Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1348/13.0PBBRG.G1
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: JUSTA CAUSA
GRAVAÇÃO DE IMAGENS PARTICULARES
DOCUMENTAÇÃO DO CRIME DE DANO
PROVA VÁLIDA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/19/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I) Constitui prova válida, e nessa medida poder ser valorada pelo tribunal, um CD como o que está em causa nestes autos, mesmo que se considerasse aquele artesanal sistema de gravação como um sistema de videovigilância, ainda que se desconheça se esse sistema foi comunicado à CNPD e ou se tinha ou não algo a anunciar que estava accionado.
II) É que existe justa causa para a captação das imagens, concretamente documentar a prática de infracção criminal consistente num crime de dano ocorrido em plena via pública, não sendo atingidos dados sensíveis da pessoa visionada nem o “núcleo duro” da sua vida privada.
III) Acresce a circunstância de, apesar de ter sido junto aos autos ainda na fase de inquérito, o CD em causa, nem sequer haver sido indicado como meio de prova da acusação.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

1. No âmbito do Processo Comum (Singular) nº 1348/13.0PBBRG, da Comarca de Braga, Braga, Instância Local – Secção Criminal - J2, em que é arguida Maria A. (devidamente identificada nos autos), após a realização da audiência de discussão e julgamento, no dia 09.01.2015 foi proferida sentença (constante de fls. 161 a 169), onde se decidiu nos seguintes termos (transcrição parcial):
“A)- Condeno a arguida Maria A. como autora material de um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212º, nº 1 do Código Penal, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de 5,00 € (cinco euros), perfazendo a multa de € 800,00 (oitocentos euros).
B)- É a arguida responsável pelo pagamento das custas do processo, com 5 (cinco) UC de taxa de justiça e encargos legais.
C)- Julgo procedente o pedido de indemnização civil deduzido, condenando a arguida a pagar ao demandante a quantia de € 307,50 (trezentos e sete euros e cinquenta cêntimos), a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal desde a data da notificação do pedido até integral pagamento; e a quantia de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal desde a data da sentença, até integral pagamento.
(…)”
2. Inconformada com o assim decidido, no dia 10.02.2015, a arguida interpôs recurso (constante de fls. 173 a 209), sendo que entretanto, e após despacho-convite da primitiva relatora a quem os autos tinham sido inicialmente distribuídos veio, a fls. 273 a 285, apresentar as seguintes “novas conclusões” (transcrição):
CONCLUSÕES:
1º Nos presentes autos, foi a arguida condenada pela prática de um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212º, nº 1 do Código Penal, numa pena de multa no montante de €800,00 (oitocentos euros).
2º Foi, ainda, condenada a pagar ao demandante a quantia de €307,50 (trezentos e sete euros e cinquenta cêntimos), a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal desde a data da notificação do pedido até integral pagamento; e a quantia de €750,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal desde a data da sentença, até integral pagamento.
3.º O tribunal “a quo” formou a sua convicção/motivação no que à parte criminal concerne nas declarações do assistente, declarações da testemunha José C., bem como foi relevado o teor das imagens existentes no CD junto aos autos e visionado em audiência.
4.º Estriba a douta sentença recorrida que tais imagens permitem “claramente perceber que uma pessoa do sexo feminino com a fisionomia em tudo compatível com a fisionomia da própria arguida – sai cautelosamente da entrada de casa da arguida, avança até ao portão e dirige-se ao veículo do ofendido colocando algo em cima do tejadilho, que em segundos começa a deflagrar – e regressa novamente até à entrada da casa da arguida, nada mais se passando a não ser a quietude da noite”.
5.º Entendemos que, da matéria fáctica produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, não resulta que a arguida tenha praticado os factos pelos quais vinha acusada e foi condenada.
6.º O assistente declara em CD, minuto 01:10 a 2:00 que dias antes dos factos, o seu veículo apareceu riscado. Diz que sabendo que a testemunha José C. tinha colocado no local umas câmaras de filmar, foi contar-lhe o sucedido, tendo aquele respondido que não tinha, que as que tinha eram fictícias.
7.º O assistente afirma em CD, 04:40 a 7:55 minutos que, quanto aos riscos suspeitou da arguida, por já a ter visto antes a riscar outros, entre eles o da dita testemunha José C.., mas que quanto aos danos no seu veículo na noite da prática dos factos, não suspeitava da arguida.
8.º Mais declarou que a testemunha José C.. abordou no dia 24, dia de S. João, sem nada lhe contar acerca dos factos, e no dia 25, foi falar com o assistente e sugeriu-lhe que fossem à PSP, porque tinha umas imagens para lhe mostrar e que podiam explicar quem causou aqueles danos. Que vistas as imagens concluiu sem dúvidas de que era a arguida que estava a praticar os factos.
9.º O assistente apresentou queixa na PSP, instado pela testemunha José C...
10.º O assistente, em CD 9:33 a 10:50 m alude às relações amistosas que mantinha com a arguida, que nunca teve com ela qualquer problema. Que lhe veio a casa oferecer dinheiro e o ajudou quando a filha esteve doente.
11.º O assistente afirmou ter comentado com a testemunha José C.. que a arguida tinha riscado outros veículos. E responde afirmativamente que poderá ter sido por isso que a arguida danificou o seu veículo (14:20 a 14:40).
12.º Afirma que viu a arguida a riscar o carro da testemunha José C.., CD 17:05 a 17:50 m, que lhe contou, mas que este não apresentou queixa. Tendo referido outros episódios e afirmado ter medo que os factos se voltassem a repetir (21:56 a 22:05).
13.º O assistente nunca denunciou os riscos no seu veículo quando apresentou queixa na PSP, CD, 25:45 a 30:25 m e continuou a estacionar o carro no mesmo local onde ocorreram os factos, o que contradiz o declarado em CD 34:56 a 35:05 onde confessa ter “muito medo” que a arguida repetisse a prática dos factos.
