Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1258/11.5TBPTL-A.G1
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REJEIÇÃO DE RECURSO
OBJECTO DO RECURSO
LETRA DE CÂMBIO
PROTESTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - A ausência de protesto por falta de pagamento da letra dentro do prazo devido não determina a perda dos direitos de acção do portador contra o aceitante.
II - O requerimento de interposição de recurso, ao identificar a decisão de que se recorre, delimita, numa primeira vez, o objecto do recurso. Depois, o recorrente tem a faculdade de, nas conclusões, o restringir, questionando apenas segmentos da decisão de que recorreu. Mas, já não lhe é permitido que amplie esse objecto, indo para além da decisão recorrida, com o propósito de abranger uma outra de que não recorreu.
III - A indicação "com exactidão [d]as passagens da gravação em que se funda", exigida pelo artigo 640.º n.º 2 CPC, concretiza-se mencionando, no mínimo, o minuto em que cada uma de tais "passagens" tem o seu início; ela não se pode ter por efectuada quando somente se menciona a hora do início e do fim de cada depoimento ou se transcreve partes de depoimentos.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I
M.. deduziu, na comarca de Ponte de Lima [1], oposição à execução em que é exequente S.., L.da, pedindo que se declare extinta a execução quanto a si e que se levante a penhora que incide sobre bens seus.
Alega, em síntese, que "jamais negociou com a empresa S.." e que "como a letra dada à execução não foi emitida pela Executada/opoente em consequência de qualquer negócio (relação fundamental) por ela celebrado com a Exequente, não constitui essa letra um documento particular assinado pelo devedor no âmbito de um relacionamento tendo como sujeitos o credor originário e o devedor originário, para execução da relação fundamental, não valendo, por isso, como título executivo". Mais alega que "J.., em 31 de Maio de 2011, aproveitou-se da letra que tinha em sua posse, e, abusivamente, sem o conhecimento e contra a vontade dos seus legítimos donos, preencheu essa letra, nela apondo as datas e os valores que muito bem entendeu, e entregou-a à Exequente para pagamento de uma dívida sua, bem sabendo que a letra lhe não pertencia mas à Opoente e ao seu marido, e que estes nada deviam nem devem nem a ele nem à Exequente." Por isso "a letra dada à execução é um documento falso".
A exequente respondeu afirmando, em suma, que "o documento que serviu de base à execução constituiu um verdadeiro título executivo" e impugnado a versão apresentada pela executada.
Proferiu-se despacho saneador e dispensou-se a elaboração da base instrutória.
Procedeu-se a julgamento.
Foi proferida sentença em que se decidiu que:
"Pelo exposto o Tribunal decide:
- Julgar improcedentes as oposições à execução deduzidas pelos executados M.. e A..;
- Julgar parcialmente procedente as oposições à penhora deduzidas pelos supra identificados executados e ordenar o levantamento da penhora dos bens indicados no ponto 15 dos factos provados, com excepção do instrumento musical ali melhor discriminado."
Inconformada com esta decisão, a executada M.. dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
1.º O legislador previu a possibilidade de serem corrigidos erros de julgamento a partir da reponderação dos meios de prova, em conjugação com os demais elementos constantes dos autos - e, por isso, na revisão processual de 1997, ampliaram-se as atribuições dos Tribunais da Relação.
2.º E a Recorrente vem pedir ao Tribunal da Relação que declare a nulidade da sessão de julgamento realizada no dia 21/3/2014, e, consequentemente, da prova produzida na ocasião e ainda que considere provados factos relativamente aos quais existem no processo meios de prova com força vinculativa, e que, salvo o devido respeito, foram desrespeitados e que, em função da prova revelada nos autos, modifique a decisão proferida pelo M. Juiz a quo, do tribunal da 1ª instância,
3.º a qual, salvo melhor entendimento, enferma, por conseguinte, de erro de julgamento da matéria de facto, fundamenta-se em premissas inexactas e faz errada aplicação do direito.
4.º Encontrava-se agendada para a sexta-feira, dia 21/03/2014 pelas 14:00h, a última sessão de julgamento dos presentes autos, sendo actos a praticar na mesma, 1. a inquirição da testemunha convocada; 2 - e, se não houvesse mais diligências de prova a realizar e estivesse concluída a instrução do processo, as alegações orais.
5.º As mandatárias das partes, que se deslocavam juntas de Ponte de Lima (local dos respectivos domicílios profissionais) para Monção (Tribunal para onde o processo foi remetido) no mesmo automóvel chegaram ao tribunal com cerca de 45 minutos de atraso, por motivos imprevistos e que não lhe eram imputáveis - o furo do pneu do carro à saída da vila de Ponte de Lima, a procura de ajuda para o trocar, a substituição daquele e a chuva que caía na ocasião,
6.º mas, com os nervos, não se lembraram de contactar o tribunal de Monção a explicar o atraso, preocupando-se apenas em chegar ao destino, o mais rápida e cuidadosamente possível!
7.º Á hora marcada para a sessão de julgamento do dia 21/03/2014 - às 14 horas - não se encontrava presente no tribunal nenhum dos/as advogados/as das partes no processo - veja-se acta da diligência (ref.ª 107469) -, que, por razões de justo impedimento, ali chegaram atrasadas 45 minutos e o Juiz a quo, sozinho, na ausência de todos os advogados do processo e sem dar às mandatárias das partes a possibilidade de inquirir a testemunha cujo depoimento estava agendado para aquele dia e havia sido requerido pela Exequente/Oposta, (cujo mandatário não se encontrava presente e tinha substabelecido numa colega que vinha no mesmo carro com as mandatárias dos Executados), iniciara o julgamento, ouvira a testemunha e encerrara a diligência.
8.º Ora, o interrogatório das testemunhas e as instâncias são feitos pelos advogados das partes e as alegações orais - com que terminam todas as audiência de julgamento - são também realizadas pelos advogados que expõem as suas conclusões, de facto e de direito, que hajam extraído da prova produzida.
