Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3/14.8TJVNF.G1
Relator: CRISTINA CERDEIRA
Descritores: VERDADE MATERIAL
ANULAÇÃO DA DECISÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I) - O dever do juiz ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade material e à justa composição do litígio, quanto a factos que lhe é lícito conhecer, constitui um poder vinculado, de forma a permitir que o processo possa prosseguir com regularidade e possibilitar uma decisão de mérito sobre a pretensão das partes.
II) - Resultando da motivação de facto que integra a sentença recorrida, que o juiz “a quo” ficou com dúvidas sobre a real existência do facto em discussão, em face da prova produzida nos autos, considerando exíguos os elementos probatórios constantes do processo, deveria, no uso dos poderes que lhe são conferidos pelo artº. 607º, nº. 1 do NCPC (conjugado com os artºs 6º e 411º do mesmo Código), lançar mão de todos os instrumentos legais ao seu alcance para sanar tais dúvidas, por determinar a reabertura da audiência e ordenar oficiosamente todas as diligências necessárias (designadamente a realização de uma perícia à assinatura aposta no documento em discussão) para, no confronto com a demais prova produzida, consolidar a convicção do Tribunal sobre a decisão a proferir quanto à matéria de facto.
III) - O Tribunal não pode ficar com dúvidas quando é possível saná-las com a realização de outras diligências de prova, devendo, até mesmo, ordená-las oficiosamente, caso não tenham sido requeridas pelas partes, estando tal procedimento inserido nos amplos poderes conferidos ao juiz (cfr. artºs 6º e 411º do NCPC).
IV) - Não tendo o juiz “a quo” tomado tal iniciativa e não constando do processo todos os elementos de prova que permitam a reapreciação da matéria de facto, nos termos do disposto no artº. 662º, nº. 2, al. c) do NCPC, deve a Relação, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida pela 1ª instância, devendo o Tribunal “a quo” ordenar oficiosamente a realização das diligências necessárias com vista a alcançar a verdade material, no âmbito do poder-dever de direcção do processo.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

G, S.A. intentou a presente acção de condenação, sob a forma de processo comum, contra Francisco A, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de € 51 250,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, calculados desde 26/05/2013 até integral pagamento, mostrando-se já vencidos à data da propositura da acção juros no montante de € 1 241,23.
Alega, em síntese, que o R. lhe deve a quantia de € 51 250,00 conforme contrato de “reconhecimento de dívida e plano de pagamentos” rubricado e assinado por ele, junto com a petição inicial e constante de fls. 7 e 8.
Conforme o plano de pagamentos acordado, o R. deveria ter efectuado o pagamento de € 25 000,00 na semana em que foi firmado o acordo (semana de 20 a 26/05/2013) e o pagamento de € 26 250,00 até 20/06/2013, sendo que aquele não efectuou qualquer pagamento.
Refere, ainda, que do aludido contrato consta o direito da A. recolher a viatura Toyota Avensis, de matrícula 31-IV-93; no entanto, esta encontra-se registada em nome da sociedade E, Lda. da qual o R. é gerente, pelo que não pode ser apreendida, nem o respectivo valor pode ser considerado para efeitos de quitação da dívida.

O R. contestou, negando a existência da mencionada dívida para com a A. e arguindo a falsidade do documento junto com a petição inicial, bem assim como da assinatura nele aposta, alegando que nunca rubricou, assinou nem tão pouco entregou nenhum documento de “reconhecimento de dívida e plano de pagamentos”, afirmando de forma peremptória que as letras e assinaturas apostas no referido documento não lhe pertencem, nem autorizou quem quer que fosse para em seu nome o fazer.
Refere, também, já ter apresentado queixa crime contra a Autora, o seu representante legal e administrador Sérgio A e ainda contra incertos, sendo que a fotocópia do seu cartão de cidadão que juntou aos autos evidencia que a assinatura constante do aludido documento não é sua.
Conclui, pugnando pela improcedência da acção e sua absolvição do pedido.

Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, no qual se procedeu ao saneamento da acção, verificando-se a validade e regularidade da instância, se definiu o objecto do litígio, fixaram-se os factos assentes e se enunciaram os temas de prova controvertidos, que não sofreram reclamações.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo.
Após, foi proferida sentença que julgou a presente acção improcedente e absolveu o Réu do pedido.

Inconformada com tal decisão, a Autora dela interpôs recurso, extraindo das respectivas alegações as seguintes conclusões [transcrição]:
1. Foi incorrectamente julgada pela primeira instância como não provada a seguinte matéria: “A assinatura constante do referido documento junto com a pi é do punho do réu?”;
2. Tal matéria deverá considerar-se provada, uma vez que os depoimentos das testemunhas Rui J e de Salvador B, ambos gravados, não contrariados por qualquer meio de prova, depoimentos esses coerentes e credíveis, impõem uma resposta diversa da impugnada.
3. Essas testemunhas afirmaram e reafirmaram ter assistido à assinatura do documento pelo réu: Rui J, aos minutos 00:08:39, 00:08:56, 00:09:01, 00:09:07 e 00:01:56 do seu depoimento (esta última do ficheiro áudio 20150209171515) e Salvador B aos minutos 00:02:43, 00:05:06, 00:08:18, 00:09:14, 00:09:16 e 00:09:42.
4. A MM. Juíza a quo deveria de resto ter fundamentado cabalmente as dúvidas que a prova lhe suscitou, nomeadamente explicando porque considerou não provado o facto quando as testemunhas repetidamente o confirmaram.
5. Em obediência ao dever de averiguação oficiosa dos factos, imposto pelos artigos 6.º e 411.º do novo Código de Processo Civil, e às dúvidas que aparentemente lhe suscitaram os depoimentos referidos, deveria a MM. Juiz a quo ter determinado a produção de prova pericial sobre a assinatura do réu em causa (art.º 467.º, nº 1, do Código de Processo Civil).
6. Como tal, e ao abrigo do disposto no art.º 662º, 2, b), do Código de Processo Civil, e caso este tribunal entenda também insuficiente a prova produzida.
7. Violou a decisão recorrida, para além do mais, o disposto nos artigos 6.º, 411.º e 467.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Termos em que deverá ser considerada provada a matéria de facto a que se impugnou a resposta no presente recurso e, nomeadamente, que “A assinatura constante do referido documento junto com a pi é do punho do réu”, sendo este em consequência condenado no pedido, com fundamento nos depoimentos de Rui J e de Salvador B, os quais impõem uma resposta diferente à dada na sentença. Caso assim se não entenda, deverá ser ordenada perícia à assinatura do réu, constante do documento, em obediência ao dever de averiguação oficiosa dos factos, consagrado nos art.ºs 6.º e 411.º do novo Código de Processo Civil.

O Réu contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida.

O recurso foi admitido por despacho de fls. 122.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, tendo por base as disposições conjugadas dos artºs 608º, nº. 2, 635º, nº. 4 e 639º, nº. 1 todos do Novo Código de Processo Civil [doravante NCPC], aprovado pela Lei nº. 41/2013 de 26/6.

Nos presentes autos, o objecto do recurso interposto pela Autora, delimitado pelo teor das suas conclusões, circunscreve-se à impugnação da decisão sobre a matéria de facto e, consequentemente, da solução jurídica adoptada na sentença recorrida.

Na sentença recorrida, foram considerados provados os seguintes factos [transcrição]:
A autora é portadora de documento intitulado reconhecimento de divida e plano de pagamentos com o seguinte teor:
“Primeiro outorgante: G, SA, Rua I, nº 29-A, 1250-124 Lisboa, NIF 510 285 406, aqui representada pelo seu administrador Sérgio A.
Segundo outorgante: Francisco A, com NIF 195686217, residente em Praça B, Edifício P, nº 44 - 7º-A, 4760-100 Vila Nova de Famalicão.
1. O Segundo outorgante confessa-se devedor ao primeiro da quantia de 51.250€ (cinquenta e um mil duzentos e cinquenta euros).
