Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1765/16.3T8BRG-M.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: INCIDENTE DE ATRIBUIÇÃO DA CASA DE FAMÍLIA
REQUISITOS
EXCEPÇÃO DE CASO JULGADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
.1- Nos termos do artigo 988º do Código de Processo Civil, para que se considerem alegadas circunstâncias supervenientes passíveis de alterar as resoluções tomadas sobre a atribuição da casa de família na sequência de divórcio, torna-se necessário que sejam invocados factos que preencham cumulativamente as seguintes características:
a) sejam objetiva ou subjetivamente supervenientes à decisão (que tenham ocorrido depois desta, ou que apenas tenham sido objeto de conhecimento pelo Requerente depois dela, ou que tenha ocorrido motivo relevante que o impediu de os alegar anteriormente à decisão);
b) que alterem as circunstâncias em que se fundou a decisão;
c) que os mesmos tenham relevância e seriedade suficiente para que possam motivar a alteração da decisão, pelo seu objeto, natureza e permanência.
.2- Para lograr obter a confirmação do preenchimento destes requisitos há que comparar os dados existentes e conhecidos na data da decisão, bem como os que foram motivadores da mesma, com os alegados (como fundamento) da pretensão da sua alteração.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência (após corridos os vistos legais) os Juízes da 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
*
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
dados do processo
Requerente e Recorrente:
- F. C.

Requerida e Recorrida:
- M. C,

Apelação (em incidente de atribuição de casa de morada de família)

I- Relatório

O Requerente deduziu o presente incidente de atribuição de casa de família, requerendo que “seja alterada a atribuição da Casa de Morada de Família e a mesma ser entregue ao Requerente, por alteração superveniente das circunstâncias, concretamente, o não uso e residência da casa de morada de família por parte da Requerida, o interesse dos filhos do casal e a necessidade do Requerente para habitar a referida habitação uma vez que se trata do ex-cônjuge que mais precisa.”
Invocou no requerimento inicial que já foi indeferido pedido semelhante que formulara, por sentença que foi confirmada em acórdão de 14-11-2019, mas que “Perante as razões e os motivos alegados que fundamentaram a Douta decisão em apreço, merecendo o devido respeito por parte do Requerente, este não se conforma com a mesma, uma vez que os pressupostos que levaram à propositura da ação mantêm-se totalmente inalterados como infra explanaremos, acrescidos e agravados ainda do período de tempo de quase dois anos, sem que a Requerida resida na casa de morada de família, revindicada para sua fruição judicialmente”.
Acrescentou ainda que não só são “parcas condições de alojamento em que vive”, como “a partir de outubro de 2021, ver-se-á na necessidade de arrendar o espaço que habita, de molde a obviar às suas necessidades de gestão e a gerar rendimento” e que os menores foram matriculados em escola sita em Braga, não sendo viável, face á distancia entre o local de trabalho, a escola e a casa em disputa, que nesse ano letivo a Requerida possa nela fixar residência permanente. Referiu também que o imóvel sem uso se degrada.
A Requerida contestou e, em síntese, invocou a exceção de caso julgado, afirmando que, da simples leitura da petição inicial, se constata que o Requerente reitera toda a factualidade vertida no anterior incidente de atribuição da casa de morada de família. Mais impugnou o invocado por aquele.
Foi proferida decisão que julgou verificada a exceção dilatória de caso julgado, decidindo absolver a Requerida da instância.

