Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
52/18.7GAAMR-B.G1
Relator: PAULO SERAFIM
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
REVOGAÇÃO
INCUMPRIMENTO DAS REGRAS DE CONDUTA
REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
IRREGULARIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - A regra geral em matéria de conhecimento de irregularidades é a da necessidade da sua arguição pelo interessado, ou seja, pelo titular do direito protegido pela norma violada, nos estritos prazos legais, ficando a irregularidade sanada se não for tempestivamente arguida – cfr. art. 123.º, n.º 1 do CPP. Excecionalmente, permite-se o conhecimento oficioso e a reparação da irregularidade, no momento em que for notada, quando ela puder afetar o valor do ato praticado – cf. art. 123.º, n.º 2 do CPP.
II – A cognoscibilidade por iniciativa do Tribunal mostra-se adstrita aos casos em que a irregularidade contende com a violação de uma norma que não se destina, ou não se destina em primeira linha, a proteger um direito de um sujeito ou participante processual, antes exterioriza a concretização de valores e princípios estruturantes do direito penal ou processual penal e/ou constitucional, tendo então o legislador entendido que nestas situações o conhecimento sobre a sua violação, suscetível de afetar a própria realização da justiça no caso concreto, não podia ficar condicionada à eventual invocação da mesma por banda de um sujeito ou interveniente processual, permitindo ainda que esse conhecimento, se atempado, seja operado ex officio pelo tribunal para que seja reposta a imprescindível legalidade do ato ou atos processuais afetados.
III - No caso vertente, a irregularidade em causa consubstancia-se na omissão de pronúncia do tribunal de primeira instância sobre a questão da aplicabilidade ou não do regime de permanência na habitação à execução da pena de 8 meses prisão aplicada na sentença e aí substituída por pena de multa, decorrendo a execução daquela pena de prisão do incumprimento entretanto ocorrido da pena de multa e da decidida revogação da suspensão da execução da pena privativa da liberdade por inadimplemento do condenado da regra de conduta a que estava subordinada tal suspensão (cf. arts. 45.º, nºs 1 e 2 e 49.º, n.º 3, ambos do CP).
IV - É indubitável a abstrata aplicabilidade ao caso do disposto no art. 43.º, n.º 1, al. c) do CP, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2017, de 23.08, entrada em vigor a 22.11.2017, e, por isso, vigente à data dos factos ajuizados nos autos (perpetrados a 12.02.2018). Após a vigência deste novo enquadramento legal, o regime de permanência na habitação continua a aplicar-se, nos casos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 43.º, como pena de substituição da pena de prisão (efetiva), logo, a ser determinado pelo tribunal de julgamento no momento da decisão condenatória, mas passou a ser igualmente aplicável, agora como mero regime de cumprimento da pena de prisão, decretável à posteriori, no caso de a execução, nos termos da al. c) do preceito, decorrer de revogação de pena não privativa da liberdade (onde se inclui, para este efeito, a pena de prisão suspensa na sua execução, nos termos do art. 50.º do CP) ou de não pagamento da pena de multa previsto no n.º 2 do art. 45.º, isto é, nas situações em que a multa de substituição (da pena de prisão) não é cumprida pelo condenado mediante pagamento voluntário, coercivo ou, nos termos do 49.º, n.º 3, ex vi do art. 45.º, n.º 2, ambos do CP, não sendo imputável o não pagamento ao arguido, através de cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro impostos pelo tribunal no âmbito da suspensão da execução da pena de prisão fixada na sentença.
V - Destarte, estando em causa uma pena de 8 meses de prisão, uma vez decretada a revogação da suspensão da sua execução, que ocorreu ao abrigo do disposto no art. 49.º, n.º 3, ex vi do art. 45.º, n.º 2, ambos do CP e no circunstancialismo acima descrito, impunha-se que o Tribunal a quo ponderasse, no despacho recorrido, a possibilidade de execução dessa pena de prisão em regime de permanência na habitação, aquilatando se estavam ou não verificados os pressupostos legais previstos no artigo 43.º, n.º 1 do CP, designadamente, apreciando se essa forma de execução da pena de prisão realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, o que não sucedeu.
VI - Tal omissão de pronúncia concerne com direitos fundamentais do arguido, designadamente o de ver jurisdicionalmente apreciada uma forma de cumprimento da pena menos atentatória da sua liberdade, sendo certo que constituem pilares estruturantes do nosso edifício jurídico-constitucional os princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação das sanções penais aplicáveis à satisfação das finalidades punitivas previstas na lei, donde emerge ainda o princípio da preferência pelas reações criminais não privativas da liberdade. Por conseguinte, a irregularidade que decorre dessa omissão de pronúncia, por afetar a validade do despacho proferido, é suscetível de conhecimento oficioso pelo tribunal ad quem.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO:

No âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) nº 52/18.7GAAMR, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Amares, no dia 10.05.2021, pela Exma. Juíza foi proferido despacho com o seguinte teor (referência 173109743 – certidão junta a fls. 29 a 32 dos autos):

“Por sentença transitada em julgado a 07.05.2019, foi o arguido E. M. condenado pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 203º, n.º 1 e 204º, nº 2, alínea e), com referência ao art. 202º, alínea d), do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão, substituída pela pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o montante global de € 900,00 (novecentos euros).
Por requerimento datado de 11.10.2019 o arguido requereu o cumprimento daquela pena por prestação de trabalho a favor da comunidade (cfr. referência n.º 9215655).
Por despacho datado de 30.10.2019 foi decido revogar a substituição da pena de prisão em pena de multa e, bem assim, determinar a suspensão da pena de 8 meses de prisão pelo período de um ano com a obrigação de o condenado cumprir 240 horas de trabalho a favor da comunidade.
A 06.12.2019 a DGRSP sugeriu a colocação do arguido na Associação Juvenil X – Escolhas, com vista à execução de tarefas de auxiliar de programas educativos e de laser. (cfr. referência n.º 9482501).
Por despacho datado de 11.12.2019, devidamente notificado ao arguido, foi aquele plano homologado.

