Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
171/13.6JAPRT.G1
Relator: CÂNDIDA MARTINHO
Descritores: PENA DE MULTA
CONVERSÃO PRISÃO SUBSIDIÁRIA
AUDIÇÃO PRÉVIA DO CONDENADO
VIOLAÇÃO CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/09/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) A decisão de conversão da multa em prisão subsidiária tem de passar por conceder previamente ao condenado a oportunidade de esclarecer a questão do não pagamento da multa.
II) Tal decisão pressupõe, sem qualquer dúvida, que o condenado se pronuncie sobre as razões do não pagamento da multa ou do incumprimento da prestação do trabalho, de molde a apurar-se se lhe são ou não imputáveis.
III) Não tendo sido dada a oportunidade ao condenado, ora recorrente, de se pronunciar sobre a possibilidade de reverter a multa não paga em prisão subsidiária, tal não pode deixar de configurar uma violação do princípio do contraditório, o qual, na perspectiva do arguido, pretende assegurar os seus direitos de defesa, no sentido de que nenhuma decisão seja proferida sem que previamente tenha sido precedida de ampla e efectiva possibilidade de ser contestada ou valorada contra o sujeito processual relativamente ao qual aquela é dirigida.
IV) E, nessa medida, o arguido tem de ter a oportunidade efetiva de discutir e tomar posição sobre essa conversão tomada contra ele.
Decisão Texto Integral:
Desembargadora Relatora: Cândida Marinho
Desembargador Adjunto: António Teixeira

Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I.Relatório

1.
Nestes autos de processo comum, com intervenção de juiz singular, com o número 171/13.6JAPRT, que corre termos na comarca de Vila Real - Juízo Local Criminal, foi proferido o seguinte despacho:
«O arguido J. R. foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez e um crime de uso de documento falso, por sentença já transitado em julgado, na pena única de 150 dias de multa à taxa diária de € 5.
O arguido não requereu o pagamento em prestações da pena de multa, nem substituição por prestação de trabalho a favor da comunidade.
Dadas as informações obtidas de que não dispõe de quaisquer bens ou rendimentos suscetíveis de penhora, não foi possível proceder à cobrança coerciva de tal quantia.
Cumpre assim proceder nos termos do disposto no artigo 49.º, do código penal, à conversão da multa não paga em prisão subsidiária, pelo tempo correspondente reduzido a dois terços.
Nestes termos, sendo a pena de 150 dias de multa, o tempo de prisão corresponderá a 100 dias (150 x 2/3).
Decisão
Pelo exposto, fixo, ao abrigo do disposto no artigo 49.º, n.º 1, do código penal, e face ao não pagamento da pena de multa, em 100 (cem) dias o tempo de prisão a cumprir pelo arguido J. R..
Notifique o arguido, com o esclarecimento de que o arguido poderá, a todo o tempo, evitar total ou parcialmente, a execução da pena de prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa a que foi condenado.
Transitado o presente despacho, emita os competentes mandados de detenção e condução do arguido ao estabelecimento prisional»

2.
Não se conformando com o decidido, veio o arguido recorrer do mencionado despacho, extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:

«1 – Foi o Arguido condenado, em cúmulo jurídico, na pena de 150 dias de multa à taxa diária de € 5,00 (cinco euros) no âmbito dos presentes autos pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, doravante CP, e de um crime de uso de documento falso, p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, al. e) e n.º 3 do CP.
2 – Não tendo o mesmo efectuado o pagamento da referida pena, foram efectuadas diligências para a execução da mesma não tendo, contudo, sido possível tal cobrança coerciva.
3 – Nessa sequência foi promovido pelo MP a notificação do Arguido nos termos e para os efeitos do artigo 49.º, n.º 2 e 3 do CP.
4 – Acontece que o tribunal “a quo” proferiu, sem mais, a conversão da pena de multa aplicada em prisão subsidiária,
5 – Em violação do previsto no artigo 49.º, n.º 2 e 3 do CP e, bem assim,
6 – Em violação do direito ao contraditório previsto na al. b) do n.º 1 do artigo 61.º do CPP e estabelecido no artigo 32, n°5 da Constituição da República, e, bem assim, atenta a garantia de defesa prevista no artigo 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.
7 – A referida violação constitui nulidade insanável nos termos do disposto no artigo 119.º, al. c) do CPP.

TERMOS EM QUE CONCEDENDO V/EXAS. TOTAL PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO DEVE REVOGAR-SE, EM CONSEQUÊNCIA, O DESPACHO RECORRIDO, ORDENANDO-SE A NOTIFICAÇÃO DO ARGUIDO CONDENADO/RECORRENTE DA PROMOÇÃO PROFERIDA, ASSIM FAZENDO V/EXAS., COMO HABITUALMENTE, INTEIRA JUSTIÇA!»

