Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4/16.1GBMDL.G1
Relator: ELSA PAIXÃO
Descritores: AMEAÇA AGRAVADA
ELEMENTOS DO ILÍCITO
EXPRESSÕES AMEAÇADORAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Preenche o tipo objetivo do crime de ameaça agravado dos artº 153º, nº 1 e 155º, nº1, al. a) do Código Penal a conduta do arguido que, dirigindo-se à ofendida, lhe diz: "eu tenho uma queixa em França e fugi para Portugal para não ir para a prisão, mas em Portugal vou para a prisão, pois trago uma foice na carrinha que te hei-de matar com ela".
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO
Na Instância Local de Mirandela - Secção Competência Genérica (J2) – da Comarca de Bragança, no processo comum singular nº 4/16.1GBMDL foi submetido a julgamento o arguido J. J., tendo sido proferida decisão com o seguinte dispositivo:
Assim, em face do exposto, de facto e de Direito, decide-se, julgar a acusação do Ministério Público totalmente procedente, por provada e, em consequência:
a) Condenar o arguido J. J., pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de ameaças agravadas, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, uma pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 15,00 (quinze euros), o que perfaz o montante global de € 1.800,00 (mil e oitocentos euros).
b) Julgar totalmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pela ofendida M. L., condenando o arguido/demandado civil J. J., a pagar-lhe, o valor de € 1.000,00 (mil euros), a título compensação pelos danos não patrimoniais por aquela sofridos, acrescida dos juros moratórios que se vençam a partir da presente decisão, até efectivo e integral pagamento.
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Custas Criminais
Condena-se o arguido J. J. nas custas do processo, fixando a taxa de justiça em duas unidades de conta, nos termos dos art. 513.º, n.º1 e 514.º, n.º1 do Código de Processo Penal e do art. 8.º, n.º 5 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III, do anexo ao D.L. 34/2008 de 26 de Fevereiro.
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Custas Cíveis do pedido da ofendida
Custas pelo demandado civil J. J. e demandante civil M. L., na proporção do respectivo decaimento, nos termos do art.º 527.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil ex vi artigo 523.º do Código de Processo Penal.
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Proceda ao depósito da presente sentença na secretaria do Tribunal, conforme disposto no artigo 372.º, n.º 5, do Código de Processo Penal.
Notifique.
Após trânsito remeta boletim ao D.S.I.C.
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Inconformado com a sentença condenatória, o arguido J. J. veio interpor recurso, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1-Entende o arguido que não se encontram preenchidos todos os elementos do tipo de crime de ameaças para que pudesse ser o mesmo condenado por tal crime.
2-Com efeito, perante as expressões proferidas pelo arguido, segundo os depoimentos da ofendida e da testemunha M. A., as mesmas não são adequadas a preencher o tipo legal de crime em questão, por não conterem em si a ameaça de um mal futuro, o que constitui um elemento essencial do mesmo.
3-De facto, para que se preencha o tipo legal de crime de ameaças, não pode ser iminente, pois, que neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respetivo ato violento, isto é, do respetivo mal.
4-Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coação, entre ameaça (de violência) e violência. Assim, por exemplo, haverá ameaça, quando alguém afirma: “ hei-de-te matar “, tal como consta na acusação; já se tratará de violência, quando alguém afirma: “ vou-te matar já”.
5-Não constituindo assim a ameaça de um mal futuro, limitador da liberdade individual da visada, mas sim um anúncio de um mal atual, iminente, contra a integridade física da ofendida, que começaria e acabaria ali, integrando caso se concretizasse o crime respetivo, sem que, em qualquer dos casos, o mal anunciado se projetasse na liberdade de decisão e de ação futura da vítima.
6-É também este o entendimento da doutrina e da jurisprudência em geral, o que se pode aferir, por exemplo dos seguintes acórdãos- Acórdão da Relação de Coimbra de 12-12/2001, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28/05/2008 de 28/11/2007, de 25/01/2006.
7- Deste modo e por não se verificar o preenchimento de todos os elementos do tipo ilícito, falta um dos pressupostos legais para que efetivamente se possa afirmar que foi praticado um crime de ameaças, devendo em consequência ser o arguido absolvido da prática do crime em causa. Tendo, assim, sido violados os artigos 153.º, n.º1 e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal.
8-Do conjunto de todos os depoimentos produzidos resulta que não existe factualidade suficiente, segura e conclusiva para que a Mmª Juiz a quo pudesse formar convicção, indubitável e segura, para condenar o arguido pelo aludido crime de ameaças, pelo que deveria, em respeito ao princípio basilar do nosso direito penal- in dúbio pro reo- ter absolvido o arguido.