2. O segundo outorgante pagará tal quantia de acordo com o seguinte plano de pagamentos:
a. 25.000€ (vinte e cinco mil euros) durante a semana em curso por transferência para a conta com NIB 0036.0279.99100021716.51 de que a primeira é titular.
b. 26.250€ (vinte e seis mil duzentos e cinquenta euros) até ao dia 20 de junho de 2013 por transferência para a conta com o NIB0036.0279.99100021716.51 de que a primeira é titular.
3. A falta de pagamento de uma das prestações acordadas implicará o vencimento imediato das restantes.
4. O não pagamento de uma das prestações agora acordadas dá o direito à primeira outorgante de recolher a viatura e respectivos documentos de venda, marca Toyota, modelo Avensis SW Pack Sport, com a matricula 31-IV-93.
5. Contra a entrega da viatura será abatido o valor de € 20.000 (vinte mil euros) ao montante de que agora a segunda outorgante se confessa devedora.
6. Acordam as partes em que as notificações respeitantes ao presente acordo, judiciais ou extrajudiciais, serão feitas por carta registada para as moradas supra indicadas, as quais serão por isso para todos os efeitos consideradas domicilio convencionado, bastando a prova do envio da correspondência para tal morada para a notificação se considerar efectuada.
Vila Nova de Famalicão, 21 de maio de 2013.
Por outro lado, na sentença recorrida foram considerados não provados os seguintes factos [transcrição]:
A assinatura é do punho do réu.
*
Apreciando e decidindo.
Vem a Autora, ora recorrente, impugnar a decisão sobre a matéria de facto, pretendendo que seja incluído nos factos provados o seguinte facto dado como não provado na sentença recorrida e que era o único tema de prova na presente acção:
• A assinatura constante do referido documento junto com a petição inicial é do punho do Réu;
por entender que tal matéria de facto foi incorrectamente julgada pelo Tribunal “a quo”, face à prova testemunhal produzida nos autos, adiantando-se, desde já, que o aludido documento junto com a petição inicial é o descrito nos factos provados.
Na base de tal discordância está, essencialmente, a apreciação efectuada pelo Tribunal “a quo” (no seu entender, incorrecta) dos depoimentos das testemunhas Rui J e Salvador B, entendendo a recorrente que a Mª Juíza “a quo”, ao não considerar provada a matéria em causa, deveria ter fundamentado cabalmente as dúvidas que a prova produzida lhe suscitou, nomeadamente explicando porque considerou não provado o facto quando as testemunhas repetidamente o confirmaram.
Defende, ainda, a recorrente que dadas as dúvidas que os depoimentos das referidas testemunhas aparentemente suscitaram à Mª Juíza “a quo”, designadamente sobre o facto de o R. ter, ou não, assinado a declaração de dívida, poderia e deveria aquela, ao abrigo do disposto nos artºs 6º, 411º e 467º, nº. 1 do NCPC, ter determinado a realização de perícia à assinatura constante do documento, podendo o Tribunal da Relação, caso subsista alguma dúvida fundada sobre a prova produzida, ordenar a produção de novos meios de prova, como seja o exame pericial à assinatura do Réu, nos termos do disposto no artº. 662º, nº. 2, al. b) do mesmo Código.
Ora, no que diz respeito a esta matéria, na “motivação de facto” que integra a sentença recorrida, escreveu-se o seguinte [transcrição]:
«Para apreciação dos factos controvertidos o tribunal valora a prova produzida e documental junta aos autos analisada no seu todo e com recursos às regras de experiência comum.
A prova testemunhal produzida não foi de molde a formar a firme convicção de ter sido o réu a assinar o documento em causa.
Com efeito apenas uma testemunha Rui B, director financeiro da autora, disse que viu o réu assinar o documento, com quem se encontrou, em data que não sabe precisar mas depois de maio e antes de julho de 2013, com essa mesma finalidade.
Esta versão foi parcialmente corroborada pela testemunha Salvador B, também funcionário da autora, que apenas confirmou o encontro entre réu e Rui B no mesmo período e que o mesmo assinou uns papéis na mala do carro, embora não tivesse assistido por ter ficado no interior do carro.