9.º A audiência de julgamento não se realiza se faltar algum dos advogados, sem que o juiz tenha providenciado pela marcação mediante acordo prévio ou ocorrer motivo que constitua justo impedimento e, in casu, não só faltou à audiência somente um advogado, mas todos - as mandatárias da Oposta e dos Opoentes - e tanto aconteceu em virtude de um facto imprevisto e que lhes não era imputável, o que constitui justo impedimento.
10.º O efeito do justo impedimento não é nem o de impedir o início do curso de prazo peremptório, nem o de interromper tal prazo quando em curso, no momento em que ocorre o facto que se deva considerar justo impedimento, inutilizando o tempo já decorrido, mas tão-somente o de suspender o termo de um prazo peremptório, diferindo-o para o dia imediato aquele que tenha sido o último de duração do impedimento"
11.º In casu, as mandatárias das partes, não só alegaram, imediatamente, o justo impedimento pois logo que chegaram ao tribunal de Monção, no dia 21/03/2014 por volta das 14:45h procuraram explicar o motivo do atraso, como estavam prontas a praticar o acto logo que o justo impedimento cessou,
12.º e só o vieram invocar, depois, a título de questão prévia e para enquadrar o pedido de declaração de nulidade da sessão de julgamento realizada no dia 21/03/2014, no requerimento apresentado antes do dia imediato a 21/03/2014 que é 24/03/2014 (pois de permeio esteve o fim de semana) mas no dia 22/03/2014 (ref.ª 293103), sábado - que não é dia útil -.
13.º Ao ordenar a realização da sessão de julgamento do dia 21/03/2014 e a produção de prova sem a presença dos advogados de todas as partes, ao invés de a adiar, o M. Juiz a quo atropelou as disposições legais que regulamentam a discussão e julgamento da causa, violou grosseiramente os direitos processuais das partes e dos/as respectivos/as mandatários/as e omitiu actos e formalidades que a lei prescreve, o que se traduz numa nulidade, expressa e atempadamente invocada, e que se reitera, para os devidos efeitos.
14.º No exercício dos poderes atribuídos à Relação esta não está limitada ou condicionada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida, devendo expressar a sua própria convicção, a partir da análise dos depoimentos e demais elementos de prova aludidos e pela ponderação do valor probatório de cada um, com explicitação dos resultados desse escrutínio e afirmação, devidamente justificada, da existência ou inexistência de erro de julgamento da matéria de facto quanto a esses impugnados pontos de facto.
15.º Estando dado como provado, na D. Sentença em crise, que «a exequente é uma sociedade por quotas que se dedica à venda de equipamentos de segurança e material de construção», que «no exercício dessa actividade vendeu e forneceu ao executado J.. diversos materiais do seu comércio que ascenderam ao montante de 21.129,23 €», que «por acordo entre a exequente e o co-executado J.. a primeira aceitou reduzir a dívida referida para o montante de 18.371,18 € e, para pagamento dessa dívida, aquele endossou à exequente a letra dada à execução, a seguir mencionada» e ainda que «nos autos principais a exequente deu à execução uma letra de câmbio com o n.º 500792887089821300 com o montante aposto de 18.371,18 €, com data de emissão de 2011.05.31 em Ponte de Lima, com data de vencimento de 2011.06.30, onde consta como sacado o executado A.., como sacador J.. e como aceitantes os executados A.. e M..» (pontos 1 a 4 dos factos provados),
16.º e havendo as testemunhas reconhecido que a dívida à Exequente "era do Executado J.." e não da Executada/Opoente ou o seu marido (depoimento de V.., funcionário da empresa S.., Lda., prestado em 7/2/2014 de 15:28:48 a 15:39:17) pois estes "não fizeram construções nenhumas" e "trabalham no campo" (depoimentos de G.., prestado em 7/2/2014 de 15:13:37 a 15:19:35 e de Â.., prestado em 7/2/2014 de 15:20:28 a 15:28:02),
17.º andou bem o M. Juiz a quo ao dar como provado que «a letra dada à execução não foi emitida pelos executados na sequência de qualquer negócio que tenham celebrado com a exequente» como foi (ponto 14 dos factos provados),
18.º mas também devia ter DADO COMO PROVADO, face aos documentos existentes nos autos e ao teor do depoimento das testemunhas acima indicados, que
- o título executivo - a letra - não representa o acto jurídico pelo qual os executados A.. e M.. reconhecem uma obrigação para com a exequente;
- não existe qualquer relação cartular entre a exequente e os executados A.. e M.. nem constam da letra dada à execução os factos constitutivos de uma eventual relação subjacente entre estes.
19.º Como a letra de câmbio dada à execução não foi emitida pela Opoente/Recorrente em consequência de qualquer negócio (relação fundamental) por ela celebrado com a Exequente, não constitui essa letra um documento particular assinado pelo devedor no âmbito de um relacionamento tendo como sujeitos o credor originário e o devedor originário, para execução da relação fundamental, não valendo, por isso, como título executivo, enquadrável na al. c) do n.º 1 do art. 703.º CPC.
20.º E, não sendo a letra de câmbio endossada à exequente, título executivo contra a Recorrente e o seu marido, não pode a mesma servir de base à presente execução porquanto,
21.º não obstante o endosso transmitir os direitos que resultam do título, tendo o cessionário exactamente o direito que o cedente teve, o endossado – ou cessionário – não é o credor originário pois a posição daquele é a de um representante do endossante – ou cedente –.
22.º A recusa de pagamento de uma letra de câmbio deve ser comprovada por um acto formal (protesto por falta de pagamento), o qual, no caso de uma letra pagável em dia fixo ou a certo termo de data ou de vista, deve ser feito num dos dois dias úteis seguintes àquele em que a letra é pagável. Não tendo sido dispensado o protesto por falta de pagamento, devia o mesmo ter sido realizado naquele prazo, expirado o qual o portador da letra perde os seus direitos de acção contra os obrigados, o que sucedeu, in casu.
