Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
484/13.7TBBRG.G1
Relator: LINA CASTRO BAPTISTA
Descritores: EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA
PRAZO DE ARGUIÇÃO
EXTINÇÃO DA FIANÇA
SUBROGAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: IA falta de dedução pelo réu de uma exceção perentória no prazo legalmente fixado para o efeito, traduz-se numa renúncia à invocação do direito respetivo, ficando o mesmo precludido definitivamente.
II - A estatuição do art. 579.º do C.P.Civil tem o seu campo de aplicação restrito às situações em que a lei estabelece expressamente a possibilidade de conhecimento oficioso, sendo os casos paradigmáticos os da caducidade (cf. art. 333.º do C.Civil) e da nulidade do negócio jurídico (Cf. art. 286.º do C.Civil).
III – A eventual extinção da fiança, por impossibilidade de sub-rogação, traduz-se numa exceção perentória de direito material, do tipo extintivo, a necessitar de ser invocada pela parte a quem aproveita e estando, por inerência, vedado o seu conhecimento oficioso.
IV – Diversamente, a inutilidade superveniente da lide nos casos em que o insolvente seja réu em ação de cobrança de dívidas é uma mera questão de ordem processual e, nessa medida, uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, decorrente do facto de o CIRE, na sequência da decretação da insolvência, obrigar a que todos os créditos do insolvente sejam reclamados e apreciados nessa sede.
V – Em termos substantivos, a decretação da insolvência do devedor principal não determina a extinção da obrigação do fiador, por não se traduzir numa situação de desaparecimento voluntário das garantias e/acessórios do crédito e, cumulativamente, por o CIRE salvaguardar a posição dos garantes, ao permitir-lhes a reclamação do seu crédito, sob condição suspensiva (Cf. art. 95.º, n.º 2, do CIRE).
Decisão Texto Integral:
SUMÁRIO
IA falta de dedução pelo réu de uma exceção perentória no prazo legalmente fixado para o efeito, traduz-se numa renúncia à invocação do direito respetivo, ficando o mesmo precludido definitivamente.
II - A estatuição do art. 579.º do C.P.Civil tem o seu campo de aplicação restrito às situações em que a lei estabelece expressamente a possibilidade de conhecimento oficioso, sendo os casos paradigmáticos os da caducidade (cf. art. 333.º do C.Civil) e da nulidade do negócio jurídico (Cf. art. 286.º do C.Civil).
III – A eventual extinção da fiança, por impossibilidade de sub-rogação, traduz-se numa exceção perentória de direito material, do tipo extintivo, a necessitar de ser invocada pela parte a quem aproveita e estando, por inerência, vedado o seu conhecimento oficioso.
IV – Diversamente, a inutilidade superveniente da lide nos casos em que o insolvente seja réu em ação de cobrança de dívidas é uma mera questão de ordem processual e, nessa medida, uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, decorrente do facto de o CIRE, na sequência da decretação da insolvência, obrigar a que todos os créditos do insolvente sejam reclamados e apreciados nessa sede.
V – Em termos substantivos, a decretação da insolvência do devedor principal não determina a extinção da obrigação do fiador, por não se traduzir numa situação de desaparecimento voluntário das garantias e/acessórios do crédito e, cumulativamente, por o CIRE salvaguardar a posição dos garantes, ao permitir-lhes a reclamação do seu crédito, sob condição suspensiva (Cf. art. 95.º, n.º 2, do CIRE).
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Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I—RELATÓRIO

N, sociedade com sede na Rua Alexandre Herculano, n.º …, Linda-a-Velha, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra P, sociedade com sede no Parque Industrial das 7 Fontes, Lote …, Braga; L, com domicílio no Lugar do Penedo, Maximinos, Braga; A, com domicílio na Quinta do Passal, Vilela, Valdevez, e J, com domicílio na Rua Sophia de Mello Breyner, Lote 9, Palmeira, Braga, pedindo que os Réus sejam condenados solidariamente a pagar-lhe a quantia de € 249 971,99, sendo € 233 173,89 a título de capital e € 16 303,01 de juros de mora vencidos, calculados à taxa supletiva fixada para os créditos de que são titulares empresas comerciais, sem prejuízo dos juros vincendos até integral pagamento.
Alega, em síntese, ter celebrado com os Réus um contrato, através do qual regularam a compra e promoção por parte da 1ª Ré, em regime de exclusividade, de café da marca “Buondi”, lote “Prestige”, por si comercializado.
Bem como que, nos termos do mesmo contrato, os 2º, 3º e 4º Réus assumiram a qualidade de fiadores e principais pagadores solidários, “garantindo a satisfação de todas as obrigações” da 1ª Ré.
Afirma que, no dia 01/06/2012, confrontada com sucessivas faltas de pagamento dos fornecimentos efetuados à 1ª Ré, que ascendiam ao montante de € 23 368,88, suspendeu os fornecimentos de café e intentou ação declarativa de condenação contra a mesma. Bem como que, nessa sequência, a 1ª Ré lhe comunicou a resolução do contrato.
Entende que, face à resolução indevida do contrato, tem direito à restituição da quantia de € 108 699,91, referente a comparticipação publicitária; ao pagamento da quantia de € 121 450,50, referente a € 10,00 por cada quilo de café não adquirido até ao termo do contrato e ao pagamento da quantia de € 3 023,48, correspondente ao valor dos equipamentos à data da resolução do contrato. Bem como que os 2º, 3º e 4º Réus estão solidariamente vinculados ao pagamento das mesmas quantias que a 1ª Ré, por força da obrigação de fiança assumida no contrato em causa.
