Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3554/05.1TBVCT-B.G1
Nº Convencional: JTRG000
Relator: PEREIRA DA ROCHA
Descritores: CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/25/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - A providência de atribuição da casa de morada de família a um dos ex-cônjuges, embora sujeita ao princípio do pedido, tem natureza de jurisdição voluntária, pelo que o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar inquéritos e recolher as informações convenientes, em consequência do que o ónus de alegação pelos interessados dos factos necessários à decisão da providência, bem como a sua prova, possam ser oficiosamente supridos, podendo também o tribunal decidir o seu mérito por critérios de oportunidade e de conveniência e não por critérios de legalidade estrita.
II – Por a 1.ª Instância não haver decidido o facto alegado na contestação de que a casa de morada de família era um bem próprio da Requerente, a factualidade dada por assente é insuficiente para decidir o mérito da providência e, por consequência, o mérito do recurso, o que constitui fundamento de anulação oficiosa da sentença recorrida.
III - Se a casa de morada de família, juntamente com o terreno onde foi implantada, for bem próprio da Requerente, carece de razão de ser conceder-lhe, judicialmente, o seu arrendamento, antes da partilha dos bens comuns, alterando, assim, o acordo, homologado por sentença, em vigor até à partilha dos bens comuns do casal.
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório
Nestes autos de recurso, é recorrente A…e é recorrida B….
Em 26/10/2007, B…, instaurou, por apenso ao processo de inventário para partilha do património comum do casal dissolvido por divórcio por mútuo consentimento, contra A…, este processo especial de atribuição da casa de morada de família.
Para o efeito, alegou, em síntese, que a utilização da casa de morada de família, descrita sob a verba 14.ª do activo e construída por ambos os cônjuges, lhe está atribuída, até ao momento da partilha dos bens comuns do casal, por acordo entre ambos realizado na acção de divórcio por mútuo consentimento e homologado pela sentença de 07/11/2005 que decretou o divórcio; no entanto, está iminente a efectiva partilha dos bens comuns do casal e não tem condições económicas para arrendar ou adquirir outra casa, continuando a necessitar da casa de morada de família para nela residir, juntamente com duas filhas.
Concluiu pedindo lhe seja atribuída a casa de morada de família, fixando-se um montante de renda a pagar por ela não superior a € 20,00.
Frustrou-se a tentativa obrigatória de conciliação.
Em oposição, o Requerido invocou, em síntese: a extemporaneidade do pedido, por estar decidida, por sentença homologatória de acordo, a atribuição da casa de morada de família até à partilha dos bens comuns do casal; a probabilidade da casa de morada de família ser adjudicada, na partilha, à Requerente, por ser só dela o terreno onde ambos a construíram, constituindo, pois, a casa uma benfeitoria, sendo apenas esta benfeitoria que haverá que partilhar; já está decidido no processo de inventário que o terreno, onde foi construída a casa de morada de família, é propriedade da Requerente e que a sua construção foi efectuada com dinheiro obtido por ambos na pendência do casamento, pelo que a acção deve ser julgada improcedente já; caso assim não se entenda, a Requerente não vive na casa de morada de família e ele, atentos os rendimentos de cada um, tem mais necessidade da casa do que ela; caso assim não se entenda, a renda mensal a fixar não deve ser inferior a €200,00.
Em contra-resposta, a Requerente negou a extemporaneidade do pedido, por haver igual probabilidade da casa de morada de família ser adjudicada a um deles na partilha dos bens comuns; afirmou que a casa de morada de família foi relacionada no inventário como um bem imóvel e não como benfeitoria, revestindo esta a natureza de um direito de crédito; o que pretendia era a atribuição da casa de morada de família, não a propriedade da mesma; negou as faltas de residência e de necessidade da casa de morada de família.
Foi efectuada peritagem para apuramento do valor locativo da casa de morada de família, cujo relatório está junto ao processo.
Houve audiência de julgamento, com produção, sem gravação, da prova testemunhal arrolada pelas partes.
Em 25/02/2009, foi proferida sentença que, considerando a casa de morada de família um bem comum dos cônjuges por ter sido adquirida na constância do matrimónio, decidiu dá-la de arrendamento à requerente, Maria das Dores Giestas Afonso Neiva, mediante a renda mensal de €55,00, a pagar ao requerido no 1.º dia útil do mês a que disser respeito e condenou o requerido nas custas.
Em 20/04/2009, na sequência de pedido de aclaração da Requerente e de contra-resposta do Requerido, por despacho, foi aclarado que «a decisão proferida a fls. 107 e ss., que decidiu dar de arrendamento a casa de morada da família à requerente, mediante uma renda mensal de €55,00, irá valer após decisão definitiva no processo de inventário para separação de meações (caso a mesma venha a ser adjudicada ao requerido). Nesse caso, é óbvio que a renda será devida na totalidade (€55,00). Até lá, enquanto a casa ainda faz parte do património comum do casal, vale o que foi acordado sobre o destino da casa de morada de família na acção de divórcio de que estes autos são apenso».