9-De tudo o que foi exposto e dito, as contradições, os factos erradamente dados como provados, sem sustentação a nível probatório, o princípio da presunção da inocência, o ónus da prova que cabia à ofendida, por tudo isto, não pode deixar de considerar-se que o arguido foi erradamente condenado! Não se provaram os factos dados como provados. Todos os factos contaminados por dúvidas e incertezas que nunca gerariam uma condenação.
10- Sem prescindir do supra alegado e admitindo, por mera hipótese académica, como provados os factos em que assentou a sentença objeto de recurso, constatamos, claramente, que o recorrente não praticou o crime de ameaças agravadas, p. e p. pelos art.ºs 153.º, n.º1 e 155.º, n.º1 al. a) do Código Penal, porquanto as expressões proferidas:“ fugi para França para não ir para a cadeia mas aqui vou que a mato com uma foice” e “ que me matava com uma foice que traz na carrinha”, não integram as características do crime de ameaça, ou seja, não preenchem os requisitos exigíveis para o tipo legal de crime de ameaças.
11-Pelo exposto, o Tribunal violou o artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e não interpretou, nem aplicou, corretamente os art.ºs 153, n.º 1 e 155.º, n.º1, al. a), ambos do Código Penal.
12-Assim, de toda a prova resulta que não ficou provado que o arguido tenha efetuado os factos dados como provados na sentença, ou seja, que tenha proferido “eu tenho uma queixa em França e fugi para Portugal para não ir para a prisão, pois trago uma foice na carrinha que te hei-de matar com ela.”
13-Em suma, não ficou provado que o arguido praticou o crime, pelas divergências dos depoimentos relativamente às expressões que o arguido proferiu.
14-Nos termos do supra alegado e não tendo o recorrente praticado o crime em que foi condenado, deve o mesmo ser absolvido do pedido de indemnização civil.
TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, SER REVOGADA A SENTENÇA RECORRIDA E, EM CONSEQUÊNCIA, SER O RECORRENTE ABSOLVIDO DO CRIME DE AMEAÇAS EM QUE FOI CONDENADO, BEM COMO DO RESPETIVO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL.
FAZENDO-SE, ASSIM A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA
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O recurso foi admitido (cfr. despacho de fls. 127).
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Em resposta ao recurso, o Ministério Público pugnou que o mesmo seja julgado improcedente e mantida a sentença recorrida.
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Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que “deverá ser negado provimento ao recurso”.
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Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
Passemos agora ao conhecimento das questões alegadas no recurso interposto da decisão final proferida pelo tribunal singular.
Para tanto, vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida.
Segue-se a enumeração dos factos provados e não provados e respetiva motivação (transcrição):
II – Fundamentação
a) Factos Provados
Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:
1) O arguido é irmão germano (irmão apenas pela parte do pai), da M. L..
2) No dia 12.01.2016, pelas 09h15, o arguido ligou para o telefone da habitação da M. L., sita na Rua da C… Mirandela.
3) Após uma troca de palavas entre ambos e relacionadas com a partilha de bens, como o arguido já estava a falar alto e em tom exaltado, a M. L., colocou o telefone em alta voz, para que a M. M., consigo residente, pudesse ouvir a conversa.
4) Nessa altura, o arguido proferiu as seguintes expressões, dirigidas à M. L.: “eu tenho uma queixa em França e fugi para Portugal para não ir para a prisão, mas em Portugal vou para a prisão, pois trago uma foice na carrinha que te hei-de matar com ela”.
5) Em acto seguido a M. L. desligou o telefone.
6) Em consequência da actuação do arguido, atento o teor das expressões e a seriedade com que agiu, sentiu a M. L. inquietação e receio pela sua vida e integridade física, temendo que aquele concretizasse as ameaças que lhe foram dirigidas e que a viesse a matar ou a ferir gravemente.
7) Ao actuar da forma descrita, quis o arguido provocar, como efectivamente provocou, inquietação e medo à M. L., fazendo-a recear pela sua vida e integridade física, bem sabendo que a conduta assumida era idónea a obter tal resultado.
8) O arguido actuou voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente puníveis.
9) Em consequência das condutas do arguido a ofendida sentiu medo, inquietação, ansiedade, não tem vontade de fazer nada.
