Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3330/19.4T8VCT.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: PETIÇÃO DE HERANÇA
LEGITIMIDADE
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
INVESTIGAÇÃO DA PATERNIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Em ação de petição de herança é indispensável que a autora demonstre a sua qualidade de herdeira.
II- Enquanto causa de suspensão da instância, a relação de dependência entre uma acção e outra assenta no facto de, nesta, se discutir, em via principal, uma questão essencial para a decisão da outra, de tal modo que a decisão dessa acção possa ser afectada pelo julgamento proferido na outra.
III- É o que acontece quando a autora intentou ação para investigação da sua paternidade e depende da procedência da mesma para que lhe seja reconhecida a qualidade de herdeira necessária à ação de petição de herança.
IV- Quando na ação de investigação de paternidade a perícia científica de determinação do perfil genético, conclui que o pretenso pai é excluído da paternidade, não pode, de imediato, concluir-se pela ilegitimidade da autora, pois, apesar do valor decisivo de tal prova, está a mesma sujeita à livre apreciação do julgador e deve conjugar-se com a demais prova, designadamente, a possibilidade de ser requerida segunda perícia.
V- A decisão relativa à legitimidade da autora só pode ocorrer após o trânsito em julgado da ação de investigação de paternidade.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

D. G. deduziu ação declarativa contra M. A. pedindo que a ação seja julgada, provada e procedente e, em consequência:

a. Declarar que a A. é a única e universal herdeira da herança aberta por óbito de M. D., por ser sua neta;
b. Condenar o R. a reconhecer que a A. é a única e universal herdeira de M. D.;
c. Condenar o R. a reconhecer que os bens identificados em 21º da inicial fazem parte do acervo patrimonial da herança aberta por óbito de M. D., bem como, as árvores que foram cortadas e removidas dos respectivos prédios;
d. Condenar o R. a restituir à A. todos os bens que compõem a herança da falecida M. D., nomeadamente, as árvores que foram cortadas e removidas dos prédios identificados em 21º, ou, em alternativa, por não ser possível a restauração natural,
e. Condenar o R. a pagar à A. o valor das referidas árvores que é de 65.000 € (sessenta e cinco mil euros), acrescido do montante de 1.000 €, correspondente ao valor dos pinheiros jovens destruídos e, ainda 1.000 € para limpeza dos prédios onde foram cortadas as árvores;
f. Condenar o R. a pagar à A., para ressarcimento dos danos não patrimoniais sofridos, em consequência da conduta dele, a indemnização de 2 000 € (dois mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação; e
g. Condenar o R. a pagar os juros de mora vencidos e vincendos, desde a data do corte das árvores, a incidir sobre o montante de 65.000 €, correspondente ao valor dos pinheiros cortados.

A autora alegou, para tanto, que, no dia 7 de Agosto de 2017, faleceu, na freguesia de …, concelho de Monção, no estado de viúva de J. L., M. D., tendo deixado como sua única e legítima herdeira a autora, sua neta, filha do seu filho pré-falecido M. G.. A M. D. não deixou testamento ou disposição escrita de última vontade.
Alega, ainda, que é filha, não reconhecida, de M. G., falecido no dia -.01.2014, no estado de solteiro, sem deixar testamento ou disposição de última vontade. Do assento de nascimento da autora consta que a mesma é filha de A. G., porém, o A. G. não é o pai biológico da autora. O pai da autora é, segundo a mesma, M. G..
Acrescenta a autora que intentou, em 29 de Abril de 2019, no Juízo de Competência Genérica de Monção, Comarca de Viana do Castelo, acção declarativa, a correr termos sob o nº 172/19.0T8MNC, com o fito de ser declarado que não é filha de A. G. e que é filha de M. G., sustentando nesta ação o seu direito a reclamar os direitos provenientes da herança e a sua legitimidade para intentar a presente ação como pretensa filha.
O réu contestou, suscitando a ilegitimidade ativa da autora.
Alegou que a Autora, vem, em primeira linha, apresentar uma petição de herança aberta por óbito de M. D. e que, para apresentar uma ação de petição de herança, tem legitimidade ativa o(s) herdeiro(s) do de cujus, que são os mencionados no artigo 2133º do Código Civil. Contudo, a autora é legalmente filha de A. G. e, como tal, neta (pelo lado paterno) de F. G. e M. M. e não da M. D., pelo que não tem legitimidade ativa para intentar a presente ação.
Foi determinada a notificação da autora para que informasse sobre o estado da acção de paternidade.
A autora informou que a acção aguardava o resultado do exame pericial.
O réu veio informar os presentes autos que se encontrava na acção supra-identificada, desde 17/02/2020, o resultado do exame pericial e do qual resulta a total impossibilidade da paternidade do pretenso pai M. G.. Assim, defende o Réu que a Autora nunca poderia ser herdeira da herança em discussão nestes autos.
O Tribunal determinou que se oficiasse ao Proc. nº 172/19.0T8MNC solicitando a remessa de certidão do relatório pericial que foi junto ao mesmo em Fevereiro de 2020. Solicitou-se ainda que informassem se foram prestados esclarecimentos e, em caso afirmativo, solicitou-se certidão dos mesmos.
Foi junta certidão do relatório pericial, dos esclarecimentos dos peritos e de despacho a mandar assegurar o contraditório relativamente aos esclarecimentos (último despacho proferido na ação antes da emissão da certidão).