Não se conformando com esta decisão, o Requerente interpôs a presente apelação, reproduzindo-se as suas
conclusões:
“A. Com o presente recurso visa, o Recorrente, questionar e insurgir-se contra a decisão do Tribunal “a quo” que proferiu o Douto Despacho que julgou verificada a Excepção de Caso Julgado e decidiu absolver a Requerida da instância, do que resultará ser posta em crise.
B. O Tribunal a quo ao decidir como decidiu, com o devido respeito, que é muito, decidiu mal, porquanto, uma vez que, não há identidade total entre os presentes autos e os que correram termos sob o n.º 1765/16.3T8BRG-K.
C. Discute-se, tal como naqueles outros autos, a atribuição da casa de morada de família, sendo que, por via disso, naturalmente as partes são as mesmas, e o objeto também terá necessariamente de ser o mesmo. Contudo,
D. Entendeu o Tribunal a quo relativamente à causa de pedir, que inexiste alteração superveniente das circunstâncias, entendeu ainda que o alegado pelo Recorrente no presente incidente de atribuição da casa de morada de família já foi apreciado e objeto de decisão judicial no anterior incidente, apenso K.
E. Concluiu que o decurso do tempo em conjugação com a atual situação pandémica, foram apreciados e excutidos no anterior incidente, apenso K.
F. E concluiu ainda que todos os argumentos que o Requerente pretende ver apreciados, foram-no no anterior incidente, no apenso K, e como tal, não só a decisão está sob o manto do caso julgado, mas a sua autoridade, no plano ou efeito negativo impedem, por ora, o Requerente de lançar mão de novo pedido de alteração de atribuição da casa de morada de família.
G. Assim, pelo supra exposto, é entendimento do Recorrente, quanto à verificação da excepção do caso julgado, não existir identidade relativamente à causa de pedir com o anterior incidente de atribuição da casa de morada de família e para além disso, existe ainda alteração superveniente das circunstâncias.
H. Com a devida vénia e elevado respeito pela decisão do Tribunal “a quo”, o decurso do tempo decorrido conjugado com a situação pandémica foi abordado num contexto totalmente diferente do explanado pelo Recorrente no seu requerimento inicial.
I. O Tribunal a quo não pode eximir-se de discutir uma realidade dinâmica, com base em pressupostos que considera inalteráveis, como se as partes ficassem impedidas de discutir essa mesma realidade dinâmica porque, algures no passado se decidiu cristalizar o que não é cristalizável.
J. O anterior apenso visou evidenciar o não uso, por parte da Requerida, da casa que lhe está atribuída, sendo que, apesar de ter ficado demonstrado esse não uso, tal não significou uma alteração da decisão. Ora,
K. Nos presentes autos, apesar de tal estar igualmente alegado, certo é que, o Requerente, ora recorrente, evidenciou uma nova realidade, não discutida na ação anterior e, por via disso, impunha-se a discussão nos presentes autos, impondo-se por isso a Revogação do despacho em crise. Com efeito,
L. A tal realidade dinâmica, assente no não uso pela Requerida, da casa de morada de família que lhe está atribuída, redunda numa degradação intensa, manifesta e cada vez mais evidente do próprio bem. Assim,
M. A “recusa” do Tribunal a quo sequer se inteirar acerca do alegado pelo Requerente, relativamente à continuada e cada vez mais grave destruição da casa de morada de família, com base no “Caso Julgado”, quando tal realidade não foi sequer alegada anteriormente, configura denegação de Justiça que urge por cobro, designadamente por decisão desse Venerando Tribunal que revogue o despacho recorrido e ordene o prosseguimento dos autos.
N. Não pode esse Venerando Tribunal confirmar uma decisão formal que não levou em linha de conta a realidade material controvertida, desconsiderando por completo que essa realidade é dinâmica, como se o simples passar do tempo, sem nada ser feito, não seja por si só, o agravar de um prejuízo que cresce de dia para dia, por inércia da Requerida.
O. Tais factos, como se disse, impunham que o Tribunal a quo tomasse conhecimento dos mesmos, fosse produzida prova, mas nunca adotar uma decisão meramente de forma, quando a realidade, como se alegou, não cristalizou no momento da primeira decisão. Aliás,
P. A decisão que antecede implica o agravar de uma situação dramática que torna premente efetivamente o conhecimento do estado atual da casa de morada de família objeto dos autos, sob pena de deixar de existir tal realidade por impossibilidade de reação por parte do Requerente.
Q. Os factos alegados na petição impetrante impunham que o Tribunal deles tivesse conhecimento e fizesse prova, não se podendo limitar a remeter para uma decisão que, como se sublinhou, não levou em linha de conta a dinâmica da realidade.
R. Ora, de acordo com o disposto no artigo 1793.º, n.º 3 do Código Civil, o regime fixado, quer por homologação do acordo dos conjugues, quer por decisão do Tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária, os quais estão regulados nos artigos 986 e ss. do código de Processo civil.
S. Decorre assim, que as circunstâncias supervenientes justificam a alteração Requerida, designadamente, porque durante 2 anos a casa apenas se deteriorou, deterioração essa que será agravada e potenciada pela inação da Requerida, secundada pela decisão em crise.
T. Mais, na anterior decisão emanada no incidente de atribuição da casa de morada de família proferido no apenso k, foi considerado que os motivos aí invocados pela requerida justificavam a sua não residência na casa de morada de família, e que configurava um quadro meramente conjuntural, não evidenciando sinais de permanência. Todavia,
U. Ficou por demais evidenciado, até por confissão da Requerida, que esta não usa a casa que lhe está atribuída, tem o seu centro de vida junto dos pais desta, seja, numa clara manifestação de que não uso, nem pretende utilizar a casa que lhe foi atribuída. Contudo,
V. Além disso a Recorrida sabe que o Recorrente necessita da casa de morada de família para a sua residência, obrigando-o a residir primeiro na casa de um amigo e mais tarde no seu próprio stand de automóveis, onde anteriormente armazenava peças e pneus decorrentes do exercício da sua actividade comercial.
W. A Requerida não usando a casa de morada de família, actua num claro abuso de direito.
X. O entendimento do Tribunal “a quo”, de julgar procedente a excepção de caso julgado, pôs em causa princípios fundamentais como o Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos tal como previsto no artigo 20 nº. 1 da CRP, o que expressamente se invoca.
Y. Ora entendemos – e com o devido respeito, que é muito – que os fundamentos da decisão do Tribunal "a quo", vertida no Despacho Saneador da qual interpomos o presente recurso, ao dar como verificada a exceção dilatória de caso julgado e de absolver a requerida da instância apenas configura uma denegação de Justiça, impondo-se por isso a sua revogação.
Termos em que deve o presente recurso ser admitido por tempestivo, bem como por cumprir os formalismos impostos pela lei do processo, e, nessa sequência serem as presentes alegações e conclusões de recurso serem acolhidas pelos Venerandos Srs. Juízes Desembargadores, substituindo-se a Sentença recorrida por Acórdão que a declare nula, concedendo assim, provimento ao recurso e alterando a Douta Decisão recorrida nos termos pugnados nas presentes alegações.”

