Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
976/21.4T8GMR.G1
Relator: MARIA LEONOR BARROSO
Descritores: IPATH
FACTOR DE BONIFICAÇÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DA JUNTA MÉDICA
INQUÉRITO PROFISSIONAL E ESTUDO DO POSTO DE TRABALHO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/01/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I- O regime de acidentes de trabalho é informado por princípios sociais de ordem pública, que justificam a oficiosidade e indisponibilidade de direitos inerentes à reparação das consequências dos sinistros laborais.
II- Estando em causa a atribuição de IPATH e de não reconversão no posto de trabalho, não convergindo o exame singular e a junta médica nestes aspectos, considerando o tipo de acidente e queixas apresentadas desde o início pelo sinistrado, deve o julgador dirigir o processo de forma a que sejam cabalmente esclarecidas tais questões, quando, ademais, a junta médica apresente respostas conclusivas e sem a devida justificação.
III- Mormente deve ser solicitado pareceres ao IEFP e CRP sobre a questão da IPATH e não reconversão ao posto de trabalho.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

Nesta acção especial emergente de acidente de trabalho em que é sinistrado AA e entidade responsável a Companhia de Seguros EMP01..., S.A.,”, apelou o sinistrado da sentença no que toca ao grau de incapacidade permanente parcial (IPP) atribuída (19,00%) sem consideração de factor de bonificação de 1.5 e da não atribuição de incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual.
O motivo do prosseguimento da acção para a fase contenciosa centrou-se na discordância das partes sobre o resultado do exame médico no que respeita ao coeficiente de incapacidade permanente parcial arbitrado e à IPATH.
A decisão recorrida foi a seguinte:
Nestes termos, e pelo exposto, condeno a ré Companhia de Seguros EMP01..., S.A., no pagamento ao autor AA, sem prejuízo dos juros que se mostrem devidos (art.º 135.º do Código de Processo do Trabalho), das seguintes quantias: €30,00 a título de transportes ao tribunal e o capital de remição correspondente à pensão anual, devida em 12.02.2021 no montante de €1.732,56.
Custas pela ré.
Valor da ação – €21.269,45 (art.º 120.º do Código de Processo do Trabalho).”

PERÍCIA MÉDICA SINGULAR:
Na fase conciliatória o perito médico do exame singular concluiu que o sinistrado ficou afectado de IPP de 19% e que “As sequelas atrás descritas poderão ser enquadráveis numa eventual situação de incapacidade permanente absoluta para a actividade profissional habitual do examinado"
TENTATIVA DE CONCILIAÇÃO:
No auto de conciliação datado de 19-01-2022 o sinistrado reclamou “IPP de 19%, mas com a aplicação do factor 1.5 de acordo com o nº 5 das instruções gerais da TNI, que corresponde uma IPP de 28,5%, mas com incapacidade Absoluta para o Trabalho Habitual”.
O que é justifica do seguinte modo:
“...quando prestava a actividade profissional de ajudante de acabador de tecidos e de fios na indústria têxtil... foi vítima de um acidente, que considera de trabalho, tendo consistido o mesmo em ter sido apanhado pelo punho e mão direita pelos rolos da máquina que se encontrava a operar, do que lhe resultou lesão nervosa periférica do punho e mão direita....
Á data do acidente trabalhava com a máquina biancalani em consistindo as suas funções em meter e tirar tecido, branquear, tingir e limpar tecidos e outros têxteis, após abrir a máquina e por o tecido direito em rolos até três mil metros ou mais, tendo que utilizar ambas as mãos e com muito cuidado exigindo um esforço fisico grande e de braços.___
Atualmente e atendendo ao acidente sofrido a entidade empregadora alterou as suas funções dentro do local de trabalho, uma vez que não podia exercer as funçãões antigas.
Trabalha a colocar tecido na máquina que a mesma se encarrrega de pôr direito, quando algum tecido não está esticado o declarante e um colega colocam noutra máquina, precisando de ajuda do colega, por não o poder fazer sozinho”.
JUNTA MÉDICA:
A perícia por junta médica datada de 17-10-2022 atribuiu ao sinistrado uma IPP de 19%.

