Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
117/15.7T8PRG-H.G1
Relator: RAQUEL BAPTISTA TAVARES
Descritores: INSOLVÊNCIA
VENDA
PROPOSTA DE CREDOR COM GARANTIA REAL
CHEQUE VISADO
OBRIGATORIEDADE
CAUÇÃO 20% DO MONTANTE PROPOSTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I Em face do teor do n.º 4 do artigo 164º do CIRE, que rege expressamente para as propostas apresentadas pelos credores com garantia real, a junção à proposta de um cheque visado no valor de 20% do montante da proposta, é uma formalidade de cumprimento obrigatório, cujo não cumprimento afeta a sua eficácia.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. RELATÓRIO

Inconformada com o despacho que, no âmbito dos autos de Insolvência em que foi declarado insolvente M. N., julgou não verificada a nulidade da venda efetuada no dia 29 de novembro de 2018 do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Leiria com o n.º ..., veio a credora Caixa ... SA, interpor o presente recurso, concluindo a sua alegação nos seguintes termos:

“III - CONCLUSÕES:

a) Para a aquisição do prédio misto descrito na 1º Conservatória do Registo Predial de Leiria, sob o nº. ...., inscrito na matriz predial sob o art. ... e ..., e na matriz rustica sob o art. ...., foi publicitado que, até ao passado dia 23.11.2018 seriam aceites propostas em carta fechada, no valor base de € 91.000,00, e valor mínimo de venda de € 77.390,00.
b) Para efeitos de licitação, no dia 20.11.2018, a ora Requerente, credora com garantia real - hipoteca registada, e graduada em 1º Lugar - apresentou também ela a sua proposta de aquisição do no valor de € 150.375,00.
c) A Credora Proponente, e agora Recorrente, fez acompanhar o subscrito, da proposta apresentada, um requerimento dirigido ao Sr. Administrador de Insolvência, a solicitar a dispensa do depósito do preço, sem prejuízo do depósito de 20% para acautelar as custas do processo, nos termos e para os efeitos do n. 1 do art 887 do CPC.
d) A Recorrente solicitou ao Sr. Administrador, que, caso lhe fosse adjudicado o bem, pela melhor proposta, este a notificasse para proceder ao envio de cheque correspondente a 20% do valor da proposta.
e) Carta essa recebida pelo Sr. Administrador de Insolvência em 22.12.2018.
f) Só a 30.11.2018, e após contacto com o Sr. Administrador de Insolvência, pelo mesmo lhe foi informado, que a proposta de aquisição da ora Recorrente fora rejeitada, uma vez que não respeitava o estipulado no nº. 4, do art. 164 do CIRE, por não se fazer acompanhar de cheque caução, de 20% do valor de proposta, abstendo-se de tomar qualquer posição, nos oito dias seguintes à recepção do requerido pela Recorrente e a data da abertura das propostas.
g) O Sr. Administrador informou ainda que, a proposta aceite foi apresentada por um terceiro, no valor de € 91.000,00.
h) O Sr. Administrador entendeu ser de aceitar uma proposta de valor inferior à apresentada pela ora Recorrente, com um prejuízo para a massa insolvente de €59.375,00.
i) A Recorrente não se conforma com tal posição, que acha ser prejudicial para a massa insolvente, e altamente lesiva para o próprio devedor, dado que se vê impossibilitado de abater ao seu passivo, um valor substancialmente superior, pelo que por requerimento a arguir a nulidade.
j) O tribunal a quo veio a indeferir a nulidade arguida no processo de insolvência, entendendo que não são aplicáveis as disposições legais do Código de Processo Civil, uma vez que a venda aqui em crise, é feita no âmbito do processo de Insolvência, e por isso, aplicáveis, exclusivamente, as disposições do CIRE, pelo que indeferiu o requerido pela a agora Recorrente.