A Recorrida apresentou alegações, com as seguintes
conclusões:
“1. Dispõe o artº 580º do Código de Processo Civil que a exceção de caso julgado pressupõe “… a repetição de uma causa” e tal sucede quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”, sendo que:
- há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica;
- há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico;
- há identidade de causa de pedir quando a pretensão da causa procede do mesmo facto jurídico.
2. Da simples leitura da petição inicial que deu origem aos presentes autos, consta-se que o Recorrente, reitera, toda a factualidade vertida no anterior incidente de atribuição da casa de morada de família, que correu termos por apenso aos autos principais, e deu origem ao apenso K.
3. No mencionado apenso K o Recorrente peticiona a atribuição da casa de morada de família, por alegadamente ter ocorrido uma alteração superveniente das circunstâncias, “ nomeadamente interesse dos filhos do casal, as necessidades de cada uns dos cônjuges e… não uso da casa de morada de família”.
4. Nos presentes autos, o Recorrente volta a repetir os mesmos argumentos, designadamente o alegado não uso da casa de morada de família por parte da Recorrida, ou seja, nada de novo acrescenta à factualidade por si anteriormente alegada no Apenso K dos autos principais.
5. No âmbito do referido Apenso K, já foram apreciados todos os factos e argumentos que o aqui Recorrente volta a repetir nos presentes autos, sem nada acrescentar de novo, os quais foram decididos por sentença, datada de 01 de Fevereiro de 2021 e confirmados confirmada por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, em Maio de 2021
6. Assim, verifica-se a exceção de caso julgado, pelo que deve manter-se a decisão ora em crise.

TERMOS EM QUE, como certamente Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ser negado provimento ao Recurso, por não provado, e manter-se a douta decisão recorrida e, deste modo, farão V/ Exas. a tão acostumada JUSTIÇA!”

II- Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.

É questão a conhecer neste acórdão:
-- se se verifica a exceção de caso julgado, porquanto o Requerente não invocou novos factos suscetíveis de integrar uma alteração das circunstâncias que justifique a modificação da resolução sobre a atribuição da casa da morada de família.

III- Fundamentação de Facto

Os autos vêm com a matéria de facto provada que infra se relaciona.