Aos quesitos apresentados pela seguradora no que tange à IPATHA responderem os peritos do seguinte modo:
4 - O sinistrado sofre de limitação impeditiva do exercício da sua profissão habitual?
Resposta : “Não”
5 - Em caso afirmativo, é o sinistrado reconvertível em relação ao seu anterior posto de Trabalho?
Resposta “Sim”
6 - Não sendo, deve o respetivo coeficiente global de incapacidade ser objeto da bonificação 1,5, prevista na alínea a/ do nº 5 das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades?
Resposta “Prejudicado”.

Notificado do resultado de junta médica, o sinistrado apresentou requerimento reclamando do resultado de junta médica, insurgindo-se contra a desconsideração de IPATH referindo que após “tentativa de continuar activo no exercício da sua profissão, o Sinistrado teve que de forma definitiva deixar de trabalhar pois não aguentava as dores na mão direita, inchando a mesma de tal forma que era impossível movimentar a mesma para que tarefa fosse, razão pela qual continua de baixa médica”. Insurge-se também contra a desconsideração do factor de bonificação de 1,5 por o sinistrado não ser reconvertível em relação ao posto de trabalho. Com vista a comprovar a sua total incapacidade para desenvolver a actividade, apresentou nessa altura certificados de incapacidade temporária para o trabalho de 19-07-2021 a 8-08-2021, de 30-08-2021 a 8-11-2022 (e mais tarde prorrogação até 7-05-2023) emitidos por médico da USF ....
Foi então proferida a decisão recorrida que apreciou a questão da incapacidade para o trabalho, precedida de despacho a inferir a reclamação, sustentando-se que a discordância do sinistrado “não fundamenta por si nem a anulação, prestação de esclarecimentos, mormente a substituição do laudo unanime a que chegaram pela conclusão apresentada pelo sinistrado.
Nestes termos, indefere-se integralmente a reclamação apresentada pelo sinistrado.”

FUNDAMENTO DA APELAÇÃO INTERPOSTA PELO SINISTRADO- CONCLUSÕES:

1.O presente recurso tem como objeto a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos a 04 de Abril de 2023, a qual apenas “fixou ao sinistrado uma incapacidade permanente parcial de 19%, não concordando o Recorrente com a percentagem atribuída, nem com o facto de não ser atríbuida incapacidade permanente absoluta para a actividade profissional, ...as questões que se colocam à apreciação deste tribunal prendem-se com a análise:
1.ª – da insuficiência dos factos provados para a decisão da causa, com a ponderação da eventual necessidade de ampliação da matéria de facto nos termos do artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil;
2.ª – em caso negativo, se é possível fixar ao sinistrado a IPP de 28,5%;
3.ª – em caso negativo, e mantendo-se a IPP de 19%, da ponderação do factor de bonificação previsto no n.º 5, alínea a) das Instruções Gerais da TNI.
4ª- Atribuição de uma IPATH.
2.No dia 24-04-2020 pelas 12:00 horas, em ..., ..., quando prestava a actividade profissional de ajudante de acabador de tecidos e de fios na indústria têxtil, sob as ordens, direcção e subordinação da entidade empregadora EMP02..., S.A., com sede na Rua ..., ..., ... ..., mediante a retribuição anual ilíquida de €13.026,80, o Sinistrado foi vitíma de um acidente, que está comprovado ser de trabalho,
3.O sinistro ocorreu quando o Recorrente foi atingido pela máquina calandra ( e não máquina biancalani conforme consta em todo o processo, conforme certificado de acidente de trabalho que aqui se junta sob Doc. n.º ..., cujo teor se dá aqui por reproduzido para os devidos e legais efeitos) a mão direita e o punho direiro ficaram presos no meio dos rolos, tendo a mão esquerda ficado, também retida, mas não entrou tanto na referida máquina, enquanto que, a mão direita ficou completamente presa no meio dos rolos, tendo o Recorrente conseguido retirar a mão direita da máquina com bastante esforço e com a ajuda dos seus colegas de trabalho.
4.Indo imediatamente de táxi para o Hospital ..., depois encaminhado para o hospital ... em ..., tudo isto a mando da Entidade patronal para que não fosse accionada a ACT,
...6.Nesse hospital começou a fazer fisioterapia, mas após cerca de 30 sessões sem qualquer evolução, passados 6 meses do referido acidente aplicaram uma injecção, dado que, a mão e o punho continuavam bastante inchados,
...9.Na qual esteve meio ano a fazer fisioterapia para tentar ganhar músculo entre o dedo polegar e o dedo indicador da mão direita,
...11.Após ter alta médica o Sinistrado tentou trabalhar mas não conseguiu, mesmo com o patrão a mudar-lhe de categoria profissional, a mão inchava de tal forma que teve de meter baixa médica desde então até à atualidade, pois não consegue realizar as funções inerentes à profissão que exercia, cfr. doc. n.º ..., além de todos os comprovativos de baixa médica desde então até ao dia do requerimento de 24-11-2022, correspondente a todas as baixas médicas desde então até à atualidade, cujo teor se dá aqui reproduzido para os devidos e legais efeitos.
12.Aliás de salientar que o Recorrente tem ido a juntas médicas da Segurança Social , tendo os médicos mantido o mesmo de baixa médica pois conforme descrito na comunicação da deliberação da junta médica “subsiste a incapacidade temporária para o trabalho..”, cfr.doc. n.º ..., cujo teor se dá aqui reproduzido para os devidos e legais efeitos.
..14.O Recorrente nunca recuperou dos danos causados pelo referido acidente de trabalho, em consequência directa e necessária desse acidente resultaram para si as lesões aludidas na perícia médica e elementos clínicos dos autos, o que determinou as IT´s neles descritas e a IPP de 19%, mas com a aplicação do factor 1.5 de acordo com o n.º 5 das instruções gerais  da TNI, a que corresponde uma IPP DE 28,5%, mas com incapacidade absoluta para o trabalho habitual, com alta médica em 11-02-2021.
...,
18.Tal como o mesmo referiu à data do acidente trabalhava com a máquina calandra, e não bilancani como consta dos autos, cfr. Doc. n.º ..., consistindo as suas funções em meter e tirar tecido, branquear, tingir e limpar tecidos e outros têxteis, após abrir a máquina e por o tecido direito em rolos até três mil metros ou mais, tendo que utilizar ambas as mãos e com muito cuidado exigindo um esforço físico grande e de braços, sendo que após ter alta médica e atendendo ao acidente sofrido a entidade empregadora alterou as suas funções dentro do local de trabalho, uma vez que não podia exercer as funções antigas, trabalhava a colocar tecido na máquina que a mesma se encarrega de pôr direito, quando algum tecido não está esticado tinha de chamar um outro colega noutra máquina, precisando de ajuda do colega, por não o poder fazer sozinho, no entanto, o Sinistrado não aguentava as dores na mão e punhos que inchavam de tal forma que os dedos quase não mexiam, acabou por meter baixa médica que mantém desde então até à atualidade, cfr. doc. n.º ..., cujo teor se dá aqui or reproduzido para os devidos e legais efeitos.
19.Após essa tentativa de continuar activo no exercício da sua profissão, o Sinistrado teve que de forma definitiva deixar de trabalhar pois não aguentava as dores na mão direita , inchando a mesma de tal forma que era impossível movimentar a mesma para que tarefa fosse, razão pela qual continua de baixa médica, encontrando-se de forma definitiva com uma incapacidade absoluta para o trabalho habitual.