k) O tribunal a quo entendeu, e mal, salvo o devido respeito, que assiste razão ao Sr Administrador de Insolvência, uma vez que o nº. 4 do art 164 do CIRE impõe como condição de atendibilidade da proposta apresentada por tal credor, precisamente que ela seja acompanhada do cheque visado (caução” nele indicado).
l) Por força do art. 164 do CIRE” A proposta prevista no número anterior só é eficaz se for acompanhada, como caução, de um cheque visado à ordem da massa insolvente, no valor de 20 /prct. do montante da proposta, aplicando-se, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 824.º e 825.º do Código de Processo Civil”
m) O tribunal a quo entende que, pese embora a Recorrente seja um proponente com garantia real sobre o bem a vender, credor garantido, tal não lhe confere o direito de não enviar cheque visado, de 20% da proposta apresentada.
n) E embora sustente a sua decisão no art. 164º do CIRE, não tomou em consideração o disposto no art. 165 do própria CIRE
o) Dispõe o art. 165 do CIRE, com a epigrafe “Credores garantidos e preferente, que “Aos credores garantidos que adquiram bens integrados na massa insolvente e aos titulares de direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, é aplicável o disposto para o exercício dos respetivos direitos na venda em processo executivo”
p) O que é o caso!!!
q) A Aqui Recorrente, credora garantida, valeu-se da lei, para apresentar a proposta nos termos em que a apresentou, ou seja, nos termos e para os efeitos do art 165 do CIRE.
r) A aqui Recorrente, e ali proponente, em momento algum se escusou à entrega do cheque caução de 20% da proposta apresentada, mas tão somente, requereu que fosse notificada para o fazer, caso a sua proposta viesse a ser a mais alta, por ser credora garantida a propor-se a adjudicar o bem em questão.
s) Posto isto, não pode a ora Recorrente conformar-se tal decisão que lhe parece altamente injustificada.
t) Nos termos e para os efeitos do art. 165 do CIRE “Aos credores garantidos que adquiriram bens integrados na massa insolvente e aos titulares de direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, é aplicável o disposto para o exercício dos respetivos direito na venda em processo executivo” (sublinhado nosso)
u) Ora, nos termos do art.º 815 do Código de Processo Civil, por remissão legal do art. 65º do Cire, para o credor garantido e cujos créditos estão graduados em 1ª lugar - que é o caso da ora Requerente, que adquira bens pela execução é dispensado de depositar a parte do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes dele e não exceda a importância a que tem direito da receber; igual dispensa é concedida ao credor com garantia sobre os bens que adquirir”
v) Assim, deveria ter o Sr Administrador considerada valida a proposta da ora Requerente, uma vez que duvidas não restam, que a ora Recorrente é Credora garantida e graduada em 1º Lugar, pelo que a esta deveriam ser aplicadas as regras dos art. 165 º do CIRE ex vi art. 815 do CPC.
w) Se o legislador, com o nº 1 do art. 815º do CPC, quis evitar que o proponente deixasse depois «cair» a proposta (e a aquisição) por falta de depósito do preço proposto, então aquela caução só deve ser exigida dos proponentes que não estejam dispensados deste último depósito.
x) O que não é o caso, uma vez que o credor com garantia, já graduado, fica, por força da lei, dispensado de enviar cheque caução com a proposta.
y) Os que dele estejam dispensados – como são os casos do exequente e dos credores com garantia real sobre os bens em causa, quando o preço da proposta não exceda o valor dos seus créditos e não haja credores graduados antes deles – também devem ficar dispensados da prestação da caução em referência.
