Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
172/20.8T8VVD.G1
Relator: JOSÉ CARLOS PEREIRA DUARTE
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
TUTELA DO CONSUMIDOR
FALTA DE CONFORMIDADE DO BEM COM O CONTRATO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/14/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. A nulidade da sentença por omissão de pronúncia (primeira parte da alínea d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC) aplica-se quando o juiz deixe de conhecer algum dos pedidos, alguma das causas de pedir, alguma das excepções ou alguma questão de conhecimento oficioso.
II. A falta de pronúncia quanto a um facto alegado, não se traduz em omissão de pronúncia, porque os factos não constituem uma questão a resolver.
III. A decisão de facto pode apresentar as seguintes patologias:
i) - conter asserções conclusivas, genéricas ou matéria de direito;
ii) - revelar-se excessiva;
iii) - ser deficiente, obscura ou contraditória;
iv) - carecer de ampliação;
v) - não estar devidamente fundamentada;
vi) - haver erro de apreciação da prova, isto é, pode o tribunal a quo ter dado como provados factos que face à prova produzida deviam ter sido considerados não provados ou vice-versa.
IV. As patologias referidas nos pontos i) a v) são de conhecimento oficioso, na medida em que constituem aplicação do direito processual; a patologia referida no ponto vi) carece de ser invocada.
V. O principio subjacente artigo 646º, n.º 4 do CPC revogado, que determinava terem-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e que se aplicava, por analogia, à matéria conclusiva, está hoje subjacente ao disposto no n.º 4 do art. 607.º, segundo o qual, na fundamentação da sentença o juiz declara quais os factos que julga provados.
VI. Ao dispor no n.º 1 do art.º 5º, que às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas e ao dispor no n.º 2 que o tribunal considera os factos articulados pelas partes e ainda a factualidade referida nas alíneas a) a c) do n.º 2, o legislador excluiu a possibilidade de o tribunal fundar a decisão em factos essenciais consubstanciadores de uma causa de pedir ou excepção não invocadas.
VI. A decisão de facto será deficiente quando o tribunal não se pronuncie sobre factos essenciais ou complementares, de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso.
VII. Se o suprimento da deficiência da decisão de facto não tiver a virtualidade de, segundo as diversas soluções plausíveis das várias questões de direito, conduzir, de per si ou conjugados com outros factos, à alteração do julgado, à luz do disposto no art.º 130º do CPC não faz sentido extrair consequências da sua verificação.
VIII. O recorrente tem um ónus de alegação e um ónus de conclusão.
IX. No que respeita à impugnação da decisão de facto, o recorrente cumpre o ónus de alegação expondo o raciocínio argumentativo tendente a demonstrar por que considera que se impõe a alteração da decisão quanto a determinado ponto de facto, raciocínio argumentativo esse que passa, em primeiro, pela indicação do facto que foi considerado provado ou não provado e em segundo pela indicação dos meios probatórios e das razões pelas quais o recorrente considera que aqueles e estas impõem se considere não provado, ou provado, consoante for o caso, aquele facto.
X. Quanto ao ónus de conclusão é cumprido mediante a indicação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que, em função e em consequência daquele raciocínio argumentativo, o recorrente considera incorrectamente julgados.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

1. Relatório
  
AA Peña intentou acção declarativa contra “Stand EMP01...” e BB, pedindo:
a) Seja julgado válido e eficaz o direito de anulação do negócio invocado pela autora;
b) Serem os Réus solidariamente condenados a devolver à Autora o valor do preço recebido pela venda da autocaravana, bem como de todas as reparações efectuadas acrescido dos respectivos juros de mora desde a interpelação até efectivo e integral pagamento;
c) Ser julgada provada a relação de consumidor e comerciante, e por via disso, válido o direito de resolução do contrato celebrado;
Caso assim não se entenda, então subsidiariamente:
d) Ser julgado tempestiva a denúncia dos defeitos pela Autora e por via disso legítimo o direito de anulação do negócio, pois os Réus induziram dolosamente a Autora em erro, sendo certo que se a autora soubesse do erro-vicio nunca teria adquirido a autocaravana;
e) Ser julgado válido e eficaz o direito de anulação invocado pela autora;
f) Ser julgado procedente o pedido de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais formulado pela Autora;
g) Serem os Réus condenados no pagamento solidário dos juros de mora desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;
h) Ou então, obrigar em último recurso os Réus a procederem à reparação/substituição do veículo.

Alegou para tanto, em síntese, que, na data que indica, dirigiu-se ao stand de venda de automóveis EMP01..., onde adquiriu ao 2º R. uma autocaravana que identifica, pelo preço de € 10.500,00, com a garantia de um ano; o 2º R dedica-se, com intuito lucrativo, à compra e venda de veículos automóveis; a A. tomou conhecimento da venda do referido veículo através de anúncio publicado em sitio próprio na internet que o 1º R. tinha colocado; após contacto telefónico, foi encaminhada para as instalações do 1º R., onde o 2º R. lhe mostrou o veículo; este encontrava-se exposto nas instalações do 1º R. para venda, juntamente com mais duas autocaravanas e dezenas de outros veículos; todo o processo negocial decorreu nas instalações do estabelecimento de venda de automóveis que gira com o nome de EMP01..., com a presença do 2º R., onde foi assinado o contrato; os RR. asseguraram à A. que o veículo se encontrava em perfeitas condições, tendo-lhe garantido que o mesmo não padecia de qualquer problema de infiltração nem de motor; a A. solicitou aos RR. que fosse realizada uma vistoria à autocaravana, para aferir das suas concretas condições, ao que os RR. anuíram; a A. levou a autocaravana à oficina que indica, a qual efectuou uma vistoria ao motor e caixa de velocidades, tendo-lhe sido dito que o veículo estava em conformidade; em face disso a A. entregou ao 2º R. o sinal que indica; a 31 de Julho de 2019 deslocou-se às instalações do 1º R. e procedeu ao pagamento do remanescente do preço, tendo trazido a viatura consigo.

Mais alegou que desde a data da aquisição procedeu à manutenção da autocaravana tendo realizado as intervenções que indica.

Alegou também que em Setembro de 2019 dirigiu-se a uma oficina para proceder à colocação de painéis solares na autocaravana, tendo sido informada que isso não era possível, porque a mesma estava repleta de pequenos furos, com milímetros, suficientes para causar infiltrações, as quais já existiam há vários anos, por aquela apresentar a parte de madeira podre, nomeadamente na parte do cappuccino, paredes e tecto, o que a A. desconhecia, até porque se conhecesse, nunca teria adquirido a mesma e, até à data, ainda não tinha chovido para a A. se aperceber das infiltrações; a A. foi alertada que a reparação da autocaravana ultrapassa os € 20.000,00; após os factos referidos, a A. denunciou os defeitos ao R., que tinha conhecimento dos mesmos; e exerceu o direito de anulação  do negócio, interpelando o R. para que agendasse dia e hora no stand de vendas, para que cada uma das partes entregasse o que recebeu, com o que o R. não concordou; tem a haver dos RR. as quantias que indica, no total de € 12.494,52; está impossibilitada de usar a autocaravana; o preço foi pago com as suas poupanças; comprou a mesma para conhecer o país com os filhos menores; a imobilização da autocaravana causa transtorno e angústia, sentimentos de inoperância e impotência, amargura e frustração, angústia, ansiedade, noites sem dormir, férias estragadas, pelo que tem direito a ser indemnizada no valor de € 2.500,00.

Contestaram os RR. EMP02... Unipessoal, Ldª e BB por excepção, invocando a ilegitimidade passiva da 1ª Ré EMP01... e a caducidade da acção.

Quanto à última invocaram que a compra e venda foi celebrada a 31 de Julho de 2019, tendo a mesma sido precedida de negociações entre as partes; foi dada oportunidade à A., a solicitação desta, de inspeccionar as condições do veículo em oficina designada pela mesma, onde foram realizados todos os procedimentos adequados para a verificação das condições do veículo, tendo a mesma obtido aprovação dos técnicos que realizaram a competente vistoria; o preço corresponde ao de um veículo usado; a A. aceitou a celebração do negócio, sabendo de todas as características, desgaste e estado de conservação do veículo, as quais não comprometiam o uso para que se destina ou a segurança; a denúncia dos eventuais defeitos foi feita dois meses após a entrega da coisa e a acção foi proposta para além dos seis meses contados da entrega da coisa.

Mais alegaram que o negócio foi realizado a título particular, uma vez que o 2º R. era o legítimo proprietário do veículo, tendo transferido a propriedade do mesmo para a A. mediante o contrato de compra e venda celebrado entre as partes; a autocaravana apenas se encontrava num stand por uma questão de logística; a A. sabia que a viatura era vendida a titulo particular, pelo que  não existe qualquer obrigação de garantia, uma vez que o mesmo não se enquadra no conceito de comerciante; o 2º R. não tem conhecimento, nem pode ter, do estado de degradação do interior das madeiras, uma vez que apenas tem acesso ao seu interior.

E invocaram que a A. litiga de má fé, pedindo a sua condenação em multa e indemnização não inferior a € 2.000,00.

A A. pronunciou-se por escrito quanto às excepções.

A 12/10/2020 foi proferido o seguinte despacho:
Do compulso dos autos verifica-se que a autora respondeu à matéria de excepção suscitada em sede de contestação, embora tal lhe esteja processualmente vedado neste momento (cfr. artigos 584.º e 3.º, n.º 4, ambos do CPC).
Tal implica a rejeição do articulado apresentado, o que se determina.
Sem custas, ante a simplicidade.
Notifique.
(…)
Ante o alegado e os pedidos formulados, convida-se, antes de mais, a autora a esclarecer a intervenção dos réus na celebração do contrato de compra e venda da caravana, bem como, a relação que se estabeleceu entre as partes nesse negócio, concretizando, de facto, a qualidade em que cada um interveio; pois que se, por um lado, diz que o negócio foi realizado com o segundo réu, que se dedica à actividade de comercialização de automóveis (vide artigos 1.º e 2.º, 1.ª parte, da petição inicial), por outro diz que o segundo réu “ajuda” na actividade comercial da primeira ré, por ser irmão do seu proprietário (artigo 2.º, 2.ª parte, da petição inicial), dizendo-se, mais à frente, que ambos os réus asseguraram as qualidades do veículo, sendo ambos responsáveis pelas vicissitudes do negócio celebrado.
Nessa medida, importa saber quem interveio, de facto, no negócio, ou seja, quem vendeu e em que qualidade (por si ou por terceiro), ou dito de outro modo, quem se assumiu como o dono e assegurou as qualidades do bem, concretizando o negócio, quer o tenha feito por si, quer por intermédio de outro ou conjuntamente com outro, o que se convida a autora a esclarecer, querendo, no prazo de 10 dias.
Notifique e decorrido o prazo de contraditório conclua.

A A., notificada, para além do que é repetição do que consta da petição inicial, invocou que consta da procuração junta com a contestação que o 2º R. é o representante legal da 1ª Ré e o seu único sócio; o 2º R. disse à A. que, apesar de o veículo se encontrar registado na CRAutomóvel em seu nome, não ia ter qualquer problema com o mesmo porque estava a tratar com pessoas muito entendidas no assunto, que têm um stand de venda de automóveis, com muitos anos de experiência no mercado, ou seja , a 1ª Ré, tendo assim criado na A. total confiança no negócio celebrado; a A. é de nacionalidade espanhola, encontrando-se a viver em Portugal há cerca de nove anos, o que também lhe dificultou entender os contornos do negócio.

Os RR. pronunciaram-se dizendo que o Stand EMP01... é utilizado e gerido atualmente pela sociedade por quotas “EMP03..., Ldª”, o que já sucedia em 2019, sociedade que tem como sócios-gerentes CC e DD.

A 05/01/2021 foi proferido o seguinte despacho:
“Vi os esclarecimentos que antecedem, que não respondem cabalmente ao solicitado.
Assim, renovando o despacho que antecede, convido a autora a, em 10 dias, apresentar um articulado aperfeiçoado em que se esclareça, de facto, quem interveio no negócio, ou seja, quem vendeu e em que qualidade (por si ou por terceiro), ou dito de outro modo, quem se assumiu como o dono e assegurou as qualidades do bem, concretizando o negócio, quer o tenha feito por si, quer por intermédio de outro ou conjuntamente com outro.
Notifique e decorrido o prazo de contraditório, concluam-se os autos. “

A A. veio requerer a junção aos autos de nova petição inicial - em que a acção é instaurada apenas contra o R.  BB - e declarar desistir do pedido contra o “Stand EMP01...”.

Por despacho de 18/02/2021 foi homologada a desistência do pedido formulado contra a ré Stand EMP01....

O R. veio pronunciar-se dizendo, em síntese, que a A. alterou a causa de pedir, pelo que o R. deve ser absolvido e deu por reproduzido o que consta da contestação.

Foi determinado que a A. se pronunciasse, o que a mesma fez, dizendo que apenas foi eliminado e acrescentado o que era necessário para que, em face da passagem de dois, para um réu, o texto da petição inicial ficasse perceptível, não havendo alteração da causa de pedir.

