Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2855/23.1T8BRG.G1
Relator: JOSÉ CRAVO
Descritores: DIREITOS DOS CONDÓMINOS
ELEIÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Entre os direitos que a lei confere aos condóminos, encontra-se o de votar na assembleia de condóminos e de ser eleito para o cargo de administrador de condomínio (cfr. art 1430º do CC).
II – Todos os condóminos podem apresentar propostas e votá-las na proporção do valor das suas fracções, não ficando impedido de as votar só porque foram por ele apresentadas.
III – De acordo com o disposto no art. 334º do CC, a existência ou não de abuso do direito afere-se a partir de três conceitos: (i) a boa fé; (ii) os bons costumes; e (iii) o fim social ou económico do direito; porém, o exercício do direito só é abusivo quando o excesso cometido for manifesto.
IV – A votação de deliberações sobre a eleição da administração e sua remuneração em reunião da assembleia de condóminos (vd. art. 1435º do CC) não constitui abuso de direito, já que é a própria lei que o prevê e o condómino que, sobre propostas de administração pelos condóminos apresenta uma com 3 variáveis a considerar sucessivamente, se a precedente tivesse algum voto contra [1- administração colectiva sem remuneração; 2- administração rotativa anual, ficando o respectivo administrador dispensado do pagamento das quotas desse ano; 3- administração conjunta dos condóminos das fracções ... e ..., que, a título de compensação, ficariam dispensadas do pagamento de dois trimestres - alternados - das quotas que lhes correspondessem nesse ano], não está a exceder em nada os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do respectivo direito, mas antes a participar activamente na finalidade a que tal reunião se destina.
V – A condenação por litigância de má-fé pressupõe o dolo ou a negligência grave (cfr. art. 542º/2 do CPC), na violação do dever de boa-fé processual que deve pautar a actuação da parte que litiga em juízo.
VI – Assim, deve ter lugar uma condenação neste quadro quando seja seguro que ao alegar como alegou, a parte tenha, com dolo ou negligência grave, deduzido pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar ou que tenha feito do processo um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objectivo ilegal [als. a) e d) do nº 2 do dito art. 542º do CPC].
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

1 RELATÓRIO

AA, engenheiro biológico, e mulher BB, economista, ambos residentes na Rua ..., freguesia ..., ..., ... ..., iniciaram uma acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum[1], contra Condomínio ... sito na Rua ..., ..., ..., ... ..., representado pelos Administradores CC, divorciado, residente na Rua ..., ..., ..., ..., ... ... e DD, casada, residente em Rua ..., ... ... peticionando: (a) a anulação da deliberação tomada pela assembleia de condóminos de ../../2023, relativa ao ponto 1 da ordem de trabalhos, que nomeia os dois co-administradores e fixa as respetivas contrapartidas, com efeitos retroativos, (b) a condenação do R. a restituir aos AA. o valor que venha a ser prestado por estes ao abrigo da mencionada deliberação, em valor correspondente ao recálculo retroativo das prestações condominiais devidas pela fracção ..., expurgada a parte que exceder as mesmas segundo a regra de cálculo geral de divisão das despesas e serviços de interesse comum em proporção com a respetiva permilagem, ou seja, sem a componente de compensação pelo exercício da administração deliberada, a quantificar na sentença que vier a ser proferida ou subsidiariamente (c) a condenação do R. condomínio a abster-se de imputar à fração ... os valores da restituição relativos ao capital identificado no pedido precedente, cumulativamente (d) que seja declarada ineficaz a deliberação identificada no pedido I, por a acta não ter sido expressamente aprovada, em violação do disposto no art. 1º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 268/94, de 25/10.
Para tanto alega, em suma, o seguinte: os AA. são proprietários e legítimos possuidores do prédio urbano correspondente à fracção ... composta por “...”, tipo ..., para habitação, com entrada pelo n.º ...60 – com uma garagem nas traseiras com o número 1, direito esse que se encontra definitivamente registado a seu favor pela inscrição correspondente à AP. ...1 de 1999/10/07; a referida fracção integra-se no edifício, constituído em regime de propriedade horizontal, correspondente ao prédio urbano situado na Rua ..., da freguesia ... (...), concelho ..., descrito na 1ª Conservatória ... sob o n.º ...08 e inscrito na matriz sob o art. ...93º; o referido edifício conta somente com três fracções autónomas, a fracção ..., com uma permilagem de 300/1000, a fracção ... com uma permilagem de 360/1000 e a Fracção ... com uma permilagem de 340/1000; a administração do condomínio compete a CC, proprietário da Fracção ... e a DD, proprietária da fracção ..., na qualidade de sucessora de EE e esposa, FF, anteriores proprietários da fração ..., entretanto falecidos; mais alega que em ../../2023 ocorreu uma deliberação da assembleia de condóminos do prédio em discussão, tendo sido lavrada acta que os autores assinaram; consideram que a dita acta não foi objecto de aprovação, não tendo sido cumprido o disposto no art. 1º n.º 3 do Decreto-Lei n.º 268/94, de 25/10, na redação conferida pela Lei n.º 8/2022, de 10/01, não tendo sido entregue aos AA. cópia da versão final, assinada pela alegada representante da fracção ...; na dita acta, foi aprovada uma deliberação com os votos favoráveis das fracções ... e ... mas contra da fracção ..., reproduzida na p.i.; os AA. consideram que a dita deliberação é substantivamente inválida em virtude de, possuindo o prédio unicamente três fracções, duas delas elegeram-se a si próprias como co-administradores, definindo as contrapartidas financeiras do exercício do cargo que equivaliam às prestações a cargo da fracção, com a respectiva dispensa, gozando de uma redução de 50% das quotas relativas às despesas e encargos comuns; considera que tal deliberação foi votada pelos próprios administradores eleitos em flagrante conflito de interesses, numa violação ostensiva do disposto no art. 176º do Cód Civil; aplicável às regras de funcionamento das assembleias de condóminos no contexto da propriedade horizontal; mais considera que a referida deliberação traduz abuso de direito, nos termos previstos no art 334º do Cód Civil visto que considera que a reduzida dimensão do edifício não justifica a existência de dois administradores em simultâneo; os AA. entendem que não têm o dever de suportar metade dos encargos com partes comuns de dois condóminos apenas e só porque decidiram exercer a administração em conjunto, pelo que a deliberação será anulável, por violação dos arts 176º, ex vi art. 157º do Cód Civil e ainda e de forma cumulativa do art 334º do Cód Civil; termina formulando os pedidos acima enunciados.