23.º E a letra de câmbio dos autos, que não pode valer como título de crédito contra a Recorrente e o seu marido, também não pode valer como título executivo previsto na al. c) do art. 703.º do C. P. Civil, pela falta de verdadeira condição da acção porque o título não possui um dos requisitos necessários à exequibilidade.
24.º Mesmo que se entenda, como o faz o M. Juiz a quo, que «o endosso feito depois de expirado o prazo para apresentação das letras a protesto por falta de pagamento não retira às letras a sua natureza de título de crédito» isso só acontece nas relações imediatas – entre o credor e o devedor originários – onde a obrigação exigida não é a obrigação cambiária mas a obrigação causal ou subjacente e já não nas relações mediatas – no caso entre a exequente e a Recorrente – e muito menos quando os executados A.. e M.. – ora Recorrente – não celebraram qualquer negócio com a exequente/endossada S...
25.º Constando nos autos um documento denominado "confissão de dívida" - que não foi impugnado - assinado pelo Recorrente e seu marido no âmbito do Processo Executivo n.º 55/09.2TBMNC que corria termos no Tribunal de Monção, onde aqueles, no dia 25/5/2009,
- se confessavam devedores a J.. da importância de 17.000,00 €;
- declaravam «terem procedido ao pagamento da quantia de 22.012,09 €»;
- se comprometiam a pagar «até 30 de Junho de 2010 ou na data de venda do prédio urbano composto por cave com 2 divisões, r/c com 2 divisões e 1.º andar com 7 divisões, com rossios, sito no lugar de Cristelo, freguesia de Troviscoso, 4950-812 Monção, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 00045/010886 e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 784.º, caso a mesma ocorra antes daquela data»;
- declaravam ter procedido «à entrega de uma letra de câmbio assinada por ambos, cuja cópia anexam a esta declaração e cujo original entregaram ao Sr. J.., e que conferem poderes a este para a preencher, apondo na mesma a importância em dívida, acrescida dos juros que se venham a vencer e ainda os demais dados necessários para ser dada a desconto ou utilizada como título executivo, caso se verifique uma das seguintes condições: não ocorrer o pagamento da importância confessada devida e respectivos juros até 30 de Junho de 2010; ocorrer a venda do prédio urbano composto por cave com 2 divisões, r/c com 2 divisões e 1.º andar com 7 divisões, com rossios, sito no lugar de Cristelo, freguesia de Troviscoso, 4950-812 Monção, antes de 30 de Junho de 2010, sem que se dê o pagamento, na mesma data da venda, da importância confessada devida e dos respectivos juros»;
26.º existindo nos autos um recibo de pagamento – que não foi impugnado – assinado por J.., em 16/9/2009 (quase 4 meses depois da assinatura da referida confissão de dívida") onde este assegura ter recebido de A.. – marido da Recorrente e, com ela, também Executado nestes autos – «a importância de 22.012,09€ referente ao Proc. n.º 55/09.2TBMNC, do Tribunal Judicial da comarca de Monção»;
27.º estando nos autos a notificação realizada pela Agente de Execução à ora Recorrente, em 14/10/2010 - mais de um ano depois da data aposta no recibo emitido por J.. (16/9/2009) e quase quatro meses depois de terminar o prazo para pagamento da dívida restante (30/6/2010) -, «que a execução n.º 55/09.2TBMNC se encontrava extinta pelo pagamento da quantia exequenda e das custas»;
28.º confirmando-se nos autos que a letra de câmbio entregue pela Recorrente e seu marido a J.., em branco, só com a assinatura daqueles na parte do aceite e que servia de garantia ao pagamento da dívida confessada em 25/5/2009 tinha o n.º 500792887089821300 e que é, precisamente, a que foi dada neste processo executivo;
29.º e tendo as testemunhas afirmado que os executados A.. e M.. "não deviam nada a ninguém" (depoimento de G.., prestado em 7/2/2014 de 15:13:37 a 15:19:35), que estes "mostraram à GNR provas de como não tinham dívida nenhuma" ao J.. (depoimento de Â.. prestado em 7/2/2014 de 15:20:28 a 15:28:02) e que "a parte da dívida, os tais 17.000 €, foi efectivamente saldada" (depoimento de V.., prestado no dia 21/3/2014, de 14:36:56 a 14:46:11) que é, precisamente, a quantia que a Recorrente e o seu marido se confessaram devedores, em 25/5/2009 e iriam pagar depois desta data,
30.º não se podia dar como provado que o co-executado, na sequência da declaração referida em 25/5/2009 «emitiu recibo de quitação respeitante à quantia recebida - 22.012,09 € - no dia 16.09.2009» nem que «os executados/opoentes, na data de vencimento da letra dada à execução, não pagaram a quantia nela inscrita, pelo que J.. preencheu a mesma nos termos acordados» no documento designado por confissão de dívida (pontos 10 e 11 da matéria provada
31.º e sim DAR COMO PROVADO que
- quando foi emitido o documento designado por confissão de dívida, datado de 25/5/2009, os executados/opoentes A.. e mulher M.. tinham procedido ao pagamento, ao co-executado J.., de uma parte da dívida exequenda;
- o co-executado J.. emitiu o recibo n.º 43 declarando ter recebido dos executados/opoentes A.. e mulher M.., em 16/09/2009, a importância de 22.012,09 € (vinte e dois mil e doze euros e nove cêntimos);
- os executados/opoentes, na data de vencimento da letra de câmbio dada à execução, já haviam pago a quantia que deviam ao co-executado J..;
- o co-executado J.. não devolveu aos executados executados/opoentes A.. e mulher M.. a letra de câmbio dada por estes em garantia do pagamento do restante da dívida;
- o co-executado J.. utilizou a letra de câmbio dada como garantia pelos executados/opoentes A.. e mulher M.., em branco e somente com as suas assinaturas e preencheu-a, nela apondo datas e valores, após o que endossou à exequente para pagamento de uma dívida que ele tinha na S...