Do ofício remetido pela DGRSP a estes autos, em 02.04.2020, pode ler-se o seguinte:

“Em entrevista realizada no dia 08-01-2020, o arguido comprometeu-se a iniciar o cumprimento do trabalho comunitário no dia 15-01-2020, no entanto não o fez.
Foi então contactado para marcação de nova entrevista neste serviço, com o objetivo de o responsabilizar e advertir para as consequências do incumprimento do trabalho comunitário, mas E. M. não compareceu à entrevista, nem iniciou o trabalho comunitário.
No entanto, face à aplicação do plano de contingência para o Covid-19 na entidade beneficiária de trabalho, não é possível a presença de elementos nas instalações do Projecto X - Espaço Escolhas desde 16-03-2020, exceto de alguns funcionários/colaboradores da instituição em referência.
Assim, o arguido apesar de poder iniciar o cumprimento do trabalho comunitário, findo o plano de contingência, a sua atitude manifestada ate à data indicia negligência face ao cumprimento da pena em causa e displicência para com as consequências do incumprimento, pelo que somos a sugerir que o arguido seja advertido pelo seu comportamento e para a necessidade de respeitar as orientações que lhe forem dadas por este serviço” (cfr. referência n.º 9974119).
Nessa sequência, foi designada data para audição do arguido, diligência que decorreu no dia 03.06.2020 (cfr. referência n.º 168381227). No âmbito da mesma, o arguido manifestou vontade para, de imediato, dar inicio ao trabalho ao trabalho.
Porém, e conforme consta da informação remetida a estes autos a 08.01.2021, por parte da DGRSP, o arguido não compareceu na Entidade Beneficiária do Trabalho para iniciar o cumprimento de 240 horas de trabalho a favor da comunidade, realçando-se, ainda, que “foram efetuadas várias diligências e contactos no sentido do arguido se envolver no cumprimento desta injunção, mas sem qualquer resultado, denotando falta de adesão à injunção aplicada”.
A 04.02.2021 foi determinada a notificação do arguido para, querendo, se pronunciar quanto ao promovido pelo Ministério Público (cfr. referências n.ºs 171593091 e 171671436), nada tendo dito.
Em 21.04.2021 procedeu-se a nova audição do arguido. No âmbito da referida diligência, e quanto às razões do incumprimento da prestação de trabalho, afirmou o arguido, num primeiro momento, que os filhos, menores de idade, estiveram infectados com a COVID-19, em Setembro de 2020, sendo certo que não juntou qualquer elemento documental que sustentasse o por si alegado. Mais referiu que após o referido contágio tinha receio de sair de casa, tendo, no entanto, admitido que não deixou de fazer uns biscates junto de sucatas. Mais (re)afirmou ter disponibilidade para dar inicio à prestação de trabalho.
A Digna Magistrada do Ministério Público propugnou no sentido de ser concedida uma derradeira oportunidade de o arguido cumprir a prestação de trabalho, nos termos e com os fundamentos constantes da promoção que antecede.
O arguido, por seu turno, reiterou a posição perfilhada pelo Ministério Público.
Compulsado todo o exposto verificamos que já decorreram mais de dois anos desde do trânsito em julgado da sentença condenatória e cerca de um ano e meio desde da prolação do despacho que decidiu revogar a substituição da pena de prisão em pena de multa e determinar a suspensão da pena de 8 meses de prisão pelo período de um ano com a obrigação de o condenado cumprir 240 horas de trabalho a favor da comunidade, sem que este tenha dado início à sobredita prestação.
Mais se diga que sempre que se procedeu à sua audição, o arguido manifestou disponibilidade para executar a medida, nunca a iniciando, não se vislumbrando do seu discurso quaisquer razões plausíveis e aceitáveis para a recusa do cumprimento.
Acresce que da actuação do condenado resulta indiferença e desrespeito injustificado pelo cumprimento da pena aplicada, patente quer no facto de nunca ter dado início àquela prestação, quer, ainda, no comportamento por este assumido junto da DGRSP.
Assim, não pode este Tribunal deixar de concluir que o mesmo infringiu de forma grosseira – porque consciente, intencional, e manifestando total indiferença ao sistema jurídico-criminal – os deveres que lhe foram impostos, isto é, a prestação de trabalho a favor, comprometendo, desta forma, irremediavelmente as finalidades de prevenção, sobretudo especial, que foram visadas com a suspensão da pena de 8 meses de prisão.
Face ao exposto, revogo a suspensão decretada, atento o incumprimento das 240 horas de trabalho a favor da comunidade e, em consequência, determino o cumprimento pelo arguido de oito meses de prisão.
Notifique de imediato.
Após trânsito:
- Comunique ao T.E.P.
- Remeta boletins.
- Passe, de imediato, os competentes mandados de detenção e condução do arguido ao estabelecimento prisional.”