Foi proferida sentença que julgou procedente a exceção de ilegitimidade invocada e absolveu o réu da instância.

A autora interpôs recurso, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

1. A sentença recorrida fundamentou-se no resultado de um exame pericial, apesar de ter sido este impugnado e requerida uma segunda perícia, realizado no âmbito de uma acção de investigação de paternidade, a correr termos no Juízo de Competência Genérica de Monção, sob o Proc. n.º 172/19.0T8MNC, intentado pela aqui autora, onde pretende que seja declarada filha de M. G. e neta de M. D., à qual subjaz a acção destes autos, para a declarar como parte ilegítima;
2. O Tribunal “a quo” não aguardou o resultado da 2ª perícia, a sentença a proferir e o trânsito em julgado da mesma, na acção de investigação da paternidade, antes considerou que o resultado daquele exame pericial tem o valor de sentença, considerando que, por isso, a recorrente não tem legitimidade para intentar esta acção;
3. A acção de investigação de paternidade não foi ainda julgada.
NESTES TERMOS, e nos mais de Direito que V/Exas doutamente suprirão deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por Acórdão que mande suspender esta acção até ao trânsito em julgado da decisão a proferir na acção de investigação da paternidade.
NO ENTANTO, V/Exa. ao decidirem e como decidirem farão JUSTIÇA.

Não foram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver traduzem-se em saber se podia ter-se julgado a ilegitimidade da autora, apenas com o resultado do relatório pericial da ação de investigação de paternidade, ou se devia ter-se aguardado pelo trânsito em julgado daquela ação, bem como se deve ordenar-se a suspensão da instância até que aquela se encontre julgada.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Na sentença recorrida considerou-se o seguinte:
“Analisada a certidão verifica-se que resulta do relatório pericial junto aos autos que M. G. é excluído da paternidade da aqui Autora. O elevado número de incompatibilidades genéticas observadas (16 em 23 polimorfismos de ADN estudados) permite concluir pela exclusão do pretenso pai M. G. da paternidade da aqui Autora.
Tendo em conta que os exames genéticos constituem hoje prova plena do ponto de vista científico da paternidade e atento o resultado do exame realizado, entende-se que se pode conhecer desde já da excepção dilatória invocada pelo Réu.
A ilegitimidade das partes, constituindo uma excepção dilatória, ou seja, uma deficiência do processo que obsta a que o tribunal conheça do mérito, determinando a absolvição da instância (art. 278º nº 1 al. d), 576º nº 2 e 577º al. e) do CPC), deve ser conhecida o mais cedo possível, a fim de evitar actos inúteis, processualmente proibidos (art. 130º do CPC) e sempre necessariamente antes do conhecimento do fundo da causa.
Assim sendo, julga-se procedente a excepção de ilegitimidade invocada e decide-se absolver o Réu da instância”.