10) O referido em 9) motivou que a ofendida passasse a andar acompanhada para todo o lado, com medo que o arguido concretizasse as ameaças.
11) O referido em 9) motivou que a ofendida tivesse de se dirigir ao Hospital de Mirandela e lhe fosse receitada medicação para a ansiedade.
12) Do Certificado de Registo Criminal do arguido nada consta.
13) O arguido é reformado.
14) Aufere mensalmente de pensão de reforma o valor de € 1.600,00.
15) Vive sozinho em casa própria.
16) Não tem despesas além das da vida corrente com o seu sustento.
17) O arguido é bem reputado no meio onde vive.
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b) Factos não provados
De resto, não se provaram quaisquer outros factos.
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c) Motivação
No que toca à data, ao local e ao objecto do processo, o Tribunal fundou a sua convicção com base no depoimento das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento, conjugados com o teor dos documentos juntos aos autos, mormente os de fls. 51 a 53.
O arguido negou os factos, avançando que apesar dos conflitos à volta das partilhas, jamais ameaçou a irmã.
Tanto a ofendida M. L.como a testemunha M. A. (que presenciou os factos) relataram de modo consistente e seguro como os factos tiveram lugar, logrando convencer o tribunal da sua veracidade.
Não logrou convencer a versão do arguido, atenta a credibilidade revelada pelas referidas testemunhas, a sua espontaneidade e o modo credível como depuseram.
Quanto ao elemento subjectivo dos crimes em questão, o mesmo retira-se da conjugação dos factos provados com as regras da experiência comum, pois qualquer cidadão, que corresponde ao padrão do homem médio, agindo como agiu o arguido, revela intenção directa de praticar os factos, como efectivamente, o fez.
No que respeita aos danos não patrimoniais, que a ofendida alega ter sofrido em consequência da conduta do arguido, baseou-se este Tribunal nas declarações da própria, bem como no depoimento da sua irmã, que descreveu o seu estado de espírito, de forma credível. O tribunal teve em conta, ainda, o teor dos documentos juntos aos autos, mormente os de fls. 51 a 53.
Sobre a personalidade do arguido depôs a testemunha António Anjos, primo do arguido.
Todas as testemunhas depuseram com isenção, credibilidade e objectividade, logrando, deste modo, convencer o Tribunal, tendo conhecimento directo dos factos em questão, como supra se explanou
Relativamente aos antecedentes criminais do arguido, valeu o seu certificado de registo criminal constante dos autos.
Todos os elementos probatórios constantes dos autos foram analisados de uma forma crítica e com recurso a juízos de experiência comum, tendo sido todos articulados e concatenados entre si.

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Enunciação das questões a decidir no recurso em apreciação.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal [cfr. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal” III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada e Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95)].
Assim, face às conclusões apresentadas pelo recorrente, importa decidir as seguintes questões:
- Impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto provada/erro de julgamento; violação do princípio in dubio pro reo;
- Enquadramento jurídico-penal dos factos: falta de preenchimentos dos elementos do tipo do crime de ameaça.
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Passemos à análise da primeira questão.
Da motivação e conclusões do recurso decorre que o arguido pretende impugnar a matéria de facto dada como provada, nos termos do artigo 412º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do Código de Processo Penal, no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º 3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, de conhecimento oficioso, cuja indagação, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum (Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.).
No segundo caso, da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do Código de Processo Penal, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do Código de Processo Penal, como sejam o de especificar os pontos de facto que considera incorretamente julgados e o de especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, além da indicação das provas a renovar, se for caso disso.
Neste tipo de recursos, cujo objeto é a reapreciação da prova, impõe a lei o cumprimento dos requisitos de forma prescritos no artigo 412º nº 3, als. a), b) e c) e nº 4 do Código de Processo Penal, que estabelecem que o recorrente:
a) Indique concretamente os pontos de facto que considera incorretamente julgados, por referência à indicação individualizada dos factos que constam da decisão;
b) Indique as provas que impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação (o que implica a identificação do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa, qual a decisão que se impõe desse meio de prova e porque é que tal decisão se impõe).
Por último, cumpre ainda ao recorrente que:
c) Indique, se for caso disso, as provas que pretende que sejam renovadas, com a menção concreta das passagens da gravação em que baseia a impugnação.
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da decisão recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º do Código de Processo Penal).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do Código de Processo Penal).
No Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ, proferido em 08.03.2012, embora se admita que a referenciação das provas que impunham decisão diversa possa ser efetuada de forma genérica, continua a considerar-se que a sua transcrição é indispensável: “basta para os efeitos do disposto no artigo 412º, nº 3, alínea b), do Código de Processo Penal, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termos das declarações”.
Tais imposições legais fundam-se na necessidade da delimitação objetiva do recurso da matéria de facto, na medida em que o recurso deste tipo não se destina a um novo julgamento com reapreciação de toda a prova, como se o julgamento efetuado na primeira instância não tivesse existido, sendo antes o recurso da matéria de facto concebido pela lei como remédio jurídico (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7.ª edição, atualizada e aumentada, 2008, pág. 105).
Neste sentido decidiu também já o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.09.2009, (disponível em www.dgsi.pt) onde se pode ler que «os nºs 3 e 4 do art.º 412.º do Código de Processo Penal limitam o julgamento da matéria de facto àqueles pontos que referem, mas não permitem o julgamento da globalidade dessa matéria de facto.».
De tudo decorrendo a conclusão que as especificações consagradas nos nºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, apesar de serem de forma, não têm natureza meramente formal ou secundária, antes estando diretamente relacionadas com a inteligibilidade da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, já que só a sua observância permite que o tribunal de recurso se pronuncie sobre o objeto que foi verdadeiramente escolhido pelo recorrente.
Como se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.04.2006, Proc. nº 06P120, (disponível em www.dgsi.pt) com as especificações consagradas nos nºs 3 e 4 do art.º 412º do Código de Processo Penal “visou-se, manifestamente, evitar que o recorrente se limitasse a indicar vagamente a sua discordância no plano factual e a estribar-se probatoriamente em referências não situadas, porquanto, de outro modo, os recursos sobre a matéria de facto constituiriam um encargo tremendo sobre o tribunal de recurso, que teria praticamente em todos os casos de proceder a novo julgamento na sua totalidade. Impõe-se, por isso uma exigência rigorosa na aplicação destes preceitos”.
Debruçando-nos agora diretamente sobre o caso sub judice, da leitura da motivação e conclusões do recurso apresentado pelo arguido, não obstante delas decorrer que o recorrente pretende fazer uma impugnação ampla da matéria de facto, alargada à análise do que se pode extrair da prova produzida em audiência, constatamos, desde logo, que tal recurso não observou o regime prescrito nos n°s 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, pois, não indicou expressamente as passagens em que funda a impugnação, ficando-se pela mera indicação do termo da gravação do depoimento da ofendida M. L. (12h10m), bem como do termo da gravação do depoimento da testemunha M. A. Machado (12h28m), constantes da ata de fls. 92 a 95, sem fazer menção precisa ao início e termo das concretas passagens relevantes.
Com efeito, o recorrente não indicou concretamente as passagens das gravações, em que se funda a impugnação, com referência ao consignado na ata.
A mera omissão de tais indicações nas conclusões do recurso conduziria à formulação de convite para as completar, nos termos do nº 3 do art. 417º do Código de Processo Penal, se tais indicações constassem da motivação. Não constando da motivação, nem sequer é admissível o convite para correção, visto o aperfeiçoamento previsto naquela última norma não permitir a modificação do âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação (nº 4 do mesmo artigo).
O que impede que este tribunal de recurso proceda à reapreciação da prova gravada, tal como essa reapreciação está prevista na lei.
Por outro lado, é notória a falta de razão do recorrente, no que se refere à invocada violação do princípio in dubio pro reo, ínsito no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
Com efeito, a violação do princípio in dubio pro reo ocorre quando, após a produção e a apreciação dos meios de prova relevantes, o julgador se defronte com a existência de uma dúvida razoável sobre a verificação dos factos e, perante ela, decide contra o arguido.
Não estão em causa as dúvidas que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve e devia ter tido, sendo que tal princípio não serve para controlar as dúvidas do recorrente sobre a matéria de facto, mas antes o procedimento do tribunal quando teve dúvidas sobre a matéria de facto.
Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual que conduziu à decisão condenatória, e resultando esse juízo do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, como impõe o artigo 355.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, subordinadas ao princípio do contraditório (art.º 32.º, n.º 1, da Constituição da República), fica afastado o princípio do in dubio pro reo e da presunção de inocência (acórdão do STJ de 27.05.2010, in www.dgsi.pt/jstj).