O R. apresentou contestação, tendo alegado, em suma, o seguinte: consideram que o núcleo duro da presente acção prende-se com a questão da validade ou invalidade das deliberações tomadas na Assembleia de Condóminos, no transacto dia ../../2023 nomeadamente quanto ao que foi deliberado no ponto 1 da ordem de trabalhos, Proposta 5, nomeando e fixando o Sr. CC e a Sra. DD, como co-administradores e as respectivas contrapartidas; alegam ser falso que nunca tenha sido entregue aos AA. cópia da versão final da acta assinada pela representante da fracção ..., tendo-a colocado na caixa de correio dos AA. no dia 16/05/2023; considera que os AA. é que agem sob abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, pretendendo locupletar-se à custa alheia ao peticionar o valor referente à já prestada administração do condomínio; termina peticionando a improcedência da acção e absolvição do pedido.
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Findos os articulados, em despacho liminar, foram as partes notificadas do entendimento do Tribunal de que se encontrava em posição de conhecer imediatamente do mérito da causa - apenas estava em causa uma questão de direito - e para se pronunciarem quanto a essa possibilidade, o que ambas fizeram, dando a conhecer que nada tinham a opor a quo o Tribunal conhecesse do mérito da causa no despacho saneador.
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Foram ainda as partes notificadas com o entendimento do Tribunal de que se os autores deduziram pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar e fizeram do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, pelo que incorreram em litigância de má-fé, nos termos previstos no art 542º, n.º 2, al.a) e d) do Cód de Proc Civil, razão pela qual devem ser condenados em multa enquanto litigantes de má-fé, e para dizerem o que tiverem por conveniente, o que ambos fizeram, concordando o R. com tal condenação e dela discordando os AA.
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Tendo-se, de imediato, proferido sentença, que conheceu do mérito da acção, que foi julgada totalmente improcedente, dela se absolvendo a R. e condenando os AA. como litigantes de má-fé numa multa de 3 UC’s e a indemnizar os autores no reembolso das despesas a que a má-fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários, a liquidar em execução de sentença, por ausência de elementos neste momento para fixação em quantia certa (art 543º, n.º 1, al.a), n.º 2 e n.º 3 do Cód de Proc Civil), além das custas.
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Inconformados com essa decisão, os AA. interpuseram recurso de apelação contra a mesma, cujas alegações finalizaram com a apresentação das seguintes conclusões:

I - O regime do impedimento de voto constante do art. 176º, aplicado ex vi art. 157º do CC, é aplicável às deliberações tomadas em assembleia de condóminos.
II - A administração plural não está prevista na lei, sendo que toda a disciplina da propriedade horizontal se refere a um administrador, do que é exemplo o art. 1430º n.º 1, 1431º n.º 2, 1435º do CC e, também, o art. 7º e 10º-A do Decreto-Lei n.º 268/94. Se é certo que o exercício do cargo pode ser efetuado por uma pessoa singular ou coletiva, todas as referências normativas ao administrador apontam expressamente para o número de um administrador.
III - Embora se entenda que não existe nenhuma razão de fundo que vede liminarmente a possibilidade de uma administração plural, a mesma apenas pode ser encarada se existirem razões objetivas que o justifiquem, desde logo por tal poder comportar um ónus adicional para o Condomínio com a sua remuneração.
IV - Assim, sempre que ante o caso concreto uma administração plural se mostre razoável e justificada, afigura-se não ser de excluir essa figura sempre que tal se mostre justificado em razão de circunstâncias objetivas, indemonstradas no caso concreto, onde existem unicamente três frações autónomas.
V - A contrapartida auto-deliberada é excessiva, no contexto factual dos autos, sendo que a mesma se traduz num desconto de 50% nas quotas dos dois condóminos administradores: no conjunto de 100% da despesa geral do edifício, as partes que representam 70% apenas pagaram 35% da despesa; como o valor tem de ser necessariamente assegurado, tal implicará que os Recorrentes, que representam 30% vão suportar … 65% da despesa global.
VI - O impedimento de voto deve ser valorado de forma casuística, verificando-se o mesmo no caso sub judice, em que dois condóminos representativos de 70% do valor do edifício deliberam nomear-se ambos como administradores do condomínio, fixando a contrapartida pelo exercício do cargo, num prédio composto unicamente por três fracções.
VII - Cumulativamente, a deliberação traduz abuso de direito, nos termos do art. 334º do CC, visto que a reduzida dimensão do edifício e número de fracções não justifica dois administradores em simultâneo, possuindo apenas uma única caixa de escadas e um logradouro traseiro pavimentado que servem, unicamente, essas três fracções (facto provado 4), com escasso grau de exigência nas operações inerentes ao exercício da administração. Além de que existe um conflito aberto entre os Autores e os demais condóminos, pendendo termos uma ação, relativa a matéria condominial do mesmo edifício, sob o n.º 3320/22.... do Juízo Local Cível ... – Juiz ... (facto provado 8), sendo que a deliberação visa isolar ainda mais os Recorrentes e criar-lhes dificuldades e adversidades condominiais ante a posição dominante de administradores condóminos numa lógica de dois contra um.
VIII - A deliberação impugnada exprime, por isso, abuso de direito, nos termos do art. 334º do CC, sendo que a forma como os demais condóminos exerceram os poderes inerentes à sua maioria excede os ditames da boa-fé e a finalidade económica e social do direito de elegeram administrador e definir a sua remuneração.
IX - Atuar em abuso de direito implica possuir um direito no plano formal mas cujo exercício em concreto desvirtua o mesmo, por contrariar a boa-fé, os bons costumes ou a finalidade económica e social do mesmo; ora, não tendo a sentença recorrida reconhecido qualquer direito aos Recorrentes, a questão do seu abuso nem tampouco se deve colocar.
X - Pelo que a deliberação enferma de anulabilidade por violação do art. 176º, ex vi art. 157º do CC e, ainda e de forma cumulativa, do 334º do mesmo diploma, normativos esses que a sentença recorrida violou.
XI - Independentemente do mérito dos autos, a perspetiva jurídica expressa na P.I. é legítima, possuindo suporte jurisprudencial nas suas pedras angulares, e não pode ser vista como pretensão manifestamente infundada, nem dela se pode retirar qualquer negligência ou dolo quanto ao elemento subjetivo subjacente.
XII - A defesa da posição dos Recorrentes teve como único e exclusivo propósito impedir um resultado em que um Condomínio composto por, apenas, três fracções autónomas ter-se permitido eleger dois administradores que representavam 70% do valor global do prédio e que fixaram as suas próprias contrapartidas pelo exercício dessa administração. Facto já de si pouco normal, desacompanhado de qualquer circunstância objetiva que torne justificada essa administração plural, remunerada com 50% de dispensa de pagamento das quotizações dos condóminos administradores, num edifício com unicamente três fracções.
XIII - Ao condenar os Recorrentes como litigantes de má-fé, a sentença violou o disposto nas als. a) e d) do n.º 2 do art. 542º do CPC.
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TERMOS EM QUE
deve a sentença recorrida ser revogada, condenando-se o Réu nos termos peticionados na ação.
Com o que se fará JUSTIÇA.
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Notificado das alegações de recurso apresentadas pelos AA., veio o R. apresentar as suas contra-alegações, que finalizou com a apresentação das seguintes conclusões:

I. O Réu, aqui Recorrido entende que a decisão judicial sob recurso procedeu a uma correta e ponderada aplicação do direito aos factos provados documentalmente, e, portanto, é imerecedora de qualquer censura.
II. Como tal, a pretensão recursiva dos Recorrentes deverá improceder.
III. Vejamos, são os próprios Recorrentes que admitem que não existe nenhuma razão de fundo que vede liminarmente a possibilidade de uma administração plural.
IV. Todavia, são os próprios Recorrentes que defendem que tal administração não é lícita.
V. Posição esta que não se compreende, já que, como bem sabem os Recorrentes, quer a acta, quer a deliberação que determinou tal administração é perfeitamente válida e legal.
VI. Inexistindo qualquer situação de conflito de interesse ou abuso de direito.
VII. Sendo, por isso, de mau tom por parte dos Recorrentes falar numa lógica de “dois contra um” quando sempre souberam e conheceram a realidade daquele edifício/prédio.
VIII. Como refere e bem o Tribunal a quo, o Réu, aqui Recorrido, limitou-se a exercer um direito que a lei lhe confere.
IX. Não se podendo por isso, falar em abuso de direito.
X. A existir abuso de direito nos presentes autos, sempre será de imputar tal vício, aos Recorrentes e nunca ao Réu, aqui Recorrido.
XI. Os presentes autos fomentados pelos Recorrentes, são na verdade, uma tentativa de imposição de vontade destes aos demais condóminos.
XII. Razão pela qual a presente Sentença, não merece qualquer reparo.
XIII. Entendem, ainda os Recorrentes, que a sua posição processual não é merecedora de qualquer condenação como litigantes de má fé.
XIV. Todavia, e conforme se demostrou, os Recorrentes procuraram incessantemente, transmitir ao Tribunal que as restantes frações autónomas que compõe o Condomínio pretendem impor uma inaceitável sujeição a uma vontade ilegítima da maioria.
XV. Tal não é nem nunca foi o caso.
XVI. Os Recorrentes sempre souberam que apenas detém 30% da permilagem do prédio, como tal, os restantes condóminos representam 70%.
XVII. Posto isto, tudo leva a concluir que os presentes autos, representam isso sim, uma tentativa por parte dos Recorrentes de um aumento exponencial do poder de voto sem qualquer tipo de fundamento legal ou jurisprudencial.
XVIII. O que, levou e bem, o Tribunal a quo a considerar que os Recorrentes deduziram pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar e fizeram do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, pelo que incorreram em litigância de má-fé.
XIX. Tudo isto a concluir sem necessidade de alegação ou prova em contrário de que a Sentença proferida deverá naturalmente ser mantida, ou seja, considerando a ação totalmente improcedente, absolvendo o Réu do peticionado e mantendo, a condenação dos Autores enquanto litigantes de má-fé.
Termos em que e nos melhores de Direito deverão V/Exas., Venerandos Desembargadores:
a) Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelos Recorrentes.
Com o que farão inteira Justiça.
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O Exmº Juiz a quo proferiu despacho a admitir o interposto recurso, providenciando pela subida dos autos.
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Facultados os vistos aos Exmºs Adjuntos e nada obstando ao conhecimento do objecto dos recursos, cumpre apreciar e decidir.
 