Factos provados

1. No âmbito do processo principal – divórcio sem consentimento do outro cônjuge, convolado posteriormente em mútuo consentimento – por decisão homologatória de 25.5.2016 a casa de morada de família, sita na Rua …, concelho de Vila Nova de Famalicão ficou atribuída à ali autora até à realização da partilha, devendo o ali réu, e ora requerente, abandonar a referida casa de morada de família até ao dia 1 de julho de 2016.
2. No processo de execução de entrega de coisa certa, que correu por apenso ao processo principal, com o número 1765/16.3T8BRG.1, a requerida exigiu a entrega da casa de morada de família.
3. A entrega da casa de morada de família foi concretizada em 24/02/2020.
4. A 30.11.2018 o ora requerente deduziu incidente de atribuição de casa de morada de família o qual foi indeferido, por sentença de 27.5.2019 e confirmado por acórdão do Tribunal da Relação de 14.11.2019.
5. A 6.5.2020 o ora requerente deduziu incidente de atribuição da casa de morada de família - apenso K - onde alegava, para além do mais, que a ora requerida não vivia na referida casa.
6. A 15.1.2021 foi proferida sentença no referido apenso K onde foi apreciada, de facto, a questão da requerida ainda não ter desenvolvido “qualquer acto preparatório ou indiciador dessa intenção de ocupar a referida habitação, encontrando-se a residir com os menores em ….” sentença na qual foi decidido “…não alterar a atribuição da casa de morada de família à Requerida para esta aí residir com os filhos até à partilha.”.
7. Na referida sentença ponderou-se que “Provou-se efetivamente que a casa de morada de família foi entregue à Requerida em 24/02/2020 e que, desde então, a mesma ainda não a ocupou e que apenas passa os fins de semana naquela casa.
Mas os factos apurados não nos permitem concluir que se trata de uma situação permanente e que a Requerida não tem o propósito de residir naquela casa.
Muito pelo contrário.
O que resulta da materialidade apurada, que o Requerente não infirmou, é que a situação em que se encontra a Requerida e que não lhe permitiu até ao momento ocupar a cada de família é conjuntural.
Com efeito, a Requerida ainda não ocupou a referida casa por três motivos: por ter receio do Requerente (a Requerida – e com razão – tem medo de ficar sozinha em casa, o que bem se compreende atentas as ameaça de morte e os insultos que o Requerente lhe dirige e a doença de que padece que o torna agressivo, se não tomar a medicação); por ser necessário realizar algumas obras que, não obstante não afetarem a sua habitabilidade, impedem o uso de todas as suas funcionalidades; por ter sido confrontada com a necessidade de prestar apoio aos seus pais, em virtude das doenças graves que acometeram a sua mãe.
Contudo, a solução de viver em casa dos pais não é definitiva e a Requerida revelou na audiência de julgamento o propósito, que o Requerente não infirmou, de ocupar a casa de morada de família com os filhos, logo que as obras estejam concluídas (o que pode ser mais difícil no actual contexto de pandemia da doença Covid-19).
Além disso, desde Abril de 2016, que é a Requerida que paga, como resulta da factualidade apurada na sentença proferida no Apenso I, ao banco a totalidade da amortização bancária do empréstimo hipotecário da casa de morada de família, seguro de vida dos dois (sendo que dela não pôde usufruir até 24/02/2020), pelo que a alteração do seu uso para o Requerente redundaria numa clamorosa injustiça.
Finalmente, a alteração do regime fixado no acordo seria, como bem assinalou a Requerida nas alegações proferidas na audiência de julgamento, premiar o comportamento altamente censurável que tem tido em relação à Requerida ao longo destes anos e que se encontra exemplar e minuciosamente descrito na sentença proferida no Apenso I, e isso o tribunal não pode permitir.
Não existe, assim, fundamento para alterar o acordo firmado quanto à atribuição da casa de morada de família, homologado por sentença.”
8. Tal decisão foi confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça por acórdão de 20.5.2021.