Foi designada data para audiência prévia, a qual teve lugar, tendo sido decidido admitir a nova petição inicial e a A. convidada a quantificar os pedidos formulados sob as alíneas b) e f) do petitório e a indicar o objecto da prova pericial, para o que lhe foi concedido prazo.

A A. veio quantificar os pedidos formulados sob as alíneas b) e f) nos seguintes termos:
“b) ser o Réu condenado a devolver à Autora o valor do preço recebido pela venda da autocaravana, bem como de todas as reparações efectuadas acrescido dos respectivos juros de mora desde a interpelação até efectivo e integral pagamento, no valor total de € 12.494,52 (…);
(…)
f) Ser julgado procedente o pedido de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais formulado pela Autora, no valor total de € 14.994,52 (…)”

E indicou as concretas questões de facto que o senhor perito deveria responder.

Foi proferido despacho que admitiu o aperfeiçoamento dos pedidos deduzidos sob as alíneas b) e f), fixou o valor da causa em € 12.494,52, julgou prejudicado o conhecimento da excepção de ilegitimidade da Ré EMP02... – Unipessoal, Ldª, relegou para a sentença o conhecimento da excepção de caducidade, consignou o objecto do litígio e os temas da prova e pronunciou-se quanto às provas.

Foram instruídos os autos com informações e relatório pericial.

A A. requereu a realização de segunda perícia, à qual se opôs o R, tendo sido proferido despacho que a indeferiu.

Realizou-se o julgamento, tendo sido proferida sentença cujo decisório tem o seguinte teor:
“Pelos motivos expostos, decido:
5.1.- Julgar a ação improcedente e, em consequência, absolvo o réu do pedido formulado contra si pela autora.
5.2.- Custas da ação pela autora.”

Interpôs a A. recurso, pedindo seja declarada nula a sentença, revogada na parte em que dá como provados e não provados os pontos de facto indicados e revogada na parte em que julga verificada a excepção de caducidade, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. O presente recurso vem interposto da sentença proferida nos presentes autos em 22 de Junho de 2023 que julgou improcedente a acção instaurada pela autora e absolveu o réu do pedido;
2. A sentença proferida pelo Tribunal a quo é nula, por omissão de pronúncia, nulidade que expressamente se invoca e arguiu para todos os efeitos legais ao abrigo do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC;
3. A sentença de que se recorre é totalmente omissa quanto aos pedidos de o réu proceder à reparação/substituição do veículo - alínea h);
4. O Tribunal a quo não se pronunciou sobre os pedidos de reparação / substituição do veículo formulados pela autora, deixando de se pronunciar sobre questões que deveria ter apreciado, o que inquina a sentença proferida do vício de NULIDADE prevista na referida disposição legal, a qual expressamente aqui se invoca e arguiu para todos os efeitos legais;
5. Nos pedidos formulados, a autora alegou a relação de consumidor/comerciante no negócio celebrado, com aplicação in casu do regime previsto no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08 de Abril, na versão dada pela Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores;
6. A sentença proferida é totalmente omissa quanto a tal alegação;
7. Ao não se pronunciar sobre o pedido constante da alínea c) da Petição Inicial quanto à relação de consumidor e comerciante existente entre as partes, deixando novamente de se pronunciar sobre questões que deveria ter apreciado, a sentença proferida é NULA POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA, nulidade que expressamente se invoca e arguiu para todos os devidos e efeitos legais prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC;
8. A autora sempre associou o réu ao Stand de Automóveis onde a viatura se encontrava exposta para venda ao público;
9. Todo o processo negocial decorreu nas instalações do estabelecimento de venda de automóveis que gira com o nome de “STAND EMP01...”, e foi sempre tudo tratado directamente com o réu BB;
10. A autora apenas comprou a autocaravana, por lhe ter sido dada a confiança de a estar a comprar num stand de automóveis, até porque, no anúncio de venda, estava anunciado como “EMP04...”;
11. O réu era “o rosto” e o sócio do stand “EMP02... UNIPESSOAL LDA”, conforme aliás, resulta até das letras .... (...) UNIPESSOAL, LDA.;
12. Foi sempre e só ele quem negociou a venda da viatura e as pessoas negoceiam com quem “dá a cara” nos negócios;
13. O réu é comerciante de automóveis há muitos anos e à data explorava o referido stand; é sócio da sociedade do stand de automóveis “EMP02... Unipessoal, Lda.”, pessoa colectiva n.º ...49 e de uma outra empresa “EMP03..., LDA”, pessoa colectiva n.º ...54, cujo objecto é a importação, exportação e comércio de veículos automóveis;
14. O réu deslocou-se a ... onde adquiriu a viatura para depois a vender no seu stand de automóveis, no âmbito da actividade comercial, profissional e económica que exerce;
15. A sentença objecto do presente recurso aplicou erradamente a lei ao caso em apreço, pois não deveria ter aplicado as regras do Código Civil, nomeadamente, no que aos prazos de caducidade diz respeito, mas sim as regras constantes do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08 de Abril, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio;
16. Verificando-se a venda de um automóvel por quem exercia o comércio;
17. Foi dito pelo próprio perito ao minuto 0:47 das suas declarações que conhecia o réu por conhecimento do stand;
18. O contrato de compra e venda da autocaravana com a matrícula ..-XV-.. foi celebrado em ../../2019, data em que a mesma foi entregue à autora;
19. Na primeira viagem de maior dimensão, ocorrida em 18 de Agosto de 2019, a autocaravana começou a arder na autoestrada e teve que ser rebocada;
20. A autora denunciou os defeitos ao réu em 20 de Setembro de 2019, portanto menos de dois meses após a compra, os quais desconhecia totalmente até essa data, conforme resultou das declarações de parte e do depoimento da testemunha EE acima transcrito;
21. O réu vendeu à autora um bem defeituoso, com defeitos que não só desvalorizam a sua afectação normal, como também o privam das qualidades asseguradas pelo vendedor e que colocam em causa o seu normal funcionamento e uso;
22. À data da aquisição da viatura, a mesma tinha a carroçaria com a madeira toda podre, buracos na estrutura, havendo o risco de se desmontar em andamento; está repleta de pequenos furos, tanto na parte lateral, como no cappuccino e na parte superior;
23. Furos com o comprimento de milímetros suficientes para causar infiltrações, não visíveis a olho nu e que já existem há vários anos;
24. Houve uma tentativa com vários anos de impermeabilizar as infiltrações – muito anteriores à deformação – conforme foi dito pelo senhor Perito no seu depoimento – que observou um conjunto de furos e microfuros;
25. O problema das infiltrações é muito anterior à data da compra do veículo pela autora;
26. É evidente que o réu sabia e conhecia o vício e a falta de qualidade de que a coisa padecia e, por isso, procedeu à sua pintura;
27. Por baixo de uma pintura reluzente, escondiam-se graves problemas de infiltrações, impossíveis de detectar;
28. A viatura autocaravana foi adquirida em 31 de Julho de 2019; a denúncia dos defeitos foi efectuada em 20 de Setembro de 2019; a diligência pericial teve lugar no dia 11 de Julho de 2022;
29. O relatório pericial apenas poderia valer como meio de prova se se reportasse ao estado da viatura automóvel autocaravana à data em que a autora denunciou os defeitos – Setembro de 2019 – e não, como o faz, ao estado da viatura à data de Julho de 2022;
30. Sendo uma autocaravana uma “casa”, é evidente que as infiltrações de que a mesma padece impedem a realização do fim a que é destinada;
31. No que concerne à verificação efectuada pela oficina “EMP05...”, e que foi confirmado pela testemunha FF: “Na impossibilidade de ser realizado tal relatório e por insistência da cliente, apenas foi efetuada uma verificação superficial do estado dos pneus, escovas e luzes, tendo o resultado desta verificação superficial sido transmitido verbalmente. Acresce que o colaborador que realizou a referida verificação superficial refere já não se recordar do que transmitiu verbalmente à cliente e não ficou nada registado na base de dados da EMP05... relativamente a esta verificação superficial” - sublinhado nosso
32. A viatura que foi vendida pelo réu à autora sofre de vícios, à data da venda, que a desvalorizam e impedem a realização do fim a que é destinada, não apresenta as qualidades asseguradas pelo vendedor, nem as necessárias à realização daquele fim;
33. Se soubesse a autora dos vícios que a viatura padecia, nunca a teria adquirido, nem qualquer homem dito médio, colocado na sua exacta situação e perante as mesmas condicionantes;
34. A autora encontra-se privada do uso da viatura desde ../../2019 até à presente data, verificando-se um longo período de privação do uso do veículo, pelo qual terá que ser indemnizada;
35. Não se verifica a excepção de caducidade do direito da autora, nem em relação ao prazo de dois meses para denúncia dos defeitos, nem se verifica a excepção de caducidade para a autora exercer o seu direito, ou seja, intentar a ação judicial;
36. In casu, a autocaravana vendida apresentava e apresenta defeitos, logo trata-se de coisa defeituosa, estando, desta forma, em causa, venda de coisa defeituosa, regulada nos artigos 913.º e seguintes do Código Civil e no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08 de Abril, na sua redação actual;
37. Deve ser dado como provado, porque não o foi e mal, que a autocaravana se encontrava exposta nas instalações do stand “EMP01...”, sitas em ... e não “aparcada”, pelo que se requer tal alteração ao artigo 3.º dos factos provados, passando o mesmo a ter a seguinte redação, o que se requer:
“3. – Antes de comprar a autocaravana, a autora deslocou-se às instalações da
“EMP01...”, sitas em ..., local onde estava exposta a autocaravana”.
38. Deve ser dado como provado, porque não o foi e mal, o que se requer, que:
“O réu vendeu à autora o veículo ..-XV-.. na qualidade de comerciante e por conseguinte encontrava-se perante esta obrigado a responder nos termos do estatuído no DL 67/2003 de 08 de Abril”, estando o réu obrigado a garantir o bom estado e bom funcionamento da autocaravana por um período de 1 (um) ano”.
39. Requerendo-se o aditamento de tal facto à matéria dada como provada.
40. Os artigos 25.º e 34.º dos factos provados, devem ser dados como não provados, bem como a expressão “…devido à exposição prolongada da autocaravana ao clima” constante do artigo 31.º dos factos provados, passando os mesmos a constar dos factos não provados.
41. Na parte em que se dá como não provados os artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º e 10.º deve a sentença ser revogada passando a dar tais factos como provados.
42. Os defeitos do veículo automóvel autocaravana impedem, de todo, a normal utilização da viatura, pelo que tem a autora o direito a resolver o contrato celebrado ou a exigir do réu, pelo menos a sua substituição ou reparação, o que muito respeitosamente se requer.

O R. contra-alegou, tendo concluído nos seguintes termos:
A. Deverá negar-se provimento à apelação do R., devendo ser confirmada a douta sentença impugnada.
.....

2. Questões a apreciar

O objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC), sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso, cuja apreciação ainda não se mostre precludida.

O Tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas (isto é, questões que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismo destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis” (cfr. António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, p. 139).

Pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, pelo não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida.

Assim e sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões que cumpre apreciar são:
- a sentença é nula à luz do disposto na 1ª parte da alínea d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC?
- deve ser apreciada a impugnação da decisão de facto e, na afirmativa, deve ser alterada a decisão quanto à matéria de facto?
- ocorreu erro de julgamento quanto ao direito, devendo ser aplicado o DL 67/2003?

3. Da nulidade da sentença
3.1. Enquadramento jurídico

Dispõe a alínea d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC:
1. É nula a sentença quando:
(…)
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
 (…)”

A sentença pode ser vista como trâmite ou como acto: no primeiro caso, atende-se à sentença no quadro da tramitação da causa; no segundo, considera-se o conteúdo admissível ou necessário da sentença.

As nulidades da sentença e dos acórdãos, enquanto acto, referem-se ao conteúdo destes actos, ou seja, estas decisões não têm o conteúdo que deviam ter ou têm um conteúdo que não podiam ter (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in O que é uma nulidade processual? in Blog do IPPC, 18-04-2018, disponível em https://blogippc.blogspot.com/search?q=nulidade+processual).

A alínea d) contempla duas situações: a) quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (omissão de pronúncia) ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (excesso de pronúncia).

Aqui apenas releva a primeira, a qual está correlacionada com a 1ª parte do n.º 2 do art.º 608º do CPC, que dispõe: “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras;…”

O normativo tem em vista as questões essenciais, ou seja, o juiz deve conhecer todos os pedidos, todas as causas de pedir e todas as excepções invocadas e as que lhe cabe conhecer oficiosamente (desde que existam elementos de facto que as suportem), sob pena da sentença ser nula por omissão de pronúncia.

As questões essenciais não se confundem com os argumentos invocados pelas partes nos seus articulados. O que a lei impõe, sob pena de nulidade, é que o juiz conheça as questões essenciais e não os argumentos invocados pelas partes (sendo abundante a jurisprudência em que esta questão é suscitada, a título meramente exemplificativo o Ac. do STJ de 21/01/2014, proc. 9897/99.4TVLSB.L1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jst).

Nos termos do n.º 1 do art.º 608º, a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica, ou seja, tem-se em vista aquelas questões - nulidades, excepções dilatórias ainda por apreciar ou outras questões de natureza processual - que possam ter influência no desfecho do processo.