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2QUESTÕES A DECIDIR

Como resulta do disposto no art. 608º/2, ex vi dos arts. 663º/2, 635º/4, 639º/1 a 3 e 641º/2, b), todos do CPC, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Consideradas as conclusões formuladas pelos apelantes, estes pretendem que:
I - se reaprecie a decisão de mérito da acção;
II - se reaprecie a decisão de mérito da acção quanto à condenação dos AA. como litigantes de má-fé.
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3 – OS FACTOS

a) factos provados;
1. Por Escritura Pública lavrada na Secretaria Notarial ... em 19/09/1996, foi constituída a propriedade horizontal do prédio urbano sito na Rua ..., ..., descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o n.º ...09 (actualmente 1508/...08) e inscrito na matriz predial urbana sob o n.º ...50 (actualmente artigo ...93º), tendo sido dividido em três fracções independentes identificadas pelas letras ..., ... e ..., com os seguintes valores relativos:
a. fracção ...: 300/1000;
b. fracção ...: 360/1000;
c. Fracção ...: 340/1000;
2. Encontra-se registada a titularidade do direito de propriedade sobre as referidas fracções ..., ... e ... do prédio identificado em 1) nos seguintes termos:
a. fracção ...: registado a favor dos autores pela inscrição correspondente à AP. ...1 de 1999/10/07;
b. fracção ...: registado a favor de EE e esposa FF pela inscrição correspondente à AP. ...84 de 2013/11/2019;
c. Fracção ...: registado a favor de CC pela inscrição correspondente à AP. ...59 de 2014/09/05;
3. Por ocasião do falecimento de EE e esposa FF, a titularidade do direito de propriedade sobre a fracção ... passou para DD embora não se encontre registada a seu favor;
4. O prédio referido em 1) possui unicamente uma única caixa de escadas e um logradouro traseiro pavimentado que servem, unicamente, as respectivas fracções.
5. Em ../../2023, ocorreu uma reunião da assembleia de condóminos do prédio referido em 1) que tinha por objecto constante da ordem de trabalhos, i.a: a apresentação de orçamentos, análise e eleição do(a) administrador para o ano de 2023.
6. Na reunião da assembleia de condóminos referida em 4), foi aprovada, com os votos favoráveis das fracções ... e ..., mas com o voto contra da fracção ..., a seguinte deliberação: a. Proposta 5: Orçamento apresentado pelas fracções ... e ... de €600,00 e com as seguintes propostas de administração; 1 – os condóminos administram colectivamente o condomínio, repartindo funções/tarefas. Não havendo lugar a compensações. Ou, no caso de algum condómino não aceitar o proposto no ponto 1, propõem que: 2- Os condóminos exerçam o cargo de administrador rotativamente (mandato anual), por nomeação sucessiva. Estabelecendo-se uma ordem para os mandatos (a definir A/B/C ou C/B/A). Sendo neste caso e a título de compensação, dispensado do pagamento das quotas que lhe corresponda para esse ano, o condómino que nesse ano exerça cargo. Ou, no caso de algum condómino não aceitar o proposto no ponto 2, propõem que: 3 – Os condóminos das fracções ... e ... administrem o condomínio em conjunto. Sendo neste caso e a título de compensação, dispensadas do pagamento de dois trimestres das quotas que lhes correspondam este ano. Dispensa em trimestres alternados, por forma a assegurar a liquidez das despesas correntes. Votos contra da fracção .... Votos a favor da fracção ... e .... Proposta aprovada pela maioria representativa de dois terços (700/1000). Assim resulta das votações das propostas levadas a sufrágio que: a Sra DD e o Sr CC, respectivamente condóminos das fracções ... e ..., foram eleitos administradores do condomínio.
7. Da reunião referida em 5) foi lavrada acta que os autores assinaram em 17/04/2023.
8. Existe uma acção entre os autores e os demais condóminos, relativa a matéria condominial do edifício, pendente no Juízo Local Cível ... – Juiz ..., autuada sob o n.º 3320/22.....
9. O réu juntou com a contestação cópia final da acta referida em 7), assinada por todos os condóminos.
b) factos não-provados;
10. Que não tenha sido entregue aos autores cópia final da acta referida em 7).
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c) análise crítica da prova;
O Tribunal assentou a sua convicção numa análise crítica de toda a prova produzida, tendo valorado a documentação constante dos autos, bem como a conduta processual das partes.
Assim no tocante aos factos provados:
- (pontos 1 a 3, 5, 6, 7 e 9) o Tribunal valorou as certidões de registo predial, a escritura de constituição de propriedade horizontal e a cópia da acta juntas com a p.i; mais valorou a cópia da acta assinada por todos os condóminos junta como doc 1 da contestação.
- (ponto 4 e 8) considera-se assente por acordo das partes nos articulados (art 574º n.º 2 do Cód de Proc Civil).
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No tocante aos factos não-provados, consideraram-se nessa qualidade em virtude de, a respeito dos mesmos, não ter sido produzida qualquer prova credível.
- (ponto 10) não-provado por o condomínio ter junto a cópia com a contestação.

[transcrição dos autos].
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4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

I) Da reapreciação da decisão de mérito da acção

Vejamos, agora, a reapreciação da decisão de mérito da acção, estando em causa a impugnação de uma deliberação aprovada em reunião de condóminos.
São quatro as questões que os recorrentes pretendem ver reapreciadas: 1 – Privação do direito de voto dos condóminos, em matérias em que haja conflito de interesses; 2 – a inadmissibilidade de administração plural, sendo certo que, in casu, sempre inexistiria razão justificativa para tanto; 3 – Excesso da remuneração da administração; 4 – abuso de direito.