z) Tem sido este, aliás, o entendimento perfilhado pelos Tribunais de 2ª instância, de que são exemplos os Acórdãos desta Relação do Porto de 14/11/2005 [proc. 0554951, disponível in www.dgsi.pt/jtrp] e da Relação de Guimarães de 12/10/2006 [proc. 1558/06-2, disponível in www.dgsi.pt
aa) Face ao supra exposto, não teria a ora Recorrente/Proponente, juntar qualquer cheque, por ser credora com garantia real – hipoteca e com crédito já graduado em 1º Lugar, por sentença já transitada em julgado.
bb) Como bem se lê no requerimento que acompanhou a proposta de aquisição enviado ao Sr Administrador, a própria Credora requereu que fosse notificada para efetuar o deposito de 20% do valor da proposta, caso o imóvel lhe fosse adjudicado, pelo melhor preço, requerimento este que, apesar de rececionado pelo Sr. Administrador de Insolvência em 21.11.2018, este nada disse, esperando que ocorresse a venda do imóvel no dia 29.11.20158 (veja se 8 dias depois) para rejeitar a proposta da Recorrente, que por sinal era de € 59.375,00 acima do valor pelo qual o Sr. Administrado de Insolvência decidiu adjudicar a 3s.
cc) Nunca, em momento algum, a Proponente pretendeu furtar-se ao pagamento, em momento posterior, à entrega de cheque caução, no valor de 20% da proposta por apresentada, se esta fosse a de maior valor.
dd) Neste sentido, veja se o sobejamente conhecido acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 22.05.2012, em que é claro o entendimento dos Srs. Desembargadores quanto decidem que “ o credor com garantia real sobre o bem a vender em ação executiva, não tem que juntar, com a proposta de compra, como caução, um cheque visado, nos termos e condições constantes do art. nº 887” ex vi 815º do CPC. , in www.dgsi.pt
ee) Como se não bastasse o já citado acórdão, vejamos ainda o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 12.10.2006 onde resulta que “ o art 897, nº1 do CPC deve ser interpretado de forma restritiva em termos de não impor ao exequente – que adquira bens pela execução- e esteja dispensado de depositar o preço total, nos termos do art. 887 do mesmo diploma – a exigência de juntar à sua proposta qualquer cheque como caução, ou garantia bancária” , in www.dgsi.pt
ff) Posto isto, mal se entende a posição do Sr Administrador de Insolvência, claramente violadora da lei e manifestamente lesiva para os interesses dos credores e, sobretudo, da massa insolvente.
gg) Acresce que o Sr. Administrador de Insolvência rececionou o requerimento a acompanhar a proposta da ora Requerente, onde a ora Requerente e ali proponente, mencionava a razão legal para não proceder ao envio do cheque visado, naquele momento.
hh) Assim, tendo o Sr Administrador de Insolvência rececionado no passado dia 21.11.2018, e conhecido do ali expressamente requerido, absteve-se de tomar qualquer posição, conforme lhe foi solicitado e informado.
ii) Entende assim a ora Recorrente e Proponente, existir no concurso de venda do imóvel, do prédio misto descrito na 1º Conservatória do Registo Predial de Leiria, sob o nº. ...., inscrito na matriz predial sob o art. ... e ..., e na matriz rustica sob o art. ..., uma clara violação da lei, na rejeição da sua proposta.
jj) Entende a Recorrente existir uma clara nulidade da venda ocorrida no dia 29.11.2018, uma vez que contrariando a lei, a proposta de adjudicação do bem a vender nos presentes autos, não foi aceite, embora tenha sido a proposta sobejamente mais alta e apresentada pelo credor com garantia sobre o bem – e assim reconhecida no processo de insolvência.
kk) A adjudicação por uma proposta muito inferior à da aqui Recorrente não poderá ser aceite, devendo sim ser aceite a da aqui Recorrente por ser a sua a proposta mais elevada, tendo -se comprometido a efetuar o pagamento dos 20% da proposta apresentada, assim que lhe for adjudicado”.