32.º A letra de câmbio dada à execução, que foi abusivamente preenchida pelo co-executado e sem o conhecimento e contra a vontade dos executados/opoentes A.. e M.. – a ora Recorrente –, é um documento falso e, por isso, nulo e de nenhum efeito, o que já se invocou, e não pode servir de base à presente execução dado que
33.º o primeiro possuidor da letra de câmbio – in casu o J.. – é um dos sujeitos da "relação de transmissão" da letra e esta relação tem a sua causa na "relação fundamental". Mas, se esta relação é nula, nulo há-de ser também o contrato de transmissão – sendo nula a causa, nulo é o efeito. E como a posse do portador só se justifica pela relação de transmissão, sendo esta nula, o portador não é legítimo possuidor do título, não tem qualquer direito sobre ele e consequentemente não é também titular do crédito cambiário.
34.º Para além de a Recorrente a) ter um documento, datado de 25/5/2009, onde se escreve que ela e o marido haviam pago ao J.. uma parte da dívida e se confessavam devedores do restante – 17.000,00€ mais juros –; b) possuir um recibo, datado de 16/9/2009, assinado pelo mesmo J.. em que ele declara ter recebido do marido daquela a quantia de 22.012,09 €; c) ter sido notificada, em 14/10/2010, pela Agente de Execução do processo n.º 55/09.2TMNC – no qual era Exequente o J.. e Executados a ora Recorrente e o seu marido e onde estes assinaram a referida confissão de dívida – de que «face ao pagamento da quantia exequenda e das custas, considera-se extinta a execução» e d) as testemunhas afirmado que ela e o seu marido "não deviam nada a ninguém" (depoimento de G.., prestado em 7/2/2014 de 15:13:37 a 15:19:35), que estes "mostraram à GNR provas de como não tinham dívida nenhuma" ao J.. (depoimento de Â.. prestado em 7/2/2014 de 15:20:28 a 15:28:02) e que a parte da dívida de que ela e o seu marido se confessaram devedores em 25/5/2014 "os tais 17.000 €, foi efectivamente saldada" (depoimento de V.., prestado no dia 21/3/2014, de 14:36:56 a 14:46:11),
35.º o que, ao contrário do defendido pelo M. Juiz a quo, seria, só por si, suficiente para provar que a obrigação que a Recorrente e o seu marido tinham para com o co-executado J.. se extinguira pelo pagamento,
36.º no referido processo executivo n.º 55/09.2TMNC o mandatário do ali Exequente e aqui co-executado J.. veio «requerer o envio dos autos à conta, por inutilidade superveniente da lide, uma vez que já recebeu dos executados a quantia exequenda e as custas do processo».
37.º Este reconhecimento que a parte – ou o seu mandatário - faz "da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária" é uma confissão que vincula o J.. e "é irretractável".
38.º Por isso, vir, agora, alegar-se o não pagamento da dívida por parte da Recorrente e do seu marido a J.. traduz culpa in agendo e sobretudo um venire contra factum proprium, que acontece quando alguém exerce uma posição jurídica em contradição com o comportamento pelo mesmo assumido anteriormente, criador de legítimas expectativas na contraparte, o que constitui abuso de direito.
39.º Acrescente-se ainda que, pese embora o depoimento do Dr. V.., prestado na sessão de julgamento do dia 21/3/2014 - que foi mandatário judicial do co-executado J.. no referido processo executivo n.º 55/09.2TBMNC - não possa fazer prova em juízo por ter sido prestado em violação de segredo profissional já que o advogado só pode revelar factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços "desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo" – o que não aconteceu in casu na medida em que o ilustre causídico refere "a partir do momento em que este documento se encontra junto aos autos, eu sinto-me à vontade para poder responder, responder à pergunta que me acabou de formular, porque caso contrário, entendo que não devia", "eu penso que também não irei quebrar o sigilo. Penso, penso. Porque se quebrar o sigilo também existe aquela disposição que vocês têm…" –,
40.º o mesmo é inócuo a respeito do pagamento ou não da dívida da Recorrente e do seu marido ao co-executado J.. na medida em que a testemunha V..(depoimento prestado no dia 21/3/2014, de 14:36:56 a 14:46:11) afirma que "se agora as letras foram pagas ou não, é algo que me ultrapassa" mas acaba por apoiar a tese da Recorrente já que a testemunha V.. (depoimento prestado no dia 21/3/2014, de 14:36:56 a 14:46:11) reconhece que a dívida não foi totalmente paga quando foi feito o documento designado "confissão de dívida" pois "naquele momento não. Houve foi meios para garantir o pagamento. Formas de pagamento", confirmando, assim, que a Recorrente e o seu marido pagaram uma parte da dívida nessa ocasião e, depois disso, os restantes 17.000,00 € de que se confessaram devedores no documento assinado em 25/5/2009; e que a Recorrente e o seu marido pagaram, no final, os 17.000,00€ de que se confessaram devedores em 25/5/2009 pois "a parte da dívida, os tais 17.000 €, foi efectivamente saldada"…
41.º A D. Sentença em crise ao considerar improcedente a Oposição à Execução deduzida pela ora Recorrente viola o disposto nos art.s 334.º, 352.º, 372.º e 378.º do Cód. Civil, nos art.s 44.º e 46.º da LULL, no art. 87.º n.ºs 1, 4 e 5 do EOA e nos art.s 46.º, 465.º n.º 1, 516.º n.º 4, 546.º, 602.º n.º 2 a), 603.º, 604.º n.º 4 e 703.º, todos do CPC.
A exequente contra-alegou sustentando que "deve ser negado provimento ao recurso ora interposto".