O 3º Réu veio contestar, excecionando que a resolução do contrato foi operada por pessoa que não representava a 1ª Ré e que foi pressuposto da celebração do contrato dos autos, na qualidade de fiador, que se mantivesse gerente da 1ª Ré, cargo que abandonou em finais de 2010. Impugnou a essencialidade da matéria de facto da Petição Inicial.
Conclui pedindo que a presente ação seja julgada não provada e improcedente quanto a si.
Os demais Réus vieram igualmente contestar, contrapondo que, a partir de 01 de junho de 2012, a Autora deixou de prestar o serviço contratado, sem qualquer pré-aviso ou justificação. Defendem que este comportamento constitui incumprimento contratual por parte da Autora, com prejuízos para a 1ª Ré, que se viu privada de uma matéria-prima essencial e, consequentemente, da receita resultante da comercialização do café.
Rematam pedindo que a contestação seja julgada procedente, por provada, e, em consequência, absolvidos do pedido.
Proferiu-se despacho saneador, fixaram-se os Factos Assentes e a Base Instrutória.
Entretanto, a Administradora de Insolvência do Processo n.º 5463/13.1TBBRG, veio informar que a 1ª Ré foi declarada insolvente, por sentença proferida no dia 12 de setembro de 2013, e requerer que a presente ação seja julgada extinta por inutilidade superveniente da lide, relativamente a esta Ré.
Por sentença proferida em 03 de novembro de 2014, foi declarada extinta a instância quanto à 1ª Ré, por inutilidade superveniente da lide.
No mesmo ato, a Autora foi notificada para informar se reclamou o crédito em discussão destes autos no indicado Processo de Insolvência, tendo a mesma vindo informar que não reclamou a verificação do seu crédito no dito Processo.
Sequencialmente, a Excelentíssima Sr.ª Juiz a quo notificou as partes para se pronunciarem sobre a eventual extinção da fiança por facto superveniente (liberação por impossibilidade de sub-rogação).
A Autora veio pronunciar-se, no sentido de que os fiadores optaram por não exercer o direito decorrente do eventual pagamento futuro da dívida, como crédito sob condição suspensiva. Bem como que os mesmos não invocaram a exceção em causa, não podendo o Tribunal conhecer oficiosamente da mesma.
Os 2º e 4º Réus vieram – da mesma forma – pronunciar-se, no sentido de que o comportamento omissivo da Autora, em não apresentar a sua reclamação de créditos no prazos em que devia, provocou a impossibilidade do exercício do direito de sub-rogação por parte dos fiadores – podendo eles desvincular-se por virtude deste ato omissivo da aqui Autora.
A Excelentíssima Sr.ª Juíza do Tribunal recorrido proferiu despacho, declarando extinta a fiança, ao abrigo do disposto no art. 653.º do C.Civil, com a consequente absolvição dos Réus do pedido.
Inconformada com este despacho, a Autora interpôs recurso, terminando com as seguintes
CONCLUSÕES:
1) A liberação da fiança, por verificação das circunstâncias previstas no artigo 653° do Código Civil, constitui uma excepção de direito material cuja invocação depende da vontade do interessado.
2) Ao absolver os RR. fiadores, com fundamento em liberação por impossi­bilidade de sub-rogação, sem que eles tivessem manifestado essa vontade no respeito das regras processuais, a Senhora Juíza "a quo" infringiu o artigo 579° do C.P.C.
3) Como, na data em que a contestação foi apresentada, ainda não ocorrera a declaração de insolvência da sociedade afiançada, os RR. deviam ter invocado a excepção em articulado superveniente, o que não fizeram no momento próprio.
4) Esse momento ocorreu nos 10 dias posteriores à notificação da data da audiência final ou, quanto aos RR. L e J, nos 10 dias seguintes à data da junção do comprovativo do pagamento da 2a prestação da taxa de justiça que sanou a nulidade da falta daquela notificação.
5) Sem prescindir, o artigo 95°, n° 2, do CIRE veio permitir ao co-devedor solidário e ao garante, exercer, no processo de insolvência, o direito contra o devedor insolvente decorrente do eventual pagamento futuro da dívida, reclamando-o como crédito sob condição suspensiva, se o próprio credor não reclamar.
6) Como resulta do artigo 627°, n° 1, do Código Civil, o fiador é um garante pessoal, estando claramente abrangido pelo artigo 95°, n° 2, do CIRE, e podendo mesmo estar duplamente abrangido, se, além da qualidade de garante, assumir, por vontade expressa ou disposição legal, responsabilidade solidária pela dívida.
7) O artigo 95°, n° 2, do ClRE não limita aos garantes que assumam verdadeira responsabilidade solidária, a faculdade de reclamar, como crédito sob condição sus­pensiva, o direito contra o devedor insolvente.
8) Face à utilização da expressão "garante", o artigo 95°, n° 2, do ClRE cobra aplicação mesmo para o fiador que não assume responsabilidade solidária.
9) O facto de a posição do fiador que se obrigou como principal pagador não se identificar rigorosamente com a do co-devedor solidário, face à acessoriedade da fiança, em nada afasta a aplicação do referido artigo 95°, n° 2.
10) A única consequência relevante que da acessoriedade da fiança advém para a aplicação desta norma é que o fiador que cumpre a obrigação pode, depois, exigir do afiançado a totalidade do que pagou, enquanto o co-devedor solidário só tem direito de regresso quanto à parte da dívida que competia a cada co-devedor.
11) Hoje, a omissão da reclamação do crédito pelo credor originário, abrindo ao fiador a faculdade de reclamar ele o crédito, já não lhe impossibilita a sub-rogação e não determina, portanto, a liberação por aplicação do artigo 653° do Código Civil.
