parte as seguintes fracções sobre as quais impende a hipoteca da reclamante Caixa ...:
- fracções A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, M (verbas 1 a 13 do auto de penhora de 24.03.2015), descritas na C.R. Predial ... sob o nº ..., respectivamente sob as letras A, B (já vendida e já com sentença relativa à mesma – a fls. 273 ss), C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, M e inscritas na respectiva matriz sob o artigo ....
100) Por sua vez, para assegurar o cabal cumprimento das obrigações emergentes do contrato de financiamento supra mencionado em B), nomeadamente no que tange ao pagamento atempado de capital, juros e despesas, entre outras, foi constituída pelos executados hipoteca sobre o seguinte prédio, incluindo as edificações urbanas e benfeitorias que neles fossem implantadas: prédio urbano, sito no Lugar ..., da freguesia de ..., concelho de Caminha, descrito a C. R. Predial ... sob o nº .../26102, freguesia de ..., inscrita na matriz predial urbana sob o nº ... (verba 8 do auto de penhora de 30.01.2015).
101) À data da apresentação da reclamação de créditos, encontrava-se em débito à reclamante Caixa ..., em virtude dos contratos acima identificados, o montante total de € 1.183.695,54
Por força probatória plena, atendível por este Tribunal da Relação, nos termos do art.607º/4 do CPC, ex vi do art.663º/1 do CPC:

102) O prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial da freguesia de ..., com o nº.../20080131: tem a propriedade inscrita em favor de H. P., casado na comunhão geral com M. O., pela Ap. 4 de 2001/05/18; tem uma hipoteca voluntária em favor da Caixa ..., inscrita pela Ap. 11 de 2008/02/06, convertida em definitiva pela Ap. 3 de 2008/07/14; tem a constituição da propriedade horizontal inscrita sob a Ap. 301 de 2014/12/17 (fls.101).
103) As frações descritas na Conservatória de Registo Predial da freguesia de ..., com o nº.../20080131-D, E e F: têm uma hipoteca voluntária em favor da Caixa ... inscrita pela Ap. 11 de 2008/02/06 e a constituição da propriedade horizontal inscrita sob a Ap. 301 de 2014/12/17; têm uma penhora inscrita a 24.03.2015 sobre cada uma das frações em favor de C. D. e M. D. para garantia do pagamento de € 43 248, 37 (fls.105/v a 108).

2. Apreciação de mérito do objeto do recurso:

2.1. A sentença recorrida reconheceu aos promitentes compradores reclamantes destes autos e recorridos: o direito de crédito do dobro do valor do sinal e da restituição do demais preço pago, por resolução decretada em situação de incumprimento definitivo do contrato-promessa por impossibilidade de cumprimento por causa imputável ao devedor (por não ter condições para pagar os créditos garantidos pela hipoteca e pela penhora e transmitir os bens prometidos livres de ónus e encargos), direito este que se encontra tutelado efetivamente pelos arts.801º/1, 808º, 432º ss e 442º/2 do CC; o direito real de garantia de retenção sobre a fração prometida vender e por si habitada até ao pagamento dos créditos, nos termos dos arts.751º/1-f) e 759º/2 do CC.
Esta sentença recorrida, implicitamente, admitiu a formação incidental do titulo executivo, nos termos do art.792º/3 do CPC, para os efeitos da reclamação, verificação e graduação de créditos contemplada no art.788º do CPC.
O recurso de apelação da reclamante Caixa ..., em face das conclusões das suas alegações de recurso: não sujeitou à reapreciação deste Tribunal da Relação qualquer um dos pressupostos e efeitos da reclamação de créditos, nem o seu vencimento e a liquidação dos créditos verificados; suscitou apenas o dever de desaplicar o regime dos arts.755º/1-f) e 759º/1 e 2 do CC, por inconstitucionalidade, e pediu também a extinção do direito de retenção, sem alegar e apresentar conclusões quanto aos fundamentos da sua extinção, nos termos do art.639º/1 e 2 do CPC, em referência aos arts.761º e 730º do CC.
Assim, o recurso está limitado, conforme se definiu em II supra, às questões aí identificadas, em face destas questões suscitadas no recurso.