▪ Inconformado com tal decisão, dela veio o arguido E. M. interpor o presente recurso, que, após dedução da motivação, culmina com as seguintes conclusões e petitório (referência 11616728 – certidão junta aos autos a fls. 34 a 44):

“1. Não pode o recorrente conformar-se com o subscrito no douto despacho.
2. Na verdade, o Tribunal a quo deveria ter sopesado de forma diferente todo o circunstancialismo atinente à factualidade do caso concreto.
3. A ser feito, não levaria à determinação da revogação da pena substitutiva de trabalho a favor da comunidade e, em consequência, à determinação do cumprimento da pena de oito meses de prisão.
4. O recorrente foi condenado, pela prática de um crime de furto qualificado na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 203º, nº 1 e 204º, nº 2 alínea e), com referência ao artigo 202º, alínea d) do Código penal na pena de 80 dias de multa à taxa diária de 5€, o que perfaz o montante global de 900€.
5. A mesma veio a ser substituída, posteriormente, e a requerimento do arguido, por 240 horas de trabalho a favor da comunidade.
6. Até à data, tal prestação ainda não foi cumprida pelo arguido.
7. O previsto início do cumprimento do trabalho comunitário coincidiu com o princípio da crise pandémica que determinou um plano de contingência na entidade que iria beneficiar do trabalho do recorrente.
8. Atenta a baixa escolaridade do recorrente e avalanche informativa, e, por vezes, contraditória acerca dos comportamentos a adotar pela população o ora recorrente, no decorrer do ano de 2020, e apesar de haver se comprometido a tal em 2 de junho desse ano aquando da sua audição, não iniciou o trabalho comunitário a que estava obrigado.
9. Em 21 de janeiro de 2021, o recorrente justificou o impedimento, manifestando toda a sua disponibilidade para dar início à prestação do trabalho.
10. Nesse mesmo dia, e após a diligência, contactado, para o efeito, a Direção Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais.
11. A Digna Magistrada do Ministério Público, e após audição do recorrente, propugnou no sentido de ser concedida uma derradeira oportunidade de o arguido cumprir a prestação de trabalho.
12. Assim, considera o recorrente que o despacho ora recorrido, procedeu a uma incorreta interpretação e, subsequente, aplicação da norma legal consagrada nas alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 59º do Código Penal.
13. O aqui recorrente não infligiu grosseiramente os deveres decorrentes da pena a que foi condenado.
14. O certo é que, havendo tal violação, é imprescindível aferir da culpa do recorrente nessa atuação.
15. Deveria, pois, o Tribunal a quo aferir se o incumprimento foi grosseiro e por culpa do arguido.
16. E, no caso concreto, o Tribunal a quo deveria ter concluído que o incumprimento por parte do recorrente teve na sua génese toda a situação pandémica provocada pela COVID 19, o pânico instalado no país, por vezes, as informações contraditórias acerca dos comportamentos a adoptar pela população.
17. O que, para um individuo com baixo nível de literacia, como é o caso do recorrente, provocou um estado de confusão manifesto a que acresce o facto de os seus filhos menores haverem estado infectados com o COVID 19.
18. Estas circunstâncias marcaram profundamente o recorrente, provocando-lhe desorientação emocional e psíquica.
19. Em razão de tais circunstâncias, a Digna magistrada do Ministério Público considerou que, e apesar do reiterado incumprimento do condenado, “não se mostram irremediavelmente comprometidas as finalidades de prevenção, sobretudo especial, que foram visadas com a aplicação de uma tal pena substitutiva- atendendo a que o mesmo estará social, familiar e profissionalmente integrado”.
20. Acrescenta a Digna Magistrada do MP que “… entendemos que deverá ser concedida a derradeira oportunidade como forma de evitar o cumprimento efetivo da pena de prisão que lhe foi aplicada”.
21. O cumprimento integral da pena de prisão, e os efeitos daquele, poderão colocar em crise, de forma irreversível, a ressocialização do recorrente.
22. Assim, considera o recorrente, e com o devido respeito que, dadas todas as circunstâncias acima aludidas, deveria o Tribunal a quo ter concluído que não estão, de forma alguma, comprometidas as finalidades que estiveram na base da decisão de aplicação da pena substitutiva de prestação de trabalho a favor da comunidade, em conformidade com o disposto na alínea c), nº 2 do artigo 59º do Código Penal.

Por outro lado, e sem prescindir,
23. O recorrente insurge-se, ainda assim, contra o cumprimento efetivo da pena de 8 meses de prisão, pelo que propugna pelo cumprimento da pena em regime diverso da prisão efetiva, mormente, mediante a aplicação do regime jurídico da lei 94/2017 de 23/08.
24. Perante a revogação da pena não privativa da liberdade e “cuja tipologia se enquadra a pena de trabalho a favor da comunidade”, admite-se agora expressamente, que a pena de prisão não superior a dois anos, possa ser executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, se o tribunal concluir que, por este meio, se realizam de forma adequada e suficiente a finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir (artigo 43º nº 1, alínea c) do CP).
25. O novo regime jurídico traduz o entendimento generalizado de que as penas curtas de prisão devem ser evitadas por não contribuírem necessariamente para a ressocialização efetiva do condenado.
26. Foi, inclusivamente, na senda desse pensamento, que se procedeu à abolição da prisão por dias livres e do regime de semi-detenção.
27. Alterou-se, através da ampliação do respetivo campo de aplicação, o regime de permanência na habitação, assim, considerando, que se impõe que seja equacionada a aplicação do novo Regime de Permanência na Habitação em termos de aplicação da lei penal no tempo na consideração do principio da aplicação retroativa das lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido (vide artigo 29º do Constituição da República Portuguesa).
28. Nesta conformidade, ponderando todas as circunstâncias concretas, deverá este Venerando Tribunal ad quem, revogar o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que, depois de recolhida a informação necessária e de terem sido cumpridos os trâmites legalmente estabelecidos, determine a prorrogação do período de cumprimento de TFC, fixando-se um novo regime de cumprimento.
29. Em alternativa, e caso V. Exas. assim não entendam, a aplicação do Regime Jurídico instituído pela Lei 94/2017 de 23/08, mormente, na nova redação do artigo 43º, determinando o cumprimento da pena de oito meses de prisão em regime de obrigação de permanência na habitação.
30. Foram violados os artigos 43º, nº 1, alinea c) e 59º, nº 2, alíneas b) e c) e nº 6, alíneas a) e b) do Código Penal e artigo 29º da CRP.
31. Pelas expostas razões e reafirmando as elevadas qualidades de inteligência, cultura jurídica, sensatez e suficiente experiência da vida, dos Mmos. Juízes a quo, a limitação resultante da incontornável subjetividade da justiça, impõe-nos a conclusão que se lamenta dum desrespeito da concordância prática dos valores em causa, valores imperativamente atendíveis por nenhuma sanção poder ser aplicada afora da teleologia especifica imanente do Direito Penal, convergente com a regeneração pessoal e social do recorrente, o que afetou a ponderação de meio e fim ínsita no principio da proporcionalidade.
32. Ora tal não foi respeitado desequilibrando-se desrazoavelmente o princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade entre a conduta e a consequente pena de prisão, em que o recorrente foi condenado, que um outro igualmente ponderoso da igualdade de todos perante a Lei também impõe, pela circunstância decorrente da personalidade do recorrente e do justificativo racional que esta oferecia para as condutas imputadas.
33. São os inpunts referidos por Max Weber que não inquinam pela compreensão que merecem mas afetam pela injustiça que possibilitam é contra esta que se protesta, nesta vertente da violação dos aludidos princípios jurídico-constitucionais da igualdade e da proporcionalidade de todos perante a Lei.
34. Pelo exposto, o douto acórdão violou os princípios da igualdade, da proporcionalidade e dos direitos e garantias do arguido, estatuídos nos artigos 13º, 18º e 32º da Constituição da República Portuguesa.
35. Por tal foram violados os artigos 40º, 70º, 71º, 77º e 78º do Código Penal e 13º, 18º e 32º da Constituição da República Portuguesa.