Comecemos pela 1ª questão:
1 – Privação do direito de voto dos condóminos, em matérias em que haja conflito de interesses
Entendem os recorrentes que permitir que dois condóminos representativos de 70% do prédio definam uma administração plural sem qualquer justificação objetiva e, ainda, que estabeleçam a sua própria contrapartida pelo exercício da administração, traduz um evidente conflito de interesses. (…). Acresce que foi deliberado remunerar essa administração mediante uma contrapartida correspondente à dispensa “do pagamento de 2 trimestres das quotas que lhes correspondam este ano”. O que equivale a um desconto de 50% nas respetivas quotas. Assim, no conjunto de 100% da despesa geral do edifício, as partes que representam 70% apenas pagaram 35% da despesa. Como o valor tem de ser necessariamente assegurado, tal implicará que os Recorrentes, que representam 30% vão suportar … 65% da despesa global. (…). É, pois, nessa avaliação casuística que deve ser perscrutado o invocado conflito de interesses, em que uma frente comum de condóminos representativos de 70% do edifício deve incorrer em impedimento de voto consideradas as particularidades da deliberação supra enunciadas.
Com o que discorda o recorrido, entendendo inexistir, in casu, qualquer situação de conflito de interesse.
Quid iuris?

Tem que se reconhecer a existência de uma série de incompatibilidades (ou conflito de interesses) do administrador e dos condóminos (cfr. art. 176º do CC), não podendo, desde logo, o administrador-condómino votar na aprovação de contas, na aprovação para contratar empresas de administração de condomínios onde ele é um interessado, na aprovação para contratar empresas de prestação de serviços onde ele tem interesses directos ou indirectos, sempre que haja conflito de interesse com o interesse do representado, por exemplo, responsabilizar-penalizar/desresponsabilizar-despenalizar ele próprio ou alguém relacionado com ele que tem dívidas em atraso, etc. Ou seja, no fundo, nos termos do nº 1 do mencionado art. 176º, “não pode votar, por si ou como representante de outrem, nas matérias em que haja conflito de interesses entre a associação e ele, seu cônjuge, ascendentes ou descendentes”.
Todavia, não é essa a situação que se nos apresenta, não podendo deixar de se sufragar as assertivas observações feitas na sentença recorrida à indefensável tese advogada pelos AA., de impedimento de voto dos outros condóminos, só porque lograram ver aprovada uma proposta com a qual não concordam. Confundindo os direitos e encargos dos condóminos com a administração das partes comuns do prédio.
Estamos perante uma situação de propriedade horizontal (cfr. arts. 1414º - 1438ºA do CC), com 3 condóminos, onde teve lugar uma reunião da assembleia de condóminos do prédio edifício ora em questão. Todos os condóminos podem apresentar propostas e votá-las na proporção do valor das suas fracções, não ficando impedido de as votar só porque foram por ele apresentadas. Se assim fosse, qual o interesse em apresentar propostas, se depois o apresentante não as poderia votar?
In casu, uma deliberação que foi aprovada sobre propostas de administração pelos condóminos, com 3 variáveis a considerar sucessivamente, se a precedente tivesse algum voto contra [1- administração colectiva sem remuneração; 2- administração rotativa anual, ficando o respectivo administrador dispensado do pagamento das quotas desse ano; 3- administração conjunta dos condóminos das fracções ... e ..., que, a título de compensação, ficariam dispensadas do pagamento de dois trimestres - alternados - das quotas que lhes correspondessem nesse ano]. A deliberação em causa teve votos contra da fracção ... (o ora recorrente) e votos a favor da fracção ... e ..., tendo a proposta sido aprovada pela maioria representativa de dois terços (700/1000), e foram eleitos administradores do condomínio os condóminos das fracções ... e ....
Tudo linear. Nenhum reparo a fazer, tendo sido respeitado o resultado da votação e contribuído para o seu desfecho o voto dos AA. ora recorrentes, que sabiam que ao rejeitar a administração colectiva sem remuneração e a administração rotativa anual com dispensa do respectivo administrador do pagamento das quotas desse ano, contribuiriam para a viabilização da remanescente proposta de administração conjunta dos condóminos das fracções ... e ... que, a título de compensação, ficariam dispensadas do pagamento de dois trimestres - alternados - das quotas que lhes correspondessem nesse ano. Não podendo agora os AA. pretender inverter o resultado da votação, pretendendo impor a sua vontade à dos demais condóminos, substituindo a vontade da maioria pela da minoria, impedindo de votar os candidatos a administradores, o que tornaria impraticável a administração dos condomínios, que seria ingerível, produzindo impasses e bloqueios inultrapassáveis.
Como assim, quanto a esta questão, a decisão jurídica da causa mostra-se adequada e correcta face à factualidade apurada e aos normativos aplicáveis, assentando em operações intelectuais válidas e justificadas.
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Passemos à 2ª questão:

2 – a inadmissibilidade de administração plural, sendo certo que, in casu, sempre inexistiria razão justificativa para tanto
Entendem os recorrentes que A administração plural não está prevista na lei, sendo que toda a disciplina da propriedade horizontal se refere a um administrador; todavia, inexistindo razão de fundo que vede liminarmente a possibilidade de uma administração plural, a encarar-se tal hipótese, só se existirem razões objetivas que o justifiquem, como por exemplo, em que existem espaços comuns com relativa autonomia funcional (v.g. duas caixas de escadas independentes, com um administrador por cada uma, um elevado número de frações que torne mais exigente a gestão ou, ainda, as características físicas que tornem o controlo das partes comuns mais complexo ou laborioso), o que não é o caso, pelo facto de se traduzir numa frente de dois condóminos que se auto-elegem numa administração simultânea e colegial composta por dois administradores e que definem a sua contrapartida, num universo de apenas três frações, isto é, (…) desde logo por tal poder comportar um ónus adicional para o Condomínio com a sua remuneração.
Com o que discorda o recorrido.

Quid iuris?