Recai sobre a parte que apresenta o documento o ónus de provar que a assinatura é verdadeira, como resulta claramente do preceituado no artigo 374.º do CC.
Temos também por bom o entendimento que para a prova da genuinidade do título, nomeadamente da genuinidade da assinatura, não existe prova tarifada em processo civil - nesta esteira acórdão do trp de 9/6/2009, in www.dgsi/trp.
No entanto o depoimento da testemunha apresentada pela autora no sentido de ter assistido à aposição da assinatura só por si não foi suficiente para afastar a dúvida sobre a real existência do facto, dúvida que também não ficou afastada pela simples comparação do documento com o cartão do cidadão do réu, pelo que e à mingua de outros elementos probatórios não pode este tribunal dar por assente ter sido o réu quem assinou o documento em causa.»

O artº. 640º do NCPC estabelece os ónus que impendem sobre o recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto, nos termos do qual deve aquele indicar e concretizar cada um dos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, devendo tal especificação ser enunciada na motivação do recurso e sintetizada nas suas conclusões, por serem estas que delimitam o objecto do recurso (artº. 635º, nº. 4 do NCPC).
Por outro lado, não basta que o recorrente se limite a fazer uma referência genérica aos meios probatórios constantes do processo (incluindo os depoimentos registados ou gravados nos autos) que imponham decisão diversa da recorrida quanto a cada um dos factos colocados em crise.
É necessário que especifique, em relação a cada um dos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, quais os meios de prova que, em sua opinião, levariam a uma decisão diferente e quando esses meios de prova tenham sido gravados, o recorrente terá de indicar com exactidão quais os depoimentos em que fundamenta a sua impugnação e as passagens da gravação de cada um desses depoimentos em que se baseia, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Para além disso, o recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de carácter genérico ou inconsequente, também sob pena de rejeição total ou parcial da impugnação da decisão da matéria de facto (cfr. António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3ª ed., 2016, Almedina, pág. 140 e 142).
Ora, no caso concreto, os depoimentos prestados em audiência de julgamento foram gravados, conforme se constata das respectivas actas (cfr. fls. 65 a 68, 73 e 74).
Decorre do que atrás se deixou dito que, no caso em apreço, a recorrente satisfez as imposições legais sobre a impugnação da matéria de facto, indicando com precisão qual o ponto da matéria de facto que considera incorrectamente julgado e que pretende ver alterado, a resposta que, em seu entender, devia ter sido dada sobre a questão de facto impugnada e quais os meios de prova que a seu ver exigiriam resposta diferente da que foi dada, indicando as passagens da gravação, com a transcrição de alguns excertos dos depoimentos das testemunhas Rui J e Salvador B acima referidas e nos quais fundamenta a sua pretensão, fazendo ainda referência ao poder/dever de averiguação oficiosa que impende sobre o Tribunal, no sentido de determinar a realização de perícia à assinatura constante do documento em causa nos autos, perante a existência de dúvidas sobre a credibilidade das testemunhas e sobre o facto de o Réu ter, ou não, assinado a declaração de reconhecimento de dívida constante dos autos.
Tendo o julgador da 1ª instância considerado, na motivação de facto, que os depoimentos das testemunhas indicadas pela A., só por si, não foram suficientes para afastar a dúvida sobre o facto de ter sido o Réu, ou não, a assinar o documento acima referido, dúvida essa que, em seu entender, não ficou afastada pela simples comparação do documento com o cartão de cidadão do Réu, o que determinou que considerasse não provada a matéria em causa, entendemos que assiste razão à recorrente quando refere que a Mª Juíza “a quo” deveria ter fundamentado cabalmente as dúvidas que a prova produzida lhe suscitou, nomeadamente explicando porque considerou não provado aquele facto quando o mesmo foi repetidamente confirmado por ambas as testemunhas acima referidas - o que aliás confirmámos aquando da audição da gravação dos respectivos depoimentos prestados em audiência de julgamento – o que, efectivamente não aconteceu, sendo a fundamentação de facto constante da sentença recorrida exígua quanto à apreciação e análise crítica da prova produzida nos autos, tendo ficado por esclarecer a razão porque o Tribunal “a quo” ficou com dúvidas e formou aquela convicção e não outra.