NESTES TERMOS, e nos mais de direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deverá ser revogada a decisão de que agora se recorre, fazendo-se a costumada JUSTIÇA!”

▪ Na primeira instância, a Digna Magistrada do Ministério Público, notificada do despacho de admissão do recurso formulado pelo arguido, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou a sua douta resposta, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida os seus exatos termos (certidão junta a fls. 48 a 53 dos autos).
▪ Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, solidarizando-se com a posição já assumida pelo Ministério Público em primeira instância, emitiu douto parecer em que, invocando pertinente jurisprudência, sustenta igualmente a improcedência do recurso (fls. 59 a 62 – referência 7738099).
Cumprido o disposto no art. 417º, nº2, não foi apresentada resposta ao sobredito parecer.

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
*

II – ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO (QUESTÃO A DECIDIR):

É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, C.P.P.) (1).

Assim sendo, no caso vertente, as questões que importa decidir são:

a) se se mostram verificados os requisitos legais para a decidida revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido/recorrente, por não cumprimento da pena de multa aplicada em substituição daquela, em concatenação com a reclamada aplicabilidade, ao caso, de medidas alternativas, designadamente mediante prorrogação do período de cumprimento do trabalho a favor da comunidade;
b) em caso de manutenção da revogação da suspensão, apreciar da aplicabilidade ao caso do regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância (art. 43º, nº1, do CP).
*
III – APECIAÇÃO:

III.1Sobre a verificação do condicionalismo que impõem a revogação da suspensão da execução da pena de prisão:

Relembremos a tramitação processual relevante que antecedeu a prolação da decisão recorrida.
Por sentença transitada em julgado a 07.05.2019, foi o arguido E. M. condenado pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 203º, n.º 1 e 204º, nº 2, alínea e), com referência ao art. 202º, alínea d), do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão, substituída, nos termos do art. 45º, nº1, do mesmo diploma legal, pela pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o montante global de € 900,00 (novecentos euros) – cf. certidão de fls. 4 a 27.
Por requerimento datado de 11.10.2019, o arguido requereu o cumprimento da mencionada pena por prestação de trabalho a favor da comunidade (cf. referência 9215655).
Por despacho datado de 30.10.2019, transitado em julgado, foi decidido, nos termos do art. 49º, nº3, ex vi do art. 45º, nº2, ambos do Código Penal, revogar a substituição da pena de prisão por pena de multa e, bem assim, determinar a suspensão da pena de 8 meses de prisão aplicada ao arguido na sentença pelo período de um ano com a obrigação de o condenado cumprir 240 horas de trabalho a favor da comunidade.
Nessa sequência, a 06.12.2019, a DGRSP elaborou o respetivo plano de reinserção social, sugerindo a colocação do arguido na Associação Juvenil X – Escolhas, com vista à execução de tarefas de auxiliar de programas educativos e de laser (cf. referência 9482501).
Por despacho datado de 11.12.2019, devidamente notificado ao arguido, foi aquele plano homologado.
Posto isto, está também assente que, após várias vicissitudes processuais que infra abordaremos, até ao momento, como referido no despacho recorrido e admitido no recurso pelo próprio arguido [cf. conclusão 6ª], o condenado ainda não prestou qualquer tempo de trabalho a favor da comunidade.
Tendo ocorrido, indubitavelmente, o incumprimento do dever imposto como condição da suspensão da execução da pena de prisão, cumpre então avaliar se o mesmo foi culposo, isto é, imputável ao arguido e injustificado, e, se sim, foi de tal modo acentuado, grosseiro, que colocou irremediavelmente em crise o atingimento das finalidades que estribaram a suspensão da execução da pena de prisão aplicada na sentença, decorrente do não pagamento da pena de multa aplicada em substituição daquela.

Estipula o art. 45.º do Código Penal [redação da epígrafe e do artigo introduzida pela Lei nº 94/2017, de 23.08]:

“1 - A pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, exceto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 47º.”
2 – Se a multa não for paga, o condenado cumpre a pena de prisão aplicada na sentença. É correspondentemente aplicável o disposto no nº3 do artigo 49º.”

Por seu turno, prescreve o art. 49.º do Código Penal [na parte aqui aplicável]:
“[…]
3 - Se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa, por um período de 1 a 3 anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro. Se os deveres ou as regras de conduta não forem cumpridos, executa-se a prisão subsidiária; se o forem, a pena é declarada extinta.
4 - O disposto nos nºs 1 e 2 é correspondentemente aplicável ao caso em que o condenado culposamente não cumpra os dias de trabalho pelos quais, a seu pedido, a multa foi substituída. Se o incumprimento lhe não for imputável, é correspondentemente aplicável o disposto no número anterior.”