12) A A. não impossibilitou a sub-rogação dos RR.: não tendo ela reclamado o crédito na insolvência da afiançada, estes podiam exercer o direito decorrente do eventual pagamento futuro da dívida, nos termos do artigo 95°, n° 2, do CIRE.
13) No caso dos autos, porém, mesmo a admitir-se que a possibilidade de reclamação do crédito eventual dos fiadores, prevista no artigo 95°, n° 2, do CIRE, não afasta a sua liberação por impossibilidade de sub-rogação, esta seria inaceitável.
14) Os RR. assumiram em regime de solidariedade as obrigações emergentes do contrato que dá causa de pedir à acção e, valendo-se desse regime, a A. accionou simultaneamente a afiançada e todos os fiadores, pedindo a sua condenação solidária no pagamento da dívida emergente do incumprimento do aludido contrato.
15) Assim, na data da insolvência da afiançada, os fiadores já estavam a ser demandados pela A. - a exigência da dívida era um facto actual e não uma mera hipótese que poderia levá-los a descurar a defesa dos seus direitos.
16) A A. alegou que pelo menos os 2° e 4° RR. são gerentes da afiançada e, conhecendo a declaração de insolvência, deviam, não só para cumprir o artigo 24°, n° 1, alíneas a) e b), do CIRE, como para salvaguardar a eventual sub-rogação, indicar o crédito da A. no processo de insolvência e informar da pendência da acção judicial.
17) Tais factos tomam a imputação à A. da impossibilidade de sub-rogação um abuso de direito, pois os RR. não só não usaram a faculdade do artigo 95°, n° 2, do ClRE, como desrespeitaram disposição legal expressa e deveres de cuidado emanados do princípio da boa fé, tal como consagrado no artigo 762°, n° 2, do Código Civil.
18) Os RR., tendo contribuído decisiva e ilicitamente para a omissão do crédito da A. na insolvência da afiançada, não podem, sem grave ofensa dos limites impostos pela mesma boa fé, prevalecer-se da situação daí decorrente.
19) Trata-se de um comportamento claramente impeditivo do exercício do direito de liberação da fiança, pelo que a Senhora Juíza "a quo" não podia ter decidido como decidiu, mesmo afastando a aplicação do artigo 95°, n° 2, do CIRE.
20) Cabia-lhe, mesmo no erróneo entendimento em que lavrava, fazer prosseguir a instância, incluindo os factos alegados pela A. nos temas de prova, para extrair da demonstração que deles viesse a ser feita a necessária consequência: a improcedência da excepção de liberação dos RR. fiadores.
21) A douta decisão recorrida violou o disposto nos artigos 579° do C.P.C., 627°, n° 1,653°,334° e 762°, n° 2, do Código Civil e 95°, n° 2, do CIRE.
O 3º Réu A veio contra-alegar, terminando com as seguintes
CONCLUSÕES:
1. A douta sentença recorrida não é passível de qualquer reparo ou censura, pois a M.Ma Juíza “a quo” fez correcta aplicação do direito aos factos assentes.
2. Como ressalta dos autos, a A. intentou a ação em 21 de janeiro de 2013, a Ré P foi declarada insolvente em 12 de setembro de 2013, a Recorrente N. era credora da insolvente e não reclamou qualquer crédito, não obstante terem sido apreendidos, na insolvência, bens no valor de € 263 795,00.
3. A Recorrente estava obrigada a reclamar o crédito que detinha sobre a insolvente e não o reclamou.
4. Não tendo a Recorrente reclamado esse seu crédito, como lhe competia, deixou o ora Recorrido de poder subrogar-se, o que determina a liberação do mesmo, quanto à responsabilidade que assumiu, ficando, consequentemente, desonerado de qualquer obrigação.
5. Na verdade, esse alheamento da Recorrente, ao não ter reclamado o crédito, determinou a extinção da fiança.
6. Como é manifesto, a despropositada tese de que o Recorrido teria que excecionar, por não ser do conhecimento oficioso, carece de total fundamento.
7. Pois, para além do que ressalta no artigo 95.º, n.º 1 do CIRE e da factualidade assente nos autos, supra alegada, não era exigível ao Recorrido tal atitude, para além do mais, pela elementar razão de que não era gerente e por ignorar a insolvência.
8. De todo o modo, como bem se plasmou na douta sentença Recorrida, estava vedado ao Recorrido reclamar qualquer crédito, dado que a reclamação teria que ser levada a efeito apenas pela Recorrente, atenta a qualidades destes fiadores e o exarado no artigo 95.º, n.º 2, do CIRE, pois, seguramente, não se trata de obrigações solidárias, não sendo o co-devedor solidário e muito menos um garante, sendo certo que o Recorrido não renunciou ao benefício da excussão prévia, para que tivesse essa obrigação.
9. Acresce que é iniludível que a Recorrente pleiteia com manifesto abuso de direito, ao tentar a cobrança de um crédito sobre os responsáveis subsidiários, após não ter reclamado, como lhe competia, o crédito sobre a responsável, não obstante a existência de avultados bens.
10. Assim, atenta tal atuação, sempre a conduta da Recorrente constituiria um manifesto abuso de direito, dado que a pretensão, a que se arroga, viola os mais elementares princípios da boa fé e bons costumes, tornando-se, inquestionavelmente, ilegítimo, por abusivo, o invocado exercício do direito a que se arroga, conforme disposto no art. 334.º do C.Civil, que expressamente se invoca.
Os 2º e 4ª Réus L e J vieram contra-alegar, terminando com as seguintes
CONCLUSÕES:
I. A douta sentença recorrida não é passível de qualquer reparo ou censura, pois a Meritíssima Juízo a quo fez uma correta aplicação do direito em função dos factos assentes.