2.2. No quadro referido em 2.1. cabe apreciar as questões suscitadas.

2.2.1. Pedido de extinção dos direitos de retenção (arts.761º e 730º do CC).

O recorrente pediu a extinção do direito de retenção, sem alegar os fundamentos com que fundamenta o pedido.
O direito de retenção extingue-se: pela entrega da coisa (art.761º do CC, parte final); pelas mesmas causas por que cessa o direito de hipoteca- pela extinção da obrigação a que serve de garantia; por prescrição em favor de adquirente do prédio hipotecado, decorridos vinte anos sobre o registo da aquisição e cinco sobre o vencimento da obrigação; pelo perecimento da coisa hipotecada, sem prejuízo do disposto nos artigos 692º a 701º; pela renúncia do credor (art.730º/a), b), c) e d) do CC, ex vi do art.761º do CC- 1ª parte).
Cabe ao recorrente num recurso de apelação: em geral, apresentar os fundamentos do recurso em que pede a alteração ou anulação da decisão, quer na exposição das suas alegações, quer nas conclusões com as quais deve sintetizar os referidos fundamentos (art.639º/1 do CPC); em particular, no caso do recurso versar sobre matéria de direito, indicar, nas suas conclusões, as normas jurídicas violadas, o sentido com que, no seu entender, as normas que fundaram a decisão dão deviam ser interpretadas e aplicadas, a norma jurídica que devia ser aplicada, em caso de invocação de erro na determinação da norma aplicável (art.639º/2-a), b) e c) do CPC).
Não tendo o recorrente apresentado fundamentos com os quais pede a extinção do direito de retenção, em face de qualquer um dos fundamentos previstos por lei (que, também, não se detetam no caso em análise), não existem fundamentos que o recurso possa conhecer, devendo a sua apreciação ser rejeitada neste segmento.

2.2.2. Pedido de desaplicação dos arts.755º/1-f) e 759º/1 e 2 do CC por inconstitucionalidade.

Importa apreciar se o regime do direito de retenção, na parte em que, em todos os contratos-promessa de imóveis, prevalece sobre a hipoteca, mesmo quando esta tem registo anterior, nos termos dos arts.751º/1-f) e 759º/2 do CC, viola os princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade ou da proibição do excesso e da defesa dos direitos patrimoniais do credor hipotecário (arts.12º/1, 13º/1, 18º/2 e 3 e 62º/1 da CRP), e se não deve ser aplicado nos termos do art.204º da CRP.
Pode reclamar créditos apenas quem tiver um direito real de garantia (art.788º/1 do CPC), à data da penhora ou no decurso do prazo de reclamações (1), devendo a reclamação ter por base um título exequível, já formado ou a formar incidentalmente na pendência da execução e da reclamação de créditos (art.788º/2 do CPC e art.792º do CPC), apesar do crédito reclamado poder não estar ainda vencido (art.788º/7 do CPC).
É titular de um direito real de garantia de retenção, nomeadamente, «O beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art.442º.» (art.755º/1-f) do CC).
O promitente comprador constitui-se como credor do promitente vendedor, por um dos direitos de crédito previstos no art.442º/2 do CC (nomeadamente, pela restituição do sinal prestado em dobro), referido no art.755º/1-f) do CC, quando ocorrer um incumprimento definitivo do contrato-promessa (2): se o credor, em virtude da mora, perder objetivamente o interesse que tinha na prestação (art.808º/1 e 2 do CC); se a prestação não for realizada dentro do prazo razoável fixado pelo credor (art.808º/1 do CC); se a prestação se tornar impossível por causa imputável ao devedor (art.801º/1 do CC). Um promitente-comprador pode perder objetivamente o interesse na realização da escritura pública de compra e venda quando, nomeadamente, depois da celebração do contrato-promessa e antes da celebração da escritura, o bem objeto do contrato foi penhorado numa ação executiva e a penhora foi registada, em face do regime da ineficácia relativa da venda de bens penhorados face à execução e aos seus credores, nos termos do art.819º do CC («Sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis à execução os atos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados»).
«Recaindo o direito de retenção sobre coisa imóvel, o respectivo titular, enquanto não entregar a coisa, tem a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor.» (art.759º/1 do CC), prevalecendo sobre a hipoteca, ainda que registada anteriormente (art.759º/2 do CC).

Estas previsões dos arts.755º/1-f) e 759º/1 e 2 do CC foram instituídas em alturas diferenciadas:

a) O regime da prevalência do direito de retenção de imóvel sobre a hipoteca, mesmo com registo anterior, previsto no art.759º/1 e 2 do CC, vigora desde a versão inicial do Código Civil, aprovado pelo DL n.º 47344/66, de 25 de novembro;
b) A instituição do direito de retenção do promitente comprador pelo crédito do incumprimento do contrato promessa quando houve tradição da coisa, que amplia a abrangência do art.759º/1 e 2 do CC, vigora apenas desde 1980.

De facto, inicialmente, na versão introduzida pelo art.1º do DL nº236/80, de 18 de julho, o art.442º/3 do CC previu “3 - No caso de ter havido tradição da coisa objecto do contrato-promessa, o promitente-comprador goza, nos termos gerais, do direito de retenção sobre ela, pelo crédito resultante do incumprimento pelo promitente-vendedor”. Após, este regime foi deslocado para a nova norma do atual art 751º/1-f) do CC, em face das alterações do DL n.º 379/86, de 11 de novembro.
O legislador consagrou esta solução legislativa após uma ponderação do conflito de direitos entre os direitos dos credores e os direitos dos consumidores/particulares que obtiveram a tradição da coisa objeto do contrato prometido, e optando claramente pela proteção destes.