...
21.Por todo o exposto supra, o sinistrado encontra-se com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual.
....23.Os Senhores Peritos não tiveram em conta a situação de IPATH da qual o Sinistrado é portador, nem tão pouco são a entidade competente para averiguar tal incapacidade, sendo incompetentes quanto à referida avaliação,
24....25.Nos termos do nº 5, alínea a), das Condições Gerais da TNI, estipula-se que "sempre que se verifique perda ou diminuição de função inerente ou imprescindível ao desempenho do posto de trabalho que ocupava com carácter permanente, os coeficientes de incapacidade previstos são bonificados com uma multiplicação pelo factor 1,5, se a vítima não for reconvertível em relação ao posto de trabalho, ou tiver 50 anos ou mais, devendo, portanto ser atribuida a bonificação descrita ao ora Sinistrado,
26.Uma vez que, se verifica a perda ou diminuição de função inerente ou imprescindível ao desempenho do posto de trabalho que o sinistrado ocupava com carácter permanente e visto que não é reconvertível em relação ao seu posto de trabalho.
27.Devendo ser atríbuida ao Sinistrado uma IPP de 19%, mas com a aplicação do factor 1.5 de acordo com o n.º 5 das instruções gerais da TNI, a que corresponde uma IPP DE 28,5%, mas com incapacidade absoluta para o trabalho habitual, com alta médica em 11-02-2021, o que desde já se requer. II- Comparação do relatório do exame de Electromiografia dos Membros Superiores realizado em 04/07/2022, com o mesmo tipo de exame realizado em 02/07/2020:
.....31.... os peritos-Médicos da junta Médica da Segurança Social atentam desde então até à presente data tais incapacidades, principalmente a IPATH, comprovada por todas as baixas médicas juntas aos presentes autos, sendo que atualmente ainda se encontra de baixa médica pois não consegue trabalhar, não apresentando melhoras.
....a lei prevê a solicitação de esclarecimentos aos senhores peritos por eficiência, obscuridade ou contradição do relatório pericial como modo de superação de dúvidas suscitáveis pelo mesmo (artºs 1º, nºs 1 e 2, alª a), do CT e 413º e 485º do CPC)... E podem ser requisitados elementos auxiliares de diagnóstico (artº 105º do CPT), determinar-se a realização de exames complementares e requisitados pareceres técnicos (artº 139º do CPT). Entre estes avultam os realizáveis nos termos dos artºs 21º, nº 4, da Lei nº 98/2009 de 04.09 ..
...43.A Junta Médica não respondeu se o Recorrente pode ou não realizar as tarefas, sendo que o mesmo deixou de poder trabalhar....
45.As respostas são obscuras e se reiteram a existência de uma IPP, não dão resposta clara às questões colocadas se há IPATH.
46.Foram colocadas perguntas face à sua profissão e na resposta há uma obscuridade evidente, pois responde-se em termos formais, reiterando uma conclusão médica.
47.A junta médica não deu resposta não termos materiais indicando se o Recorrente pode ou não trabalhar na sua anterior ocupação.
...49.Como é que um sinistrado com uma mão direitae punho, com as lesões supra descritas pode trabalhar como ajudante de acabador de tecidos e de fios na indústria têxtil, onde ambas as mãos fazem parte do seu trabalho?
...55.De facto, o Recorrente perdeu a capacidade de trabalhar como ajudante de acabador de tecidos e de fios na indústria têxtil, aliás actualmente não consegue emprego em qualquer profissão sendo discriminado pelo acidente que sofreu e pela limitação física que apresenta.
56. É imperioso dar resposta material à IPATH, pelo que para a descoberta da verdade e para se poder determinar a IPP, requer-se seja feito um exame nos termos do artigo 41.º do DL 143/99 - Avaliação da incapacidade.
... o juiz pode requisitar o parecer prévio de peritos especializados, designadamente do Ministério do Trabalho e da Solidariedade, que consiste num estudo de funções e num exame de um perito de medicina do trabalho.
57.De facto, o Recorrente tem limitações e uma IPP que segundo o sinistrado implica uma IPATH para a sua ocupação de ajudante de acabador de tecidos e de fios na indústria têxtil, o mesmo entende que os exames médicos deveriam avaliar a incapacidade e IPATH, o que não foi valorado, nem aceite pelo julgador na sentença do tribunal a quo.
58. Estas questões não são apenas médica, mas também jurídica, daí a necessidade de alertar o Meritíssimo Juiz de Direito para que não deixe de solicitar a realização de exames e pareceres complementares ou requisitar pareceres técnicos, se o considerar necessário (art.º 139.º, n.º 7, do CPT).
61.O Juiz pode e deve solicitar exames, pareceres ou esclarecimentos complementares, nos termos do art. 139º, nº 7 do CPT e mesmo do art. 41º-2 do DL nº 143/99 de 30/4, independentemente do parecer da Junta Médica, o que não aconteceu no caso em apreço,
...64.Concluindo vem o Recorrente requerer que sejam requisitados esclarecimentos aos senhores peritos, bem como exames suplementares no IEFP na modalidade de avaliação de funções e exames do médico de trabalho”.
..70.O Apelante recorre, também, nos termos do artigo 640º, do CPC (aplicável ex vi do artº 1º, nº 2, al. a) do Código de Processo do Trabalho), considerando ainda que a decisão recorrida se mostra indevidamente fundamentada, nessa medida violando o disposto nos artigos 154º e 607º, nº 3, do C.P.C.

NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO,
Requer a V. Exas. de dignem dar provimento ao presente recurso, ordenando-se que sejam pedidos esclarecimentos aos senhores peritos e realizados exames complementares, anulando-se a decisão da 1ª instância e ordenando-se a realização de novos exames e a recolha de elementos e pareceres, no sentido apontado ou outros que se revelem necessários ou pertinentes, para que a final seja fixada a incapacidade ao Sinistrado, nomeadamente, uma IPTAH;
Caso assim se não entenda, deverá ser revogada a douta decisão de 1ª instância e, ser proferida outra que fixe a incapacidade do Recorrente, em 28,5%;
E caso assim não se entenda – o que não se concede - deverá ser revogada a douta decisão de 1ª instância e, ser proferida outra que considere o factor de bonificação referente à perda de função inerente ou imprescindível ao desempenho do posto de trabalho que o Apelante ocupava com carácter permanente, previsto na instrução geral nº 5 constante do preâmbulo da TNI, com a consequente a correcção dos valores atribuídos a título de pensão anual vitalícia...”

CONTRA-ALEGAÇÕES: não constam.
PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO - sustenta-se que deve ser negado provimento à apelação.
O recurso foi apreciado em conferência – art. 659º, do CPC.

QUESTÕES A DECIDIR [1]: insuficiência/deficiência de fundamentação do relatório pericial e necessidade de realização de meios de prova complementares; apreciação de IPATH e do factor de bonificação de 1.5, por o sinistrado não ser reconvertível do posto de trabalho.

I.I. FUNDAMENTAÇÃO

A) Factos provados fixados na primeira instância:
. “...o sinistrado clinicamente curado, mas portador da incapacidade permanente parcial (IPP) (IPP) de 0,19 = 19,00% desde o dia imediato ao da alta (alta que ocorreu em 11/02/2021), sem incapacidade permanente absoluta para a atividade profissional.”
*
1) O autor foi vítima de um acidente no dia 24-04-2020 pelas 12:00 horas, em ..., ..., quando prestava a atividade profissional de ajudante de acabador de tecidos e de fios na indústria têxtil, sob as ordens, direção e subordinação da entidade empregadora EMP02..., S.A.;
2) (…) tendo consistido o mesmo em ter sido apanhado pelo punho e mão direita pelos rolos da máquina que se encontrava a operar, do que lhe resultou lesão nervosa periférica do punho e mão direita;
3) (…) auferia à data a remuneração anual de € 13.026,80.
4) A responsabilidade infortunística encontrava-se transferida para a seguradora demandada.
5) A seguradora reconheceu o acidente como acidente de trabalho, o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente, o salário auferido pelo sinistrado à data do acidente e a sua responsabilidade na reparação e aceitou pagar a quantia de €20,00 de despesas de transportes nas vindas a este Tribunal e ao GML.
6) O sinistrado gastou a quantia de €20,00 em transportes ao tribunal na fase conciliatória do processo;
7) (…) nasceu a .../.../1974.

B) INSUFICIÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO DA PERÍCIA MÉDICA E DA DECISÃO RECORRIDA NO QUE TANGE À IPATH E FACTOR DE BONIFICAÇÃO DE 1.5 POR O SINISTRADO ALEGADAMENTE NÃO SER RECONVERTÍVEL EM RELAÇÃO AO POSTO DE TRABALHO
Sustenta o recorrente que os senhores peritos da junta médica não justificam a não atribuição de IPATH e a sua reconversão ou não ao posto de trabalho, pelo que deveriam ter sido ordenadas outras diligências probatórias.
Diga-se que a razão está do seu lado.
Em primeiro lugar, a questão da IPATH e queixas do sinistrado sobre a dificuldade em exercer funções no posto de trabalho foi ab initio posta à consideração do tribunal desde a tentativa de conciliação. Na perícia médica singular realizada na fase conciliatória que a precedeu considerou-se, inclusive, que as “sequelas atrás descritas poderão ser enquadráveis numa eventual situação de incapacidade permanente absoluta para a actividade profissional habitual do examinado". Esta era, portanto, uma questão central que merecia particular atenção, mas que foi descuidada.
Em segundo lugar, não obstante essas questões serem nevrálgicas (“tema decidendo”), a junta médica limita-se, sem mais, a responder “não” à questão da IPATH e “sim” à questão de o sinistrado ser reconvertível em relação ao seu anterior posto de trabalho.
No auto de junta médica apenas consta uma referência genérica sobre os elementos em que se socorreram os peritos.
Mais concretamente fez-se constar o seguinte:
“A fundamentação da actual discussão, agora em sede de Junta Médica, é feita tendo-se em conta a história do evento traumático/acidente de trabalho relatada pelo sinistrado, elementos nosológicos existentes no processo, Exame Singular efectuado no Gabinete Médico-Legal, pelas queixas referidas pelo sinistrado, bem assim como e principalmente pelo exame objectivo agora efectuado”.
Ora, quem anda nos tribunais sabe que esta é uma justificação “padrão” (modelo) que por facilidade de trabalho se coloca nos autos de junta médica. Ora, se tal inserção se pode ter por bastante nos casos em que os indícios e provas convergem nas questões essenciais, o mesmo não acontece noutros casos como o dos autos em que as queixas do sinistrado são indiciariamente apoiadas pela perícia singular e pelo tipo de acidente e funções desempenhadas pelo sinistrado.
Na verdade, há que olhar para o acidente (evento) e queixa apresentada. No caso estamos perante um bem delineado acidente de trabalho e de certa gravidade. A mão e punho direito do sinistrado,  operador de máquinas da indústria têxtil, foram apanhados pelos rolos da máquina compressora de tecidos, tendo de ser assistido de imediato,  permanecendo meses com incapacidade temporária para o trabalho (8), seguida de IPP (ITA de 25/04/2020 a 05/01/2021, ITP 40% de 06/01/2021 e 10/02/2021). Ou seja, não é um acidente de trabalho daqueles que são descritos pelos sinistrados como “dar um jeito nas costas” ao movimentar algo, em que muitas vezes se mistura um quadro laboral com um quadro de doença degenerativa (sem com isto querer desvalorizar este tipo de acidentes, mas tão só evidenciar que as queixas dos autos abstractamente se afiguram mais objectivas). A abordagem dos acidentes de trabalho, os modelos de junta médica e os modelos de decisão de mérito dependem sempre da natureza e complexidade dos casos.
O que nos leva a concluir que, no caso,a junta médica contém deficiente fundamentação, em especial no que se tange à IPATH e ao factor de bonificação de 1.5 – 485º, 2, CPC e TNI, instruções gerais- 8 (“8 - O resultado dos exames é expresso em ficha apropriada, devendo os peritos fundamentar todas as suas conclusões”.). A decisão recorrida padece do mesmo vício, porque nela se ancora totalmente). Desconhece-se mesmo se tais questões foram ponderadas. Não está espelhado no auto de junta médica que tenha havido reflexão sobre as funções principais do sinistrado e sobre se este está apto a exercê-las, em segurança e sem prejuízo para a sua saúde.