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635.º n.º 3 e 639.º n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se:
a) foi por "razões de justo impedimento" que "à hora marcada para a sessão de julgamento do dia 21/03/2014 - às 14 horas - não se encontrava presente no tribunal" a Ilustre Mandatária da executada; [2]
b) "a realização da sessão de julgamento do dia 21/03/2014 e a produção de prova sem a presença dos advogados de todas as partes (…) traduz[-se] numa nulidade"; [3]
c) devia ter sido dado como provado que:
- o título executivo - a letra - não representa o acto jurídico pelo qual os executados A.. e M.. reconhecem uma obrigação para com a exequente;
- não existe qualquer relação cartular entre a exequente e os executados A.. e M.. nem constam da letra dada à execução os factos constitutivos de uma eventual relação subjacente entre estes";[4]
"- quando foi emitido o documento designado por confissão de dívida, datado de 25/5/2009, os executados/opoentes A.. e mulher M.. tinham procedido ao pagamento, ao co-executado J.., de uma parte da dívida exequenda;- o co-executado J.. emitiu o recibo n.º 43 declarando ter recebido dos executados/opoentes A.. e mulher Ma.., em 16/09/2009, a importância de 22.012,09 € (vinte e dois mil e doze euros e nove cêntimos);
- os executados/opoentes, na data de vencimento da letra de câmbio dada à execução, já haviam pago a quantia que deviam ao co-executado J..;
- o co-executado J.. não devolveu aos executados executados/opoentes A.. e mulher M.. a letra de câmbio dada por estes em garantia do pagamento do restante da dívida;
- o co-executado J.. utilizou a letra de câmbio dada como garantia pelos executados/opoentes A.. e mulher M.., em branco e somente com as suas assinaturas e preencheu-a, nela apondo datas e valores, após o que endossou à exequente para pagamento de uma dívida que ele tinha na S.."; [5]
d) "não se podia dar como provado que o co-executado, na sequência da declaração referida em 25/5/2009 «emitiu recibo de quitação respeitante à quantia recebida - 22.012,09 € - no dia 16.09.2009» nem que «os executados/opoentes, na data de vencimento da letra dada à execução, não pagaram a quantia nela inscrita, pelo que J.. preencheu a mesma nos termos acordados»"; [6]
e) "como a letra de câmbio dada à execução não foi emitida pela Opoente/Recorrente em consequência de qualquer negócio (…) por ela celebrado com a Exequente, não constitui essa letra um documento particular assinado pelo devedor no âmbito de um relacionamento tendo como sujeitos o credor originário e o devedor originário, para execução da relação fundamental, não valendo, por isso, como título executivo, enquadrável na al. c) do n.º 1 do art. 703.º CPC"; [7]
f) "não tendo sido dispensado o protesto por falta de pagamento, devia o mesmo ter sido realizado (…) [no respectivo] prazo, expirado o qual o portador da letra perde os seus direitos de acção contra os obrigados";[8]
g) "a letra de câmbio dada à execução, que foi abusivamente preenchida pelo co-executado e sem o conhecimento e contra a vontade dos executados/opoentes (…), é um documento falso e, por isso, nulo e de nenhum efeito"; [9]
II
1.º
Foram julgados provados os seguintes factos:
1. A exequente é uma sociedade por quotas que se dedica à venda de equipamentos de segurança e material de construção.
2. No exercício dessa actividade vendeu e forneceu ao executado J.. diversos materiais do seu comércio que ascenderam ao montante de € 21 129,23.
3. Por acordo entre a exequente e o co-executado J.. a primeira aceitou reduzir a dívida referida para o montante de € 18 371,18 e, para pagamento dessa dívida, aquele endossou à exequente a letra dada à execução, a seguir mencionada.
4. Nos autos principais a exequente deu à execução uma letra de câmbio com o n.º 500792887089821300 com o montante aposto de € 18 371,18, com data de emissão de 2011.05.31 em Ponte de Lima, com data de vencimento de 2011.06.30, onde consta como sacado o executado A.., como sacador J.. e como aceitantes os executados A.. e M.. - cfr. fls. 55, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
5. No verso da letra referida constam manuscritos os seguintes dizeres, após a assinatura de J..: "Endosso esta letra à S.., L.da, pessoa colectiva n.º..".
6. Após tais dizeres foi manuscrita novamente a assinatura de J.. e apostos, um em seguida do outro, dois carimbos da exequente com uma assinatura ilegível aposta sobre cada um deles.
7. Correu termos neste Tribunal sob o n.º 55/09.2TBMNC um processo de execução em que figurava como exequente J.. e executados A.. e M...
8. No âmbito desse processo executivo os executados e o exequente juntaram um requerimento, que todos subscreveram, com o seguinte teor: "Vêm requerer a V. Exa. a suspensão da instância executiva, ... uma vez que chegaram acordo quanto à forma de pagamento da dívida exequenda, sendo o plano de pagamento o seguinte:
Os executados comprometem-se a pagar ao exequente, a quantia exequenda nos seguintes termos:
a) 20.000,00€ no dia da venda dos prédios urbanos inscritos na respectiva matriz da freguesia de Ponte da Barca, sob os artigos 630-BU e 630-L;
b) o remanescente até 30 de Junho de 2010 ...".
9. Por documento particular denominado "Confissão de Dívida", outorgado em 25 de Maio de 2009 e subscrito pelos executados, estes últimos declararam o seguinte:
"... confessam-se devedores da importância de 17.000,00 € (dezassete mil euros) a J.., ... em consequência de este, nesta data, ter desistido do Proc. n.º 55/09.2TBMNC, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Monção e de apenas agora terem procedido ao pagamento da quantia de 22.012,09 € (vinte e dois mil e doze euros e nove cêntimos) através de uma letra de câmbio, que foi assinada pelos aceitantes, no dia de hoje, mas cujo preenchimento apenas ocorrerá na próxima sexta-feira, dia 29 de Maio de 2009, caso a mesma não seja substituída por um cheque, visado, de igual montante.