14.º As declarações do assistente e o depoimento de sua esposa Rosa S., são contraditórios quando esta afirma que a testemunha José C.. falou com o seu marido dias depois, e o assistente diz que foi logo no dia seguinte (00:50 a 01:45).
15.º A Rosa S., esposa do assistente, afirma em CD, 07:15 a 07:30 que não sabia dos riscos provocados anteriormente no veículo do assistente seu marido, mas estranhamente afirma que por causa destes factos o assistente andava muito alterado, nervoso e a precisar de ser medicado.
16.º A Rosa S. confirma a relação de amizade e vizinhança que mantinha com a arguida, que as visitas à sua casa eram frequentes, em CD, 10:05 a 10:45.
17.º Confirma em CD, 14:00 a 14:11 minutos, que o marido assistente continuou e continua a estacionar o veículo danificado no mesmo local, pelo que se conclui que o medo que o assistente confessa nas suas declarações não corresponde à realidade.
18.º A testemunha José C.. em CD, 00.20 a 00:30 m afirmou não se relacionar com a arguida desde 2009, por causa de uns desentendimentos acerca de umas ramagens de árvores que a arguida se queixou e a Câmara cortou.
19.º Declarou ainda, que após o assistente lhe ter contado que o carro lhe tinha sido riscado, foi para a festa e instalou uma câmara na direcção do carro dele (depoente) e que, como apanhava mais um bocadinho, apanhou o carro do ofendido, em CD, 01:50 a 05:30 m.
20.º Em CD, 04:20 m, chegado do S. João, às 2 horas da manhã, passados 40 minutos após ter chegado a casa apercebeu-se de um ruído qualquer. Foi nesse instante que afirma ter visto a arguida a aproximar-se do carro do lado de fora, acto contínuo o regou com um líquido e o carro começa a arder. Afirma ter ficado muito aflito.
21.º No dia seguinte, munido com as imagens, foi ter com o assistente, mostrando-lhe a gravação, CD, 08:00 a 11:30 e 09:50 a 10:13 m.
22.º Em CD, minutos 21:45 a 22:10; 22:35 a 24:00 e 29:50 a 31:32, declarou a testemunha José C.. que gastou 400 e tal euros por danos no veículo dele. Que desconhecia se alguém presenciou tais danos, porque os teria indicado como testemunhas e apresentado queixa,
23.ª – O ora declarado colide com as declarações do assistente que diz ter visto a arguida a fazer riscos no carro da testemunha José C... Este, contudo, refere que no carro dele nunca apareceram riscos, mas sim que lhe foi lançado material corrosivo (tempos de gravação os mesmos do item anterior).
24.º As declarações do assistente e da testemunha José C.., são contraditórias e ilógicas, não se compreendendo que não tenha o assistente referido àquela testemunha que viu a arguida a riscar-lhe o carro, como diz que viu. De resto, a testemunha José C.. desmente esse facto dizendo que nunca o carro dele apareceu riscado mas sim com material corrosivo.
25.º Tais declarações descredibilizam o declarado pelo assistente e testemunha José C...
26.º A arguida (00:00 a 02:00) confrontada com as declarações do assistente, quanto às características da janela de onde o José C.. diz ter presenciado os factos, refere que é composta de três folhas.
27.º Que já não fala com a testemunha José C.. há mais de dez anos. Que fez queixa dele por causa da câmara de filmar.
28.º Com o devido respeito, o depoimento da testemunha José C.. não merece credibilidade. Apresentou um discurso ilógico, parcial, contraditório e inquinado pela relação de litígio e conflitualidade com a arguida.
29.º Tratando-se a janela de, pelo menos, duas folhas, a arguida refere três, e encontrando-se a testemunha José C.. naquele espaço da casa a arrumar umas coisas à noite, não o poderia fazer às escuras, sendo que estando aquele compartimento iluminado, a luz que irradiava da janela e se reflectia para o local onde se encontrava o carro do assistente, sempre essa presença seria facilmente detectada pela arguida, até porque se situa no rés-do-chão.
30.º O assistente declara que viu a arguida a riscar vários carros, designadamente o da testemunha José C.., o que não é corroborado por este porquanto declara que o seu carro nunca foi riscado.
31.º Refere a testemunha José C.. que se deslocou uma vez à casa do assistente. O assistente afirma que a testemunha foi lá duas vezes.
- na primeira questionou-o se se apercebeu de alguma anomalia no carro e se sabia quem era,
- voltou segunda vez com a gravação das imagens, tendo ido vê-las ao centro da cidade.
32.º Estranha-se que tendo a testemunha José C.. visto, através da janela, a arguida a praticar os factos, e ficado, como declarou, muito aflito, não tenha batida à janela ou chamado a atenção da arguida e com isso impedir a alegada prática dos factos.
33.º Emerge dos depoimentos prestados relevantes contradições e incongruências o que é revelador e indiciador de cilada montada para tramar a arguida.
34.º Quanto às imagens da videovigilância: será efectivamente a arguida que aparece nas filmagens? E serão tais filmagens válidas como prova?
35.º Das imagens recolhidas não se pode afirmar que se trata da arguida, tendo esta negado a prática dos factos.
36.º É estranho que, tratando-se a testemunha José C.. de um técnico de electricidade, e por isso, conhecedor do ramo, contanto que confessa a colocação e existência de uma câmara nas traseiras da casa, que a imagem apresente tão deficiente qualidade.
37.º Pela má imagem da gravação, não é possível identificar a pessoa que aparece nas imagens. O rosto aparece com uma penumbra branca que impede a sua identificação.
38.º A PSP no auto de visionamento das imagens levado a cabo em sede de inquérito, é peremptória ao afirmar que não pode identificar o sujeito.
39.º É estranho que, face aos relatos de actos de vandalismo que amiúde ocorriam nos carros ali estacionados, não ter a testemunha José C.. tentado registar antes as imagens através das câmaras. Apenas o fez quando o assistente manifestou essa vontade e curiosamente a prática dos factos ocorreu no dia imediato a essa colocação.