Este ponto levamos ao terceiro aspecto a ter em conta relacionado com o facto de, estando em causa a eventualidade de uma IPATH e uma não reconversão ao posto de trabalho, serem necessários outros meios de prova prévios para que depois os senhores peritos se pudessem pronunciar com propriedade sobre estas questões. Tanto mais que estão juntos aos autos certificados de incapacidade temporária para o trabalho emitidos pelo centro de saúde respeitante a um período muito considerável (ininterruptamente desde agosto de 2021 a maio de 2023), relatando o sinistrado que depois de várias tentativas de trabalhar noutro posto, não o conseguindo, acabando por recorrer a “baixa” médica.
Assim, impunha-se a realização de inquérito pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), o qual consiste num estudo de caracterização do posto de trabalho do sinistrado, da actividade exercida, contexto em que é desenvolvida, meios utilizados e riscos que lhe estão associados - 159º Lei 98/2009, de 4-09 (NLAT). Embora não seja da competência do IEFP emitir perícia médica sobre se o autor está incapacitado para o trabalho habitual, o parecer destina-se a ajudar os peritos médicos (105º e 139º do CPT) e o juiz a compreenderem a especificidade das funções do sinistrado e as eventuais dificuldades no desempenho de tarefas.
Justificava também requisitar parecer ao Centro de Reabilitação Profissional (CRP) para desfazer as dúvidas existentes, incluindo as actuais sequelas que se podem repercutir sobre a atribuição do factor de bonificação por não reconversão e IPATH - 21ºe 154º a 166º da NLAT (em especial  21º, 4 “ Sempre que haja lugar à aplicação do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 48.º e no artigo 53.º, o juiz pode requisitar parecer prévio de peritos especializados, designadamente dos serviços competentes do ministério responsável pela área laboral.)
Como acima referimos, a decisão recorrida é também deficiente no que respeita à fundamentação da matéria de facto sobre a IPATH e não reconversão ao posto de trabalho, na medida em se ancora totalmente na perícia por junta médica, ela própria deficiente. Não constam dos autos elementos de prova seguros e factos que permitam decidir a causa. Não resta senão a solução de anular a decisão de primeira instância para realização de meios de prova complementares, o que se determina – 662º, 2, c), CPC.
Finalmente, alerte-se que o regime de acidente de trabalho é norteado por interesses de ordem pública que justificam a sua oficiosidade, pelo que, independentemente da iniciativa das “partes, nesta área laboral o papel do juiz deve ser especialmente interventivo (139º CPC” perícias”, nº 7 - O juiz, se o considerar necessário, pode determinar a realização de exames e pareceres complementares ou requisitar pareceres técnicos.”).
Fica prejudicado o conhecimento das demais questões.

I.I.I. DECISÃO

Pelo exposto, de acordo com o disposto nos artigos 87º do Cód. de Proc. do Trabalho, 662º, 2, al. c), e 663º do Cód. de Proc. Civil, acorda-se em conceder provimento parcial ao recurso e anular a decisão recorrida na parte em que fixou a incapacidade permanente (IPP, IPATH e questão da não reconversão) e determinar a remessa dos autos à primeira instância a fim de suprir nos termos supra ditos a insuficiência de prova, com realização de parecer pelo Centro de Reabilitação Profissional e parecer pelo IEFP, e outros meios que se revelem necessários, após o que deverá ser repetida a junta médica, tomando posição crítica sobre se o sinistrado está ou não afectado de IPATH e sobre a aplicação do factor de 1.5%,, sendo posteriormente de novo decidida a causa, mantendo-se no mais a decisão.
Custas a cargo de quem for condenado nas custas da acção final.
Notifique.

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Antero Veiga
Vera Sottomayor


[1] Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC, o âmbito do recurso é balizado pelas conclusões do/s recorrente/s.