3.
A Exma Procuradora da República, na primeira instância, respondeu ao recurso e pugnando pela sua procedência, concluiu nos seguintes termos.
«1. Tendo a pena de multa a que originariamente o recorrente foi condenado sido convertida em dias de prisão subsidiária, o condenado veio recorrer de tal despacho, invocando a violação do princípio do contraditório, por não ter sido o despacho precedido de audição do condenado, o que determina a nulidade do despacho.
2. Com efeito, o despacho recorrido não foi precedido de audição prévia do recorrente.
3. Dada a natureza da pena subsidiária e porque o arguido pode demonstrar que o não pagamento da multa não lhe é imputável, requerendo nomeadamente a suspensão daquela (pena subsidiária), ao abrigo do preceituado no n.º 3, do artigo 49.º, importa ouvi-lo previamente.
4. A audição do arguido é a forma processual e legal de dar efetividade ao exercício do direito deste ser ouvido ([artigo 61.º, n.º 1, alínea b) Código de Processo Penal] e ao princípio do contraditório.
5. Verificando-se a omissão desta audição prévia do arguido, verifica-se a nulidade processual do artigo 119º, alínea c) do Código de Processo Penal, exatamente por violação do artigo 61.º, n.º 1, alínea b) do mesmo diploma.
6. Ora, sendo determinado o cumprimento da prisão subsidiária, sem ter sido assegurado ao condenado o contraditório, foi, de facto, cometida uma nulidade insuprível, passível de ser suscitada em fase de recurso.
7. Pelo exposto, deverá o recurso proceder, e, consequentemente, ser revogado o despacho recorrido.
PERANTE O SUPRA EXPENDIDO É NOSSO ENTENDIMENTO QUE ASSISTE RAZÃO AO RECORRENTE, DEVENDO, POR ISSO, DECLARAR-SE O RECURSO PROCEDENTE.
ASSIM DECIDINDO FARÃO V. EX.AS, ALIÁS COMO SEMPRE, JUSTIÇA!»

4.
Neste tribunal da Relação, a Exma Procuradora-Geral Adjunta, remetendo para a resposta apresentada na primeira instância e dando a mesma por reproduzida, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

5.
Cumprido o art. 417º,nº2, do C.P.P., o arguido não respondeu ao parecer.

6.
Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art.419º,nº3,al.c), do diploma citado.


II. Fundamentação

Definindo-se o âmbito do recurso pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - arts. 402º,403º e 412º, todos do C.P.P. - naturalmente sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso (Cf.Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, VolIII, 1994,pág.340, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição,2009,pág.1027 a 1122, Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 7ªEd, 2008, pág.103), no caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente, a questão a decidir passa por saber se previamente à conversão da multa criminal em pena de prisão subsidiária se torna necessária a audição do arguido a respeito de tal possibilidade e, em caso afirmativo, se tal omissão constitui nulidade insanável nos termos do disposto no artigo 119.º, al. c) do CPP.
No caso dos autos o arguido, ora recorrente, tendo sido condenado numa pena única de 150 dias de multa, não requereu o seu pagamento em prestações, nem a sua substituição por prestação de trabalho a favor da comunidade.
Porém, não vindo a proceder ao seu pagamento voluntário e mostrando-se inviabilizada a cobrança coerciva de tal quantia, o tribunal recorrido, na sequência da promoção do Ministério Público, nesse sentido, determinou a conversão da pena multa não paga em 100 dias prisão subsidiária.
Fê-lo, porém, sem ter dado a possibilidade ao arguido de se pronunciar a tal respeito.
E aqui reside a discordância do recorrente, o qual não se conforma com tal omissão.
Vejamos então se lhe assiste razão.

Dispõe o art.º 49º do CPenal que:

“1 - Se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punível com prisão, não se aplicando, para o efeito, o limite mínimo dos dias de prisão constante do n.º 1 do artigo 41.º
2 - O condenado pode a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa a que foi condenado.
3 - Se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa, por um período de 1 a 3 anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro. Se os deveres ou as regras de conduta não forem cumpridos, executa-se a prisão subsidiária; se o forem, a pena é declarada extinta.”
(...)

Por seu turno, estatui o artigo 489.º do Código de Processo Penal que:

1 - A multa é paga após o trânsito em julgado da decisão que a impôs e pelo quantitativo nesta fixado, não podendo ser acrescida de quaisquer adicionais.
2 - O prazo de pagamento é de 15 dias a contar da notificação para o efeito.
3 - O disposto no número anterior não se aplica no caso de o pagamento da multa ter sido diferido ou autorizado pelo sistema de prestações.


Já o 491º, do mesmo diploma, sob a epígrafe Não pagamento da multa, dispõe que:

1 - Findo o prazo de pagamento da multa ou de alguma das suas prestações sem que o pagamento esteja efetuado, procede-se à execução patrimonial.
2 - Tendo o condenado bens penhoráveis suficientes de que o tribunal tenha conhecimento ou que ele indique no prazo de pagamento, o Ministério Público promove logo a execução, que segue as disposições previstas no Código de Processo Civil para a execução por indemnizações.
3 - A decisão sobre a suspensão da execução da prisão subsidiária é precedida de parecer do Ministério Público, quando este não tenha sido o requerente.