Conforme decorre do art. 40º, nº 1, do Código Penal, a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (nº2 do art. 40º do C.P.).

Segundo o Professor Figueiredo Dias (2), quanto aos fins das penas, predomina «a ideia de que só as finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reações específicas. Num contexto em que a prevenção geral assume o primeiro lugar, como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação, do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida, em suma, na expressão de Jackobs, como estabilização contrafática das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida».
Igual entendimento é assumido por Maria João Antunes (3): «a pena tem como finalidade primordial a proteção de bens jurídicos e, sempre que possível, a reintegração do agente na sociedade, atuando a defesa da ordem jurídica e da paz social (conteúdo mínimo da prevenção geral positiva) como limite à atuação das exigências de prevenção especial de socialização e a culpa como limite da pena (artigo 40º, nºs 1 e 2, do CP).»
É consabido que o princípio da preferência pelas reações criminais não privativas da liberdade em face das preventivas, enquanto corolário da exigência de necessidade/subsidiariedade da intervenção penal e de proporcionalidade das sanções penais, decorrente do estatuído no art. 18º, nº2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), é um princípio constitucional enformador do programa político-criminal em matérias de consequências jurídicas do crime.
Assim, o sistema penal português fundamenta-se na conceção estruturante de que as penas privativas da liberdade constituem a ultima ratio da política criminal. Tal conceção encontra-se vertida na legislação penal ordinária, por exemplo, no disposto no art. 70º do CP; por outro lado, o legislador visa obstar, na medida do possível, ao cumprimento de curtas penas de prisão (não superiores a um ano), prevendo a sua permuta, em regra [«exceto se execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes»], e como sucedeu in casu, por pena de multa, nos termos do disposto no art. 45º do CP, assumindo esta a natureza de pena de substituição. (4)
Após, como vimos, o tribunal a quo, com o subjacente fundamento de que o condenado não dispunha de rendimentos para cumprir aquela pena de multa, nos termos do art. 49º, nº3 do CP, ex vi do art. 45º, nº2, segunda parte, do mesmo diploma legal, suspendeu a execução da pena de 8 meses de prisão cominada na sentença pelo período de um ano, e subordinou a suspensão, com o consentimento do condenado, à prestação de 240 horas de trabalho a favor da comunidade – i.e., como forma de execução da pena de multa –, regra de conduta que foi por ele incumprida.
No seu douto recurso, a título principal, insurge-se o recorrente E. M. contra o entendimento do tribunal a quo vertido na decisão recorrida de que o incumprimento da sobredita regra de conduta foi culposo.
Cremos que não lhe assiste razão, mostrando-se a decisão recorrida, que revogou a suspensão da execução da pena de 8 meses de prisão aplicada e ordenou o consequente cumprimento da mesma, devidamente fundamentada factualmente e sufragada pelo ordenamento jurídico.
Ressuma categoricamente dos elementos probatórios juntos aos autos e invocados no despacho recorrido, designadamente das informações veiculadas pela DGRSP sobre a execução da prestação de trabalho a favor da comunidade e das próprias declarações prestadas pelo condenado nas audições a que foi sujeito, que este, desde o início previsto para a execução da medida (acordado com ele suceder no dia 15/01/2020), denotou repreensível carência de falta de adesão à mesma, nunca tendo iniciado a prestação do trabalho, como podia e devia (exceto no período de 16/03/2020 a 03/06/2020, em que vigoraram na instituição social beneficiária do trabalho limitações à presença de trabalhadores nas respetivas instalações, por força de plano de contingência para a COVID-19), faltando a entrevistas agendadas com os serviços de reinserção social e mantendo tal atitude omissiva e desinteressada até à data em que foi proferido o despacho recorrido (de 10/05/2021), apesar das várias diligências e contactos efetuados por aqueles serviços no sentido de o arguido se envolver no cumprimento da injunção imposta e da possibilidade que lhe foi conferida pelo Tribunal, na sequência da sua audição em 03.06.2020, de ele, ainda que tardiamente, iniciar a prestação do trabalho a favor da comunidade (após o advertir para as previsíveis consequências do incumprimento).
Ademais, tal comportamento do arguido não se escora em qualquer motivo justificador plausível e atendível.
Aquando da sua audição pelo Tribunal em 21.04.2021, o condenado invocou como razão para o incumprimento da prestação de trabalho o receio de sair de casa surgido após os seus filhos menores terem sido supostamente acometidos de COVID-19, em setembro de 2020. Contudo, tal argumento, para além de muito tardiamente invocado e não sustentado em qualquer prova, nomeadamente documental (de fácil obtenção), que comprovasse a doença dos filhos, nunca foi comunicado, até esse momento, à DGRSP e/ou ao Tribunal, como lhe era exigível e fosse normal suceder. Acresce que essa desculpa é infirmada pelas restantes declarações do arguido, que admitiu que não deixou nesse período de fazer uns biscates junto de sucatas; ou seja, para as atividades que quis desenvolver no seu quotidiano, o arguido já não se deixou condicionar pelo “medo” de sair de casa em face da situação pandémica vivenciada – a qual, aliás, até só se verificou a partir de março de 2020 –, e pretende agora, manifestamente sem êxito, que o Tribunal acredite que foi esse receio que o impediu de prestar o trabalho a favor da comunidade, para mais tratando-se esta atividade daquela para a qual o arguido mais devia estar motivado a executar, porquanto dela dependia a manutenção da sua liberdade.
Conclui-se, destarte, que existiu incumprimento por parte do condenado da obrigação imposta de prestar trabalho a favor da comunidade, e, outrossim, que tal inadimplemento é culposo, porque injustificado e somente imputável àquele, assim como é grosseiro e reiterado, uma vez que se prolongou por cerca de um ano, sem que ele tivesse prestado sequer uma hora de trabalho, isto apesar das tentativas e diligências que foram realizadas pela DGRSP e pelo Tribunal a quo para que infletisse a sua censurável postura desinteressada e irresponsável e aderisse à injunção decretada.
Assim sendo, decorre expressamente do disposto no art. 49º, nº3, aplicável, mutatis mutandis, por remissão do art. 45º, nº2, ambos do CP, que a consequência para o confirmado incumprimento da regra de conduta consubstanciada na prestação de trabalho a favor da comunidade é a execução da pena de prisão cominada na sentença (8 meses), estando vedado ao julgador ponderar a aplicação de qualquer outra medida alternativa.
Neste conspecto, nenhuma norma legal ou constitucional foi violada pela decisão recorrida, nomeadamente as atinentes às finalidades e escolha do tipo da pena (arts. 40º e 70º, ambos do CP), uma vez que, no caso dos autos, a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de prestação de trabalho a favor da comunidade contende já com a execução da pena de multa de substituição em que o arguido foi condenado, e já não com uma operação de escolha da pena, caso em que aquela suspensão significaria a aplicação de uma outra pena.
Por outro lado, como vimos, nas várias etapas que foram sendo trilhadas pelo Tribunal recorrido, foi atendida a incapacidade económica do arguido de pagamento da multa de substituição e a revogação da suspensão da pena de prisão só surgiu após terem sido assegurados àquele todos os direitos e garantias de defesa, e como ultima ratio. Não se vislumbra, pois, qualquer violação dos princípios da igualdade, da proporcionalidade e dos direitos e garantias do arguido, estabelecidos nos arts. 13º, 18º e 32º, respetivamente, da Constituição da República Portuguesa.
As normas dos arts. 71º, 77º e 78º do mesmo diploma legal igualmente invocadas pelo recorrente são manifestamente descabidas no caso.