Por último, tal como acontece com os vícios da sentença a que alude o n.º 2 do art.º 410.º do Código de Processo Penal, a eventual violação do princípio em causa deve resultar, claramente, do texto da decisão recorrida, ou seja, quando se puder constatar que o tribunal decidiu contra o arguido, apesar de tal decisão não ter suporte probatório bastante, o que há de decorrer, inequivocamente, da motivação da convicção do tribunal explanada naquele texto (Neste sentido, o acórdão do STJ de 29.05.2008, relator Conselheiro Rodrigues da Costa, disponível em www.dgsi.pt/jstj).
Ora, no caso em apreço, a prova foi apreciada segundo as regras do artigo 127º do Código de Processo Penal, com respeito pelos limites ali impostos à livre convicção, não só de motivação objetiva segundo as regras da vida e da experiência, e sem que se vislumbre que na apreciação da prova o tribunal tenha incorrido em qualquer erro lógico, grosseiro ou ostensivo.
E, em face do que o tribunal deixou extravasado na sentença, que logrou convencer-se e convencer-nos da verdade dos factos, que deu como provados “para além de toda a dúvida razoável”.
A decisão em apreço baseia-se num juízo de certeza (independentemente do sentido da mesma), não em qualquer juízo dubitativo. É o que dela resulta com clareza.
Ou seja, em momento algum a decisão impugnada revela que o tribunal recorrido tenha experimentado uma hesitação ou indecisão em relação a qualquer facto e acerca da sua autoria. Ao invés, o tribunal recorrido afirma convictamente a matéria dada como provada. E do conhecimento que sobre tal decisão tomámos, igualmente concluímos que a mesma é linear e objetiva, cumpre os pressupostos decorrentes do princípio da livre apreciação da prova [artigo 127.º, do Código de Processo Penal] e não acolhe espaço para dúvidas ou incertezas relevantes.
Pelo que, face a todo o exposto, nada há, pois, a censurar no processo lógico e racional que subjaz à formação da convicção do tribunal, sendo patente a inexistência de quaisquer motivos para se invocar, como faz o recorrente, a violação do princípio in dubio pro reo, ínsito no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
Improcede, assim, este fundamento do recurso.
Aqui chegados e, considerando-se definitivamente assente a matéria de facto dada como provada, cumpre, agora, enquadrar juridicamente a conduta do arguido.
Defende o recorrente que a expressão “eu tenho uma queixa em França e fugi para Portugal para não ir para a prisão, pois trago uma foice na carrinha que te hei-de matar com ela”, não é a ameaça de um mal futuro, mas de um mal atual e iminente contra a integridade física da ofendida, pelo que não preenche o tipo legal previsto e punível pelo art. 153º, nº1 do Código Penal.
Vejamos.
Dispõe o artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal que “quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”.
O bem jurídico protegido pelo citado artigo 153.º é a liberdade de decisão e de ação. “As ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ofendido, afetam, naturalmente, a paz individual que é condição de uma verdadeira liberdade” (Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal – parte especial, tomo I, Coimbra, 1999, página 342).
São elementos deste tipo legal de crime: a) a ameaça da prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor; b) que a ameaça seja adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação da vítima e finalmente; c) o dolo.
A ameaça tem de representar o anúncio de um mal, que tanto pode ser de natureza patrimonial como pessoal; esse mal tem de ser futuro, sendo porém indiferente que o agente refira ou não o prazo dentro do qual concretizará o mal; finalmente, torna-se indispensável que o mal futuro anunciado esteja na dependência da vontade do agente, indispensabilidade essa que deverá ser analisada, tendo como ponto de partida a perspetiva do homem comum, atendendo igualmente aos especiais conhecimentos da pessoa ameaçada.
Em segundo lugar, é necessário que a ameaça seja “adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”.
Como referiu o Professor Figueiredo Dias no âmbito da Comissão de Revisão, “o que se exige, para preenchimento do tipo, é que a ação reúna certas circunstâncias, não sendo necessário que em concreto se chegue a provocar o medo ou a inquietação”(Código Penal – Atas e Projeto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, 1993, página 500). Daí que o normativo legal em causa se assuma atualmente sob a veste de um crime de perigo e já não, como ocorria anteriormente à Revisão de 1995, como um crime de dano. Hoje, já não se exige a ocorrência do dano, como efetiva perturbação da liberdade do ameaçado, mas também não basta a simples ameaça da prática do crime. Assim, desde que a ameaça seja adequada a provocar o medo, mesmo que em concreto o não tenha provocado, verifica-se o preenchimento do tipo legal (neste sentido, cfr. Taipa de Carvalho, Comentário, cit, pág. 348, Simas Santos e Leal Henriques, Código Penal Anotado, volume II, Lisboa, 1996, pág. 185).