Na exposição de motivos do DL nº236/80, de 18 de julho, expôs-se:

«1. O contrato-promessa tem sido a via através da qual os interessados em habitação própria têm procurado garantir a aquisição da desejada unidade habitacional, nos casos em que, por qualquer motivo - designadamente o inacabamento da respectiva construção ou a inexistência imediata dos requisitos indispensáveis ao registo do direito de propriedade do transmitente -, não é possível a imediata celebração do contrato de compra e venda. Sucede, porém, que, por efeito do regime legal do contrato-promessa - adequado a épocas de estabilidade social e económica mas que não responde na justa medida a situações de rápida mutação da conjuntura económica e financeira em que avulta, como factor preponderante, a desvalorização da moeda -, inúmeros promitentes-compradores encontram-se em situação que justifica diversa tutela normativa. Com efeito, ou vêem frustradas as suas aspirações face à resolução do contrato pelo outro outorgante, com uma indemnização (o dobro do sinal passado) que nem sequer equivale já à importância inicialmente desembolsada, não cobrindo o dano emergente da resolução, ou acham-se coagidos, pela força das circunstâncias e para alcançarem o direito de propriedade da casa, que, muitas vezes, já habitam e pagaram integralmente, a satisfazer exigências inesperadas que incomportavelmente agravam o preço inicialmente fixado.
Importa, assim, reajustar o regime legal do contrato-promessa, por forma a adequá-lo às realidades actuais, estabelecendo verdadeiro equilíbrio entre os outorgantes (o que passa pela mais eficiente tutela do promitente-comprador) e desmotivando a sua resolução com intuitos meramente especulativos. (…).
2. (…) Relativamente à resolução do contrato, mantém-se, em princípio, a regra actual - havendo sinal passado - da perda deste ou da sua restituição em dobro, conforme o outorgante causador da resolução. Estabelece-se, porém, que, no caso de ter havido tradição da coisa para o promitente-comprador, em que se criou forte expectativa de estabilização do negócio e uma situação de facto socialmente atendível, a indemnização devida por causa da resolução do contrato pelo promitente-vendedor seja o valor que a coisa tiver ao tempo do incumprimento - medida do dano efectivamente sofrido -, conferindo-se ao promitente-comprador o direito de retenção da mesma coisa por tal crédito. E, por outro lado, atribui-se ao mesmo promitente, em alternativa e em qualquer dos casos, o direito de requerer a execução específica do contrato.»

Na exposição de motivos do DL n.º 379/86, de 11 de novembro, explicou-se:

«O legislador de 1980, para o caso de tradição antecipada da coisa objecto do contrato definitivo, concedeu ao beneficiário da promessa o direito de retenção sobre a mesma, pelo crédito resultante do não cumprimento (artigo 442.º, n.º 3). Pensou-se directamente no contrato-promessa de compra e venda de edifícios ou de fracções autónomas deles. Nenhum motivo justifica, todavia, que o instituto se confine a tão estreitos limites.
A existência do direito de retenção nesse quadro não repugna à sua índole. Repare-se que, em diversas previsões do artigo 755.º, n.º 1, do Código Civil, desaparece ou dilui-se a conexão objectiva que o precedente artigo 754.º pressupõe, em termos gerais, entre a coisa e o crédito. Mas será uma garantia oportuna no contrato-promessa e, por isso, de conservar? A análise da questão conduziu a uma resposta afirmativa.
Tem de reconhecer-se que, na maioria dos casos, a entrega da coisa ao adquirente apenas se verifica com o contrato definitivo. E, quando se produza antes, não há dúvida de que se cria legitimamente, ao beneficiário da promessa, uma confiança mais forte na estabilidade ou concretização do negócio. A boa fé sugere, portanto, que lhe corresponda um acréscimo de segurança.
O problema só levanta particulares motivos de reflexão precisamente em face da realidade que levou a conceder essa garantia: a da promessa de venda de edifícios ou de fracções autónomas destes, sobretudo destinados a habitação, por empresas construtoras, que, via de regra, recorrem a empréstimos, máxime tomados de instituições de crédito. Ora, o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que anteriormente registada (artigo 759.º, n.º 2, do Código Civil). Logo, não faltarão situações em que a preferência dos beneficiários de promessas de venda prejudique o reembolso de tais empréstimos.
Neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor. Não que se desconheçam ou esqueçam a protecção devida aos legítimos direitos das instituições de crédito e o estímulo que merecem como elementos de enorme importância na dinamização da actividade económico-financeira. Porém, no caso, estas instituições, como profissionais, podem precaver-se, por exemplo, através de critérios ponderados de selectividade do crédito, mais facilmente do que o comum dos particulares a respeito das deficiências e da solvência das empresas construtoras. Persiste, em suma, o direito de retenção que funciona desde 1980. No entanto, corrigem-se inadvertências terminológicas e desloca-se essa norma para lugar mais adequado, incluindo-a entre os restantes casos de direito de retenção [artigo 755.º, n.º 1, alínea f)].»
O legislador, mediante o conflito de direitos e interesses (os das instituições de crédito em obter a satisfação dos créditos garantidos pela hipoteca e os promitentes compradores de imóveis que obtiveram a sua tradição em celebrar os contratos prometidos ou serem indemnizados pela resolução decorrente de incumprimento do promitente-vendedor), fez uma opção legislativa clara na proteção do consumidor que obteve a tradição da coisa (que teve grande expectativa na celebração do contrato-prometido e desembolsou valor para a sua celebração) face à instituição de crédito (dedicada a uma atividade comercial, com maior capacidade de controlar a solvência do devedor).
Ainda que se tenham alterado as circunstâncias que determinaram a instituição deste direito de retenção do promitente comprador que obteve a traditio da coisa prometida e ainda que a escolha legislativa operada possa levar a que muitas vezes o credor hipotecário veja o seu crédito prejudicado ou não satisfeito pela referida garantia (3), não é possível reconhecer que esta opção legislativa viola princípios de constitucionais de universalidade consagrado no art.12º da CRP («1. Todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição. 2. As pessoas coletivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza.»,) da igualdade previsto no art.13º/1 da CRP («1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.»), da necessidade e proporcionalidade consagrado no art.18º/2 da CRP («2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.») ou da defesa dos direitos patrimoniais do credor hipotecário com base no art.62º/1 da CRP («1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.»), que implicasse a desaplicação das referidas normas civis aplicadas na sentença recorrida, nos termos art.204º da CRP («Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados»).
Na verdade: o credor hipotecário e o promitente-comprador têm ambos direito ao cumprimento dos contratos que celebraram, garantidos por lei e com diferentes tutelas justificáveis pela diversidade de pessoas, de créditos e de situações que protegem; a situação de conflitos de direitos em geral implica sempre o sacrifício ou a redução de um direito face a outro direito; a instituição da prevalência do direito de retenção do promitente-comprador sobre a garantia da hipoteca do credor hipotecário, ainda que com registo anterior, está consagrada apenas nas circunstâncias em que ocorreu a traditio da coisa imóvel (previsão consagrada em 1966, ainda que com efeitos ampliados desde 1980), sendo que nos demais casos prevalece o direito do credor hipotecário sobre os demais credores promitentes compradores que não gozem de privilégio especial ou prioridade do registo (arts.686º ss do CC).
Por sua vez, as possibilidades de conluio entre os promitentes compradores e vendedores para defraudar os credores hipotecários não deixam o credor hipotecário sem tutela, uma vez que esse ato pode ser impugnado de acordo com o regime geral. De facto, como refere Ana Taveira da Fonseca, «A circunstância de o regime resultante dos artigos 755.º, nº1, al. f), e 759.º, n.º2, favorecer e potenciar um conluio entre devedor e promitente- adquirente para obstar a que o credor hipotecário seja pago com preferência pelo valor da coisa não legitima que se possa proceder a uma interpretação corretiva da lei. O meio adequado para reagir a estas situações de natureza fraudulenta, de acordo com o direito constituído, é o recurso a institutos de carácter geral, como por exemplo a ação simulatória ou a impugnação pauliana. (4) ».
O regime legal aplicado pela sentença recorrida, e que não há condições para reconhecer ser inconstitucional, encontrava-se em vigor na data da constituição da hipoteca e era conhecido da Caixa ..., SA., com o que, também, não está afetada a segurança e a certeza jurídica.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal de Justiça, chamadas a pronunciaram-se várias vezes sobre a inconstitucionalidade do regime que deriva da aplicação articulada dos arts.755º/1-f) e 759º/1 e 2 do CC, tem entendido que as referidas normas não padecem de inconstitucionalidade material.

1) O Acórdão do Tribunal Constitucional nº356/2004, reiterado no Acórdão nº73/2011 do mesmo Tribunal (5), defendeu:

«9. O Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 498/2003 (D.R., II Série, de 3 de Janeiro de 2004), apreciou a conformidade à Constituição da norma da alínea b) do nº 1 do artigo 12º da Lei nº 17/86, de 14 de Junho, na interpretação que confere aos créditos imobiliários emergentes de contrato individual de trabalho preferência sobre a hipoteca anteriormente constituída, concluindo pela não inconstitucionalidade da norma apreciada. Tal questão tem semelhança com a questão apreciada neste processo.
Nos presentes autos, está em causa um direito de retenção resultante do incumprimento de contrato-promessa de compra e venda de imóvel, por parte da promitente vendedora, no caso em que havia tradição da coisa (do imóvel).
Ora, como resulta, desde logo, do preâmbulo dos Decretos-Leis nºs 236/80 e 379/86, o objectivo prosseguido pela solução agora impugnada é a tutela da defesa do consumidor e das expectativas de estabilização do negócio (muitas vezes incidente sobre a aquisição de habitação própria permanente) decorrentes da circunstância de ter havido tradição da coisa, através da viabilização de ressarcimento adequado e efectivo da frustração culposa de tais expectativas.
Não se trata, pois, de questão idêntica à subjacente aos casos que já foram objecto de jurisprudência do Tribunal Constitucional (nomeadamente, os que dizem respeito à tutela de créditos de entidades públicas, mediante outorga de privilégios creditórios imobiliários gerais, sem qualquer conexão com os imóveis por eles abrangidos – referidos no mencionado Acórdão nº 498/2003). Com efeito, o direito de retenção, associado à tradição da coisa, implica uma conexão com o imóvel ou fracção objecto da garantia real que não existe, por via de regra, nos privilégios creditórios gerais.
Na apreciação da questão de constitucionalidade suscitada nos presentes autos, é decisiva a circunstância, de resto sublinhada pelo tribunal a quo, de o regime impugnado já se encontrar em vigor no momento em que a hipoteca foi constituída. Em face de tal circunstância não se pode concluir, desde logo, pela violação do princípio da confiança relativamente a expectativas anteriormente firmadas.
Para além disto, é ainda de referir que a norma em apreciação no presente recurso opera meramente uma ponderação adequada do interesse das instituições de crédito detentoras de créditos hipotecários na protecção da confiança inerente ao registo predial e do interesse dos consumidores na protecção da confiança relativa à consolidação de negócios jurídicos, notando-se que os mesmos respeitam, em muitos casos, à aquisição de habitação própria permanente.
Nesta perspectiva, também a contenção dos princípios da confiança e da segurança jurídica associados ao registo predial, que resulta da atribuição de preferência ao direito de retenção sobre a hipoteca registada anteriormente, tem a sua justificação na prevalência para o legislador do direito dos consumidores à protecção dos seus específicos interesses económicos (associados, em inúmeros casos, à aquisição de habitação própria, pelo que é ainda convocável o artigo 65º da Constituição) e à reparação dos danos (artigo 60º da Constituição – cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., p. 323).
Em face do que ficou exposto, não se verifica, portanto, a inconstitucionalidade da norma apreciada

2) O Acórdão nº594/2003, reiterado nos Acórdãos nº22/2004 e nº698/2005 (6), defendeu:

«11. São conhecidas as circunstâncias que justificaram as alterações legislativas no domínio do contrato-promessa e as opiniões doutrinais não inteiramente convergentes que surgiram a propósito das modificações introduzidas no regime constante da versão inicial do Código Civil.
Como já antes se referiu, o legislador de 1980, face à situação económica e social então vigente – caracterizada pela forte inflação e pelo peso da construção clandestina –, com a preocupação de proteger os interesses das pessoas que procuravam adquirir habitação própria, entendeu dever intervir em auxílio de inúmeras pessoas que se viam constrangidas a recorrer ao contrato-promessa e que, por falta de preparação, vieram a ser vítimas de abusos.
O legislador veio, assim, em 1980 e depois em 1986, invocando a
“lógica da defesa do consumidor”, atribuir ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real, que obteve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o direito de retenção sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte.


Será esta uma norma desproporcionada e violadora do princípio da confiança e segurança jurídica?

11.1. Analisemos antes de mais a questão da eventual violação do princípio da proporcionalidade.
Sobre a actuação do princípio da proporcionalidade no domínio das relações jurídico-privadas e sobre o papel que este princípio pode assumir como inspirador de soluções adoptadas pela lei no âmbito do direito privado, disse o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 302/01 (publicado no Diário da República, II Série, n.º 257, de 6 de Novembro de 2001, p. 18309 ss):