Por conseguinte, soçobra, neste segmento, o recurso deduzido pelo arguido.



III.2Da aplicabilidade ao caso do regime de permanência na habitação previsto no art. 43º, nº1, do CP:

O arguido/recorrente abordou no seu douto recurso, subsidiariamente à peticionada não revogação da suspensão da execução da pena de prisão que havia sido substituído por pena de multa, entretanto incumprida, a questão do cumprimento da pena de 8 meses de prisão em regime de permanência na habitação, nos termos e para efeitos do disposto no art. 43º, nº1, al. c), do Código Penal [cf. conclusões 23ª a 30ª].
Trata-se de questão que não havia sido apreciada pelo Tribunal a quo e surge suscitada ex novo perante o tribunal superior.
Ademais, o recorrente não arguiu, em momento algum, a irregularidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia sobre esta particular questão veiculada agora no douto recurso.
Vigora no nosso ordenamento jurídico processual penal um sistema estribado no princípio da tipicidade das nulidades (cf. art. 118º, nºs 1 e 2). Assim sendo, uma eventual omissão de pronúncia que ocorra no despacho que revoga a suspensão da execução da pena de prisão antes decretada gera uma mera irregularidade, sujeita ao regime de arguição previsto no art. 123º do CPP, uma vez que não se encontra legalmente tipificada como nulidade (cf. arts. 119º e 120º do mesmo diploma legal, a contrario).
A regra geral em matéria de conhecimento de irregularidades é a da necessidade da sua arguição pelo interessado, ou seja, pelo titular do direito protegido pela norma violada, nos estritos prazos legais, ficando a irregularidade sanada se não for tempestivamente arguida – cfr. art. 123º, nº1, do CPP.
Excecionalmente, permite-se o conhecimento oficioso e a reparação da irregularidade, no momento em que for notada, quando ela puder afetar o valor do ato praticado – cf. art. 123º, nº2, do CPP.
Contudo, a cognoscibilidade por iniciativa do Tribunal mostra-se adstrita aos casos em que a irregularidade contende com a violação de uma norma que não se destina, ou não se destina em primeira linha, a proteger um direito de um sujeito ou participante processual, antes exterioriza a concretização de valores e princípios estruturantes do direito penal ou processual penal e/ou constitucional, tendo então o legislador entendido que nestas situações o conhecimento sobre a sua violação, suscetível de afetar a própria realização da justiça no caso concreto, não podia ficar condicionada à eventual invocação da mesma por banda de um sujeito ou interveniente processual, permitindo ainda que esse conhecimento, se atempado (5), seja operado ex oficcio pelo tribunal para que seja reposta a imprescindível legalidade do ato ou atos processuais afetados.
A este propósito, louvamo-nos no doutamente expendido no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21.11.2016, proferido no Processo nº 42/13.6GBVRL-C.G1, relator Jorge Bispo, disponível em www.dgsi.pt: «[…] o n.º 2 do citado art. 123º, prevê uma válvula de escape, admitindo a declaração e reparação oficiosa de irregularidades que possam afetar o valor do ato praticado, obviamente limitadas pelo campo de proteção da norma que deixou de observar-se.
Assim, se a norma se destina a proteger unicamente interesses de determinado interveniente/sujeito processual e este não se tiver prevalecido da faculdade de invocar o vício, a irregularidade fica definitivamente sanada, não sendo possível declará-la oficiosamente.
Porém, se estiver em causa norma ordenadora ou que tenha subjacente a concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de Direito material, já a irregularidade pode ser declarada oficiosamente sem qualquer restrição.
Conforme refere Maia Gonçalves - In Código de Processo Penal Anotado, 9ª Edição Revista e Atualizada, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 312., apesar de as irregularidades serem consideradas em geral vícios de menor gravidade do que as nulidades, a grande variedade de casos que na prática se podem deparar impõe que se não exclua a priori a possibilidade de ao julgador se apresentarem irregularidades de muita gravidade, mesmo suscetíveis de afetar direitos fundamentais dos sujeitos processuais.
Daí a grande margem de apreciação que se dá ao julgador, nos n.ºs 1 e 2 do art. 123º, que vai desde considerar a irregularidade inócua e inoperante, até à invalidade do ato inquinado pela irregularidade e dos atos subsequentes que possa afetar, passando pela reparação oficiosa da irregularidade. Trata-se de questões a decidir pontualmente pelo julgador, com muita ponderação pelos interesses em equação, máxime as premências de celeridade e de economia processual e os direitos dos interessados.»
No caso vertente, a eventual irregularidade em causa consubstanciar-se-ia na omissão de pronúncia do tribunal de primeira instância sobre a questão da aplicabilidade ou não do regime de permanência na habitação à execução da pena de 8 meses prisão aplicada na sentença e aí substituída por pena de multa, decorrendo a execução daquela pena de prisão do incumprimento entretanto ocorrido da pena de multa e da decidida revogação da suspensão da execução da pena privativa da liberdade por inadimplemento do condenado da regra de conduta a que estava subordinada tal suspensão (cf. arts. 45º, nºs 1 e 2, e 49º, nº3, ambos do CP).
Em conformidade, temos por certo que a ocorrer tal omissão de pronúncia, ela concerne com direitos fundamentais do arguido, designadamente o de ver jurisdicionalmente apreciada, se cabível ao caso, uma forma de cumprimento da pena menos atentatória da sua liberdade, sendo certo que constituem pilares estruturantes do nosso edifício jurídico-constitucional os princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação das sanções penais aplicáveis à satisfação das finalidades punitivas previstas na lei, donde emerge ainda o princípio da preferência pelas reações criminais não privativas da liberdade. Nesse sentido, prescreve o art. 18º, nº2, da CRP que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”
Por conseguinte, a ocorrer a sobredita omissão de pronúncia, tal circunstância origina uma irregularidade que, por afetar a validade do despacho proferido, é suscetível de conhecimento oficioso pelo tribunal ad quem.
Dito isto, apreciemos se tal irregularidade foi efetivamente cometida.
Cumpre para o efeito referir que, no nosso entendimento, é indubitável a abstrata aplicabilidade ao caso do disposto no art. 43º, nº1, al. c), do CP, na redação introduzida pela Lei nº 94/2017, de 23.08, entrada em vigor a 22.11.2017, e, por isso, vigente à data dos factos ajuizados nos autos (perpetrados a 12.02.2018).