Adita-se o seguinte factos, retirados deste referido apenso K:
-- 9. No requerimento inicial apresentado em 6.5.2020 o Requerente alegou “56) A requerida nem sequer se desloca à casa de morada de família para proceder aos atos tendentes à conservação e limpeza da mesma.” e “63). Tal imóvel, desde 24/02/2020, encontra-se inabitado e desocupado, sem qualquer tipo de utilização.”
-- 10. Na sentença proferida no apenso K, em conclusão de 15 de janeiro de 2021, mas datada de 01/02/2021, julgou-se provado que “21) Apesar das reparações de que necessita, a casa de morada de família oferece condições de habitabilidade; 22) Desde o Verão de 2020, a Requerida tem passado os fins-de-semana na casa de morada de família, em ...” e como não provado que “A Requerida não se desloca sequer à casa de morada de família para proceder aos atos tendentes à conservação e limpeza da mesma”.

IV- Fundamentação de Direito.

A lei concede particular atenção á casa de morada de família, concedendo-lhe especial proteção, quer no âmbito do casamento, quer da união de facto. (1)
Tem sido entendido que a casa de morada de família, como residência habitual principal do agregado familiar é “a sede e o centro principal da maioria dos interesses, das tradições e das aspirações familiares em apreço”, pelo que mesmo depois da separação dos cônjuges ou dos unidos de facto é necessário encontrar o seu destino, tendo em conta os interesses dos membros que compunham a família do dissolvido casal.
No que aqui nos importa, há que ter em conta que a lei especifica critérios para encontrar tal destino quando o casamento termina como efeito do divórcio. Está, aliás, processualmente previsto processo específico, de jurisdição voluntária, para a sua atribuição, no artigo 990º do Código de Processo Civil, sujeito ao princípio do pedido, como resulta da sua primeira parte, conjugado com o princípio geral previsto no artigo 3º nº 1 do mesmo código.
O artigo 1793º nº 1 do Código Civil impõe dois critérios essenciais a atender para determinar qual dos cônjuges poderá continuar a habitar a casa: as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal. É certo que se atendem a outras circunstâncias, como coadjuvantes na decisão (2), mas “apenas haverá que recorrer a outros critérios, em caso de dúvida ou de situação de igualdade entre ambos os cônjuges com o recurso àqueles, podendo alinhar-se entre estes critérios suplementares os que definem e caracterizam de forma mais ampla, como “razões atendíveis”, o quadro vivencial de cada um dos ex-cônjuges, com relevância para aquilatar relativamente a cada um deles a premência dessa necessidade, agora num sentido mais amplo” (3).
Não obstante, o fator principal e determinante a atender é a necessidade da casa (4), sendo preponderante a defesa dos interesses dos menores nessa atribuição, como resulta da nossa ordem constitucional (5), embora inexista uma hierarquia rígida entre os fatores a ponderar (6).
O seu nº 2 determina que o regime fixado quanto à casa de morada de família na sequência de divórcio, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.
Como é consabido, os processos de jurisdição voluntária são regidos por princípios mais flexíveis que os do processo comum, atenta a peculiaridade dos interesses em jogo que exigem uma ainda maior adaptação às circunstâncias do caso. Assim, nestes processos, entre o mais, o tribunal investiga livremente os factos, podendo ordenar inquéritos e rejeitar as provas que entenda não se mostrarem necessárias e afastar-se de critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna (cf. artigos 986º e 987 do Código de Processo Civil).
De essencial relevo nestes autos, dentro do regime aplicável aos processos de jurisdição voluntária, é o determinado no artigo 988º do Código de Processo Civil, quanto ao “valor das decisões”, como consta do seu proémio : “as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso.”
“Nos processos de jurisdição voluntária, as decisões, ao invés do que sucede nos outros tipos de processo, não são, após o seu trânsito em julgado, definitivas e imutáveis. Elas são alteráveis sempre que se alterarem as circunstâncias em que se fundaram. Trata-se duma espécie de caso julgado, sujeito a uma cláusula “rebus sic stantibus” ou seja um caso julgado com efeitos temporalmente limitados.” (7)
Assim, no pedido de alteração da resolução sobre a atribuição da casa de morada de família, não está em causa apurar a correção da anterior decisão, mas se se verificaram supervenientemente circunstâncias justificativas dessa pretensão, “sem o que, em vez de estarmos perante uma nova questão, estaríamos perante uma reapreciação extemporânea, desde logo em primeira instância, de uma decisão anteriormente transitada nos termos dos arts. 619º e 628º, do Código de Processo Civil (ex vi, do seu art. 549º, nº 1)” (8).
Tendo havido acordo homologado por sentença sobre o destino da casa de morada de família, a sua alteração, por via de ação prevista no art.º 990º do CPC, pressupõe ter havido alteração das circunstâncias que determinaram aquele acordo e que justifiquem a alteração da decisão nele contida. Não se alegando qualquer alteração das circunstâncias não pode o Tribunal deferir a pretensão do requerente, por manifesta falta dos pressupostos de facto da ação e violação da força do caso julgado” (9).