Declaram que:
Se comprometem a pagar a importância que ora confessam dever, até 30 de Junho de 2010, ou na data de venda do Prédio Urbano, composto por cave com 2 divisões, rés-do-chão com 2 divisões e 1.º andar com 7 divisões, com rossios, sito no lugar de Cristelo, da freguesia de Troviscoso, 4950-812 Monção, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 00045/010886 e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 784.º, caso a mesma ocorra antes daquela data, acrescida da taxa de juros de 4%, contabilizados a partir de hoje até à data de pagamento;
Nesta data procederam à entrega de uma letra de câmbio, assinada por ambos, cuja cópia anexam a esta declaração e o original entregaram ao Sr. J.., e que conferem poderes a este para a preencher, apondo na mesma a importância em dívida, acrescida dos juros que se venham a vencer, e ainda os demais dados necessários, para ser dada a desconto ou utilizada como título executivo, caso se verifique uma das seguintes condições:
Não ocorrer o pagamento da importância confessada devida e respectivos juros até 30 de Junho de 2010;
Ocorrer a venda do Prédio Urbano, composto por cave com 2 divisões, rés-do-chão com 2 divisões e 1.º andar com 7 divisões, com rossios, sito no lugar de Cristelo, da freguesia de Troviscoso, 4950-812 Monção, antes de 30 de Junho de 2010, sem que se dê o pagamento, na mesma data da venda, da importância confessada devida e dos respectivos juros."
10. O co-executado, na sequência da declaração referida em 9 emitiu recibo de quitação respeitante à quantia recebida - € 22 012,09 - no dia 16.09.2009.
11. Os executados/opoentes, na data de vencimento da letra dada à execução, não pagaram a quantia nela inscrita, pelo que J.. preencheu a mesma nos termos acordados no documento referido em 9, após o que a endossou à exequente.
12. A letra referida em 9 é a mesma que foi dada à execução.
13. Em 14 de Outubro de 2010 os executados foram notificados que a execução a correr termos sob o n.º 55/09.2TBMNC se encontrava extinta pelo pagamento da quantia exequenda e das custas.
14. A letra dada à execução não foi emitida pelos executados na sequência de qualquer negócio que tenham celebrado com a exequente.
15. No âmbito dos autos principais foram penhorados na residência dos executados/opoentes, entre outros, os seguintes bens:
- uma mesa e cadeiras que compõem uma mobília de sala de jantar;
- uma mobília de quarto onde dorme o filho menor dos executados;
- um instrumento musical que o filho dos executados utiliza para praticar concertina na escola de música que frequenta;
- um computador (com monitor e cpu) e uma impressora multifunções utilizados pelo filho menor dos executados para realizar os trabalhos escolares;
- uma mobília de quarto de casal onde dormem os executados.
2.º
Conforme resulta da acta da audiência de julgamento do dia 21 de Março de 2014, nesta sessão não se encontravam presentes todos os Senhores Advogados, tendo, então, o Meritíssimo Juiz, após tomar posição quanto a esse facto, procedido à inquirição da testemunha V...
Essa ausência, diz-nos a executada, deveu-se ao facto de "as mandatárias das partes, que se deslocavam juntas de Ponte de Lima (…) para Monção (…) no mesmo automóvel chegaram ao tribunal com cerca de 45 minutos de atraso, por motivos imprevistos e que não lhe eram imputáveis - o furo do pneu do carro à saída da vila de Ponte de Lima, a procura de ajuda para o trocar, a substituição daquele e a chuva que caía na ocasião" .[10]
Perante esta situação, a executada sustenta que foi por "razões de justo impedimento" que "à hora marcada para a sessão de julgamento do dia 21/03/2014 - às 14 horas - não se encontrava presente no tribunal" [11] a sua Ilustre Mandatária e acrescenta que "a realização da sessão de julgamento (…) e a produção de prova sem a presença dos advogados de todas as partes (…) traduz[-se] numa nulidade" [12].
Contudo, a 22 de Março de 2014 a executada já tinha apresentado um requerimento em alegava haver justo impedimento e que se tinha cometido a apontada nulidade [13]. E esse requerimento foi apreciado no despacho de 27 de Março de 2014, onde se decidiu que "em face do exposto, o requerimento em apreço, com os atributos que a lei exige para que seja tramitado, foi apresentado fora de prazo, pelo que vai indeferido, não havendo nulidade alguma a decretar."
Ao interpor o presente recurso, a executada foi clara ao dizer que "não se conformando com a D. Sentença de fls… vem dela interpor recurso de apelação", repetindo tal ideia logo no início das alegações, quando afirma que "vem o presente recurso interposto da D. Sentença de fls. e seg.s que julgou improcedente a oposição à execução deduzida pela Executada ora Recorrente."
Portanto, é pacífico que a executada apenas interpôs recurso da sentença, o que significa que não atacou o citado despacho de 27 de Março de 2014 [14].
Ora, o requerimento de interposição de recurso, ao identificar a decisão de que se recorre, delimita, numa primeira vez, o objecto do recurso. Depois, o recorrente tem a faculdade de, nas conclusões, o restringir, questionando apenas segmentos da decisão de que recorreu. Mas, já não lhe é permitido que amplie esse objecto, indo para além da decisão recorrida, com o propósito de abranger uma outra de que não recorreu.
Neste contexto, não só o presente recurso não tem por objecto o despacho de 27 de Março de 2014, que apreciou as questões do justo impedimento e da invocada nulidade [15], como também já há caso julgado quanto a tais matérias, o que implica que elas não podem agora ser aqui reapreciadas.
3.º
Segundo a executada a prova produzida conduz a conclusões diferentes das extraídas pelo tribunal a quo, no que se refere ao julgamento da matéria de facto que menciona nas conclusões 18.ª [16], 30.ª e 31.ª.
Importa, antes do mais, averiguar se estão reunidos os pressupostos legais para se proceder à reapreciação da prova quanto aos factos aí englobados.
A executada fundamenta a sua divergência, tanto na prova documental, como na prova testemunhal [17].
O artigo 685.º-B do anterior Código de Processo Civil estabelecia os requisitos para a impugnação da decisão relativa à matéria de facto e no seu n.º 2 dizia-se que, tendo havido gravação da prova testemunhal, "incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição."