40.º No que tange à questão de saber se tais filmagens são válidas como prova, importa aferir a sua licitude pela sua conformidade ao fim a que se destinavam: se estavam autorizadas, a quem e para que fim.
41.º Discordamos da tese expendida na douta sentença condenatória que protege a licitude do registo de imagens recolhidas no apurado contexto fáctico e para o apurado fim, à luz do artº 167º, do Código Processo Civil.
42.º A testemunha José C.. refere que direccionou a câmara de videovigilância para a rua pública de frente à sua casa e orientada para a sua viatura ali estacionada. E que ocasionalmente recolheu imagens do carro do assistente bem como da prática dos factos. Nada mais falso.
43.º Como é bom de ver e resulta das imagens recolhidas a câmara foi colocada intencionalmente após conversa na noite anterior com o assistente, e direccionada para o interior da entrada da habitação da arguida (sem contudo se visionar a entrada da casa) e o carro do assistente, por um terceiro, testemunha José C.., que está há anos incompatibilizado com a arguida.
44.º A testemunha José C.. referiu vários episódios de danos provocados em viaturas que ocorriam quando, e sempre, que estivessem estacionados de frente à entrada da casa da arguida, mas não se compreende que, tão cioso do recurso à câmara de videovigilância para defesa dos seus interesses e património, nunca tenha até então captado os actos que diz terem sido perpetrados contra seus veículos.
45.º Aquela gravação de imagens foi obtida de forma ilegal, sem consentimento da visada e por isso em violação do artº 126º do Código de Processo Penal.
46.º As imagens oferecidas como prova e destinadas a demonstrar os factos que eram imputados à arguida, mesmo não sendo minimamente esclarecedoras, não obedecem aos requisitos legais, ou seja, a videovigilância não estava autorizada e nem se encontrava devidamente assinalada, sendo que, em tais circunstâncias, as imagens constituem uma abusiva intromissão na vida privada e a violação do direito à imagem da arguida, nos termos conjugados dos artigos 125º, 126º e 167º do CPP e 32º, nº 8 da CRP.
Nestes termos e nos mais de direito que Vªs Exªs doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser aceite e a decisão ora em crise ser revogada e substituída por outra que leve em conta os depoimentos contraditórios e falaciosos, bem considerem as imagens e o seu modo de obtenção prova nula, ferida de nulidade insanável, assim se fazendo INTEIRA E SÃ JUSTIÇA.”

3. O Ministério Público, junto da primeira instância, respondeu ao recurso, concluindo no sentido de que o mesmo deve ser julgado improcedente e mantida a decisão recorrida.
4. O demandante/assistente Francisco M. não respondeu ao recurso.
5. Nesta Relação, a Exma Procuradora-Geral Adjunta (a fls. 280 e 289) emitiu parecer no sentido da rejeição do recurso.
6. No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal, respondeu a arguida (a fls. 296 e 297), pugnando no sentido de que o recurso deve ser apreciado com o fundamento de que as incongruências e contradições nos depoimentos que sustentam a decisão recorrida se reflectem na extensão das conclusões.
7. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência, cumprindo decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (artigo 412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
No caso vertente, não obstante a extensas conclusões do recurso, (mas não havendo motivos para se ser demasiado exigente no sentido de considerar que as mesmas não acataram devidamente o despacho convite a primitiva relatora – e nessa medida não se impondo a sua rejeição) as questões a conhecer são as seguintes:
a) Valoração de prova nula ou proibida;
b) Impugnação da matéria de facto/Erro de julgamento.
*
Vejamos, desde já o que na sentença recorrida consta quanto aos factos provados e não provados, bem como quanto à fundamentação da matéria de facto (transcrição):
“A. MATÉRIA DE FACTO PROVADA
1. No dia 24 de Junho de 2013, entre a 01h00 e as 02H00, a arguida abeirou-se do veículo marca Toyota, modelo Corolla (E11), cor Branca, de matrícula …, propriedade de Francisco M., que se encontrava estacionado na Rua L…, Loteamento do …, em Braga e colocou sobre o tejadilho do mesmo, material inflamável cujas características não foi possível determinar em concreto, ao qual ateou fogo, gerando um pequeno foco de incêndio, queimando a pintura do tejadilho do veículo, danos que orçaram €307,50 (trezentos e sete euros e cinquenta cêntimos).
2. A arguida actuou do modo descrito com o propósito concretizado de queimar o tejadilho do veículo de matrícula ...., que bem sabia pertencer a Francisco M. e com tal acção danificar o aludido veículo contra a vontade do seu legítimo proprietário.
3. Agiu livre, deliberada e conscientemente, apesar de ciente de que toda a sua atrás descrita conduta era proibida e punida por lei.
4. O referido veículo é habitualmente utilizado pelo demandante e respectivo agregado familiar, encontrando-se registado a favor daquele desde 17/02/2004.
5. Demandante e arguida vivem há mais de 15 anos na mesma rua, onde o mencionado veículo estava estacionado à data dos factos, em frente à casa da arguida.
6. Em consequência da conduta da arguida, o tejadilho do veículo ficou parcialmente queimado, exigindo polimento e pintura para a sua reparação.
7. O demandante ficou privado de utilizar o veículo durante a reparação.
8. O demandante despendeu a quantia de € 307,50 na reparação do veículo.
9. Os factos causaram desgosto e inquietação ao demandante, receando este que a arguida pudesse repetir a conduta, porventura causando maior perigo para as pessoas.
10. O que sentiu nos dias seguintes à ocorrência, sobretudo em período nocturno, o que também lhe causou desgaste emocional e irritabilidade, tendo tido dificuldade em adormecer.
11. O demandante foi a consulta médica no Centro de Saúde Braga III – …, no dia .., apresentando distúrbio ansioso/estado de ansiedade e foi medicado.