“[...] Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (Consti­tuição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 153), “o­ princípio da proporcionalidade (também chamado princípio da proibição do excesso) desdobra-se em três subprincípios: (a) princípio da adequação, isto é, as medidas restritivas legalmente previstas devem revelar-se como meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei (salvaguarda de outros direi­tos ou bens constitucionalmente protegidos); (b) princípio da exigi­bilidade, ou seja, as medidas restritivas previstas na lei devem revelar-se necessárias (tornaram-se exigíveis), porque os fins visados pela lei não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias); (c) prin­cípio da proporcionalidade em sentido restrito, que significa que os meios legais restritivos e os fins obtidos devem situar-se numa «justa medida», impedindo-se a adopção de medidas legais restritivas desproporcionadas, excessivas, em relação aos fins obtidos”. Entre nós, a consagração constitu­cional do princípio da proporcionalidade não merece contestação, pelo menos desde 1982. Com efeito, a Constituição da República Portuguesa, desde a primeira revisão constitucional, consagra no seu artigo 2º o Estado de direito democrático, sendo certo que o princípio da proporcionalidade se encontra ínsito nesse conceito político-jurídico, do qual constitui uma necessária decorrência. O mesmo princípio da proporcionalidade aflora, aliás, em várias disposições constitucionais relevantes: no artigo 18º, n.º 2, relativo às restrições aos direitos, liberdades e garantias; no artigo 19º, n.º 4, impondo expressamente o respeito pelo princípio da proporcionalidade na opção pelo estado de sítio ou pelo estado de emergência, bem como nas respectivas declaração e execução; no artigo 19º, n.º 8, no que concerne às providências a tomar pelas autoridades com vista ao restabelecimento da normalidade constitucional; no artigo 28º, n.º 2, relativo à prisão preventiva; no artigo 30º, n.º 5, prevendo as limitações a direitos fundamentais que decorram das exigências próprias da execução de penas ou medidas de segurança ou inerentes ao sentido da condenação; no artigo 266º, n.º 2, que consagra expressamente a subordinação dos órgãos e agentes administrativos ao princípio da proporcionalidade; no artigo 270º, relativo às restrições ao exercício de direitos dos militares e agentes militarizados, bem como dos agentes dos serviços e forças de segurança; no artigo 272º, n.º 2, referente às medidas de polícia. De resto, o Tribunal Constitucional tem sucessivamente reconhecido o valor constitucional do princípio da proporcionalidade (cfr., entre muitos outros: Acórdão n.º 25/84, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2º vol., p. 7; Acórdão n.º 85/85, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., p. 245: Acórdão n.º 64/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., p. 319; Acórdão n.º 349/91, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19º vol., p. 507; Acórdão n.º 363/91, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19º vol., p. 79; Acórdão n.º 152/93, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º vol., p. 323; Acórdão n.º 634/93, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 26º vol., p. 205; Acórdão n.º 370/94, Diário da República, II Série, de 7 de Setembro de 1994; Acórdão n.º 494/94, Diário da República, II Série, de 17 de Dezembro de 1994; Acórdão n.º 59/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p. 79; Acórdão n.º 572/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32º vol., p. 381; Acórdão n.º 758/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32º vol., p. 803; Acórdão n.º 958/96, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 34º vol., p. 397; Acórdão n.º 1182/96, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 35º vol., p. 447).
É assim possível encarar o princípio da proporcionalidade como um princípio objectivo da ordem jurídica. E, se é certo que a aplicação do princípio da proporcionalidade se viu inicialmente restrita à conformação dos actos dos poderes públicos e à protecção dos direitos fundamentais, há que reconhecer que foi admitido o posterior e progressivo alargamento da relevância de tal princípio a outras realidades jurídicas, não se detectando verdadeiros obstáculos à sua actuação no domínio das relações jurídico-privadas. Não se contesta portanto que o princípio da proporcionalidade seja princípio geral de direito, conformador não apenas dos actos do poder público mas também, pelo menos em certa medida, dos actos de entidades privadas e inspirador de soluções adoptadas pela própria lei no domínio do direito privado.[...].”
A ideia geral unificadora do princípio da proporcionalidade é a de que o meio utilizado para atingir certo objectivo deve estar numa determinada relação com esse objectivo. A avaliação a que há que proceder para aferir da proporcionalidade incide sobre um meio, que é dirigido a um certo fim, e implica a apreciação da respectiva idoneidade, necessidade e racionalidade à prossecução do fim em vista.
No caso dos autos, trata-se de saber se é desproporcionada ou excessiva a norma que consagra o direito de retenção em favor do promitente-comprador, que obtém a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, pelo crédito do incumprimento imputável à outra parte.
A resposta não pode deixar de ser negativa.
Como antes se referiu, o reconhecimento do direito de retenção surgiu como uma medida de defesa do promitente-comprador considerado na circunstância como parte mais débil do contrato e como parte que geralmente ficava prejudicada, uma vez que não dispunha de meio eficaz para fazer cumprir a promessa.
A atribuição do direito de retenção, sempre que exista tradição da coisa objecto do contrato prometido, permitiu um reequilíbrio da situação desigual, ainda que – não pode deixar de se reconhecer – a lei tenha sido generosa na sua concessão.
Assim, existindo uma situação de desigualdade de tratamento que se pretendeu equilibrar através deste regime, não pode considerar-se que tal medida legislativa dê origem a uma desproporção intolerável ou arbitrária dos direitos ou interesses em jogo – e só a este tipo de desproporção o Tribunal tem reconhecido relevância para concluir no sentido da inconstitucionalidade.