 Por outro lado, o facto de, eventualmente, o tribunal a quo não se ter pronunciado quanto a factos alegados, não constitui nulidade nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 615º, n.º 1, alínea d) do CPC.

É que as questões essenciais que a 1ª parte do n.º 2 do art.º 608º do CPC impõe que o juiz conheça, não se confundem com “factos”.

Como refere Alberto dos Reis, in CPC Anotado, 1984, pág. 145 (sublinhado nosso): “Uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão.”

E como decidido pelo Ac. do STJ de 23/07/2017, processo 7095/10.7TBMTS.P1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj, “o não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido”: são situações que “não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC, antes se tratando de situações que se reconduzem “a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC”.

3.2. Em concreto

A A. invoca a nulidade da sentença por omissão de pronúncia com dois fundamentos: a) não conheceu do pedido formulado na alínea h); b) não conheceu do pedido formulado na alínea c), invocando ainda, neste ponto, que o tribunal a quo não deu como provado, ou não provado, que a venda da caravana ocorreu entre a A. como consumidora e o R. como profissional.

Como consta do Relatório supra, a A. formulou um conjunto complexo de pedidos principais e subsidiários.

Quanto aos pedidos principais – alíneas a) a c) do peditório – traduzem-se, sinteticamente, no seguinte: seja julgado válido e eficaz o direito de anulação do contrato de compra e venda dos autos; seja o R.  condenado a devolver o preço pago e o valor das quantias despendidas em “reparações, no total de € 12.494,52, acrescido de juros de mora desde a interpelação até efectivo e integral pagamento.

Ainda no âmbito dos pedidos principais pediu (alínea c)), cumulativamente, que fosse julgada provada a relação de consumidor e comerciante e, por via disso, “válido o direito de resolução do contrato celebrado”.

Quanto aos pedidos subsidiários – alíneas d) a h) – existem duas linhas de subsidiariedade.

Assim e numa primeira linha, a A. deduziu pedidos subsidiários que se traduzem, sinteticamente, no seguinte: seja julgado legítimo, válido e eficaz o direito de anulação do negócio; seja o R. condenado (o pedido não está formulado nestes exactos termos, mas é o que resulta da sua devida interpretação) a pagar à A. a quantia de € 14.994,52, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora a contar da citação.

Numa segunda linha de subsidiariedade, pede que o R. seja condenado (este pedido também não está formulado nestes exactos termos, mas é o que resulta da sua devida interpretação) a proceder à reparação/substituição do veículo.

Analisando a sentença recorrida, no último parágrafo dos respetivos fundamentos, resume-se o destino da acção nos seguintes termos:

“Não existe, portanto, qualquer fundamento de facto para a anulação do contrato de compra e venda celebrado entre a autora e o réu e, por maioria de razão, para a condenação do réu a pagar à autora qualquer indemnização na sequência da celebração deste negócio nos termos por esta reclamados.
Improcede, assim, a presente acção.”

Vejamos

Relativamente ao pedido formulado sob a alínea c) do petitório, importa começar por observar que, como já ficou referido em sede de enquadramento jurídico, o facto de o tribunal não se pronunciar quanto a determinados factos, relevantes para a boa decisão da causa, não integra omissão de pronúncia nos termos e para os efeitos da 1ª parte da alínea d) do art.º 615º do CPC, dado que os factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC.

Destarte, o facto de, eventualmente, o tribunal a quo não ter dado como provado que a venda da caravana ocorreu entre a A. como consumidora e o R. como profissional, não traduz uma nulidade da sentença nos termos da primeira parte da alínea d) do n.º 1 do art.º 615º; tal situação reconduzir-se-á, eventualmente, a uma deficiência da decisão de facto, patologia cujo tratamento se encontra no art.º 662º, n.º 2, alínea c), 2ª parte do CPC.

Em segundo lugar, há que distinguir a causa de pedir e o pedido.

A causa de pedir é o acto ou facto concreto de que procede a pretensão do autor, ou seja, o acto ou facto jurídico concreto em que o autor se baseia para formular o pedido.
Como afirmava Alberto dos Reis, in CPC Anotado, III, pág. 121, a causa de pedir é o facto jurídico que constitui o fundamento legal do benefício ou do direito, objecto do pedido; é o principio gerador do direito, a sua causa eficiente, ou seja, o facto ou acto de que, no seu entender, o direito procede - Alberto dos Reis, in Comentário, Vol. III, pág. 370 – os factos necessários e suficientes para justificar o pedido – idem, CPC Anotado, vol. II, pág. 351 – afinal, os factos constitutivos do direito.
Ou no dizer de Antunes Varela, in RLJ, 121, 147, a causa de pedir é o facto jurídico concreto, simples ou complexo, do qual emerge, por força do Direito, a pretensão deduzida pelo Autor.

O pedido é o efeito jurídico que o autor pretende retirar da acção interposta, é a providência que o mesmo solicita ao tribunal, é a pretensão material, enquanto afirmação de um direito subjectivo ou de um interesse juridicamente relevante e pretensão processual, enquanto meio de tutela jurisdicional pretendido (cfr. art.º 10º do CPC).

Quando a A. pede que seja julgada provada a relação de consumidor e comerciante (tendo em vista a aplicação aos autos do regime jurídico do DL n.º 67/2003, de 08 de Abril), está a referir-se à causa de pedir, ao facto jurídico que constitui o fundamento do direito objecto do pedido, que, no caso, é que seja julgado “válido o direito de resolução do contrato celebrado”.

A causa de pedir é apreciada na fundamentação de direito, à luz dos factos provados.

Objecto do decisório será, apenas, o julgamento quanto ao pedido, no caso, à “validade” do direito de resolução do contrato celebrado.

Na situação em apreço, não consta da fundamentação de direito da sentença recorrida qualquer discussão acerca da questão de saber se no negócio dos autos a A. actuou como consumidora e o R. como comerciante, ou seja, a sentença recorrida não apreciou cabalmente a causa de pedir apresentada pela A..

Como também não há qualquer pronúncia quanto ao pedido principal formulado na alínea c) – fosse julgado “válido o direito de resolução do contrato celebrado”.

Destarte e à luz do exposto, verifica-se uma omissão de pronúncia quanto à causa de pedir e ao pedido formulado sob a alínea c) do petitório.

Quanto ao pedido formulado em segunda linha de subsidiariedade – alínea h) -, ou seja, de que o R. fosse condenado a proceder à reparação/substituição do veículo, não consta da sentença recorrida qualquer discussão fáctico-jurídica quanto ao mesmo (sendo certo que o mesmo nem sequer consta do Relatório da sentença recorrida).

Destarte e também se verifica uma omissão de pronúncia quanto ao pedido constante da alínea h) do petitório.

A omissão de pronúncia quanto à causa de pedir e ao pedido formulado sob a alínea c) do petitório e quanto ao pedido formulado sob a alínea h) do peditório, tem como consequência a nulidade da sentença prevista na alínea d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC, o que se declara.

O art.º 665º n.º 1 do CPC dispõe:
“Ainda que se declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objecto da apelação”.

Destarte e oportunamente, caberá pronuncia quanto à referida causa de pedir e pedidos referidos.

4. Fundamentação de facto
4.1. O tribunal a quo considerou:

- Factos provados com relevância para a decisão da causa:
1.- No passado dia 31 de julho de 2019, a autora comprou ao réu BB, uma autocaravana, de marca ..., modelo ... ..., com a matrícula ..-XV-.., com o número de quadro ...66 pelo preço global de € 10.500,00 (dez mil e quinhentos euros).
2.- A autora tomou conhecimento da venda da referida autocaravana através de anúncio publicado num sitio da internet, conforme documento n.º ... junto com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
3.- Antes de comprar a autocaravana, a autora deslocou-se às instalações da “EMP01...”, sitas em ..., local onde estava aparcada a autocaravana.
4.- Nesse dia, o réu BB mostrou o exterior e o interior do veículo à autora.
5.- Nesse local, encontravam-se outros veículos à venda.
6.- O réu BB assegurou à autora que o veículo encontrava-se em boas condições.
7.- Antes de concretizar a compra desse veículo, a autora solicitou ao réu BB que lhe disponibilizasse o veículo a fim de realizar a vistoria ao mesmo numa oficina em ..., para aferir das suas concretas condições, até porque se tratava de uma viatura cujo registo inicial de propriedade havia sido ordenado recentemente, conforme Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) – 1.ª via –emitida em ../../2019, junta com a petição inicial como documento n.º ..., cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
8.- O réu BB disponibilizou à autora o veículo,
9.- … tendo a aqui autora dirigido esse veículo a uma oficina escolhida por si, designada “EMP05...”, sita no Centro Comercial ..., Loja n.º ...9, Avenida ..., ... ....
10.- A referida oficina efetuou uma vistoria aos níveis de óleo e aos pneus, tendo dito à autora que o veículo se encontrava em condições de circular, alertando-a, porém, para algumas fendas com silicone no interior da “habitação”.
11.- A autora exigiu, assim, que o veículo fosse inspecionado numa oficina a sua escolha, tendo sido por esta recebido o relatório por aquela entidade isenta exarado, tendo-se conformado com aquele e, então, celebrado o negócio.
12.- Em face do resultado positivo da vistoria realizada na oficina escolhida pela autora, a aqui autora, no dia 27 de julho de 2019, entregou ao réu BB, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros).
13.- … e no dia 31 de julho de 2019, a autora deslocou-se novamente ao local onde estava estacionada a autocaravana e procedeu ao pagamento do remanescente do valor, na quantia total de € 10.250,00 (dez mil, duzentos e cinquenta euros), tendo então trazido a viatura consigo.
14.- O negócio ficou, assim, concluído no dia 31 de julho de 2019 – data da compra e venda – pelo preço global de aquisição de € 10.500,00 (dez mil e quinhentos euros).
15.- Nesse mesmo dia 31 de julho de 2019 foram entregues pelo réu BB à autora as chaves da autocaravana e respetiva documentação.
16.- Após esta data, a autora, a suas expensas, procedeu à manutenção da autocaravana.
17.- Com efeito, no dia 01 de agosto de 2019, a autora colocou na autocaravana kit de distribuição, bomba de água, fluido de radiador, correia de alternador, filtro de ar, filtro de óleo, filtro do gasóleo, óleo do motor, fio, cabo, terminais, relés, fita e farolim rinder tras com refletor, despendendo, para o efeito, o total de € 1.727,31 (mil, setecentos e vinte e sete euros e trinta e um cêntimos), conforme Documento n.º ... junto com a petição inicial – cfr. Documento n.º ... que se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
18.- Posteriormente, no dia 05 de agosto de 2019, a autora procedeu à colocação de líquido ... paralavagem de cassete; detergente em pó DRI Kem 8 sacos e líquido para lavar depósitos de águas residuais, despendendo para o efeito o montante total de € 39,00 (trinta e nove euros), conforme documento n.º ... junto com a petição inicial, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
19.- No início de setembro de 2019, e de forma a modernizar o veículo, a autora dirigiu-se a uma oficina, designada por “EMP06... – Liberdade sobre rodas”, sita na Travessa ..., ... ..., para proceder à colocação de painéis solares.
20.- Um dos funcionários desta empresa informou a autora que não seria possível proceder de imediato à instalação de painéis solares na autocaravana, sem antes proceder a uma “intervenção prévia”.
21.- No dia 20 de setembro de 2019, o réu BB recebeu uma missiva, na qual a agora Autoria denunciava a existência de alegados defeitos no veículo automóvel ..., matricula ..-XV-.., invocando o direito de anulação do contrato de compra e venda.
22.- Nessa missiva a autora invoca que a autocaravana está repleta de “pequenos furos, tanto na parte lateral, como no cappuccino e ainda, em toda a parte superior (…) entre um a três milímetros (...) perfeitamente suficientes para causar infiltrações”.
23.- … e pretendia a anulação do negócio.
24.- Na data da sua aquisição, a autocaravana tinha cerca de 20 anos.
25.- Após a sua aquisição e em circunstâncias e data não concretamente apuradas, a autora embateu com a parte superior lateral da autocaravana num ramo de uma árvore, causando danos no painel lateral e na sua parte superior que se agravam desde então uma vez que a autocaravana está estacionada num parque descoberto.
26.- Aquando a realização do exame pericial ao veículo, foi possível observar no teto uma zona de “bacia” propensa a acumular águas pluviais.
27.- Estes danos identificados pelo Sr. Perito têm como causa o embate descrito em 25 dos factos provados.
28.- Após a sua aquisição, a autocaravana esteve sempre estacionada num parque de estacionamento público e descoberto.
29.- Em data não concretamente apurada, mas antes da sua venda à autora, foi colocado silicone no interior da autocaravana de um modo indevido com vista a impermeabilizar alguma infiltração de água.
30.- O embate identificado em 25 dos factos provados, exponenciou os problemas de impermeabilização do interior da autocaravana.
31.- No exterior da autocaravana é possível observar alguns micro furos resultante do fenómeno de oxidação e de corrosão dos sistemas de fixação dos painéis, devido à exposição prolongada da autocaravana ao clima.
32.- Estes micro furos são usuais neste tipo de veículo e requerem a sua reparação e posterior manutenção.
33.- O estado do veículo é ligeiramente pior que um veículo da sua idade e com uma utilização cuidada.
34.- O atual estado de degradação do teto e painéis laterais do veículo resultou do embate lateral a que se alude em 25 dos factos provados e ainda do facto da viatura estar estacionada ao ar livre.
35.- A presente ação foi intentada no dia 02-03-2020.
*
- Factos não provados com relevância para a decisão da causa:
Não se provaram os demais factos alegados pelas partes que não estejam mencionados nos factos provados ou estejam em contradição com estes, nomeadamente, os seguintes:
1.- A aquisição do veículo foi efetuada com a garantia de um ano.
2.- Desde a sua aquisição que a autora fez sempre uso diligente e adequado do veículo, de acordo com zelo, prudência e sensatez, à luz do senso comum (Homem médio) e das normas estradais.
3.- A carroçaria está toda podre, por causa das infiltrações ocorridas ao longo dos vários anos.
4.- A autora foi alertada que o custo de reparação da autocaravana ultrapassa a quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros).
5.- As várias entidades consultadas (mecânicos das oficinas de reparação) avisaram a autora que mais valia colocar a autocaravana na sucata do que proceder à sua reparação.
6.- O réu bem sabia da falta de conformidade que a autocaravana apresentava, sendo do conhecimento do mesmo os defeitos apresentados, mas quando confrontado sobre o assunto, faltou à verdade, não revelando os mesmos.
7.- O réu utilizou tal expediente para convencer a autora a adquirir um bem que não correspondia às expectativas, nem tão pouco ao fim a que se destinava.
8.- Aliás, derivado ao problema da carroçaria (madeira toda podre e buracos na estrutura) a autora não pode sequer colocar painéis solares na autocaravana, não podendo circular com a mesma, havendo o risco de se “desmontar”.
9.- A viatura que foi vendida à autora pelos réus sofria de vício, à data da venda, que impede o seu uso para o fim a que é destinada, não apresenta as qualidades asseguradas pelo vendedor e não realiza o fim para o qual foi vendida.
10.- O que lhe causa enorme transtorno e angústia, bem assim como sentimento de inoperância e impotência, sentimentos exponenciados pelo facto de, pensava ela, ter adquirido um veículo que lhe proporcionaria bons passeios, merecido como recompensa do seu trabalho e das economias realizadas, o que contribui para um grande sentimento de amargura e frustração, vendo gorados os seus intentos.