12. A arguida encontra-se reformada, recebendo uma pensão no valor de € 302,00 mensais.
13. Vive com o marido, também reformado, em casa própria.
14. Como habilitações possui o 4º ano de escolaridade.
15. A arguida é bem considerada no seu meio social, sendo reconhecida pela prática de serviço de voluntariado junto da Cruz Vermelha.
16. A arguida não possui antecedentes criminais.

FACTOS NÃO PROVADOS: Não existem, com relevo para a decisão.
MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
O tribunal baseou a sua convicção, no conjunto da prova produzida, à luz das regras da experiência comum, tendo sempre presente o princípio da presunção de inocência que impera em direito penal, designadamente:
- No teor dos documentos existentes nos autos, a saber:
- Auto de denúncia de fls 3; registos fotográficos de fls 22 a 24, print de registo automóvel de fls. 36; orçamento de fls 46 a 48; documento de fls 99.
- Certificado de registo criminal de fls 141.
- Nas declarações da arguida quanto à sua situação socioeconómica, que não foram contrariadas por qualquer outro meio de prova.
- Nas declarações prestadas pelo assistente Francisco M., explicando a forma como teve conhecimento dos factos, aos quais não assistiu. Explicou também de forma séria e coerente, a forma como foi abordado pelo vizinho José C., com quem de resto não tinha, nem revela ter, grande familiaridade, acabando este por lhe informar ter presenciado a arguida a praticar os factos e facultando-lhe o registo em vídeo dos factos praticados, depois da promessa do declarante não adoptar qualquer atitude violenta com a arguida, vizinha de ambos.
- No depoimento prestado de forma séria e credível pela testemunha José C., explicando ter-se apercebido, naquela noite, cerca das 2h, depois de ouvir ruido de um portão, a arguida a aproximar-se do veículo, colocando no tejadilho qualquer coisa que começou a inflamar e a arder. Mais explicou ter de facto instalado de forma artesanal, uma câmara de gravação, incidindo sobre o local onde tinha o seu próprio veículo estacionado, dados os antecedentes já ocorridos anteriormente, procurando proteger a sua propriedade de actos ilícitos, cuja gravação deu a conhecer (e entregou) ao ofendido, depois de se assegurar que o mesmo apenas iria defender, por meios lícitos, os seus direitos e que não faria “mal” à arguida, como chegou a recear.
- A arguida acabou por prestar declarações, apenas para negar a prática dos factos. Afirma que à hora dos factos estava já deitada a dormir, em sua casa, com o marido; depois de ter estado, nessa noite, desde a hora do jantar até perto da meia-noite, em convívio popular, alusivo às festividades do S. João, em rua próxima do local, regressando a casa, a pé, acompanhada do marido antes do fogo de artifício (24H). Aludiu à existência de mau relacionamento de vizinhança, não com o ofendido, com quem até àquela data sempre se deu bem, mas com o vizinho e testemunha José C.., com quem anda zangada há mais de 10 anos.
- A testemunha José G., confirmou o valor e o pagamento da reparação efectuada na sua oficina, na forma documentada a fls 47 e 48.
- A testemunha Nuno G., irmão do assistente, não presenciou os factos. Viu os estragos no veículo; confirmou o teor dos registos fotográficos de fls 22-24, com os quais foi confrontado; sabe que o ofendido, por causa dos factos, andou muito nervoso e alterado, procurando acalmá-lo e aconselhando-o a ir ao médico, o que aquele fez, sabendo que foi medicado.
- A testemunha Rosa S., esposa do assistente, sabe que o veículo foi danificado depois de terem chegado naquela noite a casa, cerca da 01H30M, factos que não presenciou. Referiu que depois de o marido ter falado com o Sr …, veio para casa muito nervoso e alterado, depois de ter ficado a saber quem tinha praticado os factos (a arguida), seguindo-se um período de grande alteração emocional da parte daquele, que afectou a vivência do assistente no seio familiar, pedindo a declarante ao cunhado (N..) para falar com o marido (assistente). Nessa sequência, refere que o arguido foi à médica de família (ou a médica que a substituiu) e tomou medicação. Mais referiu não encontrar qualquer outra razão para a prática dos factos pela arguida, a não ser o facto de, aparentemente, a mesma não gostar que as pessoas estacionassem os carros naquele local (frente à sua casa), já quando a declarante trabalhou em casa da arguida, como empregada doméstica.
- A testemunha José A., não assistiu aos factos, nem ouviu falar de veículos vandalizados no local, nem neste dia, nem em qualquer outro; nem tampouco esteve com a arguida, depois desta regressar a casa, na sua versão, pelas 00H30/01H00, tendo estado até essa hora, com o marido nas festividades do S. João em rua próxima do local dos autos. No mais, apenas abonou a personalidade da arguida, a quem considera uma boa pessoa, nomeadamente pelo serviço de voluntariado na Cruz Vermelha, a que já se dedicou.
- A testemunha Marisa R., presente também naquela noite na festa de rua do S. João, alude ao horário em que a arguida deverá ter regressado a casa (antes da meia noite, hora do fogo de artifício), desconhecendo quaisquer queixas contra a mesma e considerando a mesma incapaz de praticar os factos imputados, pela personalidade que lhe conhece, nomeadamente pela prática de voluntariado, apesar de ter conhecimento do mau relacionamento que a mesma mantém com o vizinho José C...
- A testemunha Orquídia C., moradora na rua onde decorreu a festa de S. João, na qual a arguida este presente com o marido até perto da meia-noite (antes do fogo de artifício, a que já não assistiu), demorando (no seu passo normal) cerca de 10/20 minutos até à residência. Abonou no mais a personalidade da arguida, nomeadamente pela prática do voluntariado, achando-a incapaz de praticar os factos que lhe vêm imputados.