Esta questão ora colocada pelos recorrentes, não foi abordada nos articulados, não foi incluída nas questões a resolver, e não foi tratada na sentença recorrida.
Logo, estamos perante o que se costuma designar de questão nova.
Por definição, a figura do recurso exige uma prévia decisão desfavorável, incidente sobre uma pretensão colocada pelo recorrente perante o Tribunal recorrido, pois só se recorre de uma decisão que analisou uma questão colocada pela parte e a decidiu em sentido contrário ao pretendido. A única excepção a esta regra são as questões de conhecimento oficioso, das quais o Tribunal tem a obrigação de conhecer, mesmo perante o silêncio das partes. Não se estando aqui perante uma situação de conhecimento oficioso, não pode o Tribunal superior apreciar uma questão nova, por pura ausência de objecto: em bom rigor, não existe decisão de que recorrer. É um caso de extinção do recurso por inexistência de objecto[2].
Assim, este Tribunal da Relação não irá conhecer desta questão, por impossibilidade legal.
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Passemos, agora, à 3ª questão:
3 – excesso da remuneração da administração
Entendem os recorrentes que A contrapartida auto-deliberada é excessiva, no contexto factual dos autos, sendo que a mesma se traduz num desconto de 50% nas quotas dos dois condóminos administradores: no conjunto de 100% da despesa geral do edifício, as partes que representam 70% apenas pagaram 35% da despesa; como o valor tem de ser necessariamente assegurado, tal implicará que os Recorrentes, que representam 30% vão suportar … 65% da despesa global.
Quid iuris?

Também esta questão ora colocada pelos recorrentes, não foi abordada nos articulados, não foi incluída nas questões a resolver, e não foi tratada na sentença recorrida.
Logo, valem aqui as considerações supra efectuadas quanto à 2ª questão, dado estarmos perante questão nova.
Assim, este Tribunal da Relação não irá conhecer desta questão, por impossibilidade legal.
*
Vejamos, finalmente, a 4ª questão:
4 – abuso de direito
Entendem os recorrentes que A deliberação impugnada exprime, abuso de direito, nos termos do art. 334º do CC, sendo que a forma como os demais condóminos exerceram os poderes inerentes à sua maioria excede os ditames da boa-fé e a finalidade económica e social do direito de elegeram administrador e definir a sua remuneração.
Com o que discorda o recorrido.
Que dizer?

No quadro legal português, o abuso de direito está previsto no art. 334º do CC que determina que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”. De acordo com esta norma, a existência ou não de abuso do direito afere-se a partir de três conceitos: (i) a boa fé; (ii) os bons costumes; e (iii) o fim social ou económico do direito; porém, o exercício do direito só é abusivo quando o excesso cometido for manifesto.
A boa fé comporta dois sentidos principais: no primeiro, é essencialmente um estado ou situação de espírito que se traduz no convencimento da licitude de certo comportamento ou na ignorância da sua ilicitude; no segundo, apresenta-se como princípio de actuação, significando que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto e leal, nomeadamente no exercício de direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros.
Os bons costumes constituem o conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e correctas aceitam comummente.
O fim social e económico do direito é a função instrumental própria do direito, a justificação da respectiva atribuição pela lei ao seu titular.
A votação de deliberações sobre a eleição da administração e sua remuneração em reunião da assembleia de condóminos (vd. art. 1435º do CC) não constitui abuso de direito, já que é a própria lei que o prevê e o condómino que, sobre propostas de administração pelos condóminos apresenta uma com 3 variáveis a considerar sucessivamente, se a precedente tivesse algum voto contra [1- administração colectiva sem remuneração; 2- administração rotativa anual, ficando o respectivo administrador dispensado do pagamento das quotas desse ano; 3- administração conjunta dos condóminos das fracções ... e ..., que, a título de compensação, ficariam dispensadas do pagamento de dois trimestres - alternados - das quotas que lhes correspondessem nesse ano], não está a exceder em nada os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do respectivo direito, mas antes a participar activamente na finalidade a que tal reunião se destina. Lembrando-se que entre os direitos que a lei confere aos condóminos, se encontra o de votar na assembleia de condóminos e de ser eleito para o cargo de administrador de condomínio (cfr. art 1430º do CC).
Como assim, concorda-se com o entendimento expresso pela sentença a quo quando conclui que não resulta dos factos provados qualquer elemento que leve o Tribunal a enquadrar a conduta dos autores em qualquer das modalidades reconhecidas de abuso de direito.
Mostra-se, pois, irrepreensível nesta parte, a decisão jurídica da causa.

II) Reapreciação da decisão de mérito da acção, quanto à condenação dos AA. como litigantes de má-fé

Resta a questão da condenação dos AA. como litigantes de má-fé.
Da sentença a quo, quanto a esta questão, consta do enquadramento jurídico que:
(…)
A litigância de má-fé consiste num expediente processual destinado a dissuadir o uso reprovável do processo.