Nos termos do disposto no artigo 2075.º, n.º 1 do Código Civil, “O herdeiro pode pedir judicialmente o reconhecimento da sua qualidade sucessória e a consequente restituição de todos os bens da herança ou de parte deles, contra quem os possua como herdeiro, ou por outro título, ou mesmo sem título”
Essencial à petição de herança “é o duplo fim que ela visa: por um lado, o reconhecimento judicial do título ou estatuto de herdeiro que o autor se arroga; por outro, a integração dos bens que o demandado possui no ativo da herança ou da fração hereditária pertencente ao herdeiro” – Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, pág. 131.
Ou seja, é necessário e indispensável, nesta ação, que a autora demonstre a sua qualidade de herdeira da falecida M. D..
A autora alega que é sua neta – filha de um filho pré-falecido - o que a incluiria na categoria de herdeira legítima daquela – artigos 2131.º, 2132.º, 2133.º e 2140.º do Código Civil.
Contudo, do assento de nascimento da autora consta que a mesma é filha de A. G., sendo seus avós paternos F. G. e M. M..
De acordo com a alegação da autora, tal não corresponderá à verdade, motivo pelo qual intentou em 29 de Abril de 2019, no Juízo de Competência Genérica de Monção, Comarca de Viana do Castelo, acção declarativa, a correr termos sob o nº 172/19.0T8MNC, com o fito de ser declarado que não é filha de A. G. e que é filha de M. G..
Nesta ação de investigação da paternidade, foi já efetuada perícia – determinação do perfil genético de ADN - com recolha de elementos biológicos da autora e de sua mãe (sangue e saliva) e de osso, unhas e cabelo do cadáver do pretenso pai, tendo-se concluído, no relatório pericial, que M. G. é excluído da paternidade da autora.
Foi com base nesta conclusão que, na sentença ora recorrida, se decidiu pela ilegitimidade ativa da autora, por não estar provada a sua qualidade de herdeira. Aí se considerou que “Tendo em conta que os exames genéticos constituem hoje prova plena do ponto de vista científico da paternidade e atento o resultado do exame realizado, entende-se que se pode conhecer desde já da excepção dilatória invocada pelo Réu”.
Como é sabido, o artigo 1801º do CC, estabelece que “nas ações relativas à filiação são admitidas como meios de prova os exames de sangue e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados” e que a doutrina e a jurisprudência passaram a chamar a atenção para o papel nuclear, isto é, fundamental ou essencial, desempenhado por estes meios de prova científicos nas ações de investigação da filiação – o que vem acontecendo já desde há algum tempo, como é exemplo o Acórdão do STJ de 16/04/1998, BMJ. N.º 476, pág. 433, onde se afirma que “os tribunais devem procurar libertar-se, dentro das possibilidades legais, do «império» da prova testemunhal, devendo atribuir-se cada vez mais relevo às provas periciais, designadamente nas ações relativas à filiação, sobretudo quando, a competência e objetividade dos peritos, se associam meios técnicos progressivamente mais avançados, a conferir-lhes elevado grau de idoneidade e veracidade”.
Este tem sido o sentido uniforme da doutrina e da jurisprudência nacionais, que não hesitam em atribuir um valor último e decisivo aos exames periciais nas ações de estabelecimento da filiação, não se coibindo em sobrelevar o valor dessa prova direta da filiação biológica alcançada através destes meios de prova em detrimento da prova indireta alcançada, designadamente, através da prova testemunhal – veja-se o Acórdão do STJ de 16/10/2012, Proc. 194/08.7TBAGN, em que se pondera: “Hoje os exames hematológicos aos pretensos pais e filho dão um grau de certeza sobre a filiação, quando esta se verifique, próximo dos 100%, excluindo-se quase completamente quando não ocorra. Assim, nas ações de investigação da paternidade esses exames constituem elementos importantes e até essenciais para a descoberta da verdade, secundarizando as outras provas, designadamente a testemunhal, patentemente muito mais falível e aleatória”.
Ainda Acórdão da Relação de Lisboa de 22/09/2015, Proc. 8928/11.6TBOER.L2-S1, em que se sustenta: “É notório o valor probatório em ações de investigação de paternidade dos exames de sangue ou outros menos invasivos, designadamente, através da recolha do ADN colhidos na saliva, cabelo ou unhas, cujos resultados, saliente-se, tanto podem ser favoráveis ao autor como ao réu, pretenso progenitor” (…) “tendo em conta que os testes de ADN são como uma prova plena do ponto de vista científico, ou seja, do ponto de vista da realidade factual”. Neste sentido, a título meramente exemplificativo, ainda Acórdão da Relação de Coimbra de 06/02/2018, Proc. 5525/16.3T8CBR.C1 (todos estes acórdãos colhidos no Acórdão da Relação de Guimarães de 21/11/2019, processo n.º 3278/16.4T8GMR.G1 (José Alberto Moreira Dias), in www.dgsi.pt.