- Para além dos supra referidos meios de prova, releva ainda o teor das imagens existentes no CD junto aos autos (correspondendo ao CD entregue pela testemunha José C.. ao ofendido), visionado em audiência – a requerimento da própria defesa da arguida – permitindo claramente perceber que uma pessoa do sexo feminino – com uma fisionomia em tudo compatível com a fisionomia da própria arguida – sai cautelosamente da entrada de casa da arguida, avança até ao portão e dirige-se ao veículo do ofendido, colocando algo em cima do tejadilho, que em segundos começa a deflagrar – e regressa novamente até à entrada da casa da arguida, nada mais se passando a não ser a quietude da noite; resultando perfeitamente pueril a negação e a explicação da arguida, após a visualização de tais imagens, sustentando que tal vulto poderia ser o “senhor dos jornais” que faz a distribuição na zona.
- Com efeito este elemento probatório apenas vem corroborar e conferir credibilidade ao depoimento prestado pela testemunha José C.., não existindo qualquer razão para duvidar da seriedade dos factos por este relatados, apesar do mau relacionamento que o mesmo mantém com a arguida (por todos reconhecido), nem se estranhando que o mesmo, àquela hora da noite, não fizesse qualquer alarido, quando sabia que existia uma câmara de gravação por si instalada e tudo ocorreu de forma rápida (o fogo rapidamente se consumiu, como resulta da gravação), para além precisamente desse mau relacionamento preexistente, dificultando também qualquer confronto directo. De resto, tratou-se de um depoimento que se afigurou isento, ponderando-se mesmo as cautelas que o declarante teve junto do ofendido, assegurando-se que o mesmo não iria assumir qualquer atitude violenta e lesiva da arguida, procurando, nas suas palavras, que simplesmente fosse feita a justiça que é devida.
Diga-se ainda a respeito das imagens, que o registo de imagens recolhidas no apurado contexto fáctico e para o apurado fim, constitui prova lícita, à luz do artº 167º do Código de Processo Penal, que, como tal, não pode ser desconsiderada. Veja-se a este respeito o Ac. da Rel. de Évora de 28/06/2011, in www.dgsi.pt; Ac da Rel. Lisboa de 06/03/2012, in CJ Ano XXXVII, Tomo II, pp 127 e sgs.
Da apreciação crítica dos supra referidos elementos probatórios, não ficou o Tribunal com dúvidas quanto à prática pela arguida dos factos que lhe vêm imputados. Com efeito, a versão da testemunha José C.., surge linear, coerente e credível e compatível com as regras da experiência comum, versão esta corroborada, na forma apontada, pelos registos de imagem recolhidos e juntos aos autos, tudo descredibilizando pois a pura negação dos factos pela arguida, sem qualquer consistência.
Diga-se ainda que a hora dos factos apurada, entre a 01H00 e as 02H00M - compatível com o horário mais alargado (01H00-12H00) referido na acusação (sem que traduza qualquer alteração factual) -, resulta da conjugação de toda a prova produzida em audiência (nomeadamente a prova da própria defesa), com a certeza de que os factos foram praticados em período nocturno (nomeadamente pelo depoimento da testemunha José C.. e imagens registadas), sendo que este período temporal é compatível com a hora em que a arguida alegadamente saiu da festa de rua (pouco antes da meia noite), com o tempo que alegadamente demorou no percurso até chegar a casa, deslocando-se a pé, em passo normal (10-20 minutos); o tempo que provavelmente esperou para se assegurar que não havia movimento na rua (ou pela chegada do próprio ofendido/veículo – cerca da 01H30) e até a preparação do material que usou para a prática dos factos.”

1ª Questão:
Valoração de prova nula ou proibida:
Como fundamento de que o tribunal não poderia ter valorado as filmagens recolhidas pelo sistema de videovigilância pertencente à testemunha José C.., invoca a recorrente que “a gravação de imagens foi obtida de forma ilegal, sem consentimento da visada e por isso em violação do artº 126° do Código de Processo Penal”, acrescentando que tal videovigilância não se encontrava autorizada nem assinalada.
Vejamos.
Dispõe o art. 125º, do Cód. Proc. Penal que “são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.
Daqui decorre que não foi estabelecido o princípio da tipicidade dos meios probatórios mas antes o da legalidade.
Os métodos proibidos de prova foram consignados no art. 126.º, do Código Processo Penal, e estão intimamente associados às garantias constitucionais de defesa consagradas no art. 32º da Constituição da República Portuguesa
Assim, a consagração do n.º 8 desse artigo 32º de que “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”, no que se reporta, desde logo à intromissão na vida privada, aparece legalmente transposta no n.º 3, do citado art. 126º, que estatui, além do mais, que “são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada (…) sem o consentimento do respectivo titular”.
Todavia, ressalvadas as situações de intromissão no núcleo duro na vida privada (que o que, como veremos, não ocorre no casos dos autos), actualmente é quase entendimento uniforme da jurisprudência portuguesa de que não constituem provas ilegais e como tal podem ser valoradas pelo tribunal a gravação de imagens por particulares em locais públicos ou acessíveis ao público assim como os fotogramas oriundos dessas gravações, «desde que exista uma justa causa para a sua obtenção, como é o caso de documentarem a prática de uma infracção criminal, e não digam respeito ao «núcleo duro da vida privada» da pessoa visionada (onde se inclui a sua intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida particular e familiar mais restrita, que se pretende reservada e fora do conhecimento das outras pessoas)» – Ac. da Relação do Porto de 23/10/2013 (proc.n.º 585/11.6TABGC.P1, relatora Maria do Carmo Silva Dias, in www.dgsi.pt). No mesmo sentido, entre outros, Ac. do STJ de 28/9/2011 (proc. n.º22/09.6YGLSB-S2, relator Santos Cabral, in www.dgsi.pt) Ac. da Relação do Porto de 16/1/2013 (proc.n.º 201/10.3GAMCD.P1, relator Ernesto Nascimento), Ac. da Relação de Lisboa de 28/5/2009 (proc.n.º 10210/08.9, relatora Fátima Mata-Mouros) e Ac. da Relação de Coimbra de 10/10/2012 (proc.n.º 19/11.6TAPBL.C1, relatora Elisa Sales), todos estes também acessíveis in www.dgsi.pt.