Verifica-se que igual solução foi adoptada pelo n.º 2 do artigo 640.º do novo Código de Processo Civil [18], pelo que aquilo que antes se dizia acerca daquela norma mantém-se inteiramente válido.
Com este n.º 2 "introduziu-se mais rigor no modo como deve ser apresentado o recurso de impugnação da matéria de facto" impondo-se que "se, pelo modo como foi feita a gravação e elaborada a acta, for possível (exigível) ao recorrente identificar precisa e separadamente os depoimentos, o ónus de alegação, no que concerne à impugnação da decisão da matéria de facto apoiada em tais depoimentos, (…) a indicação exacta das passagens da gravação em que se funda (…)." E "o in¬cumprimento de tal ónus implica a rejeição do recurso, na parte respeitante, sem possibilidade sequer de introdução de despacho de aperfeiçoamento." [19] Com efeito, "impugnando o recorrente a decisão sobre a matéria de facto, encontra-se sujeito a alguns ónus que deve satisfazer, sob pena de rejeição do recurso", sendo um deles o de "indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda (…) quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a indicação precisa e separada dos depoimentos".[20]
Aliás, se dúvidas houvesse quanto ao sentido da norma, o preâmbulo do Decreto-Lei 303/2007 de 24 de Agosto é suficientemente esclarecedor ao mencionar que "é ainda de referir a alteração das regras que regem o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão de facto, determinando que cabe ao recorrente, sempre que os meios probatórios invocados como fundamento de erro na apreciação das provas tenham sido gravados, proceder à identificação da passagem da gravação em que funde essa impugnação, sem prejuízo da possibilidade de proceder, se assim o quiser, à respectiva transcrição".
Como é sabido, o «texto [da lei] é o ponto de partida da interpretação. Como tal cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer "correspondência" ou ressonância nas palavras da lei. Mas cabe-lhe igualmente uma função positiva, (…) se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma.» [21] Sendo assim, a expressão "sem prejuízo [22] da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição", que é antecedida pela imposição da obrigação de "indicar com exactidão as passagens da gravação", tem que ser interpretada no sentido de que o legislador, bem ou mal, entendeu que a "respectiva transcrição" não era por si só suficiente para se poder ter como adequadamente efectuada a indicação "com exactidão [d]as passagens da gravação"; ou seja a "respectiva transcrição" fica aquém do que se deve entender como sendo a (pretendida e) efectiva indicação "com exactidão [d]as passagens da gravação". E convém não esquecer que "exactidão" significa "observância rigorosa de um (…) dever" [23], "cuidado escrupuloso" [24], "precisão" [25].
Neste contexto, atento o actual sistema de gravação dos depoimentos, terá que se concluir que a indicação "com exactidão [d]as passagens da gravação em que se funda" concretiza-se mencionando, no mínimo, o minuto em que cada uma de tais "passagens" tem o seu início. A parte, se "assim o quiser", para além disso poderá ainda, não porque esteja obrigada, mas porque nisso vê alguma utilidade, "proceder (…) à (…) transcrição" das "passagens" que considera importantes. Portanto, a "transcrição" das "passagens" não constitui, de todo, uma alternativa à indicação "com exactidão [d]as passagens da gravação". E essa indicação "com exactidão [d]as passagens" também não se pode ter por feita quando somente se menciona a hora de início e do fim de cada depoimento.
Esta exigência visa, principalmente nos casos de depoimentos longos ou de muitos depoimentos, permitir ao tribunal ad quem ouvir, fácil e rapidamente, "as passagens da gravação em que se funda" a impugnação de forma a, num primeiro momento, avaliar se tais "passagens" são, por si só, idóneas a delas se extrair conclusão diversa da extraída pelo tribunal a quo, sem prejuízo de, em caso afirmativo, depois ter que ir para lá desses trechos, pois só assim poderá formular um juízo seguro e definitivo. E tem-se igualmente em vista que o recorrente, para suscitar esta questão, oiça, novamente, o que efectivamente se disse, de forma a confirmar ou infirmar a ideia com que ficou, aquando do julgamento, quanto ao que então foi dito, visto que, em princípio, não conseguirá indicar "com exactidão as passagens" em causa sem ouvir a respectiva gravação.
Ao obrigar o recorrente a, neste aspecto, melhor fundamentar o seu recurso, pretende-se evitar o uso abusivo e injustificado da faculdade de impugnar a decisão relativa à matéria de facto.
Voltando ao caso dos autos regista-se que a executada não observou este requisito. Examinadas as suas alegações nelas não se encontra, em lado algum, a identificação "com exactidão [d]as passagens da gravação em que se funda". A executada refere-se a depoimentos de testemunhas sem, no entanto, "proceder à identificação da passagem da gravação em que" radica a impugnação [26].
A inobservância do que é imposto pelo n.º 2 do artigo 640.º determina a "imediata rejeição do recurso na respectiva parte", isto é no que toca à impugnação da matéria de facto.
4.º
A executada, censurando a decisão recorrida, argumenta que "como a letra de câmbio dada à execução não foi emitida pela Opoente/Recorrente em consequência de qualquer negócio (…) por ela celebrado com a Exequente, não constitui essa letra um documento particular assinado pelo devedor no âmbito de um relacionamento tendo como sujeitos o credor originário e o devedor originário, para execução da relação fundamental, não valendo, por isso, como título executivo, enquadrável na al. c) do n.º 1 do art. 703.º CPC". [27]
A este propósito o Meritíssimo Juiz considerou que:
"(…) o endossado, como cessionário, adquire os direitos do endossante, podendo portanto o aceitante opor-lhe as excepções ou meios de defesa de que podia prevalecer-se para com o cedente – mesmo que aquele as ignore –, pelo que o endosso feito depois de expirado o prazo para apresentação das letras a protesto por falta de pagamento não retira às letras a sua natureza de título de crédito e o aceitante continua a responder pelo pagamento, apenas podendo opor ao endossado/cessionário as excepções que poderia opor ao endossante (sobre a questão veja-se, a título de exemplo, o Ac. do STJ de 4.03.2004, processo n.º 03B4454, acessível em www.dgsi.pt). É por isso irrelevante que se tenha apurado que a letra dada à execução não lhe tenha subjacente qualquer negócio celebrado entre os executados/opoentes (aceitantes) e a exequente (endossada e portadora).