Dispõe o art. 43º do Código Penal, na atual versão [sob a epígrafe “Regime de permanência na habitação”]:

“1 - Sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância:

a) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos;
b) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos resultante do desconto previsto nos artigos 80.º a 82.º;
c) A pena de prisão não superior a dois anos, em caso de revogação de pena não privativa da liberdade ou de não pagamento da multa previsto no n.º 2 do artigo 45.º
2 - O regime de permanência na habitação consiste na obrigação de o condenado permanecer na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo tempo de duração da pena de prisão, sem prejuízo das ausências autorizadas.
3 - O tribunal pode autorizar as ausências necessárias para a frequência de programas de ressocialização ou para atividade profissional, formação profissional ou estudos do condenado.
4 - O tribunal pode subordinar o regime de permanência na habitação ao cumprimento de regras de conduta, suscetíveis de fiscalização pelos serviços de reinserção social e destinadas a promover a reintegração do condenado na sociedade, desde que representem obrigações cujo cumprimento seja razoavelmente de exigir, nomeadamente:
a) Frequentar certos programas ou atividades;
b) Cumprir determinadas obrigações;
c) Sujeitar-se a tratamento médico ou a cura em instituição adequada, obtido o consentimento prévio do condenado;
d) Não exercer determinadas profissões;
e) Não contactar, receber ou alojar determinadas pessoas;
f) Não ter em seu poder objetos especialmente aptos à prática de crimes.
5 - Não se aplica a liberdade condicional quando a pena de prisão seja executada em regime de permanência na habitação.”