Como vínhamos atrás referindo, o art.126.º do CPP, que tem por epígrafe “Métodos proibidos de prova” e que traduz o consagrado no art.32.º n.º 8 da CRP, prevê nos n.ºs 1 e 2 as provas absolutamente proibidas e no n.º3 as provas relativamente proibidas.
Porém, este normativo não é suficiente para compreender a questão da validade das provas em processo penal, nomeadamente no caso das provas obtidas por reproduções mecânicas. É isso que resulta do art.167.º do CPP (cuja epígrafe é “Valor probatório das reproduções mecânicas) quando no seu n.º 1 refere que as mesmas «só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal», ou seja, há uma influência do direito penal no regime de proibição das provas. Sobre esta ligação ao direito penal substantivo, refere o supra mencionado Ac. da Relação de Lisboa de 28/5/2009: «na verdade, ao estabelecer-se, no art. 167.º do CPP, que as reproduções fotográficas ou cinematográficas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal, não se estabeleceu uma condicionante de validade da prova assente na mera verificação da tipicidade de uma conduta como crime. Exigiu-se mais: exigiu-se a não ilicitude das mesmas. Ora a ilicitude não se esgota no preenchimento de um tipo legal de crime. Para que um comportamento seja punido como crime exige-se que, além se encontrar tipificado na lei penal, configure também um acto ilícito e culposo
Dispõe o art.199.º do Código Penal, sob a epígrafe “Gravações e fotografias ilícitas”:
«1. Quem, sem consentimento:
a) Gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou
b) Utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas na alínea anterior, mesmo que licitamente produzidas;
é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.
2-Na mesma pena incorre quem, contra vontade:
a) Fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou
b) Utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos.
3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 197º e 198º.»
O direito à imagem está tutelado criminalmente neste normativo, mas na medida em que não esteja coberto por uma causa de justificação da ilicitude.
É nessa medida que se vem entendendo que não é crime a obtenção de fotografias ou de filmagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa nesse procedimento, designadamente quando as mesmas estejam enquadradas em lugares públicos, visem a realização de interesses públicos ou que hajam ocorrido publicamente – cfr., entre outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 23/11/2011 (proc. n.º1373/08.2PSPRT.P1, relator Mouraz Lopes) e de 29/02/2015 (proc. nº 349/13.2PEGDM.P1, relatora Maria Deolinda Dionísio), ambos também acessíveis in www.dgsi.pt.
No caso presente, está em causa a valoração do que consta do CD junto aos autos que reproduz a filmagem que havia sido efectuada por uma câmara de gravação pertencente à testemunha José C.., CD esse que, (segundo o que é dito na motivação da motivação da matéria de facto), foi “visionado em audiência – a requerimento da própria defesa da arguida permitindo claramente perceber que uma pessoa do sexo feminino – com uma fisionomia em tudo compatível com a fisionomia da própria arguida – sai cautelosamente da entrada de casa da arguida, avança até ao portão e dirige-se ao veículo do ofendido, colocando algo em cima do tejadilho, que em segundos começa a deflagrar – e regressa novamente até à entrada da casa da arguida, nada mais se passando a não ser a quietude da noite;”, sendo que segundo como relatado no ponto 1. dos factos provados, tal veículo encontrava-se estacionado na via publica, mais concretamente na Rua L…, Loteamento do …, em Braga, vindo então a ser alvo de um acto de vandalismo configurador de um crime de dano p. e p. pelo artigo 212º nº 1 do Código Penal.
À videovigilância, como decorre do art. 4.º n.º 4 da Lei n.º 67/98, de 26/10, aplica-se o regime da protecção de dados pessoais estabelecido na referida Lei.
No entanto, e a menos que a questão respeitasse ao tratamento de dados sensíveis (o que não é o caso porque Dados sensíveis são os «dados pessoais referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem racial ou étnica, bem como o tratamento de dados relativos à saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos», conforme decorre do nº 2 do art. 7º deste diploma), a lei não exige o prévio licenciamento por parte da Comissão Nacional de Protecção de Dados.
O CD em causa nestes autos, mesmo que se considerasse aquele artesanal sistema de gravação como um sistema de videovigilância, ainda que se desconheça se esse sistema foi comunicado à CNPD e ou se tinha ou não algo a anunciar que estava accionado, constitui prova válida, e nessa medida pode ser valorada pelo tribunal, por existir justa causa para a captação das imagens, concretamente documentar a prática de infracção criminal consistente num crime de dano ocorrido em plena via pública, não sendo atingidos dados sensíveis da pessoa visionada nem o “núcleo duro” da sua vida privada.
Em conclusão, o CD em causa constitui prova válida: como tal pode ser valorada pelo tribunal.

Para além disso, importa ainda salientar que apesar de ter sido junto aos autos ainda na fase de inquérito, tal CD nem sequer havia sido indicado como meio de prova da acusação.
Tal como resulta bem evidente da acta da audiência de julgamento do dia 04.12.2014 a visualização do CD (que veio a ter lugar na sessão do dia 16.12.2014 – cfr. acta de fls. 158 a 160) foi requerida “pelo ilustre mandatário da arguida (…) por tal se mostrar pertinente para a descoberta da verdade“ e deferida pela Mma Juíza através do seguinte despacho “Face ao requerimento agora formulado pela defesa, defere-se neste momento, a visualização do CD junto aos autos” – cfr. acta de fls. 156/157.
Ou seja, é a própria defesa a requerer a produção de um meio de prova, ou melhor a requerer que seja utilizado um meio de prova - o que foi deferido – para depois, certamente por considerar que não lhe foi favorável, vir invocar que esse meio de prova seria nulo ou proibido!