11.2. Vejamos agora se a norma questionada, enquanto concede o direito de retenção ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real, que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, viola o princípio da confiança e segurança jurídica, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, constante do artigo 2º da Constituição.
Na sua vertente de Estado de direito, o princípio do Estado de direito democrático – nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira
(Consti­tuição da República Portuguesa Anotada, cit., p. 63) – “mais do que constitutivo de preceitos jurídicos, é sobretudo englobador e integrador de um amplo conjunto de regras e princípios dispersos pelo texto constitucional, que densificam a ideia da sujeição do poder a princípios e regras jurídicas, garantindo aos cidadãos liberdade, igualdade e segurança”.

De acordo com a jurisprudência da Comissão Constitucional, o princípio do Estado de direito democrático “garante seguramente um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas suas expectativas juridicamente criadas e, consequentemente, a confiança dos cidadãos e da comunidade na tutela jurídica” (Parecer n.º 14/82, Pareceres da Comissão Constitucional, 19º vol., p.183 ss).
Por sua vez, o princípio da segurança jurídica, implicado no princípio do Estado de direito democrático, abrange duas ideias nucleares (Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6ª ed., Coimbra, 1993, p. 380): a de estabilidade, no sentido de que as decisões estaduais, incluindo as leis, “não devem poder ser arbitrariamente modificadas, sendo apenas razoável a alteração das mesmas quando ocorram pressupostos materiais particularmente relevantes”; e a de previsibilidade, “que, fundamentalmente, se reconduz à exigência de certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos, em relação aos efeitos jurídicos dos actos normativos”.
A realização do princípio do Estado de direito, no quadro da Constituição, exige portanto que seja assegurado um certo grau de calculabilidade e previsibilidade dos cidadãos sobre as suas situações jurídicas, ou seja, exige a garantia da confiança na actuação dos entes públicos.
Assim, o princípio da protecção da confiança e segurança jurídica pressupõe um mínimo de previsibilidade em relação aos actos do poder, de modo que cada pessoa possa ver garantida a continuidade das relações em que intervém e dos efeitos jurídicos dos actos que pratica. Nestes termos, e em regra, as pessoas têm o direito de poder confiar que as decisões sobre os seus direitos ou relações jurídicas tenham os efeitos previstos nas normas que os regulam.
No caso em apreço, a norma questionada não contende com tais princípios.
A solução adoptada na alínea f) do n.º 1 do artigo 755º do Código Civil não pode surpreender, na medida em que corresponde apenas a uma mais correcta localização da matéria na orgânica da sistematização legislativa. A atribuição do direito de retenção ao promitente-comprador que tivesse obtido a tradição da coisa objecto do contrato prometido foi aprovada e estava em vigor há muito tempo: como se viu, o regime legal em questão existia desde 1980, tendo sido reafirmado em 1986, através de mera alteração na inserção sistemática da norma (que passou do artigo 442º, n.º 3, do Código Civil para o artigo 755º, n.º1, alínea f), do mesmo Código).
De todo o modo, a norma que define, em abstracto, um novo caso de direito de retenção não pode ser vista, em si mesma, como ofensiva dos direitos de outros credores do devedor. Uma eventual ofensa de tais direitos – a existir
– decorreria da norma que estabelece a hierarquia entre os direitos dos diversos credores.