Seguindo novamente os ensinamentos do Professor Taipa de Carvalho, “o critério para aferir da adequação da ameaça para provocar o medo ou inquietação é objetivo-individual: objetivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é suscetível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do homem comum); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das «sub-capacidades» do ameaçado). Assim, uma determinada ameaça pode, relativamente a um adulto normal, não ser adequada, mas já o ser quando o ameaçado é uma criança ou uma pessoa com perturbações psíquicas.”
Do que se conclui que a ameaça adequada é aquela que, de acordo com a experiência comum, é suscetível de ser tomada a sério pelo ameaçado, tendo em conta as suas características pessoais.
Entende o recorrente a expressão em causa - “eu tenho uma queixa em França e fugi para Portugal para não ir para a prisão, pois trago uma foice na carrinha que te hei-de matar com ela” - não é a ameaça de um mal futuro, mas de um mal atual e iminente contra a integridade física da ofendida.
A discórdia reside, precisamente, na interpretação que se faz da destrinça entre o que se considera como mal futuro e como mal iminente. Enquanto que uns consideram que, quando o anúncio é de um mal iminente, não há crime de ameaça [cfr. Acs. TRP de 25/9/02, proc.º 0240259, de 22/1/03, proc.º 0210754, de 17/11/04, proc.º n.º 0414654, de 23/2/05, proc.º 0510031, de 30/3/05, proc.º 0510587, de 25/1/06, proc.º n.º 0544124, de 17/5/06, proc.º n.º 0411428, de 22/11/06, proc.º n.º 0614091, de 20/12/06, proc.º n.º 0645320, de 28/11/07, proc.º n.º 0712156, de 28/5/08, proc.º n.º 0841544, de 22/6/11, proc nº 41/10.0GAVMS.P1 e de 7/3/12, proc nº 625/10.6GBVNG.P1; TRG de 1/2/10, proc. nº 495/05.6GBMR.G2; TRC de 7/3/12, proc.nº110/09.9TATCS.C1 e de 30/5/12,proc.nº366/10.4GCTND.C1], outros entendem que o mal iminente, embora esteja próximo, é ainda um mal futuro e a pedra de toque para distinguir o que é ameaça e o que são atos de execução de outro ilícito criminal que o agente tenha decidido cometer [Casos claros em que não há ameaça, mas sim tentativa da prática de outro crime são os que foram analisados nos Acs. TRP de 28/5/03, proc.º 0340713, TRL de 11/12/03, proc. nº 7569/2003-9 e de 3/11/09, proc. nº 1092/02.3PBOER.L1-5, e TRE de 4/11/10, proc. nº 13/07.1GLBJA.E1] (art. 22º nº 1 do C. Penal) estará na intenção que presidiu à conduta em questão [No âmbito deste entendimento, cfr. Acs. TRP de 16/2/00, proc.º n.º 9910861, de 7/1/08, proc. nº 1798/07-2 e de 13/7/11, TRG de 18/5/09, proc. nº 349/07.1PBVCT, TRC de 9/9/09, proc. nº 363/08.0OGAACB.1 e de 23/9/09, proc. nº 541/04.0GBPBL.C1, TRL de 11/2/10, proc. nº 105/08.0PCPDL.L1-9 e d9/3/10, proc nº 1713/06.9TALRS.L1.5, e TRE de 6/9/11, proc nº 428/09.0PBELV.E1].
A posição do recorrente é claramente tributária da lição do Prof. Taipa de Carvalho, que inclusivamente cita, seguida por alguma jurisprudência do TRP e TRC, já citada, segundo a qual o mal, objeto da ameaça, não pode ser iminente, pois, que neste caso, está-se diante de uma tentativa de execução do respetivo ato violento, isto é, do respetivo mal.