Esta postura assume as características de um “venire contra factum proprium”. Com efeito, mesmo que porventura fosse proibido aquele meio de prova (o que não é o caso por não se inserir no âmbito do “núcleo duro da vida privada” da arguida) ao requerer, através do seu mandatário, o visionamento daquele CD, é manifesto que a arguida consentiu na utilização do mesmo para efeitos processuais (no exercício livre e puramente arbitrário do seu direito de defesa) e em simultâneo, por essa via, renunciou /prescindiu do seu direito (privado) cuja tutela, consistiria, na razão de ser da, por si agora invocada, proibição daquele meio de prova. Ou seja, com tal conduta a própria arguida também excluiu qualquer possibilidade de aplicação do nº 3 do artigo 126º do CPP – sibi imputet!
Naufraga, pois, sem mais considerações, a primeira pretensão da recorrente.

2 ª Questão
Passemos a apreciar a 2ª questão relacionada com a impugnação da matéria de facto, desde já se chamando a atenção que pela forma como a recorrente engendrou/apresentou o recurso nesta parte (manifestando o entendimento da errada valoração das provas em que a mesma assentou), e não descortinando nós que a sentença tenha enfermado de qualquer dos vícios a que aludem as alíneas do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, não se tornará possível proceder a qualquer alteração da matéria que foi dada como provada e como não provada.
É certo que o artigo 428º do Código de Processo Penal (diploma a que se reportarão as demais disposições legais citadas sem menção de origem) estabelece que as relações conhecem de facto e de direito.
E segundo decorre do artigo 431º podem modificar a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pela via da “revista alargada” quando se verifiquem os vícios a que aludem as alíneas o nº 2 do artigo 410º e/ou através da impugnação ampla da matéria de facto de acordo com o disposto no artigo 412º nº 3.
Na primeira situação (ou seja âmbito da “revista alargada”) decorre do artigo 410.º n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal à matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
Ora, lendo e relendo a sentença recorrida, em lado algum da mesma se descortina a existência de um qualquer dos atrás enunciados vícios, sendo ainda certo que também nenhum deles concretamente tinha sido, sequer, invocado pela recorrente.

Na segunda situação (ou seja no âmbito da impugnação ampla) a apreciação da matéria de facto alarga-se à prova produzia em audiência (se documentada), mas com os limites assinalados pelo recorrente em face do ónus de especificação que lhe é imposto pelos nºs 3 e 4 do artigo 412º, nos quais é expressamente estabelecido:
3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
São estes os passos a cumprir em caso de impugnação da decisão sobre matéria de facto quando esteja em causa um insinuado erro de julgamento. Na especificação dos factos o recorrente deverá indicar o concreto facto (ou factos ou segmentos dos factos) que consta(m) da sentença recorrida e que considere incorrectamente julgado(s). Quanto às provas, terá que especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (ex: quando o recorrente se socorra da prova documental tem que concretizar qual o concreto documento que demonstra o erro da decisão; quando se socorra de prova gravada tem que indicar o depoimento (ou depoimentos) em questão (por identificação da pessoa ou pessoas em causa), tem de mencionar a passagem ou passagens desse depoimento que demonstra erro em que incorreu a decisão e tem, conforme decorre no nº 4 atrás transcrito, que localizar esse excerto de depoimento no suporte que contém a gravação da prova, por referência ao tempo da gravação.
A exigência da lei ao estabelecer os requisitos da impugnação da matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido deve-se à circunstância de o recurso sobre matéria de facto, apesar de incidir sobre a prova produzida e o seu reflexo na matéria assente, não configurar um novo julgamento. Se estivéssemos perante um novo julgamento as especificações/requisitos seriam, obviamente, destituídos de fundamento. Mas, sendo o recurso um remédio, então o que se pretende é corrigir concretos erros de julgamento respeitantes à matéria de facto. Por isso a lei impõe que os erros que o recorrente entende existirem estejam especificados e que as provas que demonstrem tais erros estejam também elas concretizadas e localizadas, tanto mais que segundo estabelece ainda o nº 6 de tal artigo 412º que “No caso previsto no nº 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
Ora, apesar de, no início da sua motivação de recurso a recorrente expressar a seguinte posição: “Entendemos, salvo o devido respeito, que da matéria fáctica produzida em sede de audiência de discussão e julgamento não resulta que a arguida tenha praticado os factos pelos quais vinha acusada. A arguida nega terminantemente a prática dos factos.” e de no final das suas conclusões rematar com a expressão “Nestes termos e nos mais de direito que Vªs Exªs doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser aceite e a decisão ora em crise ser revogada e substituída por outra que leve em conta os depoimentos contraditórios e falaciosos, bem considerem as imagens e o seu modo de obtenção prova nula, ferida de nulidade insanável, assim se fazendo INTEIRA E SÁ JUSTIÇA.”, depreendendo-se, assim, que a mesma recorrente pretenda a sua absolvição quer do crime quer do pedido cível, consideramos que a recorrente deveria ter dado cumprimento ao ónus de especificação a que alude o nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal. E não o fez.
Com efeito, não especificou que concretos pontos de facto foram incorrectamente julgados (como provados e/ou não provados), sendo que a especificação dos “concretos pontos de factos traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados; não especificou nem indicou que concretas provas imporiam decisão diversa (em termos de factos provados e não provados) da recorrida; e não especificou/concretizou quais as provas que deviam ser renovadas (sendo que a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410º nº 2, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo – cfr. artigo 430º).
Não deu, pois, a recorrente cumprimento às exigências assinaladas no já mencionado artigo 412º nºs 3 e 4 para que este tribunal ad quem pudesse sindicar a matéria de facto fixada na primeira instância. O ónus de especificação a que alude o mencionado artigo 412º nº 3 – desde logo quanto aos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, conforme exige a alínea a) de tal nº 3 – tal como se pode ver das conclusões do recurso supra transcritas, não foi observado/acatado/cumprido pela recorrente.