II. A presente ação foi proposta contra a sociedade P e contra os demais Réus, L, A e J, na qualidade de fiadores.
III. A questão central assente em saber se, nos termos do art. 653.º do Código Civil, tendo sido declarada insolvente a sociedade afiançada, contra quem a ação também foi instaurada, e não tendo a Autora, aqui Recorrente reclamado o crédito no processo de insolvência, os Réus ficaram desonerados da obrigação contraída, por não poderem ficar sub-rogados nos direitos da credora.
IV. A Recorrente encontrava-se obrigada a reclamar o crédito que detinha sobre a devedora originária e não o fez.
V. Não tendo a Recorrente reclamado esse seu crédito como lhe competia, impossibilitou que os aqui Recorridos pudessem subrogar-se, o que determina a liberação dos mesmos enquanto fiadores, ficando consequentemente desonerados de qualquer obrigação.
VI. Encontrava-se vedado aos Recorridos reclamar qualquer crédito no âmbito da insolvência da devedora principal, dado que a reclamação teria que ser levada a efeito apenas pela recorrente, atenta a qualidade dos fiadores e natureza da fiança.
VII. Os fiadores podem lançar mão dos seus meios de defesa, recusando-se a cumprir se provar que o crédito não foi satisfeito por culpa do devedor.
VIII. A norma vertida no art. 95.º, n.º 2, do CIRE apenas se aplica às obrigações solidárias e não às obrigações subsidiárias como é o caso dos presentes autos.
IX. A Autora continuou a exigir o crédito aos Recorridos, sabendo que estes não se poderiam sub-rogar nos seus direitos e exigir da devedora principal, imputando a responsabilidade por essa perda à agora Recorrente.
X. A conduta da Recorrente constitui um manifesto absurdo de direito, sancionado nos termos gerais do art. 334.º do Código Civil, que expressamente se invoca.
O recurso da Autora foi admitido como recurso de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II—DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

As questões a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as seguintes:
I. Possibilidade do conhecimento oficioso da exceção de liberação da fiança, por impossibilidade de sub-rogação.
II. Consequências legais da omissão da reclamação do crédito pelo credor em insolvência decretada contra o devedor principal.
III. Abuso de direito dos fiadores, por não terem usado da faculdade legal prevista no art. 95.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas(1).
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III—FUNDAMENTAÇÃO

Atento o disposto no artigo 607.º (declaração dos factos provados e não provados), aplicável por força do art. 663.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil(2), importa enunciar todos os factos relevantes para a decisão que se encontram assentes nos autos, o que se passa a fazer:

1) No dia 22 de janeiro de 2013, N intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra P, L, A e J, pedindo que os Réus sejam condenados solidariamente a pagar-lhe a quantia de € 249 971,99, sendo € 233 173,89 a título de capital e € 16 303,01 de juros de mora vencidos, calculados à taxa supletiva fixada para os créditos de que são titulares empresas comerciais, sem prejuízo dos juros vincendos até integral pagamento.
2) Alega, em síntese, ter celebrado com os Réus um contrato, através do qual regularam a compra e promoção por parte da 1ª Ré, em regime de exclusividade, de café da marca “Buondi”, lote “Prestige”, por si comercializado. Bem como que, nos termos do mesmo contrato, os 2º, 3º e 4º Réus assumiram a qualidade de fiadores e principais pagadores solidários, “garantindo a satisfação de todas as obrigações” da 1ª Ré. Afirma que, no dia 01/06/2012, confrontada com sucessivas faltas de pagamento dos fornecimentos efetuados à 1ª Ré, que ascendiam ao montante de € 23 368,88, suspendeu os fornecimentos de café e intentou ação declarativa de condenação contra a mesma. Bem como que, nessa sequência, a 1ª Ré lhe comunicou a resolução do contrato.
3) No dia 25 de fevereiro de 2013, o 3º Réu veio contestar, excecionando que a resolução do contrato foi operada por pessoa que não representava a 1ª Ré e que foi pressuposto da celebração do contrato dos autos, na qualidade de fiador, que se mantivesse gerente da 1ª Ré, cargo que abandonou em finais de 2010. Impugnou a essencialidade da matéria de facto da Petição Inicial e conclui pedindo que a presente ação seja julgada não provada e improcedente quanto a si.
4) No dia 06 de março de 2013, os demais Réus vieram igualmente contestar, contrapondo que, a partir de 01 de junho de 2012, a Autora deixou de prestar o serviço contratado, sem qualquer pré-aviso ou justificação. Defendem que este comportamento constitui incumprimento contratual por parte da Autora, com prejuízos para a 1ª Ré, que se viu privada de uma matéria prima essencial e, consequentemente, da receita resultante da comercialização do café e rematam pedindo que a contestação seja julgada procedente, por provada, e, em consequência, absolvidos do pedido.
5) No dia 15 de maio de 2013, proferiu-se, através de despacho escrito, despacho saneador, fixaram-se os Factos Assentes e a Base Instrutória.
6) No dia 17 de julho de 2014, Maria Clarisse Barros, na qualidade de Administradora de Insolvência no Processo n.º 5463/13.1TBBRG, veio, através de requerimento, informar nos autos que a 1ª Ré foi declarada insolvente, por sentença proferida no dia 12 de setembro de 2013, e requerer que a presente ação fosse julgada extinta por inutilidade superveniente da lide, relativamente a esta Ré.
7) Por sentença proferida nos autos em 03 de novembro de 2014, foi declarada extinta a instância quanto à 1ª Ré, por inutilidade superveniente da lide.