Comparativamente ao regime que se encontrava previsto no art. 44º do CP, na redação conferida pela Lei nº 59/2007, de 04.09, constata-se que a lei nº 94/2017 alargou o âmbito de cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação, quer no que concerne à medida-regra da pena de prisão (que passou de um para dois anos), quer quanto à previsão dos das situações em que este regime pode ser aplicado. (6)
Assim, após a vigência deste novo enquadramento legal, o regime de permanência na habitação continua a aplicar-se, nos casos previstos nas alíneas a) e b) do nº1 do art. 43º, como pena de substituição da pena de prisão (efetiva), logo, a ser determinado pelo tribunal de julgamento no momento da decisão condenatória, mas passou a ser igualmente aplicável, agora como mero regime de cumprimento da pena de prisão (7), decretável à posteriori, no caso de a execução, nos termos da al. c) do preceito, decorrer de revogação de pena não privativa da liberdade (onde se inclui, para este efeito, a pena de prisão suspensa na sua execução, nos termos do art. 50º do CP) ou de não pagamento da pena de multa previsto no nº2 do art. 45º, isto é, nas situações em que a multa de substituição (da pena de prisão) não é cumprida pelo condenado mediante pagamento voluntário, coercivo ou, nos termos do 49º, nº3, ex vi do art. 45º, nº2, ambos do CP, não sendo imputável o não pagamento ao arguido, através de cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro impostos pelo tribunal no âmbito da suspensão da execução da pena de prisão fixada na sentença.
Destarte, estando em causa uma pena de 8 meses de prisão, uma vez decretada a revogação da suspensão da sua execução, que ocorreu ao abrigo do disposto no art. 49º, nº3, ex vi do art. 45º, nº2, ambos do CP e no circunstancialismo acima descrito, impunha-se que o Tribunal a quo ponderasse, no despacho recorrido, a possibilidade de execução dessa pena de prisão em regime de permanência na habitação, aquilatando se estavam ou não verificados os pressupostos legais previstos no artigo 43º, n.º 1, do CP, designadamente, apreciando se essa forma de execução da pena de prisão realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, o que, frisa-se, não sucedeu.
A cometida irregularidade decorrente da mencionada omissão de pronúncia sobre aquela concreta questão, que podia e devia ter sido conhecida pelo Tribunal recorrido, não pode, porém, ser reparada por este tribunal de recurso, porquanto não dispõe de todos os elementos necessários para o efeito.
Na verdade, a ponderação da possibilidade de execução da pena em regime de permanência na habitação assenta em pressupostos e requisitos, entre eles a prestação de consentimento pessoalmente prestado pelo condenado (cf. artigo 43º, n.º 1, do CP e art. 4º, nºs 1 e 2, da Lei nº 33/2010, de 02.09), eventualmente de pessoas que com ele coabitem (cf. art. 4º, nºs 4 e 5, da Lei nº 33/2010) e a viabilidade de instalação de meios técnicos de controlo à distância conjugada com a prévia obtenção de relatório a solicitar aos serviços de reinserção social, nos termos do art. 7º, nº2, da Lei nº 33/2010, elementos que terão de ser obtidos e verificados pela primeira instância, depois de devidamente ponderada a “adequação e suficiência” desta forma de execução da pena a cumprir pelo condenado.
Donde, cumpre declarar parcialmente inválido o despacho recorrido, na parte em que omitiu pronúncia sobre a possibilidade de execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação e determinou desde logo o cumprimento pelo arguido, em estabelecimento prisional, de 8 meses de prisão, e, consequentemente, com vista à sanação de tal irregularidade, determinar que o Tribunal a quo profira novo despacho em que, efetuadas as pertinentes diligências e obtidos os elementos necessários, averigue da verificação, in casu, dos pressupostos de que depende a execução da pena no predito regime, previsto no artigo 43º, nº 1, al. c) do CP, decidindo-se, então, em conformidade.
Termos em que, ainda que por fundamentos não totalmente coincidentes com os invocados pelo recorrente, o recurso será julgado parcialmente procedente.



IV - DISPOSITIVO:

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente [ainda que por distintos fundamentos] o recurso interposto pelo arguido E. M. e, em conformidade:

A – Nos termos do art. 123º, nº2, do CPP, declarar inválido o despacho recorrido na parte em que determinou desde logo o cumprimento da pena de prisão pelo condenado em estabelecimento prisional, por irregularidade consubstanciada na omissão de pronúncia sobre a concreta aplicabilidade ou não do regime de permanência na habitação previsto no art. 43º, nº1, alínea c), do Código Penal;

B – Em conformidade, determinar que o Tribunal a quo proceda à sanação da irregularidade cometida, devendo para o efeito proferir novo despacho em que, em substituição do despacho recorrido, na parte afetada, averigue da verificação dos pressupostos de que depende a execução da pena de 8 (oito) meses de prisão imposta ao arguido em regime de permanência na habitação, decidindo, então, em conformidade.

C – No mais, manter a decisão recorrida.

Sem custas (arts. 513º, nº1 e 514º, ambos do CPP, a contrario).
*
Guimarães, 24 de janeiro de 2022,

Paulo Correia Serafim (relator)
[assinatura eletrónica]
Pedro Freitas Pinto (adjunto)
[assinatura eletrónica]
(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP)



1. Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e seguintes; o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém atualidade.
2. In “Direito Penal Português, Tomo II - As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, pp. 72-73.
3. In “Penas e Medidas de Segurança”, 2020, Almedina, p. 18.
4. Como nota Maria João Antunes, ob. cit., pp. 30 e 31, «[a]s penas de substituição em sentido próprio respondem a um duplo requisito: têm, por um lado, caráter não institucional ou não detentivo, sendo cumpridas em liberdade; e pressupõem, por outro, a determinação prévia da medida da pena de prisão, sendo aplicadas (e executadas) em vez desta. Este duplo requisito responde aos propósitos político-criminais do movimento de luta contra a pena de prisão.»
5. A tempestividade do conhecimento só ocorre, como é sabido, até ao trânsito em julgado da decisão final, momento a partir do qual ficam sanadas quaisquer nulidades ou irregularidades.
6. Refere-se na exposição de motivos dos trabalhos preparatórios da Proposta de Lei nº 90/XIII, na Base de Dados da Presidência de Conselho de Ministros, que deu origem à referida Lei nº 94/2017: «Pretendeu-se clarificar, estender e aprofundar a permanência na habitação, conferindo-lhe um papel político-criminal de relevo. Vinca-se, por um lado, a sua natureza de regime não carcerário de cumprimento da pena curta de prisão e alarga-se, por outro lado, a possibilidade da sua aplicação aos casos em que a prisão é concretamente fixada em medida não superior a dois anos, quer se trate de prisão aplicada na sentença, de prisão resultante do desconto previsto nos artigos 80.° a 82.° do Código Penal, ou de prisão decorrente da revogação de pena não privativa de liberdade ou do não pagamento da multa previsto no n.º 2 do artigo 45.° do mesmo diploma. Fora deste quadro fica a prisão subsidiária prevista no artigo 49º atendendo à sua natureza e função peculiares.»
7. No sentido de que, com as alterações introduzidas pela Lei nº 94/2017 de 23/08, o regime agora previsto no artigo 43º do Código Penal passou a constituir não só uma pena de substituição em sentido impróprio, mas também uma forma de execução ou de cumprimento da pena de prisão, vide o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03.10.2018, Processo nº 8193/14.3TDPRT.P1, relatora Maria Ermelinda Carneiro, do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.06.2108, Processo nº 14/11.5PEVIS.C1, relatora Alice Santos,