Assim, apesar destes métodos científicos de estabelecimento da filiação, como prova pericial que são, estarem sujeitos à livre apreciação do tribunal – artigos 389.º do CC e 489.º do CPC – a sua força probatória “não pode ser encarada como um qualquer elemento de prova em paridade com quaisquer outros, igualmente de livre apreciação e valoração” – Acórdão da Relação de Guimarães supra citado.
Contudo, estão estudadas – ver o citado Acórdão desta Relação onde são dissecados casos, a partir de literatura da especialidade – mutações genéticas ocorridas na transmissão de genes entre pai e filho no momento da conceção, que poderão justificar que o exame hematológico, em casos raros, dê exclusão de paternidade em relação à pessoa que é efetivamente pai biológico. No caso de dúvida fundada, poderá requerer-se segunda perícia (o que a autora terá feito), com análise de mais marcadores genéticos ou qualquer outra questão que se entenda suscitar.
Isto para dizer que, só com a sentença transitada em julgado, se poderá aferir da paternidade da autora e sua consequente legitimidade para a presente ação, não podendo tal decisão ser tomada logo após a junção do primeiro relatório pericial.
O que o tribunal pode e deve fazer é suspender os termos da causa até que se encontre decidida, com trânsito em julgado a ação declarativa que corre termos no Juízo de Competência Genérica de Monção, Comarca de Viana do Castelo, sob o nº 172/19.0T8MNC.
Dispõe o artigo 272.º n.º 1 do Código de Processo Civil que o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.
Segundo Alberto dos Reis Comentário ao Código de Processo Civil, 3º, 267 e segs; CPC Anotado, 1º, 348., verifica-se a relação ou nexo de dependência ou prejudicialidade, justificativa da suspensão da instância, quando a decisão ou julgamento duma acção – a dependente – é atacada ou afectada pela decisão ou julgamento emitido noutra – a prejudicial.
Assim, a relação de dependência entre uma acção e outra já proposta, como causa de suspensão da instância, assenta no facto de, na segunda acção, se discutir em via principal uma questão que é essencial para a decisão da primeira Ac. do STJ de 30.06.1998, BMJ, 378º, 703.
É o que sucede no caso dos autos em que a autora invoca uma qualidade (indispensável para o sucesso da ação, como já vimos) – a de herdeira da falecida autora da herança – que está em discussão na outra ação, na medida em que se investiga se a autora é filha do filho daquela autora da herança, ou seja, neta dela.
Ou seja, enquanto causa de suspensão da instância, a relação de dependência entre uma acção e outra assenta no facto de, nesta, se discutir, em via principal, uma questão essencial para a decisão da outra, “de tal modo que a decisão dessa acção possa ser afectada pelo julgamento proferido na outra” – Ac R. Porto de 17/12/1992, CJ 1992, tomo V, pág. 242.
“A decisão da questão a apreciar na primeira afectará o julgamento da questão na segunda, pelo que haverá que concluir pela prejudicialidade – ver neste sentido Ac. Relação de Coimbra de 15/02/2005, in www.dgsi.pt.
Também o STJ tem considerado que se está perante uma causa prejudicial quando aí se esteja a apreciar uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem de ser considerada para a decisão de outro pleito – por todos, ver Acórdãos de 26/05/1994, CJ/STJ, 1994, tomo II, pág. 116, de 25/01/2000, Sumários, 37.º-27 e de 18/11/2008, in www.dgsi.pt.
Assim, procederá a apelação, com a consequente revogação da sentença recorrida e determinando-se a suspensão da instância até que se encontre decidida, com trânsito em julgado a ação declarativa que corre termos no Juízo de Competência Genérica de Monção, Comarca de Viana do Castelo, sob o nº 172/19.0T8MNC.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida que se substitui por outra que determine a suspensão da instância até que se encontre decidida, com trânsito em julgado a ação declarativa que corre termos no Juízo de Competência Genérica de Monção, Comarca de Viana do Castelo, sob o nº 172/19.0T8MNC.
Custas pela parte vencida a final.
***
Guimarães, 11 de fevereiro de 2021

Ana Cristina Duarte
Alexandra Rolim Mendes
Maria Purificação Carvalho