8) No mesmo ato, a Autora foi notificada para informar se reclamou o crédito em discussão nestes autos no indicado Processo de Insolvência, tendo a mesma vindo informar que “não reclamou a verificação do seu crédito” no dito Processo.
9) No dia 10 de dezembro de 2015, foi proferido despacho a designar para a realização do julgamento o próximo dia 03 de março de 2016.
10) No indicado dia 03 de março de 2016, em Audiência Final, deu-se sem efeito o julgamento e determinou-se que se oficiasse ao processo de insolvência em causa, para informasse se no processo foram apreendidos bens e o respetivo valor.
11) A Administradora da Insolvência junto dos autos em causa veio juntar aos autos cópia do respetivo “Auto de Apreensão”, com o teor de fls. 246 e ss, que aqui se dá por reproduzido.
12) No dia 13 de abril de 2016, a Excelentíssima Sr.ª Juiz a quo notificou as partes para se pronunciarem sobre a eventual extinção da fiança por facto superveniente (liberação por impossibilidade de sub-rogação).
13) No dia 27 de abril de 2016, a Autora veio pronunciar-se, no sentido de que os fiadores optaram por não exercer o direito decorrente do eventual pagamento futuro da dívida, como crédito sob condição suspensiva. Bem como que os mesmos não invocaram a exceção em causa, não podendo o Tribunal conhecer oficiosamente da mesma.
14) No dia 28 de abril de 2016, os 2º e 4º Réus vieram – da mesma forma – pronunciar-se, no sentido de que o comportamento omissivo da Autora, em não apresentar a sua reclamação de créditos no prazos em que devia, provocou a impossibilidade do exercício do direito de sub-rogação por parte dos fiadores – podendo eles desvincular-se por virtude deste ato omissivo da aqui Autora.
15) No dia 25 de maio de 2016, foi proferido despacho nos autos, declarando extinta a fiança, com a consequente absolvição dos Réus do pedido, com a seguinte fundamentação jurídica resumida: “(…) No caso em apreço, declarada a insolvência da devedora principal P a autora não reclamou o seu crédito no processo respetivo. Encontra-se certificado nos autos, que no âmbito do processo de insolvência foram apreendidos bens no valor de 263.795,00 €, pelo que não se pode pressupor que a autora ali não obteria a satisfação do seu crédito. A omissão da autora em não ter reclamado o seu crédito na insolvência da devedora principal conduziu à impossibilidade prática de, sub-rogando-se nos seus direitos, obterem os réus fiadores daquela devedora o ressarcimento correspondente. Pelo exposto, se haverá de concluir pela insubsistência da fiança. (…) Em face de tudo o que se deixa exposto, ao abrigo do disposto no art. 653°, do Código Civil, declara-se extinta a fiança e, consequentemente, absolve-se os réus do pedido.”

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IV – DO DIREITO
Cumpre – antes de mais - fazer uma exposição esquemática das formas de defesa em processo civil, nas vertentes das respetivas caraterísticas, modos e tempos, com especial enfoque para as regras pertinentes à apreciação e decisão da matéria de recurso.
O processo civil confere ao réu duas específicas modalidades de defesa: por impugnação e por exceção, ambas como corolário do princípio do contraditório.
Recorrendo às palavras do Mestre Alberto dos Reis(3) “Com a impugnação ou defesa indireta o réu propõe-se demonstrar que o autor não tem o direito de que se inculca titular, ou porque não existe o facto constitutivo, ou porque este não é idóneo para produzir o efeito jurídico que o autor pretende. Com a exceção no sentido amplo o réu alega um facto impeditivo tendente a mostrar que o direito do autor não nasceu (a simulação, por exemplo), ou um facto do qual resulta que o direito do autor nasceu realmente, mas já se extinguiu (o pagamento, por exemplo).”
A nossa lei processual distingue as exceções entre dilatórias e perentórias, sendo as primeiras as que assentam exclusivamente sobre factos processuais e as segundas as que versam diretamente sobre o mérito da ação.
Indo um pouco mais longe, explica Miguel Mesquita(4) “Ao contrário das exceções dilatórias, as exceções perentórias assentam em factos relativos ao mérito da ação ou, se se quiser, numa factualidade regulada pelo direito substantivo, sendo, por esta razão, legítimo considera-las exceções materiais, de mérito ou substantivas.”
Dentre estas últimas, pode e deve ainda distinguir-se entre factualidades impeditivas, modificativas e extintivas. Como exemplos desta última categoria (a única passível de aplicação ao caso presente), sempre conexionada com a posterior extinção da obrigação, Teixeira de Sousa(5) apresenta, exemplificativamente, os casos de verificação de condição resolutiva, prescrição, caducidade, cumprimento, consignação em depósito, compensação, novação, remissão da dívida ou confissão.
Estes vários modos de defesa têm que ser exercidos dentro dos tempos fixados na lei processual. Assim, quanto ao momento da sua arguição, o C.P.Civil estabelece o princípio geral de que a defesa do réu, com exceção dos factos supervenientes ou daqueles que possam ser conhecidos oficiosamente, deve ser deduzida na contestação.
Como exceção, a defesa superveniente é admissível desde que se baseie em facto que tenha ocorrido posteriormente à contestação (superveniência objetiva) ou em facto de que o réu só tenha tido conhecimento em momento posterior ao fim do prazo legal de oferecimento da contestação (superveniência subjetiva).
Quanto ao regime da defesa superveniente, decorre do disposto no art. 588.º do C.P.Civil(6), que os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que foram supervenientes devem ser deduzidos em articulado próprio oferecido na audiência prévia, nos 10 dias posteriores à notificação da data designada para a realização da audiência final, quando não se tenha realizado a audiência prévia ou na audiência final, se os factos ocorrerem ou a parte teve deles conhecimento em data posterior.