A propósito refiram-se também os acórdãos (da mesma Relação do Porto) de 14.7.2004, relatora Conceição Gomes, em que se considerou que ”o arguido diz ao queixoso: "Anda cá para fora, que eu mato-te", está a anunciar um mal futuro; de 30.3.2005, relator Fernando Monterroso, onde foi considerado como mal anunciado futuro, a expressão “eu vou dar cabo de ti, eu vou-te cortar aos bocadinhos”; de 21.6.2006, relator Jorge França, considerou-se como mal futuro, a situação de o arguido, dirigindo-se à ex-mulher, em frente do edifício onde esta residia, a aborda inesperadamente, segurando por alguns momentos a porta do veículo, impedindo-a assim de a fechar, enquanto lhe diz, em tom sério, que queria resposta sobre a casa e “não sabes do que eu sou capaz, eu estoiro-te”; de 30.9.2009, do mesmo relator, onde se entendeu que a expressão “Quando te agarrar para os lados da … faço-te as contas” utilizada de forma séria, no contexto de uma discussão, é suscetível de preencher o tipo legal do crime de ameaça; de 22.9.2010, relatora Lígia Figueiredo, onde se entendeu que preenche o tipo objetivo do crime de ameaça a conduta daquele que, dirigindo-se a outrem, lhe diz: “hei de te pôr numa cadeira de rodas”; de 6.10.2010, relator Moisés Silva, onde se considerou preencher o tipo objetivo do crime de ameaça a conduta daquele que, dirigindo-se a outrem, lhe diz: «hei de tratar-te da saúde, e só não é hoje porque tenho uma distensão muscular”.
De facto, o Prof. Taipa de Carvalho assinala que “O mal ameaçado tem de ser futuro. Isto significa apenas que o mal, objeto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respetivo ato violento, isto é do respetivo mal. Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coação, entre ameaça (de violência) e violência. Assim, p. ex, haverá ameaça, quando alguém afirma hei-de-te matar: já se tratará de violência quando alguém afirma “vou-te matar já” (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, cit., pág. 343).
Mas, salvo o devido respeito, este trecho do texto do Prof. Taipa de Carvalho tem de ser cuidadosamente ponderado e aquelas palavras não podem ser aplicadas acriticamente, sob pena de inadmissíveis ofensas à legalidade democrática, criando áreas de impunidade criminal onde o legislador as não autoriza, para além de se atraiçoar o pensamento daquele Mestre.
Antes do mais, é manifesto que o mal objeto da ameaça tem de ser um mal futuro.
Ameaçar “é anunciar a alguém um grave e injusto dano, necessariamente futuro” (Ac. do TRP de 17-1-1996, proc.º n.º 9540886, rel. Fernando Fróis, in www.dgsi.pt).
Mal futuro que se contrapõe a um mal passado.
O anúncio de um mal que se projetaria no passado não constitui ameaça. Assim, a expressão ““eu tenho uma queixa em França e fugi para Portugal para não ir para a prisão, mas em Portugal vou para a prisão, pois trago uma foice na carrinha que te hei-de matar com ela”, dirigida pelo arguido à ofendida, por ser uma ameaça de ação em tempo passado não tem objetivamente, de forma inequívoca, o sentido de uma ameaça para o futuro, pelo que não integra o crime de ameaça”(Ac. da Rel. do Porto de 6-7-2000, proc.º n.º 0010392, rel. Marques Pereira, in www.dgsi.pt).
Mas o futuro é o tempo que há de vir, aquilo que vai ser ou acontecer num tempo depois do presente (Academia das Ciências de Lisboa, Dicionário da língua Portuguesa Contemporânea, I vol., 2001, pág. 1846), o tempo que se segue ao presente, o que está por vir, que há de ser, que deverá estar, que há de acontecer, suceder (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Lisboa, 2003, tomo IV, pág. 1828), aquilo que há de ser (Cândido de Figueiredo, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, 25ªed, vol. II, 1996, pág.1225), que há de vir (José Pedro Machado, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Lisboa, 1991, vol. III, pág. 170), que está para ser, que está por acontecer (Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 2004, pág. 803).
Que o agente refira ou não o prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o este seja curto ou longo é irrelevante (Taipa de Carvalho, cit, §7, pág. 343).
O mal iminente é o mal que está próximo, que está prestes a acontecer.
Por isso, o mal iminente é ainda mal futuro, porque é um mal que ainda não aconteceu, que há de ser, que há de vir, embora esteja próximo, prestes a acontecer.
É claro que sendo o mal iminente poderemos estar perante uma tentativa de execução do respetivo ato violento, isto é do respetivo mal, já que segundo a alínea c) do artigo 22º do Código Penal, o anúncio daquele mal pode, segundo a experiência comum, ser de natureza a fazer esperar que se lhe sigam atos das espécies indicadas nas alíneas anteriores, isto é, atos que preencham um elemento constitutivo de um tipo de crime, ou que sejam idóneos a produzir o resultado típico.
Mas daí se não segue, necessariamente, que deixe de existir uma ameaça.