4.2. Patologias da decisão de facto
A decisão de facto pode apresentar diversas patologias.
Assim pode:
i) - conter asserções conclusivas, genéricas ou matéria de direito;
ii) - revelar-se excessiva;
iii) - ser deficiente, obscura ou contraditória;
iv) - carecer de ampliação;
v) - não estar devidamente fundamentada;
vi) - haver erro de apreciação da prova, isto é, pode o tribunal a quo ter dado como provados factos que face à prova produzida deviam ter sido considerados não provados ou vice-versa.

As patologias referidas nos pontos i) a v) são de conhecimento oficioso, na medida em que constituem aplicação do direito processual; a patologia referida no ponto vi) carece de ser invocada.

4.3. Matéria de direito e conclusiva
4.3.1. Enquadramento jurídico

O n.º 4 do art.º 607º do CPC dispõe:
“Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados….”

Assim e em primeiro lugar, na parte citada, este normativo dirige um comando ao juiz cujo sentido é este: na fundamentação (de facto) da sentença, só devem constar factos e não matéria de direito e/ou conclusões.

Resulta claro do citado normativo que na fundamentação de facto apenas cabem asserções de facto e não asserções conclusivas, genéricas, matéria de direito.

A este respeito Manuel Tomé Soares Gomes, in Da Sentença Cível, CEJ, 2014, in https://elearning.cej.mj.pt/mod/folder/view.php?id=6202, pág. 19-22, no que diz respeito àlinguagem dos enunciados de facto”, 19-22, refere (sublinhados nossos) que deve ser expurgada de valorações jurídicas, de locuções metafóricas e de excessos de adjetivação.
Os enunciados de facto devem ser expressos numa linguagem natural e exata, de modo a retratar com objetividade a realidade a que respeitam, e devem ser estruturados com correção sintática e propriedade terminológica e semântica. A adequação dos enunciados de facto deve pautar-se pela exigência de evitar que esses enunciados se apresentem obscuros (de sentido vago ou equívoco), contraditórios (integrados por termos ou proposições reciprocamente excludentes) e incompletos (de alcance truncado), vícios estes que figuram como fundamento de anulação da decisão de facto, em sede de recurso de apelação, nos termos do artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC.
(…)
(…) as partes tendem a adestrar a factualidade pertinente no sentido estrategicamente favorável à posição que sustentam no seu confronto conflitual, daí resultando enunciados, por vezes, deformados, contorcidos ou de pendor mais subjetivo ou até emotivo.
Cumprirá, por sua vez, ao juiz, na formulação dos juízos de prova, expurgar tais deformações, sendo que, como é entendimento jurisprudencial corrente, não se encontra adstrito à forma vocabular e sintática da narrativa das partes, mas sim ao seu alcance semântico. Deve, pois, adotar enunciados que, refletindo os resultados probatórios, sejam portadores de um sentido semântico, o mais consensual possível, de forma a garantir que a controvérsia se desenvolva em sede da sua substância factual e não no plano meramente epidérmico dos seus modos de expressão linguística.”

E também Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pág. 354-355, refere:
“A decisão de facto pode apresentar patologias que não correspondem verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento. Umas poderão e deverão ser solucionadas de imediato pela Relação; outras poderão determinar a anulação parcial do julgamento.
(…)
Outro vício que pode detetar-se (...), pode traduzir-se na integração na sentença, na parte em que se enuncia a matéria de facto provada (e não provada), de pura matéria de direito (…).
(…)
Por isso, a patologia da sentença neste segmento apenas se verificará, em linhas gerais, quando seja abertamente assumida como “matéria de facto provada” pura e inequívoca matéria de direito.”

Contendo a sentença juízos conclusivos ou matéria de direito, coloca-se a questão de saber como o resolver.

Hoje não existe nenhum normativo idêntico ao antigo artigo 646º, n.º 4 do CPC revogado, que determinava terem-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e que se aplicava, por analogia, à matéria conclusiva.
Mas o princípio que estava subjacente ao preceito não desapareceu, como tem vindo a decidir a jurisprudência.

Assim:
- no Ac. do STJ de 28/09/2017, proc. 809/10.7TBLMG.C1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj:
 “Muito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art.º 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos”.

- no Ac. desta RG de 20.09.2018, proc. 778/16.0T8BCL.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg em cuja fundamentação consta:
“O Código do Processo Civil de 2013 eliminou o citado preceito [646º n.º 4 do CPC de 1961], no entanto é de considerar que se mantém tal entendimento, interpretando a contrario sensu o n.º 4 do art. 607.º, segundo o qual, na fundamentação da sentença o juiz declara quais os factos que julga provados. Ou seja o tribunal só pode e deve considerar como provado em resultado da prova produzida “os factos” e não as conclusões ou juízos de valor a extrair dos mesmos à luz das normas jurídicas aplicáveis, o que é uma operação intelectual bem distinta.

- no Ac. desta RG de 11.10.2018, proc. 616/16.3T8VNF-D.G1, consultável no mesmo sitio do anterior, onde consta:
“ De resto, ainda que o actual CPC não inclua uma disposição legal com o conteúdo do art.º 646º n.º 4 do pretérito CPC (o qual considerava não escritas as respostas sobre matéria de direito), (…) que tal não permite concluir que pode agora o juiz incluir no elenco dos factos provados meros conceitos de direito e/ou conclusões normativas, e as quais, a priori e antecipada e comodamente, acabem por condicionar e traçar desde logo o desfecho da acção ou incidente, resolvendo de imediato o “thema decidendum”.

- no Ac. do STJ de 19/01/2023, processo 15229/18.7T8PRT.P1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj consta do respetivo texto que “por imperativo do estatuído no artigo 607º nº 4 do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos – e apenas os factos – julgados provados e não provados, o que significa que deve ser suprimida toda a matéria deles constante susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, juízos de valor ou conclusivos.”
Este mesmo Ac. refere ainda que “saber se um concreto facto integra um conceito de direito ou assume feição conclusiva ou valorativa constitui questão de direito, porquanto não envolve um juízo sobre a idoneidade da prova produzida para a demonstração ou não desse mesmo facto enquanto realidade da vida.”

É objecto de discussão a distinção entre matéria de facto e de direito.

Tal discussão não tem aqui cabimento.

Apenas se impõe notar que: i) só casuisticamente se poderá afirmar o que é facto e o que é Direito; ii) em traços gerais podemos assentar que: a) é matéria de facto tudo o que respeita às ocorrências da vida real, todos os acontecimentos concretos da vida, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis, sejam eles realidades do mundo exterior, como realidades psíquicas ou emocionais do indivíduo; b) é matéria de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei e dos negócios jurídicos.

4.3.2. Em concreto
O tribunal a quo considerou provado o seguinte:
14.- O negócio ficou, assim, concluído no dia 31 de julho de 2019 – data da compra e venda – pelo preço global de aquisição de € 10.500,00 (dez mil e quinhentos euros).

16.- Após esta data, a autora, a suas expensas, procedeu à manutenção da autocaravana.

E considerou não provado o seguinte:
2.- Desde a sua aquisição que a autora fez sempre uso diligente e adequado do veículo, de acordo com zelo, prudência e sensatez, à luz do senso comum (Homem médio) e das normas estradais.

9.- A viatura que foi vendida à autora pelos réus sofria de vício, à data da venda, que impede o seu uso para o fim a que é destinada, não apresenta as qualidades asseguradas pelo vendedor e não realiza o fim para o qual foi vendida.

Estamos, em qualquer um dos pontos, perante matéria de cariz jurídico-conclusivo, que, como flui do n.º 4 do art.º 607º, não tem lugar na decisão de facto, pelo que, face ao supra exposto, eliminam-se os pontos 14 e 16 dos factos provados e os pontos 2 e 9 dos factos não provados.

4.4. Decisão de facto excessiva
4.4.1. Enquadramento jurídico
Dispunha o n.º 1 do art.º 264º do CPC, revogado pela Lei n.º 41/2013, de 26/06, que às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções.

E o n.º 2 dispunha que o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes…

Nesta sequência dispunha o art.º 664º do CPC que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante ao direito, mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no artº 264 do C.P.C.

Esta remissão para o art.º 264º tinha em vista a parte final do n.º 2 e o n.º 3 do art.º 264º.

Assim, na parte final do n.º 2 dispunha-se sem prejuízo do disposto nos artigos 514.º e 665.º e da consideração, mesmo oficiosa, dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa.

O art.º 514º, n.º 1 previa que não carecem de prova nem de alegação os factos notórios, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral e o n.º 2 do mesmo normativo dispunha que também não carecem de alegação os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções; quando o tribunal se socorra destes factos, deve fazer juntar ao processo documento que os comprove.
O art.º 665º dispunha que quando a conduta das partes ou quaisquer circunstâncias da causa produzam a convicção segura de que o autor e o réu se serviram do processo para praticar um acto simulado ou para conseguir um fim proibido por lei, a decisão deve obstar ao objectivo anormal prosseguido pelas partes.

O n.º 3 do art.º 264º dispunha que serão ainda considerados na decisão os factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório.

O art.º 5º, n.º 1 do actual CPC recebeu o que constava do n.º 1 do art.º 264º do CPC revogado, dispondo que às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.

Não consta do actual CPC um preceito idêntico à primeira parte do n.º 2 do art.º 264º ou à 2ª parte do art.º 664º revogados, ou seja, que o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes…

No entanto, o principio normativo não desapareceu.

Ele extrai-se da articulação do disposto no n.º 1 do art.º 5º, com o disposto no  n.º 2 do mesmo onde se dispõe que “além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.”.

Ao dispor no n.º 1 do art.º 5º, que às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas e ao dispor no n.º 2 que o tribunal considera os factos articulados pelas partes e ainda a factualidade referida nas alíneas a) a c) do n.º 2, o legislador excluiu a possibilidade de o tribunal fundar a decisão em factos essenciais consubstanciadores de uma causa de pedir ou excepção não invocadas.

Constata-se assim, que o poder de cognição do juiz, no que se refere aos factos, está, no essencial, (excepcionando os factos instrumentais, complementares, factos notórios ou aqueles de que o tribunal tenha conhecimento por virtude das suas funções) limitado aos factos alegados pelo A. que integram a causa de pedir que serve de base à sua pretensão e aos alegados pelo R., que integram as excepções que invoca.

Assim refere Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pág. 354-355, refere:
“A decisão de facto pode apresentar patologias que não correspondem verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento. Umas poderão e deverão ser solucionadas de imediato pela Relação; outras poderão determinar a anulação parcial do julgamento.
(…)
O conteúdo da decisão pode revelar-se excessivo, por envolver a consideração de factos essenciais [não alegados] para a integração da causa de pedir ou das exceções (art.º 5º, n.º 1), ou mesmo de factos complementares ou concretizadores fora das condições de admissibilidade previstas no art.º 5º, n.º 2, alínea b).”