Extrai-se da conjugação destes preceitos legais que a pena de multa é paga após o trânsito em julgado da decisão que a impôs e pelo respectivo quantitativo fixado, no prazo de 15 dias a contar da notificação para o efeito. Porém, pode o condenado requerer o seu pagamento a prestações (art.º 47.º nº 3 do CP), ou a sua substituição por trabalho (art.º 48º do CP).

Ou seja, a pena de multa pode ser cumprida de forma voluntária e imediata, deferida ou em prestações e em substituição por trabalho.
Se o condenado não proceder ao pagamento de forma voluntária e não requerer o pagamento em prestações, ou a sua substituição por prestação de trabalho a favor da comunidade, há lugar à execução patrimonial.
Não sendo esta possível, será então altura de ponderar a conversão da pena de multa em prisão subsidiária.
Todavia, esta não é imediata.
Assim, no caso da pena de multa não ter sido substituída por dias de trabalho, nem ter sido paga voluntária ou coercivamente, resulta do nº3 do citado art.49º que a sua conversão em prisão subsidiária pode ainda ser suspensa na sua execução por um período de 1 a 3 anos, desde que subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro, se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável.
Também no caso da pena de multa ter sido substituída por prestação de trabalho, o incumprimento da prestação não determina de forma imediata a conversão da multa em prisão subsidiária, pois, como também resulta do nº4 do mesmo preceito legal, se o condenado provar que tal incumprimento não lhe é imputável há lugar também à suspensão da prisão subsidiária nos termos referidos.
Do exposto, percebe-se pois porque razão a decisão de conversão tem de passar por conceder previamente ao condenado a oportunidade de esclarecer a questão do não pagamento da multa.
Tal decisão pressupõe, sem qualquer dúvida, que o condenado se pronuncie sobre as razões do não pagamento da multa ou do incumprimento da prestação do trabalho, de molde a apurar-se se lhe são ou não imputáveis.
A jurisprudência tem, aliás, sido unânime a propósito da necessidade de tal audição. Com efeito, no termos do artigo 61,nº1,al.b), do C.P.P, o arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as exceções da lei, do direito de ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que os afete.
Como salienta Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, 1984, pág.158 “O direito de audiência é a expressão necessária do direito do cidadão à concessão da justiça, das exigências comunitárias inscritas no Estado de Direito como tarefa do homem e, finalmente, do espírito do Processo como «comparticipação» de todos os interessados na criação da decisão”, pelo que há-de assegurar-se “ao titula do direito uma eficaz e efetiva possibilidade de expor as suas próprias razões e de, por este modo, influir na declaração do direito do seu caso”.
Trata-se de uma emanação do princípio do contraditório, consagrado constitucionalmente - art.32º, nº5, do CRP.
Ora, não tendo sido dada a oportunidade ao condenado, ora recorrente, de se pronunciar sobre a possibilidade de reverter a multa não paga em prisão subsidiária, tal não pode deixar de configurar uma violação do princípio do contraditório.
Principio este que, na perspectiva do arguido, pretende assegurar os seus direitos de defesa, no sentido de que nenhuma decisão seja proferida sem que previamente tenha sido precedida de ampla e efectiva possibilidade de ser contestada ou valorada contra o sujeito processual relativamente ao qual aquela é dirigida.
E, nessa medida, o arguido tem de ter a oportunidade efetiva de discutir e tomar posição sobre essa conversão tomada contra ele.
Trata-se, claro está, do “direito de ser ouvido”, enquanto direito de se dispor de uma efetiva oportunidade processual para se tomar uma posição sobre aquilo que o afeta.
Aqui chegados, comprovada a preterição da formalidade da audição do condenado mostra-se verificada a nulidade insanável prevista no art. 119º,al.c) do C.P.P. e invocada pelo recorrente no presente recurso, a qual tem como consequência a declaração de nulidade do despacho judicial que se seguiu à mencionada omissão, devendo, em conformidade, o tribunal recorrido substitui-lo por outro que previamente assegure ao condenado o exercício do contraditório em relação à promoção para conversão da pena de multa na prisão subsidiária.
Como se fez constar do Acórdão da Relação de Évora de 30/9/2014, in dgsi.pt, «Tanto do ponto de vista gramatical, como sistemático e teleológico, não há nenhuma razão para que a referência do artigo 119º do C.P.P. a qualquer fase de procedimento deva ser entendida como reportando-se unicamente às fases preliminares (inquérito e instrução) e à fase de julgamento do processo penal. Antes abrange igualmente as nulidades insanáveis verificadas na fase de execução do processo penal, nomeadamente as respeitantes às normas do C.P.P. que disciplinam a execução das penas não privativas da liberdade»

III. Dispositivo

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães em dar provimento ao recurso e, em conformidade, declarar nulo o despacho judicial que se seguiu à omissão da audição do condenado, ora recorrente, o qual deve ser substituído por outro que previamente lhe assegure o exercício do contraditório em relação à promoção para conversão da pena de multa na prisão subsidiária.

Sem tributação
Guimarães, 9 de novembro de 2020