A este respeito, resulta do art. 542º do Cód de Proc Civil que:
Artigo 542.º
Responsabilidade no caso de má-fé - Noção de má-fé
1 - Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
3 - Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má-fé.
Neste sentido, quem fizer do processo um uso censurável ou se tiver comportado de uma forma reprovável no mesmo, será condenado numa multa como forma de sanção e de prevenção de comportamentos similares futuros.
A lei permite sancionar a nível de má-fé não apenas a lide dolosa mas igualmente a lide temerária, quando as regras de conduta processual conformes com a boa-fé tiverem sido violadas com culpa grave ou com erro grosseiro.
Nos termos da jurisprudência vertida no Douto Acórdão do TRG de 10/09/2013, proc. n.º 50904/10.5YIPRT-A.G1, na litigância de má-fé, é necessário que se deduza pretensão ou oposição cuja falta de fundamento as partes não ignoram, se tenha conscientemente alterado a verdade dos factos ou omitido factos essenciais, ou que se tenha feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal ou de entorpecer a ação da justiça ou de impedir a descoberta da verdade; face à existência de uma contradição entre o alegado pela parte e a matéria de facto que se prova, a litigância de má-fé apenas não se verificará se não se provar a existência de dolo ou negligência grave ou se tal contradição não resultar da alteração da verdade dos factos ou da omissão dos factos relevantes para a decisão da causa.
Por seu turno, lê-se no Douto Acórdão do TRG de 05/07/2012, proc. n.º 5367/09.2TBGMR-A.G1, a responsabilização e condenação da parte como litigante de má-fé só deverá ocorrer quando se demonstre nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, com dolo ou negligência grave, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a acção da justiça, ou, a deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar.
Por último, nos termos do Douto Acórdão do STJ de 08/02/2022, proc n.º 4964/20.0T8GMR.G1.S1, o conhecimento da litigância de má-fé de uma das partes pode ocorrer oficiosamente, cumprido o devido contraditório.
Perante os factos, o Tribunal só pode concluir pela má-fé dos autores, nos termos previstos no art 542º, n.º 2, al.a) e d) do Cód de Proc Civil.
Com efeito, conforme expusemos supra, a alegação dos autores de que os condóminos titulares das fracções ... e ... agiram em conflito de interesse e abuso de direito na sua eleição para o cargo de administrador de condomínio, constitui uma tentativa de criação de uma incapacidade eleitoral activa, privando os condóminos de dois direitos que a lei lhes confere (o de votar na assembleia de condóminos e de ser eleito para o cargo de administrador de condomínio – art 1430º do Cód Civil) e de aumentar exponencialmente o poder de voto dos autores muito além da permilagem que detém do prédio (in casu, ficaria com 100% do poder de voto, quando só tem 30% da permilagem) ou de criar uma espécie de “direito de veto” por via jurisprudencial, sem qualquer apoio legal.
Como tal, consideramos que os autores deduziram pretensão cuja falta de fundamento não deviam ignorar e fizeram do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, pelo que incorreram em litigância de má-fé, nos termos previstos no art 542º, n.º 2, al.a) e d) do Cód de Proc Civil.
Pelo que condenamos os mesmos numa multa de 3UC (art 542º, n.º 1 do Cód de Proc Civil).
Visto que os autores peticionaram a indemnização, mais condenamos os réus a indemnizar os autores reembolso das despesas a que a má-fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários, a liquidar em execução de sentença, por ausência de elementos neste momento para fixação em quantia certa (art 543º, n.º 1, al.a), n.º 2 e n.º 3 do Cód de Proc Civil).
Entendendo os apelantes que esta condenação dos AA. como litigantes de má-fé deve ser revogada, porquanto a perspetiva jurídica expressa na P.I. é legítima, possuindo suporte jurisprudencial nas suas pedras angulares, e não pode ser vista como pretensão manifestamente infundada, nem dela se pode retirar qualquer negligência ou dolo quanto ao elemento subjetivo subjacente.
Quid iuris?

O art. 20º da Constituição da República Portuguesa garante a todos o acesso ao direito e à tutela judicial efectiva. Em contraposição, tem de haver limites à forma como se exercem os direitos de acção e de defesa no âmbito do processo civil ou nos outros ramos de direito adjetivo. Nem tudo pode ser tolerado no processo, pois o exercício de um direito deve ser compatibilizado com os direitos dos outros.

Estabelece-se no artigo 542º do CPC que:
1 – Tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 – Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;