Não podendo tais factos ser considerados, a consequência só pode ser a sua eliminação do elenco dos factos provados.

De referir que esta questão pode ser conhecida oficiosamente por envolver a interpretação e aplicação de regras processuais de cariz imperativo, concretamente do art.º 5º, n.º 1 e 2 do CPC.

4.4.2. Em concreto

A alegação central da A.  é: a autocaravana que adquiriu ao R. estava repleta de pequenos furos, com milímetros, suficientes para causar infiltrações, as quais já existiam há vários anos, por aquela apresentar a parte de madeira podre, nomeadamente na parte do cappuccino, paredes e tecto.

O R. limitou-se a invocar a excepção de caducidade; no mais limitou-se a impugnar os factos.

A decisão recorrida considerou provada a seguinte factualidade:
25.- Após a sua aquisição e em circunstâncias e data não concretamente apuradas, a autora embateu com a parte superior lateral da autocaravana num ramo de uma árvore, causando danos no painel lateral e na sua parte superior que se agravam desde então uma vez que a autocaravana está estacionada num parque descoberto.
26.- Aquando a realização do exame pericial ao veículo, foi possível observar no teto uma zona de “bacia” propensa a acumular águas pluviais.
27.- Estes danos identificados pelo Sr. Perito têm como causa o embate descrito em 25 dos factos provados.
28.- Após a sua aquisição, a autocaravana esteve sempre estacionada num parque de estacionamento público e descoberto.
(…)
30.- O embate identificado em 25 dos factos provados, exponenciou os problemas de impermeabilização do interior da autocaravana.
(…)
34.- O atual estado de degradação do teto e painéis laterais do veículo resultou do embate lateral a que se alude em 25 dos factos provados e ainda do facto da viatura estar estacionada ao ar livre.

A recorrente invoca (conclusão 29) que relatório pericial apenas poderia valer como meio de prova se se reportasse ao estado da (…) autocaravana à data em que a autora denunciou os defeitos – Setembro de 2019 – e não, como o faz, ao estado da viatura à data de Julho de 2022.

Ainda que de forma imperfeita, mas compreensível quando devidamente interpretado e integrado pelo contexto da acção, o alegado pela recorrente reconduz-se ao seguinte: o tribunal deu como provada factualidade essencial que não foi alegada.

E efectivamente assim é porque aquela factualidade é essencial à configuração de uma excepção de direito material: a autocaravana apresenta vícios que emergem de factos ocorridos após a aquisição, imputáveis à recorrente e, como tal, não existe cumprimento defeituoso.

E trata-se de factualidade que não foi tempestivamente alegada pelo R., fosse na contestação, fosse mediante articulado superveniente (admitindo o seu conhecimento posterior, nomeadamente com o relatório pericial).

Note-se que estamos perante factos essenciais, pois integradores daquela excepção, deles dependendo a sua procedência, e não perante factos complementares ou concretizadores de factos essenciais, pois para que pudessem ser considerados como tal, era necessário que tivessem sido alegados factos essenciais consubstanciadores daquela excepção, o que não sucedeu.

Destarte e à luz do disposto nos n.º s 1 e 2 do art.º 5º, interpretados no sentido de que o juiz só pode fundar a decisão em factos essenciais alegados pelas partes e de que, havendo excesso, os factos excessivos devem ser eliminados, determina-se a eliminação do elenco dos factos provados dos pontos  25, 26, 27, 28, 30 e 34.

4.5. Decisão de facto deficiente
4.5.1. Enquadramento jurídico
Realidade diversa da impugnação da decisão de facto, que pressupõe um erro de julgamento, é a deficiência da decisão de facto, que está plasmada no art.º 662º n.º 2 alínea c) onde se dispõe que a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: (…) c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.

Actualmente poderá afirmar-se que haverá deficiência quando o tribunal não se pronuncie sobre algum facto integrante dos temas da prova ou, como refere Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ª edição, pág. 352, a decisão de facto será deficiente se houver “falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares”, “de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso”; será caso de ampliação da matéria de facto, quando tiver sido omitida dos temas da prova matéria de facto alegada pelas partes que se revele essencial para a resolução do litigio (cfr. Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 353).

A questão da deficiência da decisão de facto integra a questão mais vasta da seleção dos factos a enunciar na sentença: a mesma tem por objecto os factos essenciais relevantes para a boa decisão da causa.

E são relevantes (cfr. Manuel Tomé Soares Gomes, ob. cit. supra, pág. 14, que seguiremos de perto):
- os factos essenciais à procedência das pretensões deduzidas, ou seja, aqueles que têm a virtualidade de preencher a previsão normativa (facti species) favorável a tais pretensões, na perspetiva do efeito pretendido, segundo as regras de repartição do ónus da prova; 
- os factos essenciais suscetíveis de integrar os fundamentos de exceção perentória deduzida ou que deva ser objeto de conhecimento oficioso.

E mais adiante, pág. 15, acrescenta que:
“A aferição da relevância dos factos para a resolução do caso deverá ser feita em função de três vectores confluentes:
(i) Em primeiro lugar, o referencial normativo traçado na facti species legal, simples, complexa ou concorrente, em que se inscreve a pretensão deduzida ou a exceção perentória em causa, atentas as regras, gerais ou especiais, de distribuição do ónus da prova, numa perspetiva aberta do quadro de soluções de direito plausíveis que o tribunal possa vir, a final, a considerar, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 5.º do CPC; 
(ii) Em segundo plano, o contexto factológico narrativo alegado pelas partes (…)
(iii) Por fim, o contexto histórico ou real do litígio, que, em regra, emerge da produção da prova.”

E Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC Anotado, 3ª Edição, Almedina, pág. 704, anotação ao art.º 607º referem:
“A aplicação do direito pressupõe o apuramento de todos os factos da causa que, tidos em conta os pedidos e as excepções deduzidas, sejam relevantes para o preenchimento das previsões normativas, sejam elas processuais, sejam de normas de direito material”.

4.5.2. Em concreto
A recorrente pretende (conclusão 38) se dê como provado que:
 “O réu vendeu à autora o veículo ..-XV-.. na qualidade de comerciante e por conseguinte encontrava-se perante esta obrigado a responder nos termos do estatuído no DL 67/2003 de 08 de Abril”, estando o réu obrigado a garantir o bom estado e bom funcionamento da autocaravana por um período de 1 (um) ano”.

Em primeiro lugar é patente e manifesto que a primeira parte - “O réu vendeu à autora o veículo ..-XV-.. na qualidade de comerciante…” é conclusiva e a segunda parte“…e por conseguinte encontrava-se perante esta obrigado a responder nos termos do estatuído no DL 67/2003 de 08 de Abril”, estando o réu obrigado a garantir o bom estado e bom funcionamento da autocaravana por um período de 1 (um) ano” – tem cariz jurídico, pelo que nuca a pretensão da recorrente poderia ser atendida.

No entanto, verifica-se que a recorrente alegou na PI apresentada a 21/01/2021:
- art.º 1º: “No passado dia 31 de Julho de 2019, a autora dirigiu-se ao Stand de Venda de Automóveis “EMP01...”, em ..., onde, por contrato de compra e venda adquiriu ao réu uma Autocaravana…”;
- art.º 2º: “O réu dedica-se, com intuito lucrativo, por si e em nome do referido Stand EMP01..., à compra e venda de veículos automóveis.”
- art.º 3º: “A autora tomou conhecimento da venda da referida autocaravana através de anúncio publicado em site próprio na internet que o réu tinha colocado (…)”;
- art.º 4º: “Após a autora ter telefonado para o contacto que se encontrava anunciado, foi a mesma encaminhada para as instalações do referido Stand EMP01..., onde o réu lhe mostrou o veículo totalmente à vontade, não se encontrando mais nenhum vendedor no local.”
- art.º 5º: “O referido veículo encontrava-se pois exposto nas instalações do referido stand para venda, juntamente com mais duas autocaravanas e dezenas de outros carros.”
- art.º 6º: “Todo o processo negocial decorreu nas instalações do estabelecimento de venda de automóveis que gira com o nome de “EMP01...”, com a presença do réu, onde foi assinado o contrato.”

Tendo em vista a aplicabilidade da Lei n.º 67/2003, é patente e manifesto que  a decisão de facto padece de deficiência, no que diz respeito ao facto essencial de que “O réu dedica-se, com intuito lucrativo, por si (…), à compra e venda de veículos automóveis.”, tendo a demais factualidade referida, carácter instrumental.

Mas como melhor será explicado adiante, só se imporia extrair consequências da referida deficiência, se tivesse ficado provada a desconformidade invocada pela A. - que a autocaravana estava repleta de pequenos furos, com milímetros, suficientes para causar infiltrações, as quais já existiam há vários anos, por aquela apresentar a parte de madeira podre, nomeadamente na parte do cappuccino, paredes e tecto.

Sucede que, não só isso não sucedeu, como, veremos a seguir, a pretensão da recorrente, expressa na conclusão 41, de que aquela factualidade seja considerada provada, não pode ser conhecida.

E, assim sendo, podemos desde já adiantar, os únicos direitos que a recorrente exerceu à luz do DL 67/2003 – de reparação e resolução - e que não foram objecto de apreciação pelo tribunal a quo, sempre teriam de ser julgados improcedentes

Dispõe o art.º 130º do CPC que não é licito realizar no processo actos inúteis.

Assim, se o suprimento da deficiência da decisão de facto não tiver a virtualidade de, segundo as diversas soluções plausíveis das várias questões de direito, conduzir, de per si ou conjugados com outros factos, à alteração do julgado, não faz sentido extrair consequências da sua verificação.

É o que sucede no caso, pelo que se acaba de expor e que será desenvolvido adiante.

Em face do exposto, pese embora seja patente e manifesta a deficiência da decisão de facto, não se extraem consequências da mesma.

4.6. Erro na apreciação das provas
4.6.1. Os requisitos do art.º 640º do CPC
Entendendo a parte que ocorreu erro de apreciação da prova quanto a determinados pontos da decisão de facto, pode o recurso ter por objecto a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

Mas para isso, o recorrente deve observar determinados requisitos, plasmados no art.º 640º do CPC, cuja epigrafe é “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto” e que dispõe:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
(…)”

Não releva dar aqui conta do percurso legislativo percorrido até se chegar à norma em referência – para tal cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pág. 195-196.

Apenas importa considerar que em tal percurso “…foram recusadas soluções maximalistas que pudessem reconduzir-nos a uma repetição dos julgamentos, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente.” – aut. e ob. cit. pág. 195.

O mesmo autor, in ob. cit. pág. 197-198, procede a uma síntese da jurisprudência quanto às exigências legais quando o recurso de apelação envolva a impugnação da matéria de facto, nomeadamente quanto ao “lugar” (alegações ou conclusões) em que as mesmas devem ser observadas e que são:
a) o recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
b) deve ainda especificar, na alegação, os concretos meios de prova, constantes do processo (documentos ou confissões reduzidas a escrito) ou de registo (depoimentos que não foi possível gravar, mas que foram reduzidos a escrito, como sucede com cartas rogatórias) ou gravação nele realizada (depoimentos orais prestados em audiência que ficaram gravados em áudio ou vídeo), que no seu entender determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos objecto de impugnação;
c) relativamente a pontos de facto cuja impugnação tenha por base, no todo ou em parte, a prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere pertinentes;
d) o recorrente deixará, expresso, na motivação, a decisão que no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação critica dos meios de prova produzidas.

Impõe-se acrescentar algumas precisões.

Relativamente ao referido em b), não basta ao recorrente indicar os concretos meios de prova que no seu entender impunham decisão diversa da recorrida.
Impõe-se ao recorrente o “ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, ónus esse que atua numa dupla vertente:  cabe-lhe rebater, de forma suficiente e explícita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo e tentar demonstrar que tal prova inculca outra versão dos factos que atinge o patamar da probabilidade prevalecente.” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, in CPC Anotado, 2ª edição, pág. 797), ou seja, o recorrente tem o ónus de indicar as razões pelas quais aqueles meios de prova permitem se considere provado, ou não provado, consoante for o caso, o facto impugnado.
No fundo, o recorrente tem de fazer uma análise crítica dos meios de prova que no seu entender impunham decisão diversa da recorrida.

Relativamente ao referido na alínea c), como consta do sumário do Ac. do STJ de 18/06/2019, proc. 152/18.3T8GRD.C1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj:
III - A alínea a) do n.º 2 do art. 640.º do Código de Processo Civil deve ser interpretada no sentido de que a impugnação da matéria de facto com base em prova gravada tanto se pode fazer mediante a indicação dos concretos segmentos da gravação como mediante a transcrição deles.
IV - Todavia, transcrever os depoimentos é reproduzir objetivamente, sem fazer intervir qualquer subjetividade, filtro ou juízo apreciativo, aquilo que as pessoas ouvidas declararam (verbalizaram).
V - Não vale como transcrição uma “resenha” (sic) ou aquilo que “em suma” (sic) terão referido as pessoas de cujos depoimentos o recorrente se quer fazer valer.
VI - Neste caso não se está senão perante a interpretação dada pelo recorrente aos depoimentos em causa, e não, como é devido, perante uma transcrição objetiva do teor desses depoimentos.