12. Conclui-se, assim, que não existe qualquer violação, quer do princípio da proporcionalidade explicitado no artigo 18º, n.º 2, da Constituição, quer do princípio da confiança e segurança jurídica, decorrente do princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2º da Constituição
3) O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2014, publicado no Diário da República n.º 95/2014, Série I de 2014-05-19, secundado pelo Ac. STJ de 09.07.2014, relatado por Nuno Cameira (que concluiu «III- A norma do art.759.º, n.º2, do CC, quando interpretada no sentido de que o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca anteriormente constituída e registada, não padece de inconstitucionalidade material (cf. arts. 2.º, 13.º, 18.º, n.º2, 20.º, nº1, e 165.º, al. b), da CRP).» (7), defendeu:
«2.2.5. Implicações constitucionais desta problemática.
Entende a Caixa ... que a interpretação segundo a qual o âmbito do artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil se restringirá aos casos em que o promitente-comprador seja um consumidor viola a Constituição da República designadamente os princípios da segurança jurídica ínsito no princípio do Estado de Direito democrático constante do artigo 2º da Constituição da República, igualdade, proporcionalidade e confiança.
No tocante ao princípio da igualdade estatui o artigo 13º nº 1 da Constituição da República que "todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei". Mas seria ocioso tecer grandes considerações sobre aquilo que é de há muito um dado adquirido sobre aquele normativo: não se pode tratar de uma forma igual aquilo que à partida é desigual. Ora a dilucidação desta problemática depende essencialmente de uma ponderação dos valores e interesses legítimos vigentes na sociedade num determinado momento histórico. E considerações semelhantes valem também no tocante ao princípio da proporcionalidade, também informador do sistema jurídico; a sua aplicação ao caso concreto terá que fazer-se tendo em vista os valores que se entende constituírem os prevalentes na comunidade, harmonizando-os axiologicamente entre si (19). Como em muitos outros setores do ordenamento jurídico, também aqui, ao nível do contrato promessa, o legislador no seu poder-dever de corrigir desequilíbrios e tomando em linha de conta os interesses e riscos em presença, entendeu propender para a proteção da parte mais débil, o promitente-comprador, face ao credor hipotecário, desde que aquele tivesse entregue ao outro outorgante o sinal e obtido a tradição do objeto do contrato. Assim e na linha do entendimento do que tem vindo a ser repetidamente decidido por este Supremo Tribunal e ainda pelo Tribunal Constitucional, não vemos que haja qualquer inconstitucionalidade naquela opção legislativa (20). A acrescer ainda a estas razões, não pode igualmente esquecer-se que no momento em que a garantia hipotecária se constituiu, já estavam em vigor os artigos 755º nº 1 alínea f) e 759º nº 2 do Código Civil, o que reforça a necessidade de o credor hipotecário ter de acautelar-se contra os efeitos para eles possivelmente nefastos daquela preferência (21). Não se argumente pois de igual modo que os princípios da previsibilidade e segurança seriam afetados pela concessão e prevalência do direito de retenção; trata-se de mais uma escolha do legislador, à semelhança de outras - v. g. créditos de trabalhadores - que evidencia claramente uma ponderação de interesses em atenção à parte mais fraca no âmbito da relação contratual, o que implica necessariamente compressão de alguns direitos com vista à busca de uma solução mais equitativa; é o que sucede quanto à prevalência excecional do crédito emergente de contrato promessa ainda, que de natureza obrigacional, sobre a hipoteca, desde que se tenha verificado a tradição do respetivo objeto acompanhada pelo pagamento total ou parcial do preço (22). Poder-se-á dizer, parafraseando um acórdão deste Supremo Tribunal (23), estarem assim presentes, na interpretação exposta das normas aplicadas, os critérios práticos da justa medida, razoabilidade e adequação material ínsitos no princípio da proporcionalidade que temos vindo a comentar.
Equacionada desta forma a problemática, especialmente sob o ponto de vista de ambos os reclamantes apontados no âmbito do processo de insolvência, diremos que a solução obtida encontra no contexto socioeconómico que vivemos, premente atualidade; é que se bem que as normas legislativas pertinentes, maxime as constantes do Código Civil, tenham tido na sua génese, de um modo especial, a inflação que se viveu entre o final da década de 70, aproximadamente até meados dos anos 80 do século passado, não é menos certo que o eclodir da crise económica que atravessamos, inesperada para a generalidade dos consumidores, trouxe consigo um elevadíssimo número de insolvências em que naturalmente se poderão surpreender questões desta natureza. Daí que o entendimento adotado se imponha com força redobrada (24)
Assim, improcede o pedido de desaplicação do regime dos arts.755º/1-f) e 759º/1 e 2 do CC, aplicado na sentença recorrida, por inconstitucionalidade.

IV. Decisão:

Pelo exposto, as juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães julgam improcedente o recurso de apelação, confirmando a sentença recorrida.
*
Custas pela recorrente.
*
Guimarães, 23 de janeiro de 2020
Elaborado, revisto e assinado pela Juiz Relatora e pelas Juizes-Adjuntas

Alexandra Viana Lopes
Anizabel Sousa Pereira
Rosália Cunha

1. Lebre de Freitas, in A ação executiva, à luz do Código de Processo Civil de 2013, Gestlegal, 7ª Edição, ponto 17.2.2.-C., pág. 359.
2. João Calvão da Silva, in Sinal e Contrato-Promessa, Almedina, 14ª edição revista e aumentada, págs. 87 ss e 98 ss.
3. Ana Taveira da Fonseca, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Universidade Católica Portuguesa, 2018, nota 4- I ao art.755º, pág.1011- “Num período em que se registavam taxas elevadíssimas de inflação, os benefícios associados ao incumprimento do contrato eram facilmente superiores à indemnização que o promitente- alienante tinha que pagar ao promitente- adquirente.
4. Ana Taveira da Fonseca, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Universidade Católica Portuguesa, 2018, nota 4- II ao art.755º, pág.1012.
5. Ac. TC nº356/2004 e Ac. TC nº73/2011 disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/.
6. Ac. TC nº594/2003, Ac. TC nº22/2004 e Ac. TC nº698/2005 disponíveis em www.pgdlisboa.pt/jurel/cst_informacao.php
7. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2014, publicado no Diário da República n.º 95/2014, Série I de 2014-05-19; Ac. STJ de 09.07.2014 publicado in www.dgsi.pt.