Assim, recorrendo ao citado artigo 988º do Código de Processo Civil, para que se considerem alegadas circunstâncias supervenientes passiveis de alterar as resoluções tomadas, nos termos desta norma, torna-se necessário que sejam invocados factos que preencham cumulativamente as seguintes características:

a) sejam objetiva ou subjetivamente supervenientes à decisão (que tenham ocorrido depois desta, ou que apenas tenham sido objeto de conhecimento pelo Requerente depois dela, ou que tenha ocorrido motivo relevante que o impediu de os alegar anteriormente à decisão);
b) que alterem as circunstâncias em que se fundou a decisão;
c) que os mesmos tenham relevância e seriedade suficiente para que possam motivar a alteração da decisão.
Compondo a necessidade de os factos serem justificativos da alteração tem sido realçado que estes devem apresentar “natureza substancial” e “evidência“ de sinais de permanência que permitam distingui-la de uma modificação meramente conjuntural ou transitória”. (10)

Salter Cid (11), de forma muito esclarecedora, concretizando tais exigências, explana tais requisitos da seguinte forma:
“a) Que se tenha produzido uma alteração no conjunto de circunstâncias ou de representações consideradas ao tempo da adoção das medidas, o mesmo é dizer, uma alteração ou transformação do 'cenário' contemplado pelos cônjuges ou pelo juiz na convenção, aprovação ou determinação das medidas cuja modificação se postula. (...);
b) Que a alteração seja substancial, quer dizer, importante ou fundamental em relação às circunstâncias contempladas na determinação das medidas judiciais ou acordadas, ainda que em si mesma ou isoladamente considerada a novidade não resulte tão extraordinária ou transcendental. (...);
c) Que a alteração ou mudança evidencie sinais de permanência que permitam distingui-la de uma modificação meramente conjuntural ou transitória das circunstâncias determinantes das medidas em questão e considerá-la, em princípio, como definitiva. (...);
d) (...) que a alteração ou variação afete as circunstâncias que foram tidas em conta pelas partes ou pelo juiz na adoção das medidas e influíram essencial e decisivamente no seu conteúdo, constituindo pressuposto fundamental da sua determinação.”
É certo que os critérios de legalidade estrita não se aplicam neste tipo de processos, mas tal não permite que se fuja completamente à lei, adotando um critério que não seja o do legislador na busca da solução mais acertada. (12)
Para lograr obter a confirmação do preenchimento destes requisitos há que comparar os dados existentes e conhecidos na data da decisão, bem como os que foram motivadores da mesma, com os alegados (como fundamento) da pretensão da sua alteração. (13)
O Requerente refere que no anterior apenso visou evidenciar o não uso, por parte da Requerida, da casa que lhe está atribuída e que no presente, apesar de também o alegar evidenciou uma nova realidade: que “a realidade dinâmica, assente no não uso pela Requerida, da casa de morada de família que lhe está atribuída, redunda numa degradação” do bem.
Aceita, pois, que tudo o que alegou no requerimento inicial e que extravasou a alegação de que a casa está a sofrer danos por falta de habitação não pode ser considerado como circunstâncias capazes de integrar o conceito aqui em aplicação, atenta a sua falta de novidade, o que corresponde à verdade, mas nos dispensa de o evidenciar.
Com efeito, a sentença mostrou-se clara nesse sentido ao salientar que a decisão proferida no apenso K “foi equacionada a situação de não realização de obras e a justificação para tal com a atual situação pandémica e a necessidade de a requerida prestar auxílio e apoio à mãe (para além do receio de estar sozinha na casa face ao comportamento do requerente) e que “no dia de hoje a situação pandémica apresenta-se galopante, tendo sido decretado o estado de calamidade. Acresce que apenas distam apenas 7 meses desde que no apenso K foi proferida decisão final, tendo o requerimento inicial do presente apenso tido sido apresentado em juízo em setembro deste ano, ou seja, apenas 4 meses após aquela referida decisão final. Queremos com isto dizer que o factor objectivo primeiro, o decurso do tempo, não é bastante para consubstanciar uma alteração substancial e permanente que legitime nova pretensão, já que o decurso do tempo foi apreciado na decisão proferida no apenso K e nada lhe sobreveio que ponha em causa a cláusula rebus sic stantibus a que tal decisão está adstricta”.