Em terceiro lugar, ainda quanto ao referido em c), a alínea a) do n.º 2 do art.º 640º rege para a hipótese de os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas terem sido gravados e o recorrente não dar cumprimento ao ónus de indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, nem proceda à transcrição dos excertos que considere relevantes.
E, caso se verifique esta hipótese, determina a rejeição do recurso “na respectiva parte”, ou seja - e é isto que se quer relevar - , na parte relativa aos meios probatórios que tenham sido gravados.
Se acaso a parte tiver invocado, além de meios probatórios que tenham sido gravados, outros meios de prova – documentos, perícia - nesta parte, quanto a estes meios de prova, a impugnação não pode ser rejeitada.

Finalmente e como refere Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pág. 201, a análise do cumprimento destes ónus deve ser realizada “à luz de um critério de rigor. Trata-se afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. Exigências que, afinal, devem ser o contraponto dos esforços que todos quantos, durante décadas, reclamaram a atenuação do princípio da oralidade pura e a atribuição à Relação de efetivos poderes de sindicância da decisão da matéria de facto como instrumento da realização da justiça”.

De referir que o recurso na parte em que se impugna a decisão de facto não pode ser objecto de despacho de aperfeiçoamento (neste sentido os Ac.s do STJ de 27-09-2018, processo 2611/12.2TBSTS.L1.S1, de 18/06/2019, processo 152/18.3T8GRD.C1.S1 e de 08/09/2021, processo 5404/11.0TBVFX.L1.S1, todos consultáveis in www.dgsi.pt/jst, Abrantes Geraldes, ob cit. pág. 199-200 e Rui Pinto, in Manual do Recurso Civil, I, AAFDL Editora, pág. 304).

A letra do art.º 640º n.º 1 é lapidar em afasta a possibilidade de despacho de aperfeiçoamento ao dispor que “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:…”

Ou seja: se a impugnação da matéria de facto não observar os referidos requisitos, nessa parte o recurso deve ser rejeitado.

E tanto assim é, que em sede de impugnação do recurso em matéria de facto não existe norma semelhante à do n.º 3 do art.º 639º, onde se dispõe: “Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada.

Finalmente, nos termos do art.º 652º n.º 1 alínea a) do CPC, que define a função do relator, dispõe que este apenas pode “convidar as partes a aperfeiçoar as conclusões das respetivas alegações, nos termos do n.º 3 do artigo 639.º”

4.6.2. Em concreto
Na conclusão 37 a recorrente pretende se altere a redacção do ponto 3 dos factos provados, substituindo-se a expressão “aparcada” por “exposta”.

Invoca-se erro de julgamento quanto ao ponto 3 dos factos provados.
A impugnação cumpre, minimamente, os ónus do n.º 1 do art.º 640º.

Importa, no entanto, questionar se a apreciação desta impugnação tem alguma utilidade para a decisão da causa.

Dispõe o art.º 130º do CPC que não é licito realizar no processo actos inúteis.

Tal normativo tem aplicação à reapreciação da matéria de facto: se a modificação dos pontos de facto impugnados não tiver a virtualidade de, segundo as diversas soluções plausíveis das várias questões de direito, conduzir, de per si ou conjugados com outros factos, à alteração do julgado, não faz sentido proceder à sua reapreciação.

Neste sentido o Ac. do STJ de 17/05/2017, proferido no processo 4111/13.4TBBRG.G1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj onde se afirma:
“Definido o processo jurisdicional, do ponto de vista estrutural, como uma sequência de actos jurídicos logicamente encadeados entre si, ordenados em fases sucessivas com vista à obtenção da providência judiciária requerida pelo autor (Castro Mendes, Manual de Processo Civil, 1963, pág. 7, e A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed.,1985, pág.11), cabe ao juiz, no âmbito da sua função de direcção e controlo do processo, obviar a que nele sejam produzidos ou produzir actos inúteis.
O princípio da limitação de actos, consagrado no artigo 130º do Código de Processo Civil para os actos processuais em geral, proíbe a sua prática no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – desde que não se revelem úteis para este alcançar o seu termo.
Trata-se de uma das manifestações do princípio da economia processual, também aflorado, entre outros, no artigo 611º, que consagra a atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes, e no artigo 608º n.º 2, quando prescreve que, embora deva resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, o juiz não apreciará aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Nada impede que também no âmbito do conhecimento da impugnação da decisão fáctica seja observado tal princípio, se a análise da situação concreta em apreciação evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual, cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir.
Com efeito, aos tribunais cabe dar resposta às questões que tenham, directa ou indirectamente, repercussão na decisão que aprecia a providência judiciária requerida pela(s) parte(s) e não a outras que, no contexto, se apresentem como irrelevantes e, nessa medida, inúteis.
Para se aferir da utilidade da apreciação da impugnação da decisão fáctica importa considerar se os pontos de facto questionados se não apresentam de todo irrelevantes, se a eventual demonstração dos mesmos é susceptível de gerar um juízo diferente sobre a questão de direito, se é passível de influenciar e, porventura, alterar a decisão de mérito no quadro das soluções plausíveis da questão de direito.”

A alegação de que a viatura estava “exposta”, não constitui um facto essencial, mas um mero facto instrumental da alegação de que o R. actuou como profissional, para efeitos da Lei n.º 67/2003.

E, como já se deixou dito, muito embora, tendo em vista a aplicabilidade da Lei n.º 67/2003, seja patente e manifesto que a decisão de facto padece de deficiência, no que diz respeito ao facto essencial de que “O réu dedica-se, com intuito lucrativo, por si (…), à compra e venda de veículos automóveis.”, tal deficiência só relevaria se tivesse ficado provada a desconformidade invocada pela recorrente - que a autocaravana estava repleta de pequenos furos, com milímetros, suficientes para causar infiltrações, as quais já existiam há vários anos, por aquela apresentar a parte de madeira podre, nomeadamente na parte do cappuccino, paredes e tecto -, o que não sucedeu, sendo certo que – como veremos imediatamente a seguir – muito embora a recorrente afirme na conclusão 41 que todos os factos não provados, devem ser considerados provados, tal pretensão não pode ser conhecida.

Destarte e por se traduzir na prática de um acto inútil, não se conhece da impugnação quanto ao ponto 3 dos factos provados.

Na conclusão 40 a recorrente pretende que os pontos 25 e 34 dos factos provados, devem ser dados como não provados, bem como a expressão “devido à exposição prolongada da autocaravana ao clima”, constante do ponto 31 dos factos provados.

Esta pretensão está prejudicada porque os referidos pontos de facto foram eliminados, como consta do ponto 4.4.2. supra.

Na conclusão 41 a recorrente pretende que os pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10 dos factos não provados, devem ser considerados provados.

Esta pretensão está prejudicada no que diz respeito aos pontos 2 e 9, que já foram eliminados no ponto 4.3.2. supra.

Quanto aos restantes pontos, importa considerar o seguinte.

No ponto 2 supra, relativo às questões que importa apreciar, consignou-se que o objecto do recurso é balizado pelas conclusões.

Dir-se-ia que bastaria o recorrente suscitar determinada questão nas conclusões para que a mesma fosse apreciada.

Porém, não é assim.

Na realidade, apenas cumpre apreciar as questões que constem das conclusões se e na medida em que sejam a tradução, tenham correspondência, na alegação.

É o que resulta do disposto nos art.ºs 637º, n.º 2 e 639º, n.º 1 do CPC.

O primeiro dispõe que o requerimento de interposição do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade…

E o segundo dispõe que o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.

Estes normativos impõem dois ónus: o de alegação e o de conclusão.

Na alegação devem constar as razões, os fundamentos, com base nos quais o recorrente entende que a decisão deve ser revogada ou alterada.

As conclusões traduzem um resumo ou condensação dos fundamentos pelos quais pretende que o tribunal ad quem modifique ou revogue a decisão proferida pelo tribunal a quo. (Ac. RP de 09/11/2020, proc. 18625/18.6T8PRT.P1, consultável in www.dgsi.pt/jtrp).

Já referia Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, V volume, 1984, pág. 359, que: “As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação”.

No mesmo sentido Aveiro Pereira, in “O ónus de concluir nas alegações de recurso em processo civil“, pág. 31, acessível in www.trl.mj.pt/PDF/Joao%20Aveiro.pdf, onde refere que as conclusões são as “ilações ou deduções lógicas terminais de um raciocínio argumentativo, propositivo e persuasivo, em que o alegante procura demonstrar a consistência das razões que invoca contra a decisão recorrida.”

Destarte, as conclusões têm de ser uma decorrência, uma consequência da alegação.

Aplicando o que se acaba de referir à impugnação da decisão de facto – questão que ora nos ocupa – pode afirmar-se que o recorrente cumpre o ónus de alegação expondo o raciocínio argumentativo tendente a demonstrar por que considera que se impõe a alteração da decisão quanto a determinado ponto de facto, raciocínio argumentativo esse que passa, em primeiro, pela indicação do facto que foi considerado provado ou não provado e em segundo pela indicação dos meios probatórios e das razões pelas quais o recorrente considera que aqueles e estas impõem se considere não provado, ou provado, consoante for o caso, aquele facto.
Destarte, aquele raciocínio argumentativo tem (há-de ter) sempre um referencial - um concreto facto considerado provado ou não provado – e visa (há-de visar) demonstrar que se impõe a sua modificação para não provado ou provado.

Quanto ao ónus de conclusão é cumprido mediante a indicação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que, em função e em consequência daquele raciocínio argumentativo, o recorrente considera incorrectamente julgados.

Se nas conclusões é suscitada uma questão que não foi objecto de alegação, a mesma não pode ser considerada por falta de alegação.

Assim tem sido decidido, por exemplo, no:

- Ac. da RE, de 05/06/2008, proc. 612/08-3, consultável in www.dgsi.pt/jtre e cujo sumário se diz:
I - Em regra são as conclusões que delimitam o objecto do recurso, mas conclusões em sentido técnico-jurídico não é tudo o que os Ilustres Mandatários apelidam como tal mas apenas o que tem correspondência directa com o conteúdo das alegações e constitui uma sua decorrência lógica e natural.
II - Não podem ser consideradas conclusões as indicadas como tal, mas sem qualquer referência à fundamentação do recurso. Por isso, só devem ser conhecidas, as questões suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, ainda que outras, eventualmente, tenham sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.

- Ac. da RC de 08/06/2018, proc. 1840/16.4T8FIG-A.C1, consultável in www.dgsi.pt/jtrc cujo sumário tem o seguinte teor:
I – O artº 639º, nº 1 do nCPC impõe ao recorrente dois ónus: o ónus de alegar e o ónus de formular conclusões.
II – O recorrente cumpre o ónus de alegar apresentando a sua alegação onde expõe os motivos da sua impugnação, explicitando as razões por que entende que a decisão está errada ou é injusta, através de argumentação sobre os factos, o resultado da prova, a interpretação e aplicação do direito, para além de especificar o objectivo que visa alcançar com o recurso.
III – Deve, todavia, terminar a sua minuta com a indicação resumida, através de proposições sintéticas, dos fundamentos, de facto e/ou de direito, por que pede a alteração ou a anulação da decisão recorrida.
IV – As conclusões do recurso que versem matéria não tratada nas alegações são totalmente irrelevantes.

E na doutrina Rui Pinto, Manual do Recurso Civil, Vol. I, AAFDL, 2020, pág. 294 entende que a falta absoluta de alegação “consiste na ausência efetiva de afirmações com uma funcionalidade demonstrativa“, precisando que “não apenas conclusões, sem fundamentos (segundo vício de falta absoluta)”, para concluir (pág. 295) que neste último caso, “se as conclusões do recurso versam “matéria não tratada nas alegações são totalmente irrelevantes” (citando o já referido Ac. da RC de 08/06/2018).

Compulsadas as alegações não se encontra estabelecida nas mesmas um nexo, uma conexão, uma relação, entre o que delas consta (os fundamentos) e a conclusão 41, em que consta a pretensão da recorrente de que se considerem provados os pontos 1, 3 a 8 e 10 dos factos não provados, de tal forma que, em rigor, nem sequer permite que se afirme que aquelas visam invocar um erro de julgamento quanto aos referidos pontos dos factos não provados.

Não é possível identificar, no conjunto difuso, disperso e fragmentário dos fundamentos, os concretos meios probatórios e as razões pelas quais a recorrente pretende se considerem os factos constante dos pontos 1, 3 a 8 e 10 dos factos não provados, como provados, por absoluta falta de referência, no corpo daquelas, a tais pontos de facto ou, dito de outra forma, por absoluta falta de enunciação naquelas, daqueles concretos pontos de facto.

E, nessa medida, caso a recorrente pretendesse invocar erro de julgamento quanto a tais pontos da decisão de facto, sempre se impunha afirmar que a mesma não deu cumprimento ao ónus constante da alínea b) do n.º 1 do art.º 640º, ou seja, não invocou os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impusessem decisão diversa (sublinhe-se) quanto àqueles concretos pontos de facto e, nessa medida, também não indicou as razões pelas quais, tais eventuais meios de prova permitiam decisão diversa, pelo que sempre se haveria de rejeitar a impugnação da decisão de facto.