A consequência de não apresentação ou de não apresentação atempada desta defesa superveniente implica a respetiva preclusão do direito respetivo (nos mesmos termos aplicáveis à falta atempada de defesa por impugnação ou por exceção na contestação)(7).
Tal como já explicava Alberto dos Reis(8) “Encontram-se aqui em jogo duas exigências antagónicas: por um lado, o interesse no triunfo da verdade aconselha que, até ao momento da decisão definitiva, se deixe a porta aberta a todas as deduções, embora tardias, porque podem trazer ao juiz novos elementos de convicção, favoráveis aos fins da justiça; por outro lado, o interesse da rapidez e da boa fé processual exige que as partes não arrastem o processo mediante um estilicídio, habilmente doseado, de deduções mantidas em reserva, e quer que logo de entrada despejem o saco das suas razões, em vez de lançarem mão de expedientes para surpresas da última hora.”
Numa versão mais atualizada, refere Miguel Mesquita(9) “É sabido que os contrafactos omitidos não podem ser levados em conta pelo juiz, sob pena de nulidade da sentença. Por outro lado, deixa de ser possível a sua alegação posterior destinada a afetar um direito judicialmente reconhecido através de sentença transitada em julgado: os contrafactos omitidos ficam “perdidos” ou “precludidos”.”
Deve, sem margem para dúvidas, entender-se que a falta de dedução de uma exceção perentória no prazo legalmente fixado para o efeito, se traduz numa renúncia à invocação do direito respetivo, ficando o mesmo precludido definitivamente.
No caso em apreciação, em face do acima exposto, é inquestionável que a eventual extinção da fiança por impossibilidade de sub-rogação se traduz numa exceção perentória extintiva. Por outro lado, é incontornável que os Réus tiveram conhecimento da situação de insolvência da 1ª Ré pelo menos com a notificação da sentença, proferida nos autos em 03 de novembro de 2014, pela qual foi declarada extinta a instância quanto à 1ª Ré, por inutilidade superveniente da lide.
Sendo certo que estes não vieram apresentar articulado superveniente no momento processualmente próprio (nos 10 dias posteriores à notificação da data designada para a realização do julgamento), cumpre apreciar se – tal como se refere no despacho recorrido – a questão em causa era de conhecimento oficioso.
É do seguinte teor a decisão recorrida no que a este ponto respeita: “Trata-se de exceção superveniente originada pela declaração de insolvência da devedora principal, que implicou que fossem retirados os respetivos efeitos processuais no âmbito da presente ação. A par da extinção da instância quanto à ré insolvente (devedora principal) haveria que apreciar as consequências quanto aos réus fiadores. Uma dessas consequências é a da extinção da fiança, em caso de não reclamação de créditos pela autora, por impossibilidade de sub-rogação. A exigência de um impulso processual das partes, como manifestação do princípio do dispositivo, apenas tem sentido no que respeita às consequências da verificação de uma causa excetiva e não quanto à referência processualmente verificada da ocorrência do vício que afeta a relação obrigacional e supervenientemente surgido. Assim, cumprido o contraditório, está o tribunal habilitado a decidir tal questão.”
Vejamos:
Com a deslocação do caso julgado para o elenco das exceções dilatórias, o D.L. n.º 329-A/95 introduziu no C.P.Civil uma estatuição vaga, que se limita a prescrever, a este propósito, que “O tribunal conhece oficiosamente das exceções perentórias cuja invocação a lei não torne dependente da vontade do interessado.” (Cf. Antigo art. 496.º e atual art. 579.º), remetendo para a doutrina e para a jurisprudência a tarefa de preenchimento da estatuição.
Miguel Mesquita, na obra já acima citada(10), estabelece, a este respeito, uma distinção entre as exceções em sentido amplo ou impróprio e as exceções em sentido estrito ou em sentido próprio. As primeiras são aquelas que podem e devem ser conhecidas oficiosamente, enumerando as consagradas nos art. 333.º, n.º 1 e 1786.º, do C.Civil, e as segundas como as que têm que entrar no processo através de um ato de vontade da parte interessada.
Ou seja, à luz dos princípios enformadores do processo civil e, em concreto, em face do argumento histórico do preceito legal em causa, deverá entender-se que a estatuição do atual art. 579.º do C.P.Civil tem o seu campo de aplicação restrito às situações em que a lei confere expressamente a possibilidade de conhecimento oficioso, sendo os casos paradigmáticos os da caducidade (cf. art. 333.º do C.Civil) e da nulidade do negócio jurídico (cf. art. 286.º do C.Civil).
Em face destas considerações, é para nós evidente que a matéria da eventual extinção do direito dos fiadores, por impossibilidade de sub-rogação, é uma exceção de direito material e, como tal, a necessitar de ser invocada pela parte a quem aproveita e estando, por inerência, vedado o seu conhecimento oficioso.
Por outro lado, não concordamos com a posição defendida na decisão recorrida, no sentido de que esta decisão é ainda uma decorrência da extinção da instância quanto à 1ª Ré, por inutilidade superveniente da lide.
Como se sabe, a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se “quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo, ou por encontrar satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio.”, citando Lebre de Freitas(11).
Especificamente para o âmbito da insolvência, explica Fátima Reis Silva(12) “(…) no caso já referido de simples ações para cobrança de dívidas, se o processo de insolvência prosseguir para liquidação, em regra, o destino será a inutilidade superveniente da lide. Os créditos terão que ser reclamados, verificados e graduados no próprio processo de insolvência, pelo que o prosseguimento de outra ação com o objetivo de obter a condenação da agora insolvente, é claramente inútil e desprovido de sentido jurídico.”