Assim sendo, dúvidas não restam de que, apesar de não assistir razão aos executados/opoentes no que respeita à (in)validade da letra para valer como título executivo, estes, aceitantes da letra, podem opor ao endossado as excepções que poderiam opor ao endossante, mormente a violação do pacto de preenchimento."
Com efeito, assim é, e pouco mais se poderá dizer.
Lembra-se que executada é aceitante da letra apresentada à execução, da qual foi sacador J.., sacador este que a veio a endossar à exequente.
Sabemos que "toda a letra de câmbio (…) é transmissível por via de endosso" [28]. E sabemos que uma das suas características consiste na literalidade, ou seja, que "a existência, validade e persistência da obrigação cambiária não podem ser contestadas com auxílio de elementos estranhos ao título; e que o conteúdo, extensão e modalidades da obrigação cartular são os que a declaração objectivamente define e revele" [29].
Assim, contrariamente ao que advoga a executada, esta, na sua qualidade de aceitante, pode ser demandada pelo portador da letra, que a recebeu por via de endosso, apesar de com ele não ter celebrado "qualquer negócio".
5.º
A executada defende também que "não tendo sido dispensado o protesto por falta de pagamento, devia o mesmo ter sido realizado (…) [no respectivo] prazo, expirado o qual o portador da letra perde os seus direitos de acção contra os obrigados" [30], querendo com isso dizer que a exequente terá perdido "os seus direitos de acção contra" si.
Face ao disposto no artigo 53.º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças, "se o portador não fizer o protesto (…) por falta de pagamento dentro do prazo devido, perde os seus direitos de acção contra endossantes, contra o sacador e contra os outros co-obrigados, à excepção do aceitante (art.º 53.º). Este, como obrigado principal responde sempre pelo pagamento" [31]. Por isso se pode afirmar que "o protesto contra o devedor principal é supérfluo" [32].
Não é, pois, verdade que a falta de protesto tenha originado a perda dos direitos da exequente contra a executada.
6.º
Finalmente, a executada ataca a decisão recorrida por considerar que "a letra de câmbio dada à execução, que foi abusivamente preenchida pelo co-executado e sem o conhecimento e contra a vontade dos executados/opoentes (…), é um documento falso e, por isso, nulo e de nenhum efeito" [33].
Neste capítulo verifica-se, desde logo, que esta afirmação não tem qualquer suporte nos factos provados. Faltando a premissa fundamental - o preenchimento abusivo -, naturalmente que não são válidas as conclusões que nela radicam.
III
Com fundamento no atrás exposto, julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela executada.
10 de Novembro de 2014
António Beça Pereira
Manuela Fialho
Filipe Caroço
_________________________________________________________________
[1] Este tribunal veio a declara-se incompetente em razão do território e o processo passou a correr na comarca de Monção, encontrando-se presentemente na Instância Local de Monção da Comarca de Viana do Castelo.
[2] Cfr. conclusão 7.ª.
[3] Cfr. conclusão 13.ª.
[4] Cfr. conclusão 18.ª.
[5] Cfr. conclusão 31.ª.
[6] Cfr. conclusão 30.ª.
[7] Cfr. conclusão 19.ª.
[8] Cfr. conclusão 22.ª.
[9] Cfr. conclusão 32.ª.
[10] Cfr. conclusão 5.ª.
[11] Cfr. conclusão 7.ª.
[12] Cfr. conclusão 13.ª.
[13] Cfr. designadamente os artigos 12.º, 32.º e 33.º desse requerimento.
[14] Note-se que este despacho não é, sequer, mencionado em momento algum das alegações da executada.
[15] Suscitadas no requerimento de 22 de Março de 2014.
[16] Em boa verdade, nesta conclusão não se encontra facto algum. Aqui estão, sim, juízos conclusivos e conceitos de direito. Recorda-se que são factos "as ocorrências concretas da vida real", Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 406 (defendendo o mesmo entendimento, veja-se Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 2.ª Edição, pág. 525 e 526), isto é, os "fenómenos da natureza, ou manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos dos homens", Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 1950, pág. 209.
[17]Cfr. designadamente as conclusões 18.ª e 29.ª. Foi também conjugando a prova testemunhal com a documental que o Meritíssimo Juiz formulou o seu juízo.
[18] Em vigor à data da prolação da sentença. Neste aspecto a única diferença entre estes dois artigos consiste em antes se dizer "imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto" e agora se afirmar "imediata rejeição do recurso na respectiva parte".
[19] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, pág. 136 e 138.
[20] Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª Edição, pág. 181. Neste sentido veja-se ainda Luís Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 152 e Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 2.ª Edição, pág. 63.
[21] Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 18.ª Reimpressão, pág. 182.
[22] Sublinhado nosso.
[23] Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Cândido Figueiredo, Vol. I, 16.ª Edição, pág. 1143.
[24] Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 2009, pág. 688.
[25] Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, www.priberam.pt.
[26] Presentemente, ao contrário do que constava no artigo 690.º-A n.º 2 do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 183/2000 de 10-8, já não basta "indicar os depoimentos em que se funda". Tanto o legislador de 2007 (Decreto-Lei 303/2007), como o de 2013 (Lei 41/2013), entenderem que era necessário ir mais além, identificando a divergência em algo mais concreto e palpável.
[27] Cfr. conclusão 19.ª.
[28] Artigo 11.º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças.
[29] Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Volume III, 1975, pág. 41.
[30] Cfr. conclusão 22.ª.
[31] Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Vol. III, 1975, pág. 230 e 231.
[32] Abel delgado, Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, 5.ª Edição, pág. 44.
[33] Cfr. conclusão 32.ª.