Do que se constata do seu recurso é que a recorrente manifesta uma posição diversa daquela a que o tribunal a quo chegou, pondo em causa, especialmente, a credibilidade/fiabilidade das declarações do assistente e dos depoimentos das testemunhas Rosa M. e José C. que, conforme resulta evidente da motivação da matéria de facto constante da sentença, foi determinante para formar a convicção do tribunal a quo.
Por outras palavras, com o argumento de que as declarações e depoimentos dos mencionados intervenientes não deveria merecer credibilidade, considera que o tribunal recorrido deveria ter chegado a uma conclusão diversa daquela a que chegou; ou ainda por outras palavras, que o tribunal recorrido deveria ter formulado a mesma convicção ou partido do mesmo entendimento da recorrente no sentido da não prova dos factos que lhe eram imputados.
Ora, salvo o muito devido respeito por opinião contrária, uma mera discordância de factos ou dos meios de prova que o tribunal teve em consideração para dar como provados os factos é totalmente o inverso da legalmente exigida concretização dos factos e/ou da concreta indicação dos meios de prova que imponham decisão diversa. E o ónus de impugnação especificada sobre os concretos factos a sindicar e das concretas provas que imporiam decisão diversa impendia sobre a recorrente, não cabendo ao tribunal nem a faculdade/direito nem o ónus/dever/obrigação de se substituir ao recorrente.
Se ao menos na motivação os tivesse concretizado poder-se-ia fazer operar o convite ao aperfeiçoamento a que alude o nº 3 do artigo 417º. Todavia, sendo inalterável a motivação e não podendo as conclusões exceder os limites definidos pela motivação (cfr. nº 4 do artigo 417º), o convite para a correcção traduzir-se-ia num acto inútil, o que a lei proíbe.
A recorrente (apesar de discordar da valoração que o tribunal fez da prova) não cumpriu, como lhe competia, o ónus de impugnação especificada.
A situação em presença é inteiramente similar àquela que levou o Supremo Tribunal de Justiça a referir que o «convite ao aperfeiçoamento conhece limites, pois que se o recorrente no corpo da motivação do recurso se absteve do cumprimento daquele ónus, que não é meramente formal, antes com implicações gravosas ao nível substantivo, não enunciou as especificações, então o convite à correcção não comporta sentido porque a harmonização das conclusões ao corpo da motivação demandaria a sua reformulação, ao fim e ao cabo, contas direitas, inscreveria um novo recurso, com novas conclusões e inovação da motivação, precludindo a peremptoriedade do prazo de apresentação do direito ao recurso» (- Acórdão do STJ de 31/10/2007, disponível em www.dgsi.pt/jstj.).
Neste sentido se pronunciou também o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 259/2002, ao referir “quando a deficiência de não se ter concretizado as especificações previstas nas alíneas a), b) e c), do n.º 3 do art. 412º, do CPP, reside tanto na motivação como nas conclusões, não assiste ao recorrente o direito de apresentar uma segunda motivação, quando na primeira não indicou os fundamentos do recurso ou a completar a primeira, caso nesta não tivesse indicado todos os seus possíveis fundamentos.”(Acórdão de 18/6/2002, publicado no D.R., II Série, de 13/12/2002.).
A haver despacho de aperfeiçoamento, quando o vício seja da própria motivação equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, o que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso.
E seguindo as orientações do atrás mencionado Acórdão do TC nº 259/2002 (acórdão esse em que recorrente era um assistente), já perante uma situação em que o recorrente é o arguido, o mesmo Tribunal Constitucional (apesar de se reportar à aliena b) do nº 3 do artigo 412º, mas cujo raciocínio se pode seguir quanto também à alínea a) do mesmo nº 3), no seu Acórdão nº 140/2004, de 10 de Março (publicado no Diário da República II Série, de 17 de Abril de 2004, o mesmo TC foi bem claro ao decidir “Não julgar inconstitucional a norma do artigo 412º, n.ºs 3, alínea b), e 4, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências”
E a jurisprudência deste acórdão veio a ser perfilhada nos acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 488/2004 e 342/2006 e nas decisões sumárias nºs 58/2005, 274/2006 e 88/2008 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Saliente-se que de acordo com o disposto no artigo 431.º, b), havendo documentação da prova, a decisão do Tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto só pode ser modificada se esta tiver sido impugnada nos termos do art. 412.º, n.º 3, o que, como vimos, não ocorre no caso em apreço.
Na circunstância do não acatamento do ónus de impugnação especificada, tem-se entendido, como decorrência da sua própria noção (um ónus consiste na necessidade de observância de determinado comportamento como pressuposto de obtenção de determinada vantagem, que até pode cifrar-se em evitar a perda de um benefício ou faculdade, no caso, a de viabilizar o recurso sobre a matéria de facto), não ocorrer o condicionalismo referido na alínea b) do artigo 431.º, tornando-se inviável a modificabilidade da decisão em relação à matéria de facto.
Em suma, por tudo o que acaba de ser dito, perante a falta de concretização dos factos fixados pelo tribunal a quo e que a recorrente, em termos genéricos e conclusivos considera que não deveriam ser dados como provados, quer também pela falta de especifica indicação das provas que (obviamente em relação a esses factos que não concretizou minimamente) imporiam decisão diversa, coarctada ficou a possibilidade deste tribunal ad quem sindicar a matéria de facto que havia sido fixada pelo tribunal a quo, matéria essa que, assim, se tem por assente.
Assim, improcede também esta pretensão da recorrente quanto à eventual alterabilidade da matéria de facto.

Assim, e em síntese conclusiva, naufragando as pretensões da recorrente - e não se mostrando violados quaisquer princípios ou preceitos constitucionais ou qualquer preceitos legais ordinários, designadamente os invocados nas suas conclusões de recurso - terá o recurso que improceder, sendo de confirmar a decisão recorrida.
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III. DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC´s.
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(Elaborado em computador e revisto pelo relator, 1º signatário - art. 94º nº 2 do Código de Processo Penal)
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Guimarães, 19 de Outubro de 2015