Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
243/16.5GCVCT-A.G1
Relator: LAURA MAURÍCIO
Descritores: APREENSÃO
ESTUPEFACIENTE
PERDA A FAVOR DO ESTADO
COMPETÊNCIA MATERIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Compete ao Ministério Público, na fase de inquérito, dar o destino que entender conveniente ao produto estupefaciente declarado perdido a favor do Estado pelo juiz de instrução, uma vez que já não estão em causa quaisquer direitos ou garantias que importe acautelar.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães

Relatório

No âmbito dos autos com o NUIPC nº243/16.5GCVCT, foi, em 30.11.2016, proferido o seguinte despacho:

“ Nos termos e com os fundamentos promovidos a fls. 21, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais, declaro perdido a favor do Estado o produto estupefaciente apreendido nos autos a tais folhas mencionado.

Quanto à promoção de destino a dar ao mesmo declaro-me materialmente incompetente para o efeito, porquanto competente é a autoridade judiciária titular do Inquérito: o Ministério Público — cfr. os artigos 17.°, 267.°, 268.° e 269.°, do Código de Processo Penal, estes dois últimos a contrario, bem como o entendimento preconizado nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 09-06-2010 e 14-09-2011, ambos in www.dgsi.pt/jtrp.

Notifique.”

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Inconformado com tal decisão, recorreu o Ministério Público, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

1º- Tendo o inquérito sido arquivado, cabe ao Juiz de Instrução Criminal ordenar não só o perdimento, mas também a destruição do produto estupefaciente que integra a amostra - cofre a que se refere o nº6 do art. 62° do D.L. nº15/93 de 22 de Janeiro.

2º- Assim, o despacho de fls. 23, em que o tribunal a quo se declarou materialmente incompetente para decidir a destruição do produto estupefaciente que integra a amostra-cofre por ter considerado tratar-se de um acto da competência do Ministério Público, violou o disposto no art. 62°, nº6 do D.L. nº 15/93 de 22 de Janeiro e nos arts. 17.° e 269.°, nº 1, alínea f), do Código de Processo Penal.

Nestes termos e nos demais de direito, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogar-se o despacho na parte em que julga o tribunal materialmente incompetente para o efeito para determinar a destruição do produto estupefaciente que integra a amostra-cofre, substituindo-se por outro que ordene a destruição da amostra-cofre, assim se fazendo JUSTiÇA.

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O recurso foi admitido e fixado o respetivo regime de subida e efeito.

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No Tribunal da Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos à conferência.

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Cumpre decidir

Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).

No caso sub judice a questão suscitada pelo recorrente e que, ora, cumpre apreciar, traduz-se em saber se deve “revogar-se o despacho na parte em que julga o tribunal materialmente incompetente para o efeito para determinar a destruição do produto estupefaciente que integra a amostra-cofre, substituindo-se por outro que ordene a destruição da amostra-cofre.”

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Apreciando

A discordância do recorrente recai em determinar qual a entidade competente para “dar destino” ao bem declarado perdido a favor do Estado: se o Ministério Público, se o Juiz de Instrução.

O artigo 202.º da CRP cuja epígrafe é "Função jurisdicional", consagra uma das modalidades de "separação dos órgãos de soberania estabelecidas na Constituição" mais significativas para caracterizarmos o Estado como um Estado de Direito. Segundo aquele, "os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo", cabendo-lhes "assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados" (nºs 1 e 2 daquela disposição).

“A função jurisdicional consubstancia-se, assim, numa “composição de conflitos de interesses”, levada a cabo por um órgão independente e imparcial, de harmonia com a lei ou com critérios por ela definidos, tendo como fim específico a realização do direito ou da justiça (cfr. o Acórdão deste Tribunal n.º 182/90, publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Setembro de 1990). Aquela função estadual diz respeito a matérias em relação às quais os tribunais têm de ter não apenas a última, mas logo a primeira palavra (cfr. os Acórdãos deste Tribunal nºs 98/88 e 211/90, o primeiro publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Agosto de 1988, e o segundo nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16.º Vol., p. 575 e segs.)” (cfr. Ac. do tribunal Constitucional de 19/1271995, acessível in www.dgsi.pt).