A questão que se coloca é a de saber se a assinatura constante da mencionada declaração de reconhecimento de dívida foi feita ou não pelo Réu.
Em bom rigor, a prova testemunhal e documental produzida nos autos não permite concluir, com rigor e segurança, que tal assinatura foi feita pelo punho do Réu.
Ora, a prova de ter sido o R. o autor daquela assinatura, uma vez que o documento em causa foi por ele impugnado, assume grande relevância para o conhecimento do pedido formulado pela Autora na petição inicial.
Ademais, como resulta da motivação de facto que integra a sentença recorrida, se a Mª Juíza “a quo” ficou com dúvidas sobre a real existência do facto em discussão (se foi ou não o R. que apôs a assinatura que consta do documento junto com a petição inicial) em face da prova produzida nos autos, considerando exíguos os elementos probatórios constantes dos autos, deveria, no uso dos poderes que lhe são conferidos pelo artº. 607º, nº. 1 do NCPC (conjugado com os artºs 6º e 411º do mesmo Código), lançar mão de todos os instrumentos legais ao seu alcance para sanar tais dúvidas.
O Tribunal não pode ficar com dúvidas quando é possível saná-las com a realização de outras diligências de prova, devendo, até mesmo, ordená-las oficiosamente, caso não tenham sido requeridas pelas partes, estando tal procedimento inserido nos amplos poderes conferidos ao juiz (cfr. artºs 6º e 411º do NCPC).
Nesta conformidade, tendo a Mª Juíza “a quo” considerado que os elementos de prova constantes dos autos eram escassos e se entendia que não estava suficientemente esclarecida sobre a questão em discussão, ao abrigo do disposto no citado artº. 607º, nº. 1 do NCPC, poderia/deveria aquela, mesmo depois de encerrada a audiência final, determinar a sua reabertura e ordenar oficiosamente todas as diligências necessárias (designadamente a realização de uma perícia à assinatura aposta no dito documento) para, no confronto com a demais prova produzida, consolidar a convicção do Tribunal sobre a decisão a proferir quanto à matéria de facto, o que efectivamente não sucedeu.
Em face dos interesses públicos inerentes à administração da justiça e ao funcionamento das instituições judiciárias, muitas correcções vêm sendo introduzidas ao funcionamento do princípio do dispositivo, com vista à prevalência da justiça substantiva sobre a justiça adjectiva.
Assim, sem prejuízo do ónus de prova que se impõe às partes, quer no pretérito Código do Processo Civil, quer no actual, aplicável ao presente processo, o legislador determina que é dever do juiz dirigir o processo, incumbindo-lhe, neste âmbito, ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto a factos que lhe é lícito conhecer (cfr. artº. 265º do anterior CPC e artºs 6º e 411º do novo CPC).
Foi esta inequivocamente a intenção do legislador que, no preâmbulo do DL 329-A/95 de 12/12, afirma a prioridade da realização da verdade material, através do reforço dos poderes do juiz, dirigida à plena realização daquele fim.
Também no que respeita ao Novo Código de Processo Civil, é evidente que se reforçou ainda mais o princípio do inquisitório. Como se refere na Exposição de Motivos o novo Código “passa necessariamente por uma nova cultura judiciária, envolvendo todos os participantes no processo… centrado na análise e resolução das questões essenciais ligadas ao mérito da causa… Importa-se para o processo comum o princípio da gestão processual… conferindo ao juiz um poder autónomo da direcção ativa de todo o processo. Ainda em consonância com o princípio da prevalência do mérito da causa sob meras questões de forma, em conjugação com o assinalado reforço dos poderes de direcção… e gestão processual toda a actividade processual deve ser orientada para propiciar a obtenção de cisões que privilegiem a decisão de mérito … e evitar deficiências ou irregularidades adjectivas.”
Concorde-se ou não com a opção do legislador, o certo é que o princípio da gestão processual, com vista a alcançar uma decisão de mérito, prevalece, no caso, sobre o princípio da auto-responsabilidade das partes.