Concretização

O Recorrente centra a sua atenção na parte do requerimento inicial destes autos em que se refere à desocupação da casa de família, que caracteriza como “um total abandono e progressiva degradação”, mencionando que “devido ao seu não uso, à falta de manutenção exigida pelas próprias características da moradia, induziram a uma degradação notória avolumando avultados prejuízos ao Requerente”.
Há que salientar que estas duas frases surgem após a seguinte menção “Urge perguntar aqui e questionar se a requerida, atribuída que foi à sua fruição e responsabilidade a casa de família, se muito para além de se queixar deste item, se procedeu como lhe competia, à conservação, manutenção e cuidados devidos na casa de molde a que se encontre em perfeitas condições, ou quem as irá assumir”... “A casa de morada de família não é uma casa para o fim de semana ou para gozar férias.”
Da interpretação do requerimento inicial, nomeadamente do pedido formulado, reproduzido no relatório, das frases que acabámos de citar e da falta de qualquer concretização de estragos e prejuízos, antes diluídos no meio de outras circunstâncias bem desenvolvidas no requerimento, resulta patente que só acidentalmente o Requerente referiu tal degradação e que não a apresentou como fundamento de qualquer alteração das circunstâncias justificativa da modificação das decisões anteriores sobre a atribuição da causa de pedir.
Assim, porque a referência a uma degradação do imóvel é passageira na economia do requerimento inicial e não é apresentada como um qualquer sustento da pretensão do Requerente, não se mostra possível considerá-la como uma das causas de pedir apresentadas pelo Requerente: não foi uma das questões centrais fundamentadores da sua pretensão, mas mero argumento adicional. Assim, a sentença não tinha que apresentar as razões que impedem que se considere uma circunstância superveniente que justifique a alteração da resolução.
Tanto bastaria para se ter por demonstrado que a sentença não padeceu de qualquer erro ao não considerar que esta não seria de atender, visto que não foi patentemente apresentada como causa de pedir do incidente.
Mas mesmo que assim não fosse, como vimos, para se considerar que foram alegadas circunstâncias supervenientes suscetíveis de consubstanciar uma alteração das circunstâncias hábil a pôr em causa a força da decisão proferida nos anteriores incidentes, em primeiro lugar têm que ter sido alegados factos posteriores à decisão (objetiva ou subjetivamente).
No presente caso o Requerente já em maio de 2020 o Requerente havia alegado que a Requerida não residia na casa em disputa e que “56) A requerida nem sequer se desloca à casa de morada de família para proceder aos atos tendentes à conservação e limpeza da mesma.”
Não obstante, na sentença proferida no apenso K, em conclusão de 15 de janeiro de 2021, mas datada de 01/02/2021, julgou-se provado que “21) Apesar das reparações de que necessita, a casa de morada de família oferece condições de habitabilidade; 22) Desde o Verão de 2020, a Requerida tem passado os fins-de-semana na casa de morada de família, em ...” e como não provado que “A Requerida não se desloca sequer à casa de morada de família para proceder aos atos tendentes à conservação e limpeza da mesma”.
Mais ali se apreciou, na aplicação do Direito: “A Requerida ainda não ocupou a referida casa por três motivos: por ter receio do Requerente (a Requerida – e com razão – tem medo de ficar sozinha em casa, o que bem se compreende atentas as ameaça de morte e os insultos que o Requerente lhe dirige e a doença de que padece que o torna agressivo, se não tomar a medicação); por ser necessário realizar algumas obras que, não obstante não afectarem a sua habitabilidade, impedem o uso de todas as suas funcionalidades; por ter sido confrontada com a necessidade de prestar apoio aos seus pais, em virtude das doenças graves que acometeram a sua mãe.“
Assim, o requerimento inicial destes autos não mencionou qualquer circunstância que não tivesse já sido tida em conta na decisão do apenso K – visto que nela já foi tida em conta os defeitos que a casa apresentava, a necessidade de obras e que a Requerida, apesar disso, ainda a utilizava aos fins de semana. Enfim, estes factos não são supervenientes à decisão, tendo sido alegado o estado da casa, o não uso e que a mesma necessitava de obras de conservação e que a Requerida as não realizava.
Por outro lado, tendo em conta o cerne da discussão e os elementos relevantes para a decisão, é patente que as circunstâncias afloradas no requerimento não são suscetíveis de preencher uma alteração das circunstâncias relevante, porque se mostram meramente conjunturais (estaria em causa o facto da casa estar desabitada há pouco mais de ano, atenta a data da sentença proferida no anterior apenso), tendo a sentença apreciado a falta de habitação permanente da Requerida na casa e aceitado a mesma durante um período alegado, com referência à pandemia: (“a solução de viver em casa dos pais não é definitiva e a Requerida revelou na audiência de julgamento o propósito, que o Requerente não infirmou, de ocupar a casa de morada de família com os filhos, logo que as obras estejam concluídas- o que pode ser mais difícil no actual contexto de pandemia da doença Covid-19)”.
Por fim, há que ver que a falta de realização de obras de conservação do prédio pela Requerida não é um fator de relevo na economia do incidente, vistos, como se viu, os critérios a atender, face ao regime legal (artigo 1793º nº 1 do Código Civil): neles não têm especial preponderância os prejuízos causados no património comum do casal, decorrentes da falta de obras de conservação da casa.
Desta forma nunca se poderia considerar fundado o pedido de alteração da atribuição da casa de morada de família, porquanto não só não se mostra alegada qualquer circunstâncias superveniente, como o que quanto a tal é agora apresentado não é relevante e idóneo para produzir uma mudança substancial das circunstâncias que determinaram a atribuição já efetuada.
Enfim, há que dar razão à sentença quando conclui que na ausência de alegação de qualquer facto que possa integrar o conceito de alteração superveniente das circunstâncias suscetível de alterar as resoluções já tomadas sobre a atribuição de casa demorada de família, opera a exceção de caso julgado.