Da aludida sentença foi interposto recurso pelo Requerido, que foi admitido como agravo, com subida imediata, nos próprios autos, e com efeito meramente devolutivo.
O Recorrente sintetizou as alegações nas seguintes conclusões:
1. Uma vez que a casa de morada de família ficou atribuída à recorrente provisoriamente até à partilha, e que a casa é pertença de ambos os cônjuges, só após a partilha pode o Tribunal dar de arrendamento tal prédio à recorrida se, nessa altura, se mostrarem provados os pressupostos de facto em que assenta a necessidade.
2. A Mma. Juíza violou o art. 1.793, 1, do C.C. por errada interpretação e aplicação.
3. Para que a casa de morada de família fosse atribuída à recorrida pelo valor de 55,00€ mensais, teria de ficar provada uma necessidade desta, por haver um desequilíbrio acentuada dos seus rendimentos mensais em relação ao recorrente.
4. Porém, o que ficou provado é que o valor mensal que a recorrida dispõe é superior ao do recorrente e com o valor presumido que a filha de 18 anos ganha esse valor é muito superior.
5. Daí que, a Mma. Juíza ao decidir atribuir a casa de morada de família com a prova existente, também violou o art. 1.793, 1, do C.C. por errada interpretação.
6. Por fim, se tal não for entendido, o valor de 55,00€ fixado pela M.ª Juíza, a título de renda, não foi obtido tendo em conta o valor de mercado de habitação.
7. Tal valor, por tão diminuto, não se coaduna com as regras da experiência.
8. Daí que, o julgamento deva ser anulado, a fim de ser obtido o valor de mercado da renda para a casa em causa.
Termos em que deve revogar-se a sentença recorrida e julgar-se improcedente a acção.
A Recorrida contra-alegou, pugnando pela confirmação da sentença.
Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais, cumpre decidir.
As questões a decidir são as constantes das conclusões das alegações do Recorrente, acima transcritas, por serem elas que fixam e delimitam o objecto do recurso, sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso.
II - Fundamentação
A) - A sentença recorrida julgou provada a subsequente factualidade, que não vem impugnada:
1. Na constância do matrimónio, requerente e requerido construíram a casa referida na verba n° 14 da relação de bens junta aos autos para partilha dos bens do casal, onde ambos estabeleceram domicílio e organizaram a vida doméstica enquanto estiveram casados.
2. O matrimónio foi dissolvido por sentença em 7/11/05.
3. Nessa data convencionaram que a casa de morada de família seria atribuída à requerente, de forma provisória, até ao momento da partilha dos bens comuns do casal.
4. Com a requerente residem duas das filhas do casal, sendo que uma delas, de 18 anos, acabou o liceu e encontra-se a trabalhar desde Janeiro de 2008; a outra, de 20 anos de idade, encontra-se em Braga durante a semana, onde frequenta o curso de economia; esta filha beneficia de uma bolsa de estudo cujo valor líquido mensal, em média, ascende a € 150,00.
5. O requerido nunca prestou a quantia mensal a título de alimentos devidos às filhas.
6. Este agregado familiar despende mensalmente: em produtos alimentares, €150,00; em água, luz e gás, cerca de € 100,00.
7. A requerente tem 57 anos de idade (certidão de fls. 7 dos autos principais), tem um grau de escolaridade baixo.
8. A requerente é doméstica e vive com o rendimento mínimo garantido de €478,04, prestado pela Segurança Social.
9. A requerente não tem quaisquer outros bens ou rendimentos, bem como não tem outra casa para viver a não ser a casa referida no ponto 1.
10. O requerido vive sozinho numa casa de sua mãe.
11. O requerido trabalha, auferindo o salário mensal de € 470,00.
12. O valor locativo da casa mencionada em 1 não excede os € 55,00 mensais.
13. A referida casa, tem cerca de 25 anos, está por pintar e tem o chão em cimento.
B) – Análise e solução das questões
A providência de atribuição da casa de morada de família a um dos ex-cônjuges pode ser decidida com matéria de facto não alegada pelo requerente ou pelo requerido.
Na verdade, tal providência, embora sujeita ao princípio do pedido (cfr. art.º 1793.º, n.º 1, do CC e 3.º, n.º 1, do CPC), tem natureza de jurisdição voluntária, pelo que o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar inquéritos e recolher as informações convenientes (cfr. art.ºs 1409.º, n.º 2, e 1413.º do CPC), em consequência do que o ónus de alegação pelos interessados dos factos necessários à decisão da providência, bem como a sua prova, possam ser oficiosamente supridos.
Além disso, o tribunal pode decidir o mérito da mesma por critérios de oportunidade e de conveniência e não por critérios de legalidade estrita (cfr. art.º 1410.º do CPC).