Com o sublinhado da afirmação “quanto àqueles pontos de facto” quer significar-se que muito embora a recorrente se refira, de forma difusa e dispersa a diversos meios probatórios – as suas declarações de parte, a prova pericial e depoimento de testemunhas – , nunca estabelece uma relação, um nexo entre tais alegações e os pontos 1, 3 a 8 e 10 dos factos não provados, de tal forma que fosse possível compreender quais os concretos meios probatórios e razões que impunham que tais factos fossem considerados provados, porque, pura e simplesmente, nunca se refere aos mesmos no corpo das alegações.

Em face do exposto, não se conhece da pretendida modificação dos pontos 1, 3 a 8 e 10 dos factos não provados.

5. Fundamentação de direito
5.1. Enquadramento jurídico
- Do cumprimento das obrigações -
Dispõe o art.º 762º do CC que o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado.
A todo o direito civil e, em especial, ao das obrigações perpassa um princípio de pontualidade e de boa fé na execução dos contratos. Significa-se que os compromissos assumidos têm de ser naturalmente satisfeitos. E assim o impõe a regra geral do art. 406° n° 1 do CC - «todas as cláusulas contratuais devem ser observadas, o contrato deve ser cumprido "ponto por ponto" » - cfr. Pires de Lima e Antunes Varela in "Cód Civ anot" vol. I pág. 373.

O devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação debitória a que se comprometeu. E nesse cumprimento, como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder em conformidade com os ditames da boa fé - art. 762° nºs 1 e 2 CC.
É ao devedor que incumbe provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua – art.º 799º do CC – sendo a culpa apreciada pela diligência de um bom pai de família – art.º 487º n.º 2 do CC aplicável ex vi n.º 2 do art.º 799º do CC.

- Do cumprimento defeituoso no Código Civil –
Uma das formas de incumprimento das obrigações é o cumprimento defeituoso

Este está especificamente previsto para o contrato de compra no o art.º 913º do CC, o qual dispõe:

“1. Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.
2. Quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria. “

A noção de defeito é híbrida no sentido em que ela é simultaneamente objectiva (o defeito corresponde a um desvio à qualidade normal das coisas naquele tipo) e subjectiva (haverá defeito sempre que as coisa não tenha as qualidades que o credor, por força do contrato, poderia legitimamente esperar ou não tenha as qualidades asseguradas ou se a coisa não é adequada a realizar o fim implícita ou explicitamente estabelecido no contrato).
           
Os vícios correspondem a imperfeições relativamente à qualidade normal, enquanto que as desconformidades são discordâncias com respeito ao fim acordado. O conjunto dos vícios e das desconformidades constituem os defeitos da coisa. Os dois elementos fazem parte do conteúdo do defeito, determinam-se através do contrato e dependem da interpretação deste - Pedro Martinez, Cumprimento Defeituoso, pág. 184-185.
           
Do ponto de vista dos dicta promissave, sempre que o bem vendido não tem a qualidade, explicita ou implicitamente assegurada, a prestação é defeituosa. Concretamente, desde que o devedor, de forma espontânea ou em resposta a uma pergunta da contraparte, assegure a existência de certos atributos no bem (...) a falta ao prometido implica cumprimento defeituoso. Para que haja uma violação do contrato, basta que a qualidade seja assegurada, independentemente de se ter assumido, de modo expresso, uma responsabilidade pela sua falta – Pedro Martinez, Cumprimento Defeituoso, pág. 192.
           
A coisa entregue pelo vendedor pode estar afectada de vícios materiais ou vícios físicos, vale dizer, defeitos intrínsecos, inerentes ao seu estado material, e não ser, portanto, conforme ao contrato, dada a sua não correspondência às características acordadas ou legitimamente esperadas pelo comprador - Calvão da Silva Compra e venda de coisas defeituosas, pág. 39.

Anote-se, no entanto, a sujeição ao mesmo regime do vício e da falta de qualidade – aut. e ob. cit. pág. 40
           
O que é relevante é a idoneidade do bem para função a que se destina, ciente de que o importante é a aptidão da coisa, a utilidade que o adquirente dela espera.

Daí a noção funcional: vício que desvaloriza a coisa ou impede a realização do fim a que se destina; falta de qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina.

Nesta medida, diz-se defeituosa a coisa imprópria para o uso concreto a que é destinada contratualmente – função negocial concreta programada pelas partes – ou para a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo se do contrato não resultar o fim a que se destina (art.º 913º n.º 2 do CC) – aut. e ob. cit. pág. 41.
           
- Do cumprimento defeituoso na Lei n.º 24/96, de 31 de Julho e DL 67/2003, de 08 de Abril

Dispõe o art.º 60º n.º 1 da CRP que os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e informação, à protecção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos, bem como à reparação dos danos.
           
Tendo em vista cumprir a norma constitucional, em 1981 foi publicada a Lei n.º 29/81, de 22 de Agosto, entretanto revogada pela Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, conhecida pela Lei de Defesa do Consumidor e que está actualmente em vigor, a qual foi objecto de sucessivas alterações.

Entretanto foi publicado o DL 67/2003, de 08 de Abril, diploma que transpôs para a ordem jurídica portuguesa a Directiva n.º 1999/44/CE.

Este diploma foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro.

No entanto e como dispõe o art.º 53º, n.º 1 do último, as disposições do mesmo em matéria de contratos de compra e venda de bens móveis e de bens imóveis aplicam-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor.

E consta do art.º 55º que o mesmo entrava em vigor a 1 de Janeiro de 2022.

As partes estão de acordo que o contrato de compra e venda dos autos foi celebrado em 2019, pelo que, tendo em consideração apenas este elemento, seria aplicável o referido DL 67/2003.

Vejamos, então, uma síntese relevante do regime jurídico da venda de coisa defeituosa nos referidos diplomas, tendo única e exclusivamente em vista permitir o enquadramento da matéria.

Para uma análise aprofundada veja-se, a título meramente exemplificativo, Calvão da Silva, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Almedina, Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo, Almedina, 3ª edição, Cura Mariano, Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, Almedina, pág. 137 e segs., Luis Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Almedina, III Volume, 2ª edição, pág. 132 e segs. e, em particular, Jorge Morais de carvalho, Manual de Direito do Consumo, 6ª edição, pág. 268-357.

A) Lei de Defesa do Consumidor
A Lei n.º 24/96, de 31 de Julho considera, no art.º 2º n.º 1, que consumidor é todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.
           
O consumidor a que a Lei alude é uma pessoa singular que adquire um bem ou serviço para uso exclusivamente privado, de modo a satisfazer as necessidades pessoais e familiares, mas já não aquele que obtêm ou utiliza bens e serviços para satisfação de necessidades da sua profissão ou da sua empresa ou as pessoas morais ou colectivas – Calvão da Silva, ob. cit. pág. 112.
           
Ao referir-se a fornecimento de bens e prestação de serviços, a referida Lei abrange quer o contrato de compra e venda, quer o contrato de empreitada – Calvão da Silva, ob cit. pág. 112 e Cura Mariano, Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, pág. 137.
           
Por outro lado, exige-se que o bem seja adquirido para uso exclusivamente pessoal ou familiar e não, também, para uso profissional, na medida em que “quem adquire um bem com intenção de o usar na profissão e na vida privada, não deixa de actuar na veste de um profissional, com a suposta qualificação técnica e aptidão para a negociação contratual inerentes a um status de quem actua no âmbito da sua actividade profissional, qualificação ou competência que não perde pelo facto de destinar a coisa ainda e também a uso não profissional“ – Calvão da Silva, ob. cit. pág. 115.
           
Nos termos do art.º 3º alínea a) da Lei nº 24/96, o consumidor tem direito à qualidade dos bens e serviços.
           
E dispõe o art.º 4º do mesmo diploma, na redacção que lhe foi dada pelo DL 67/2003, que “os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo normas legalmente estabelecidas ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor.”
           
Tendo presente o regime do art.º 913º, “nota-se a recepção do carácter funcional e da concepção subjectiva e/ ou objectiva de defeito ou falta de qualidade dos bens de consumo: a aptidão ou idoneidade para satisfazer os fins a que se destinam e produzir os efeitos (leia-se, resultados, prestações, desempenho ou performance) esperados, tendo em conta as normas legais relativas ao tipo ou categoria dos bens contratados ou, na sua falta, “ as legítimas expectativas do consumidor” – Calvão da Silva, ob. cit. pág. 117.
           
Os bens devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam não sofrendo de vício que os desvalorize ou impeça a realização do fim a que são destinados, ou tendo as qualidades asseguradas pelo fornecedor ou necessárias para a realização daquele fim e desempenho ou performance atribuído aos bens do mesmo tipo, em conformidade com o contrato, o fim ou uso específico nele previsto e a função normal das coisas da mesma categoria (art.º 913º do CC).
           
No que respeita à tutela do consumidor perante uma coisa adquirida com defeito, dispõe o art.º 12º n.º 1 da Lei n.º 24/96, na redacção que lhe foi dada pelo DL 67/2003,  que “o consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestação de serviços defeituosos.”

B) Decreto-Lei n.º 67/2003
Como já foi referido, o DL 67/2003 procedeu à transposição para o direito português da Directiva n.º 1999/44/CE, pelo que na interpretação daquele há-de ter-se em conta a referida Directiva.

Dispõe o art.º 1º n.º 1 do referido diploma, que procede à transposição para o direito português da Directiva já nomeada, relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, com vista a assegurar a protecção dos interesses dos consumidores, tal como definidos no n.º 1 do art.º 2º da Lei n.º 24/96.

Deste preceito extrai-se o âmbito de aplicação do diploma: venda de bens de consumo.

Ainda no que respeita ao âmbito de aplicação e como resulta do n.º 1 do art.º 1º A, aditado pelo DL 84/2008, de 21 de Maio, o diploma é aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores, sendo que a alínea a) do art.º 1º B define “Consumidor” como sendo “aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho;”

De referir que na alínea a) do n.º 2 do art.º 1º da Directiva, define-se consumidor como sendo “qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente Directiva, actue com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profissional” e na alínea c) do mesmo número e artigo se define vendedor como sendo “qualquer pessoa singular ou colectiva que, ao abrigo de um contrato, vende bens de consumo no âmbito da sua actividade profissional”.

Considerando que as principais dificuldades encontradas pelos consumidores e a principal fonte de conflitos com os vendedores, se referem à não conformidade dos bens com o contrato, o n.º 1 do art.º 2º da Directiva estatui que o vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda.
           
Tal estatuição teve tradução no n.º 1 do art.º 2º do DL 67/2003.
           
O n.º 2 do mesmo preceito da Directiva, presume que os bens de consumo são conformes com o contrato se não se verificarem os factos ali descritos.
           
O legislador português alterou a técnica da presunção, tendo optado por instituir uma presunção de não conformidade com o contrato se se verificar algum dos factos ali referidos e que são:

a) não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor;
b) não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado;
c) não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;
d) não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.
           
Nos termos do n.º 3 do art.º 2º do DL 67/2003, não se considera existir falta de conformidade na acepção do referido artigo, se, no momento em que for celebrado o contrato, o consumidor tiver conhecimento dessa falta de conformidade ou não puder razoavelmente ignorá-la ou se esta decorrer dos materiais fornecidos pelo consumidor.
           
A presunção de desconformidade assenta em determinados factos.
A prova desses factos cabe ao comprador.
A prova da falta de conformidade, da não correspondência do bem recebido ao bem convencionado, cabe ao comprador, com a ajuda, na falta de cláusulas específicas, das presunções do n.º 2 do art.º 2º, demonstrando as qualidades ou características que as ditaram para se considerarem devidas – Calvão da Silva, Venda de bens de Consumo, pág. 74.
           
De referir que nos termos do n.º 1 do art.º 3º do DL 67/2003 o vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue.
           
No entanto, nos termos do n.º 2 do art.º 3º, as faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois a cinco anos a contar da data da entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respectivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade.
           
Este n.º 2 contempla uma dispensa legal do consumidor do ónus da prova da falta de conformidade no momento da entrega do bem.

Assim refere Jorge Morais de Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 6ª edição, pág. 314-315:
“Em comparação com a norma paralela da Diretiva 1999/44/CE (art. 5º-3), este preceito alarga o prazo da dispensa ou liberação legal do ónus da prova de seis meses para dois anos, aumentando assim de forma significativa o nível de protecção do consumidor.
Esta regra liberta o consumidor da difícil prova da existência de falta de conformidade no momento da entrega do bem, não deixando, no entanto, de ter de provar a falta de conformidade (e, naturalmente, a celebração do contrato). Se o bem (por exemplo, um telemóvel) deixar de funcionar um ano depois da entrega, o consumidor tem de provar o defeito de funcionamento (falta de conformidade com o contrato, uma vez que este incidia num bem que funcionasse) e, conseguindo fazer essa prova, a lei liberta-o da prova de que esse defeito de funcionamento já existia no momento da entrega, embora apenas se tenha manifestado posteriormente.
O vendedor pode, ainda, [alegar, acrescentamos nós, e] provar que a falta de conformidade não existia no momento da entrega, devendo-se a facto posterior que não lhe seja imputável. O vendedor tem de provar – e não basta alegar, muito menos de forma vaga e indeterminada – o facto concreto, posterior à entrega que gerou a falta de conformidade. (…) A principal via utilizada pelos profissionais consiste precisamente na prova do mau uso ou do uso incorreto do bem pelo consumidor.”
           