V- Decisão

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a presente apelação, e, em consequência manter a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente (artigo 527º nº 1 do Código de Processo Civil).
Guimarães, 21-04-2022

Sandra Melo
Conceição Sampaio
Elisabete Coelho de Moura Alves



1. Cf., quanto à união de facto, a Lei 7/2001, nomeadamente os artigos 3º, a), 4º e 5º.
2. Como a “idade e o estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, a localização da casa relativamente ao local de trabalho de um e outro, o facto de algum deles dispor eventualmente de outra casa em que possa estabelecer a sua residência, etc.” salienta Pereira Coelho, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Coimbra Editora, n.º 122, 1989, p. 207 e 208
3. Cf. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in “Curso de Direito da Família” Pgs. 680 a 682 e Acórdão proferido em 11/13/2018, no processo 929/17.7T8GRD-A.C1, (sendo este e todos os demais acórdãos citados sem menção de fonte, consultados in dgsi.pt com a data na forma ali indicada: mês/dia/ano)
4. “porque é a ela que se reportam tanto a “situação patrimonial” dos cônjuges, como o “interesse dos filhos”: cf. acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 06/11/2019, no processo 3607/17.3T8PBL-A.C1.
5. Cf acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 10/26/202, no processo 1591/18.5T8FIG-C.C1
6. Cf Pereira Coelho em anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/04/1987, in R.L.J., ano 122, pgs. 120 ss.
7. Cf acórdão proferido em 06/15/2021, no processo 171/10.8TBGMR-B.G1.
8. Cf Acórdão da Relação de Guimarães de 17/12/2018, processo n.º 1163/13.0TBPTL-G.G2, que subscrevemos como adjunta
9. CF acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, de 02/22/2018, no processo 141/15.0T8ODM-A.E1
10. acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, de 05/22/2017, no processo 395/12.3TBVLC-I.P1,
11. em “A Protecção da Casa de Morada da Família no Direito Português, págs. 314/316
12. Cf neste sentido também o já referido acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, no processo 171/10.8TBGMR-B.G1, aliás na linha do decidido no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa 04/15/202, no processo 10316/16.9T8LRS-A-2.
13. Cf acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, de 10/29/2020, no processo 4797/15.5T8BRG-E.G1