É que, para haver tentativa não basta a prática de atos de execução é necessário que esses atos sejam de execução de um crime que o agente “decidiu cometer” (art. 22º, n.º1).
Aliás, algumas linhas à frente do excerto acima citado e que tantas incompreensões tem gerado, o próprio Prof. Taipa de Carvalho esclareceu que “Necessário é só, como vimos, que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa (cf. art. 22º-2-c) – op. cit. § 7, pág. 343).
Se, por exemplo, o agente não tem intenção de matar, aquela expressão, não integra um ato de execução de um crime de homicídio, mas integra claramente um crime de ameaças, verificados os demais pressupostos deste tipo de crime, nomeadamente a consciência do agente da suscetibilidade de provocação de medo ou intranquilidade [cfr. neste sentido, v.g., o Ac. do TRL de 17-6-2004,proc.º n.º 3525/04, rel. Almeida Cabral “(…) o agente que no calor de uma discussão, de natureza familiar, diz para a vítima em tom sério ‘mato-te’, comete o crime de ameaças previsto no art.º153º do Cód. Penal)”, in www.pgdlisboa.pt), o Ac. do TRP de 5-1-2000, proc.º n.º 0040533, rel. Pinto Monteiro, em que estavam em causa as expressões “sua filha da puta, eu rebento-te os cornos” e “mato-vos a todos, seus filhos da puta” dirigidas pela arguida à assistente, o Ac. da Rel. do Porto de 25-8-1999, proc.º n.º 9910861 em que estava em causa a conduta da arguida que intimidou a assistente, encostando à cabeça desta uma pistola que sabia não estar municiada, ao mesmo tempo que disse que a matava e que já tinha sete palmos à conta dela de sepultura”, ambos in www.dgsi.pt,], sendo certo que a motivação da ameaça como crime autónomo é irrelevante [neste último sentido cfr. Taipa de Carvalho, cit., §5, pág. 342 e §26, pág. 351, e o Ac. do TRP de 18-9-2002, proc.º n.º 0110489, rel. Baião Papão (“Para integrar o elemento subjetivo deste ilícito o que releva é a consciência do agente da suscetibilidade de provocação de medo ou intranquilidade, sendo irrelevante que o agente tenha ou não a intenção de concretizar a ameaça”)].
Revertendo para o caso em análise, sem esquecer as considerações expostas.
Atentemos que a factualidade considerada provada pelo tribunal a quo se encontra definitivamente assente.
Provou-se que o arguido proferiu as seguintes expressões, dirigidas à M. L.: “eu tenho uma queixa em França e fugi para Portugal para não ir para a prisão, mas em Portugal vou para a prisão, pois trago uma foice na carrinha que te hei-de matar com ela”.
Em consequência da atuação do arguido, atento o teor das expressões e a seriedade com que agiu, sentiu a M. L. inquietação e receio pela sua vida e integridade física, temendo que aquele concretizasse as ameaças que lhe foram dirigidas e que a viesse a matar ou a ferir gravemente.
Provou-se ainda que ao atuar da forma descrita, quis o arguido provocar, como efetivamente provocou, inquietação e medo à M. L., fazendo-a recear pela sua vida e integridade física, bem sabendo que a conduta assumida era idónea a obter tal resultado. O arguido atuou voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente puníveis.
Ora, atenta tal factualidade e face a todo o exposto não restam dúvidas de que a expressão em causa – “eu tenho uma queixa em França e fugi para Portugal para não ir para a prisão, mas em Portugal vou para a prisão, pois trago uma foice na carrinha que te hei-de matar com ela” - traduz o anúncio de mal futuro e, consequentemente, por se encontrarem preenchidos os elementos objetivos e subjetivo do tipo, a conduta do arguido integra a prática de um crime de ameaça agravada.
Não merece, pois, censura a sentença recorrida quanto ao enquadramento jurídico-penal efetuado e respetiva condenação penal e cível (a propugnada absolvição do pedido de indemnização cível pressupunha a pretendida alteração da matéria de facto provada, o que não se concede, conforme acima decidido).
Assim, bem andou o tribunal a quo em condenar o arguido, pela prática, como autor material, de um crime de ameaça agravada, previsto e punível pelos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, o que fez sem violar qualquer disposição legal ou princípio constitucional, mormente os invocados pelo recorrente.
Improcede, assim, o recurso.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido J. J., mantendo a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 4 UC’s a taxa de justiça.
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Guimarães, 23 de janeiro de 2017