Verificam-se assim três momentos fundamentais de caracterização material da função jurisdicional: dirigir-se à resolução de uma questão jurídica pela via da extrinsecação e da declaração do direito que é; segundo perspetiva estrita e exclusivamente jurídica; prosseguir o interesse público da realização da justiça (cfr. Jorge Miranda, Funções, Órgãos e Atos do Estado, Lisboa, 1990, pág. 43).

De entre os atos cuja competência, na fase de inquérito, a lei defere em exclusividade ao juiz de instrução, previstos nos artºs. 268º nº 1 e 269º nº 1 do C.P.P., encontra-se a “declaração de perda, a favor do Estado, de bens apreendidos, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos artigos 277º, 280º e 282º” – artº 268º nº 1 al. e) do C.P.P.

“Compete exclusivamente ao Ministério Público apreciar se a notícia é ou não uma notícia de um crime, pois que, por força do art.º 262°, n.º 2, só a notícia de um crime dá lugar à abertura de inquérito, como lhe compete exclusivamente dirigir o inquérito, deduzir a acusação e sustentá-la nas fases posteriores do procedimento.

A segunda questão respeita aos actos que durante o inquérito são reservados ao juiz de instrução. Importa distingui-los.

Se se trata diligências de investigação e recolha de provas, apenas poderão ser praticados (ou) autorizados pelo juiz de instrução quando requeridos pelo Ministério Público ou pelos órgãos de polícia criminal, em caso de urgência, ou quando requeridos pelo arguido ou assistente e se trate de actos necessários à salvaguarda dos seus direitos fundamentais. Se são actos da competência do juiz a praticar no decurso do inquérito, mas não são actos de inquérito, estes actos poderão ser promovidos ou requeridos pelo Ministério Público, pelo arguido ou pelo assistente.

Com efeito, competindo a direcção do inquérito ao Ministério Público, não é curial que o juiz possa intrometer-se na actividade de investigação e recolha de provas, salvo se se tratar de actos necessários à salvaguarda de direitos fundamentais.” (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Editorial Verbo III vol., págs.79/80).

A intervenção do juiz na fase do inquérito ocorre apenas, então, para acautelar a defesa dos direitos fundamentais dos sujeitos processuais ou de terceiros relativamente a atos processuais que a podem pôr em causa. Daí que não se vê que o juiz de instrução haja de interferir na realização dos atos do inquérito cuja direção está constitucionalmente cometida ao Ministério Público, fora do quadro de atos que são potencialmente lesivos de direitos fundamentais ou do controlo de atos cuja prática a lei processual preveja como obrigatória , pelo que só haverá lugar à intervenção do juiz de instrução criminal nos casos excecionais previstos na lei e que se prendam com a defesa dos direitos, liberdade e garantias dos cidadãos.

Assim, porque a declaração de perdimento assume natureza jurisdicional, uma vez que com a declaração de perdimento haverá que fixar com trânsito em julgado a extinção do direito de propriedade do respetivo dono sobre os mesmos, é da competência do juiz de instrução a declaração de perda, a favor do Estado, de bens apreendidos, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito.

Mas, como o destino a dar ao produto estupefaciente não interfere com quaisquer direitos de terceiros, nomeadamente o de propriedade, cabendo a direção do inquérito ao Ministério Público, compete ao Ministério Público, na fase de inquérito, dar o destino que entender conveniente ao produto estupefaciente declarado perdido a favor do Estado pelo juiz de instrução uma vez que já não estão em causa quaisquer direitos ou garantias que importe acautelar.

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Decisão

Por todo o exposto, acordam os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em:

- negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo a decisão recorrida.

- Sem tributação.

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Elaborado e revisto pela primeira signatária

Guimarães, 6 de Fevereiro de 2017

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Laura Goulart Maurício

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Alda Tomé Casimiro