Aliás, com o fito de ultrapassar divergências jurisprudenciais, foi proferido no Supremo Tribunal de Justiça o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2014, de 08 de maio de 2013(13) com o mesmo entendimento: “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do CIRE.”
Ou seja, a inutilidade superveniente da lide nos casos em que o insolvente seja réu em ação de cobrança de dívidas é uma mera questão de ordem processual e, nessa medida, uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, decorrente do facto de o CIRE, na sequência da decretação da insolvência, obrigar a que todos os créditos do insolvente sejam reclamados e apreciados nessa sede.
Diversamente, tal como ficou explicado acima, a eventual extinção da fiança por impossibilidade de sub-rogação traduz-se numa exceção peremptória de direito material, do tipo extintivo, a necessitar de ser invocada pela parte a quem aproveita e estando, por inerência, vedado o seu conhecimento oficioso.
Ou seja, não se pode confundir e/ou mesclar a decisão de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, de cariz puramente processual, com o conhecimento de uma exceção de direito material, que se traduz numa decisão de mérito.
A conclusão necessária é a da procedência do recurso, por o Tribunal recorrido ter conhecido oficiosamente exceção perentória não invocada atempadamente pelos Réus e subtraída ao seu conhecimento oficioso.
Noutra perspectiva, e em termos supletivos, afigura-se-nos que a omissão da reclamação do crédito pelo credor na insolvência decretada contra o devedor principal não poderia nunca ter os efeitos que lhe foram atribuídos na decisão recorrida.
Quanto à caracterização da figura da fiança, damos aqui por reproduzidas as considerações de ordem geral constantes desta decisão da 1ª Instância: “A fiança define-se como o vínculo jurídico pelo qual um terceiro (fiador) se obriga pessoalmente perante o credor, garantindo com o seu património a satisfação do direito de crédito deste sobre o devedor.
A fiança encerra em si duas características que a definem, sendo estas a acessoriedade e da subsidiariedade. A acessoriedade consiste no facto de a fiança ficar subordinada a acompanhar a obrigação afiançada, em que o fiador é um verdadeiro devedor, mas a obrigação que assume é a de assegurar o cumprimento da obrigação (principal). Já a subsidiariedade, que não está dissociada da acessoriedade, traduz-se no princípio segundo o qual o fiador só responderá pelo pagamento da obrigação se e quando se provar que o património do devedor (afiançado) é insuficiente para a solver. O mesmo é dizer que a subsidiariedade se concretiza no chamado "benefício da excussão", que consiste no direito que o fiador tem de recusar o cumprimento da obrigação enquanto não estiverem excutidos todos os bens do devedor principal.
No contexto da relação da fiança com o devedor e o credor, ensina o Prof. Januário Gomes que o fiador, sendo devedor, é-o de uma dívida própria: a dívida de fiança ou dívida fidejussória, que tem a peculiaridade de, pela técnica da acessoriedade, estar moldada nos termos da dívida principal: ela é moldada per relationem. Esta moldagem não transforma o fiador em devedor da prestação do devedor principal ou num mero "responsável pelo cumprimento da obrigação do devedor"; o fiador só é responsável pelo cumprimento da obrigação do devedor na medida em que, sendo o devedor responsável, ele assumiu um dever de cumprir especialmente conotado com o dever de cumprir do devedor. O fiador passa a dever o mesmo que deve o devedor e não aquilo que por este é devido - "A fiança no quadro das garantias pessoais. Aspectos do Regime", in "Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977. Direito das Obrigações", VoI. III, Coimbra Editora, págs. 79 a 119.”
Defende-se, depois, nessa decisão a aplicabilidade da disposição do art. 653.º do Código Civil e a inerente extinção das fianças, por impossibilidade de sub-rogação.
É certo que, essencialmente com base na opinião de Pires de Lima e Antunes Varela(14), foram proferidas algumas decisões nos nossos Tribunais Superiores neste sentido, designadamente a invocada na decisão recorrida da Relação de Lisboa de 04/02/2010, tendo como Relator Ferreira de Almeida(15).
No entanto, discordamos da respetiva fundamentação jurídica, tal como outros autores e outras decisões jurisprudenciais.
Com efeito, a invocada disposição legal do art. 653.º do C.Civil determina que os fiadores, ainda que solidários, ficam desonerados da obrigação que contraíram, na medida em que, por facto positivo ou negativo do credor, não puderem ficar sub-rogados nos direitos que a este competem.
Tal disposição legal é decorrência lógica da consagração da sub-rogação legal do fiador nos direitos do credor, sempre que cumpra a obrigação decorrente da fiança (cf. art. 644.º do C.Civil), com todas as garantias e acessórios (cf. art. 582.º, n.º 1, do C.Civil ex vi do art. 594.º do mesmo Código).
Assim, é lógico e, mais do que isso, é justo, que o fiador fique desonerado da sua obrigação se e na proporção em que o credor, por facto voluntário seu, fizer desaparecer garantias e /ou acessórios do crédito que, sem tal atuação, lhe seriam transmitidos.
Por assim ser, Januário Gomes(16) salienta que este regime legal do art. 653.º tem aplicação aos casos de garantias associadas ao crédito como são as hipotecas, os penhores, os privilégios, as penhoras ou o direito de retenção.
Diversamente, a insolvência do devedor principal em nada contende com a sub-rogação do crédito do credor primitivo, traduzindo-se diversamente numa potencial impossibilidade de cobrança do crédito sub-rogado.