b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
(…)
Isto é, para que possa haver lugar à condenação de qualquer das partes como litigante de má-fé, é necessário que se deduza pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não ignoravam, se tenha conscientemente alterado a verdade dos factos ou omitido factos essenciais, ou que se tenha feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal ou de entorpecer a acção da justiça ou de impedir a descoberta da verdade.
A este propósito, referem José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto[3], que se “passou a sancionar, ao lado da litigância dolosa, a litigância temerária: quer o dolo, quer a negligência grave, caracterizam hoje a litigância de má-fé, com o intuito, como se lê no preâmbulo do diploma, de atingir uma maior responsabilização das partes.
Como se refere no Acórdão do STJ de 06-01-2000[4], “a má-fé psicológica, o propósito de fraude, exige, no mínimo, uma actuação com conhecimento ou consciência do possível prejuízo do acto; tal conhecimento ou consciência pode corresponder quer a dolo eventual quer a negligência consciente e, neste último quadro, aquela consciência pode reportar-se a uma simples previsão do prejuízo resultante do acto, nada se fazendo para o evitar, isto é, mesmo assim pratica-se o acto que se tem como potencialmente lesante”. Na obra acima citada do Dr. José Lebre de Freitas, a páginas 220, fornecem-se alguns elementos que permitem esclarecer alguns dos conceitos da previsão legal referida.
Assim, refere-se que “o autor visa, por exemplo, objectivo ilegal quando quer atingir, com a acção, uma finalidade não tutelada por lei, em vez da correspondente à função que lhe é própria; o autor ou o réu visa, também por exemplo, objectivo ilegal quando utiliza meios processuais, como a reclamação, o recurso ou simples requerimentos, para fins ilícitos, designadamente invocando fundamentos inexistentes. Visa impedir a descoberta da verdade a parte que oculta ou procura impedir que sejam produzidos meios de prova, ou produz ou provoca a produção de meios de prova falsos. Visa entorpecer a acção da justiça a parte que actua usando meios dilatórios. Por exemplo, o réu procura, de todo o modo, atrasar o processo: requer a expedição de várias cartas para a inquirição de testemunhas e a seguir desiste delas, ou suscita incidentes a que não dá seguimento. Cabe aqui também a actuação da parte no sentido de desviar a actuação do tribunal das questões essenciais para pontos sem qualquer interesse para o processo. Visa apenas protelar o trânsito em julgado da decisão a parte que recorre ou reclama sem fundamento sério, conseguindo assim atrasar o momento do trânsito em julgado e da exequibilidade da decisão.
Tendo também que se ter presente que não se deve confundir litigância de má-fé com lide meramente temerária ou ousada.
No sentido de que “mesmo que se esteja entre uma lide dolosa e uma lide temerária, mas não sendo seguros os elementos para se concluir pela existência de dolo, a condenação como litigante de má-fé não se deve operar, entendimento que pressupõe prudência e cuidado do julgador, exigindo-se para existir condenação como litigante de má-fé que se esteja perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a actuação dolosa ou gravemente negligente da parte”.[5]
Donde, a simples propositura de uma acção, que venha a ser julgada sem fundamento, não constitui, só por si, actuação dolosa ou gravemente negligente da parte, o mesmo valendo para a contestação deduzida a pedido que venha a ser julgado procedente.
Nesta linha de entendimento se pronunciou o Acórdão do STJ, de 28-5-2009[6], onde se diz o seguinte: “Este Supremo Tribunal decidiu no seu acórdão de 11-01-2001 que a condenação por litigância de má fé pressupõe a existência de dolo ou de grave negligência, não bastando uma lide temerária ousada, ou uma conduta meramente culposa» (Ac. STJ 11-01-2001, Pº nº 3155/00-7ª, Sumários, 47º) e este entendimento é de sufragar inteiramente, desde logo porque em íntima consonância com a littera legis do nº 2 do artº 456º do CPC. Efectivamente, já no recuado ano de 1975 este Supremo Tribunal havia decidido, por unanimidade, em acórdão relatado pelo Exmº e saudoso Conselheiro Almeida Borges, «a falta de razão com que uma das partes litiga não basta para justificar a má fé, apenas podendo provocar a improcedência de pedido». Para se imputar a uma pessoa a qualidade de litigante de má fé, imperioso se torna que se evidencie, com suficiente nitidez, que a mesma tem um comportamento processualmente reprovável, isto é, que com dolo ou negligência grave, deduza pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar ou que altere a verdade dos factos ou omita factos relevantes ou, ainda, que tenha praticado omissão grave do dever de cooperação, nas expressões literais do nº 2 do artº 456º do CPC.[7]

Ora, in casu, face à factualidade apurada e não apurada constante dos autos, afigura-se-nos não terem razão os apelantes, revelando-se assertiva a sua condenação como litigantes de má-fé.
Com efeito, como afirmativamente se refere na sentença recorrida, “(…) consideramos que os autores deduziram pretensão cuja falta de fundamento não deviam ignorar e fizeram do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, pelo que incorreram em litigância de má-fé, nos termos previstos no art 542º, n.º 2, al.a) e d) do Cód de Proc Civil.”.
Desde logo, porque, como já referido, deduziram pretensão cuja falta de fundamento não deviam ignorar e fizeram do processo um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objectivo ilegal.
Depois, porque, tivemos presente que não se deve confundir litigância de má-fé com lide meramente temerária ou ousada. No sentido de que “mesmo que se esteja entre uma lide dolosa e uma lide temerária, mas não sendo seguros os elementos para se concluir pela existência de dolo, a condenação como litigante de má-fé não se deve operar, entendimento que pressupõe prudência e cuidado do julgador, exigindo-se para existir condenação como litigante de má-fé que se esteja perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a actuação dolosa ou gravemente negligente da parte”.[8] Donde, a simples propositura de uma acção, que venha a ser julgada sem fundamento, não constitui, só por si, actuação dolosa ou gravemente negligente da parte, o mesmo valendo para a contestação deduzida a pedido que venha a ser julgado procedente. Todavia, no caso vertente, não estamos perante uma situação, como muitas vezes sucede, em que uma das partes simplesmente soçobra no seu ensejo probatório.
Assim, tendo em conta todos os factos que resultaram provados ao Tribunal é possível concluir pela actuação dolosa (pelo menos a título de dolo eventual) ou sempre gravemente temerária dos ora Recorrentes.
Impõe-se, pois, confirmar a decisão no sentido de que se justifica ser sancionada a título de litigância de má-fé.

Improcede, pois, o recurso.
*
6 – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação improcedente, assim se confirmando a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Notifique.
*
Guimarães, 22-02-2024

(José Cravo)
(Maria dos Anjos Nogueira)
(António Figueiredo de Almeida)



[1] Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca ..., Guimarães - JL Cível - Juiz ....
[2] Cfr. neste sentido, o Acórdão deste Tribunal proferido em 8-11-2018 no Proc. nº 212/16.5T8PTL.G1 e acessível in www.dgsi.pt.
[3] Cfr. o seu Código de Processo Civil anotado, vol. 2.º, 2.ª Edição, a págs. 219 e ss.
[4] In www.dgsi.pt/jstj.
[5] Citámos o Acórdão do T. da Rel. de Lisboa, de 02/03/2010, no Proc. nº 6145/09.4TBSC.L1-1, acessível in www.dgsi.pt/jrtl.
[6] No Proc. nº 09B0681, acessível in www.dgsi.pt/jstj.
[7] cfr., também neste sentido, os Acórdão do STJ, de 14/03/2002, no proc. nº 02B428, acessível in www.dgsi.pt/jstj, e o Acórdão do T. Rel. do Porto de 27/01/2009, no proc. nº 0827486, acessível in www.dgsi.pt/jtrp.
[8] Citámos o Acórdão do T. da Rel. de Lisboa, de 02/03/2010, no Proc. nº 6145/09.4TBSC.L1-1, acessível in www.dgsi.pt/jrtl.