O predomínio, nos processos de jurisdição voluntária, dos referidos princípios do inquisitório sobre o dispositivo e da equidade sobre a legalidade decorre dos mesmos se caracterizarem, em geral, pela inexistência de um conflito de interesses a compor e pela existência de um só interesse a regular, embora podendo haver um conflito de opiniões ou representações acerca do mesmo interesse (cfr. Manuel de Andrade, em Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1993, pág. 72).
Flui do antedito ser decisiva, para a aferição da procedência ou da improcedência da requerida atribuição da casa de morada de família, a matéria de facto dada por provada pelo tribunal «a quo», ainda que por indagação oficiosa.
Ora a factualidade dada por assente pela 1.ª Instância é insuficiente para decidir o mérito da providência e, por consequência, o mérito do recurso, o que constitui fundamento de anulação da sentença recorrida, ao abrigo do n.º 4 do art.º 712.º do CPC.
Na verdade, embora esteja implícito, nos articulados e nas alegações das partes e na decisão recorrida, que o regime de bens do dissolvido casamento entre a Requerente e o Requerido era o regime supletivo da comunhão de adquiridos, da factualidade dada por provada pela 1.ª Instância não constam factos que permitam inferir aquele regime de bens ou outro e não há neste apenso prova documental que nos possibilite o seu suprimento.
E, na contestação, foram alegados factos no sentido de que a casa de morada de família é um bem próprio da Requerente, factos sobre que não houve decisão da 1.ª Instância.
Na verdade, o Requerido alegou que a casa de morada de família foi construída, na pendência do casamento, a expensas de ambos, mas em terreno próprio da Requerente, alegando, pois, a incorporação de um bem comum dos cônjuges (o edifício utilizado como casa de morada de família) em bem próprio (o terreno onde foi implantado o edifício da casa de morada de família) do cônjuge Requerente.
É necessário o apuramento destes factos para dirimir a questão sobre se o conjunto inseparável formado pelo terreno e pela casa de morada de família é um bem próprio do cônjuge Requerente ou um bem comum dos cônjuges, com as consequentes obrigações de compensação do cônjuge Requerente ao património comum ou vice-versa, no momento da partilha (cfr. art.ºs 1689.º e 1728.º do CC), salvo se esta questão já estiver resolvida no inventário apenso, o que a sentença recorrida omite.
Se a casa de morada de família, juntamente com o terreno onde foi implantada, for bem próprio da Requerente, carece de razão de ser conceder-lhe, judicialmente, o seu arrendamento, antes da partilha dos bens comuns, alterando, assim, o acordo, homologado por sentença, em vigor até à partilha dos bens comuns do casal (cfr. art.º 1793.º, n.ºs 1, 2, e 3, do CC).
E, se o conjunto formado pelo terreno e pela casa de morada de família nele construída for bem próprio da Requerente, é levado ao inventário, não para sua partilha, por não integrar o património comum do dissolvido casal, mas apenas para ser entregue à Requerente como bem próprio dela e para responder pelo passivo da exclusiva responsabilidade dela e, eventualmente, para responder pelo remanescente do passivo comum (cfr. art.ºs 1689.º, n.ºs 1, 2 e 3, 1694.º, n.º 2, 1695.º, n.º 1, e 1696.º, n.ºs 1 e 2, a), do CC).
Assim sendo, nem sequer há a probabilidade séria da casa de morada de família vir a ser adjudicada ao Requerido, em preenchimento da respectiva meação, no inventário em curso para partilha do património comum do dissolvido casal, donde a inoportunidade e a inconveniência da concessão da pretendida tutela judiciária, através da sentença recorrida, para a situação hipotética improvável da adjudicação, em partilha, ao Requerido, da casa de morada de família.
E, sendo este processo de jurisdição voluntária, visando a tutela judiciária duma situação futura incerta, a ocorrer, eventualmente, no processo apenso de inventário em curso, é viável a suspensão da instância até que essa futura situação se defina, bem como se definam e actualizem outros factores relevantes para a decisão de mérito, como aliás ocorre quando a atribuição da casa de morada de família é requerida na pendência da acção de divórcio litigioso, cuja atribuição definitiva, como eventual efeito do divórcio que é, está dependente do trânsito em julgado da decisão que o decretar, suspensão da instância essa que deixamos ao critério do julgador da 1.ª Instância (cfr. art.º 276.º, n.º 1, c) e279.º, n.º 1, do CPC).
Embora por fundamentos diversos e de conhecimento oficioso, procede, pois, a pretensão recursiva de revogação da sentença recorrida, ficando prejudicada, consequentemente, a apreciação das questões suscitadas nas conclusões.
III - Decisão
Pelo exposto decidimos anular o julgamento da matéria de facto efectuado pela 1.ª Instância, com a consequente anulação da sentença recorrida.
Custas pela Recorrida.
Guimarães, 25 de Maio de 2010.
Pereira da Rocha
Henrique Andrade
Gouveia Barros