Isso mesmo tem vindo a ser decidido em várias decisões jurisprudenciais dos Tribunais Superiores, citando-se, a título meramente exemplificativo, o Acórdão desta Relação de 18/01/06, tendo como Relatora Rosa Tching(17), onde se refere: “A declaração de falência dos executados/ devedores afiançados não faz extinguir a obrigação dos executados/devedores afiançados e, por isso, não determina a extinção da fiança. E nem tão pouco faz extinguir o direito de sub-rogação do fiador nos direitos do credor, pois que ainda que advenha uma situação de impossibilidade de efectivação do crédito por insuficiência ou diminuição do património do devedor/falido, nem por isso deixa de ocorrer a sub-rogação. O que o fiador não pode é valer-se dela.”
Por outro lado, e já noutra perspetiva, o art. 95.º, n.º 2, do CIRE permite que, no caso de o credor não reclamar a dívida no processo de insolvência, o garante acautele o seu direito decorrente do eventual pagamento futuro da mesma dívida, mediante a apresentação de uma reclamação como “crédito sob condução suspensiva”.
Assim sendo, em face do actual regime do CIRE, a falta de reclamação pelo credor do respetivo crédito na insolvência do devedor principal não afeta, por qualquer forma, o eventual futuro direito de crédito sub-rogado do fiador.
Explicam Carvalho Fernandes e João Labareda(18) a propósito desta disposição legal: “O titular de um crédito com devedores solidários ou garantes não reclamou o seu direito no processo de insolvência. Este devedor solidário ou garante pode, ainda assim, reclamar no processo o seu crédito derivado de um eventual pagamento futuro da dívida, mas apenas como crédito sob condição suspensiva. Embora a lei não o diga, entende-se que essa condição suspensiva é a de o pagamento pelo devedor solidário ou pelo garante vir a concretizar-se. Nesta base, torna-se compreensível o regime legal, tando mais quanto é certo que, segundo a sua previsão, o crédito a que se refere o pagamento não foi reclamado no processo de insolvência, não havendo, por isso, duplicação na situação passiva da massa. Como se vê da parte final do n.º 2, se o titular do crédito sobre o insolvente o reclamou no processo, já os outros coobrigados e garantes ficam privados de exercer a faculdade de reclamação por crédito futuro mesmo condicional. Se então vierem a pagar, o que se passa é que, demonstrando a situação no processo, assumem a posição do credor originário na parte que couber (Cf. Art. 47.º, n.º 3).”
A nossa conclusão é, portanto a de que, em termos substantivos, a decretação da insolvência do devedor principal não determina a extinção da obrigação do fiador, por não se traduzir numa situação de desaparecimento voluntário das garantias e/acessórios do crédito e, cumulativamente, por o CIRE salvaguardar a posição dos garantes, ao permitir-lhes a reclamação do seu crédito, sob condição suspensiva (Cf. art. 95.º, n.º 2, do CIRE).
Aliás, e tal como defende a Autora/Recorrente em termos supletivos, sempre configuraria uma situação de abuso de direito a atuação dos fiadores que, não tendo usado da faculdade legal prevista neste art. 95.º, n.º 2, do CIRE, viessem posteriormente invocar impossibilidade de cobrança do respetivo crédito.
Reitera-se, com este argumento adicional, a total procedência do recurso da Autora.
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V—DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar totalmente procedente o recurso da Autora, revogando-se o despacho recorrido e, consequentemente, determinando que os autos prossigam os seus normais trâmites quanto aos 2º, 3º e 4º Réus.
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Custas a cargo dos Réus - art. 527.º do C.P.Civil.
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Notifique e registe.

(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)
Guimarães, 23 de fevereiro de 2017

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(Lina Castro Baptista)



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(Maria de Fátima Almeida Andrade)



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(Alexandra Maria Rolim Mendes)


1- Doravante designado apenas por CIRE.
2- Doravante designado por C.P.Civil.
3- In Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora; 1985; p. 32.
4- In Reconvenção e Excepção no Processo Civil, Coleção Teses, Almedina, 2009, p. 28.
5- In As partes, o objeto e a prova na acção declarativa, Lex, 1995, p. 164
6- Aplicável aos presentes autos, apesar de a respetiva data de entrada em Juízo ser a de 22 de janeiro de 2013, por força do disposto no art. 5.º da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.
7- Fala a este propósito Lebre de Freitas na obra acima citada em “momentos de preclusão específicos”.
8- Ob. Cit. p. 49.
9- Ob. Cit. p. 41.
10- Ob. Cit. p.47 e 48.
11- Ob Cit., p. 546.
12- In “Efeitos Processuais da declaração de insolvência” in I Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2013, p. 258.
13- Publicado no D.R. n.º 39/2014, I Série, de 25 de fevereiro de 2014.
14- Estes autores, no Código Civil Anotado, Vol. I, pag. 671 e ss., sustentam que ocorre extinção da fiança, por impossibilidade de sub-rogação, quando o credor não reclame o respetivo crédito no processo de insolvência do devedor.
15- Proferido no Processo n.º 5022/07.8TVLSB.L1-8 e disponível em www.dgsi.pt na presente data. Consigna-se que não encontramos a decisão do Supremo Tribunal de Justiça citada igualmente na decisão recorrida, presumivelmente por lapso na indicação da respetiva data do Acórdão.
16- In Assunção Fidejussória de Dívida, sobre o sentido e o âmbito da vinculação como fiador, Coleção Teses, Almedina, 2000, p. 928 e ss.
17- Proferido no Processo n.º 2421/05.1 e disponível em www.dgsi.pt na presente data. Mais recentemente, foi proferido Acórdão, datado de 31/03/2016, com idêntica fundamentação jurídica, tendo como Relator Fernando Freitas (Processo n.º 85/09.4TBBGC-A.G1).
18- In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, 2015, Quid Juris, p. 445.