Assim sendo, admitindo a Mª Juiza “a quo”, na motivação de facto, ter ficado com dúvidas sobre a factualidade em causa, por não dispor nos autos de mais elementos probatórios, o que levou a que desse como não provado o único facto controvertido, impunha-se-lhe que averiguasse oficiosamente tal factualidade, fazendo uso do mecanismo previsto no artº. 607º, nº. 1 do NCPC, com vista a afastar todas as dúvidas e, com rigor e segurança, concluir se foi ou não o Réu que, pelo seu próprio punho, apôs a assinatura que consta do dito documento.
Não tendo o juiz de 1ª instância tomado tal iniciativa e não constando do processo todos os elementos de prova que permitam a reapreciação da matéria de facto (nomeadamente a supra mencionada perícia), cuja realização consideramos imprescindível para a decisão sobre a matéria de facto, nos termos do disposto no artº. 662º, nº. 2, al. c) do NCPC, deve a Relação, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida pela 1ª instância, devendo o Tribunal “a quo” ordenar oficiosamente a realização das diligências necessárias, designadamente a perícia à assinatura constante do documento junto com a petição inicial, a fim de averiguar se a mesma foi feita pelo punho do Réu, ou outras que entenda serem pertinentes, tendo em vista alcançar a verdade material, no âmbito do poder-dever de direcção do processo.
Fica assim prejudicada, por ora, a apreciação das demais questões suscitadas.
*
SUMÁRIO:
I) - O dever do juiz ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade material e à justa composição do litígio, quanto a factos que lhe é lícito conhecer, constitui um poder vinculado, de forma a permitir que o processo possa prosseguir com regularidade e possibilitar uma decisão de mérito sobre a pretensão das partes.
II) - Resultando da motivação de facto que integra a sentença recorrida, que o juiz “a quo” ficou com dúvidas sobre a real existência do facto em discussão, em face da prova produzida nos autos, considerando exíguos os elementos probatórios constantes do processo, deveria, no uso dos poderes que lhe são conferidos pelo artº. 607º, nº. 1 do NCPC (conjugado com os artºs 6º e 411º do mesmo Código), lançar mão de todos os instrumentos legais ao seu alcance para sanar tais dúvidas, por determinar a reabertura da audiência e ordenar oficiosamente todas as diligências necessárias (designadamente a realização de uma perícia à assinatura aposta no documento em discussão) para, no confronto com a demais prova produzida, consolidar a convicção do Tribunal sobre a decisão a proferir quanto à matéria de facto.
III) - O Tribunal não pode ficar com dúvidas quando é possível saná-las com a realização de outras diligências de prova, devendo, até mesmo, ordená-las oficiosamente, caso não tenham sido requeridas pelas partes, estando tal procedimento inserido nos amplos poderes conferidos ao juiz (cfr. artºs 6º e 411º do NCPC).
IV) - Não tendo o juiz “a quo” tomado tal iniciativa e não constando do processo todos os elementos de prova que permitam a reapreciação da matéria de facto, nos termos do disposto no artº. 662º, nº. 2, al. c) do NCPC, deve a Relação, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida pela 1ª instância, devendo o Tribunal “a quo” ordenar oficiosamente a realização das diligências necessárias com vista a alcançar a verdade material, no âmbito do poder-dever de direcção do processo.

III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso de apelação interposto pela Autora G, S.A. e, em consequência, anulam a sentença recorrida, devendo os autos baixar ao Tribunal de 1ª instância a fim do mesmo ordenar oficiosamente a realização de perícia à assinatura constante do documento junto com a petição inicial, visando averiguar se a mesma foi feita pelo punho do Réu, ou de outras diligências que entenda serem necessárias e pertinentes, tendo em vista alcançar a verdade material, no âmbito do poder-dever de direcção do processo.
Custas a cargo do recorrido.
Guimarães, 12 de Maio de 2016
(processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora)
(Maria Cristina Cerdeira)
(Espinheira Baltar)
(Henrique Andrade)