No que à tutela do consumidor diz respeito, dispõe-se no art.º 3º n.º 2 da Directiva que em caso de falta de conformidade, o consumidor tem direito a que a conformidade do bem seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, nos termos do n.º 3, a uma redução adequada do preço ou à rescisão do contrato no que respeita a esse bem, nos termos do n.º 5 e 6.

E no n.º 3 diz-se que em primeiro lugar, o consumidor pode exigir do vendedor a reparação ou a substituição do bem, em qualquer dos casos sem encargos, a menos que isso seja impossível ou desproporcionado.

E no n.º 5 estatui-se que:
O consumidor pode exigir uma redução adequada do preço, ou a rescisão do contrato:
- se o consumidor não tiver direito a reparação nem a substituição, ou
- se o vendedor não tiver encontrado uma solução num prazo razoável, ou
- se o vendedor não tiver encontrado uma solução sem grave inconveniente para o consumidor.

Como refere Calvão da Silva, in Compra e venda de Coisas Defeituosas, pág. 155, na Directiva só aparentemente há uma alternativa de direitos à escolha do consumidor, antes se verificando ocorre uma hierarquia: em primeiro lugar, o consumidor pode exigir do vendedor a reparação ou a substituição do bem, a menos que isso seja impossível ou desproporcionado; só depois redução do preço ou resolução, nos casos previstos no n.º 5.

E que é assim resulta do considerando n.º 10, em que se diz que “em caso de não conformidade do bem com o contrato, os consumidores devem ter direito de obter que os bens sejam tornados conformes com ele, sem encargos, podendo escolher entre a reparação ou a substituição, ou, se isso não for possível, a redução do preço ou a resolução do contrato.”

Refira-se o que consta do considerando 16 da Directiva:
“Considerando que a natureza específica dos produtos em segunda mão torna, de modo geral, impossível a sua reposição; que, por isso, o direito do consumidor à substituição não é, em geral, aplicável a esses produtos; que, os Estados-membros, quanto a esses produtos, podem permitir que as partes acordem num prazo de responsabilidade mais curto;”
Ou seja, é a própria Directiva a considerar que a natureza específica dos produtos em segunda mão torna de modo geral impossível a sua substituição.

A substituição terá plena aplicação a produtos novos, produzidos em série.

Na transposição para o direito interno, verifica-se que no n.º 1 do art.º 4º do DL 67/2003 se prevê que em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato.
           
E no n.º 5 do mesmo preceito dispõe que o consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais.
           
Na transposição efectuada, o legislador português não acolheu o escalonamento, a hierarquização dos direitos que consta da Directiva. Não há normas idênticas às dos n.ºs 3 e 5 do art.º 3º da Directiva, no que as mesmas têm de especifico a este respeito. E, em face do n.º 5 do art.º 4º, o consumidor pode escolher qual dos direitos quer exercer.

Mas se não há uma hierarquização, há limites à escolha: se for impossível o exercício do direito escolhido ou o seu exercício constituir abuso de direito.
 Ou seja, à luz do n.º 5 do art.º 4º do DL 67/2003, o consumidor tem o direito a escolher qual dos direitos pretende exercer, contanto que não seja impossível a realização prática do direito escolhido e que essa escolha seja conforme aos ditames da boa-fé, por forma a que não incorra no ilegítimo exercício do direito de opção que a lei lhe confere.

De referir que a transposição efectuada, não viola o principio da transposição conforme, pois, conferindo maior liberdade de escolha ao consumidor no exercício dos seus direitos, resulta em um maior nível de protecção do consumidor, o que está em conformidade com o art.º 8º n.º 2 da Directiva.

No que respeita ao prazo de garantia, ou seja, ao prazo durante o qual o consumidor pode reagir a uma manifestação da falta de conformidade, dispõe o art.º 5º n.º 1 do DL 67/2003, na redacção que lhe foi dada pelo DL 84/2008, de 21/05, que o consumidor pode exercer os direitos previstos no artigo anterior quando a falta de conformidade se manifestar dentro de um prazo de dois ou de cinco anos a contar da entrega do bem, consoante se trate, respectivamente, de coisa móvel ou imóvel.

Nos termos do n.º 2, tratando-se de coisa móvel usada, o prazo previsto no número anterior pode ser reduzido a um ano, por acordo das partes.

Como decorre do n.º 1 do art.º 5º A, os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º caducam no termo de qualquer dos prazos referidos no artigo 5º e na ausência de denúncia da desconformidade pelo consumidor.

Verificada uma falta de conformidade dentro dos prazos referidos no n.º 1 do art.º 5º (dois ou de cinco anos a contar da entrega do bem, consoante se trate, respectivamente, de coisa móvel ou imóvel) o consumidor deve denunciá-la ao vendedor no prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, ou de um ano, se se tratar de bem imóvel, a contar da data em que a tenha detectado ( art.º 5º A n.º 2), sob pena de caducidade dos direitos do consumidor – aqui estamos perante uma caducidade por falta de denúncia da falta de conformidade no prazo referido

Efectuada a denúncia da desconformidade, tratando-se de bem móvel, os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º devem ser exercidos judicialmente no prazo de dois anos a contar da denúncia e, tratando-se de bem imóvel, no prazo de três anos a contar da mesma data (art.º 5º A, n.º 3) – aqui estamos perante uma caducidade por não exercício do direito de acção no prazo referido.

Finalmente há a considerar o art.º 8º da Directiva que estatui que o exercício dos direitos resultantes da mesma não prejudica o exercício de outros direitos que o consumidor possa invocar ao abrigo de outras disposições nacionais relativas à responsabilidade contratual ou extra-contratual.

No que a Portugal respeita, é o caso do direito à indemnização previsto no art.º 12º n.º 1 da Lei n.º 24/96, na redacção que lhe conferiu o DL 67/2003.

5.2. Em concreto
A recorrente intentou a presente acção ao abrigo do DL 67/2003 invocando a celebração, na qualidade de consumidora, com o Réu, na qualidade de profissional, de um contrato de compra e venda de uma autocaravana.

O tribunal a quo aplicou o regime do código civil.

A recorrente insiste, no recurso, na aplicação do citado regime.

Face à factualidade provada, não está questionado que entre a recorrente e o recorrido foi celebrado um contrato de compra e venda de uma autocaravana (cfr. pontos 1, 12, 13 e 15 dos factos provados).

Mas para que o regime daquele diploma possa ser aplicado, é essencial que a venda ocorra entre vendedor profissional e consumidor.

Sucede que, como também ficou analisado, há uma deficiência na decisão de facto na medida em que não o tribunal a quo não se pronunciou – nem nos factos provados, nem nos factos não provados – quanto à alegação da recorrente de que o réu dedica-se, com intuito lucrativo, por si, à compra e venda de veículos automóveis.

Seria caso de aplicar o art.º 662º, n.º 2, alínea c) e, nessa medida, adoptar uma de duas medidas: a) considerar que não existem os elementos que permitam considerar aquela factualidade provada ou não provada e, em consequência, anular a sentença recorrida e determinar a baixa dos autos ao tribunal de 1ª instância fim de se pronunciar quanto a tal factualidade; b) considerar que existem os elementos para a Relação considerar aquela factualidade provada ou não provada e decidir em conformidade.

Porém, também já deixámos assinalado, tal traduzir-se-ia num acto inútil na medida em que, mesmo a aplicar-se o regime do DL 67/2003, a acção teria de ser julgada improcedente, por inverificação de um elemento essencial para tal: a falta de conformidade.

A recorrente alegou que em Setembro de 2019 dirigiu-se a uma oficina para proceder à colocação de painéis solares na autocaravana, tendo sido informada que isso não era possível, porque a mesma estava repleta de pequenos furos, com milímetros, suficientes para causar infiltrações, as quais já existiam há vários anos, por aquela apresentar a parte de madeira podre, nomeadamente na parte do cappuccino, paredes e tecto e que a reparação da autocaravana teria o custo de € 20.000,00.

Ficou provado que:
- na data da sua aquisição a autocaravana tinha cerca de 20 anos (cfr. ponto 24 dos factos provados);
- no exterior da autocaravana é possível observar alguns micro furos resultante do fenómeno de oxidação e de corrosão dos sistemas de fixação dos painéis, devido à exposição prolongada da autocaravana ao clima ( cfr. ponto 31 dos factos provados);
- os referidos micro furos são usuais neste tipo de veículo e requerem a sua reparação e manutenção (cfr. ponto 32 dos factos provados).

Porém não ficou provado (cfr. ponto 3) que “a carroçaria está toda podre, por causa das infiltrações ocorridas ao longo dos vários anos.”

Na economia da alegação da A., o elemento central da desconformidade é o facto de a parte de madeira da autocaravana estar podre (como aliás refere na conclusão 22).

E não suscita dúvidas de que, em tese, o apodrecimento da madeira de uma autocaravana, não integra as qualidades normais da mesma.

De referir que a A. nunca afirmou a actual existência de infiltrações.

De notar que não é possível aplicar a presunção de não conformidade estabelecida no art.º 2º do DL 67/2003, por ausência de factos para tal.

Nomeadamente não é possível aplicar a presunção referida na alínea a), ou seja, não é possível considerar que a autocaravana não é conforme com o contrato por não ser conforme com a descrição que dela foi feita pelo vendedor…

A expressão “descrição” significa uma narração detalhada sobre algo ou alguém, através da enumeração das características ou traços distintivos.

Sendo assim, não são suficientes afirmações vagas, genéricas ou subjectivas.

A questão coloca-se porque ficou provado (cfr. ponto 6 da fundamentação de facto) que o Réu BB assegurou à autora que o veículo encontrava-se em boas condições.

Esta afirmação não contempla qualquer “descrição” da autocaravana e, concretamente, não contempla qualquer enunciação quanto ao estado da madeira.

Destarte, não é possível considerar que a autocaravana não é conforme com o contrato por não ser conforme com a descrição que dela foi feita pelo vendedor, porque a afirmação constante do ponto 6 da fundamentação de facto não contempla qualquer “descrição” quanto ao estado da madeira.

Em síntese: muito embora tenha ficado provado que no exterior da autocaravana é possível observar alguns micro furos resultante do fenómeno de oxidação e de corrosão dos sistemas de fixação dos painéis, devido à exposição prolongada da autocaravana ao clima, não ficou provado que tais micro furos causaram infiltrações que, ao logo dos anos, provocaram o apodrecimento da madeira do cappuccino, paredes e tecto, o que significa que não ficou provada a falta de conformidade.

E sendo assim, ainda que tivesse cabal aplicação o DL 67/2003, não podiam ser reconhecidos à recorrente quaisquer dos direitos previstos no art.º 4º do DL 67/2003, sendo certo que, de entre eles, apenas acionou o direito à resolução (alínea c) do petitório) e o direito à reparação (alínea h) do petitório) (ambos previstos no n.º 1 do art.º 4º do DL 67/2003) (que assim se conhecem, dando cumprimento ao disposto no art.º 665º do CPC), já que todos os restantes pedidos radicam no disposto no art.º 913º do CC.

Não podendo ser reconhecidos à A. os referido direitos, nenhum sentido útil tem a apreciação da questão da caducidade (ainda que resulte da factualidade provada que a entrega da autocaravana ocorreu a 31 de Julho de 2019 (cfr. ponto 13); a denúncia da alegada, mas não provada, desconformidade, ocorreu a 21/09/2019 (cfr. pontos 21 e 22 dos factos provados), pelo que, caso o diploma fosse aplicável, ter-se-ia de considerar respeitado o prazo de dois anos a que se refere o art.º 5º, n.º 2 do DL 67/2003; além disso, a acção foi intentada a 02/03/2020, pelo que também se teria de considerar respeitado o prazo de propositura da acção a que se refere o n.º 3 do art.º 5º A do mesmo diploma).

Em face de tudo o exposto e em sintese:
- a decisão recorrida deve ser declarada nula por omissão de pronúncia quanto aos pedidos formulados sob as alíneas c) e h) do petitório;
- ainda que fosse aplicável o DL 67/2003, os pedidos formulados em tais alíneas sempre deviam ser julgados improcedentes e o R. absolvido dos mesmos.

5.3. Custas
As custas da apelação devem ficar a cargo da recorrente, por vencida – art.ºs 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC

6. Decisão

Termos em que acordam os juízes que compõem a 1ª Secção da Relação de Guimarães em:
- declarar nula a decisão recorrida por omissão de pronúncia quanto aos pedidos formulados sob as alíneas c) e h) do petitório;
- conhecendo de tais pedidos, julgam-se os mesmos improcedentes e em consequência absolve-se o R. dos mesmos.

Custas da apelação pela recorrente

Notifique-se
*
Guimarães, 14/03/2024

(O presente acórdão é assinado electronicamente)
 
Relator: José Carlos Pereira Duarte
Adjuntos: Fernando Manuel Barroso Cabanelas
Maria Gorete Roxo Pinto Baldaia de Morais