Pugna a Recorrente pela integral procedência do recurso e consequentemente pela anulação ou revogação da decisão recorrida, mormente da venda do imóvel, e sua adjudicação à Recorrente, por ter apresentado a proposta mais alta, com o envio de cheque caução de 20% desse valor, no ato de adjudicação, conforme havia declarado expressamente ao Administrador de Insolvência.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre apreciar e decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do CPC).

A questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela Recorrente é a de saber se deve ser declarada nula a venda realizada pelo Administrador da Insolvência por não ter aceite proposta, de maior valor, apresentada por credor garantido, com fundamento de não ter sido junto, com a mesma, a caução correspondente a 20% do montante proposto a que se refere o artigo 164º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (daqui em diante designado apenas por CIRE).
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III. FUNDAMENTAÇÃO

Insurge-se a Recorrente contra a venda realizada pelo Administrador da Insolvência por não ter sido aceite a proposta por si apresentada, a qual era de maior valor, com fundamento em não ter junto com a mesma a caução correspondente a 20% do montante proposto nos termos referidos no artigo 164º n.º 4 do CIRE.

Sustenta a Recorrente que o Administrador da Insolvência devia ter considerado válida a sua proposta por força da aplicação do artigo 165º do CIRE e do artigo 815º do Código de Processo Civil, e que o tribunal a quo fundando a sua decisão no artigo 164º do CIRE, não tomou em consideração o preceituado no artigo 165º.

Vejamos então se lhe assiste razão começando por relembrar aqui, antes de mais, o teor do despacho recorrido:

I - A Caixa ... entende encontrar-se ferida de nulidade a venda efetuada no passado dia 29 de Novembro de 2018, no âmbito da presente insolvência, sobre o prédio descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Leiria com o n.º ..., sobre o qual tem garantia real, requerendo a sua adjudicação por a sua proposta ter sido a mais elevada, sendo superior ao valor anunciado, comprometendo-se a efetuar o pagamento de 20% do depósito do preço assim que lhe for adjudicado.

A Caixa ... estriba essa sua posição no disposto no artigo 815.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que dispensa ao credor garantido cujos créditos estejam graduados em primeiro lugar o depósito da parte do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes dele e não exceda a importância a que tem direito.

Por seu turno, o senhor Administrador da Insolvência esclareceu que o imóvel não foi adjudicado ao credor Caixa ... por a sua proposta não ter sido acompanhada do depósito de 20% do valor, condição que, para além de resultar do disposto no artigo 164.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, ficou expressa no anúncio da venda.

II - De acordo com o artigo 164.º, n.ºs 3 e 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, respeitante à alienação dos bens integrantes da massa insolvente, se, no prazo de uma semana, ou posteriormente mas em tempo útil, sobre a notificação do credor garantido para se pronunciar sobre a modalidade da alienação e para ser informado do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada, o credor garantido propuser a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projetada ou ao valor base fixado, o administrador da insolvência, se não aceitar a proposta, fica obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior (n.º 3). Tal proposta só é eficaz se for acompanhada, como caução, de um cheque visado à ordem da massa insolvente, no valor de 20 % do montante da proposta, aplicando-se, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 824.º e 825.º do Código de Processo Civil (n.º 4).

Por seu turno, o artigo 165.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas manda aplicar aos credores garantidos que adquiram bens integrados na massa o disposto para o exercício dos respetivos direitos na venda em processo executivo, onde se inclui a dispensa destes credores de depositarem a parte do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes deles e não exceda a importância que têm direito a receber (artigo 815.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

III - Analisados os preceitos legais citados, é, desde logo, de concluir que o Administrador da Insolvência tem o poder de rejeitar a proposta do credor garantido, mesmo que ela seja de valor superior ao da alienação projetada ou ao valor base fixado, porventura, por entender que as condições da venda negociadas com terceiro são globalmente mais vantajosas para os interesses dos credores do que as decorrentes da venda ao credor garantido.

A consequência de tal rejeição não será a nulidade da venda – o que nem se compreenderia em face da atribuição do referido poder ao Administrador da Insolvência -, mas apenas a obrigação do Administrador da Insolvência de colocar o credor na situação que decorreria da alienação ao preço proposto pelo credor garantido, caso a venda venha a ocorrer por preço inferior (n.º 3 do artigo 164.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).

IV - Todavia, a consideração da proposta do credor garantido superior ao valor anunciado, mesmo que apenas para o efeito da sua compensação em face da concretização de uma venda por valor inferior ao por si proposto, encontra-se dependente da entrega pelo credor garantido, com a sua proposta, de caução de 20 % do montante da proposta em cheque visado à ordem da massa insolvente (n.º 4 do artigo 164.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).

A exigência legal da entrega da referida caução pelo credor garantido constitui norma jurídica especial que não conflitua de modo algum com a dispensa concedida ao credor garantido do depósito da parte do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes dele e não exceda a importância que tenha direito a receber (remissão do artigo 165.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas para as regras do processo executivo).

Com efeito, a caução constitui, não contraprestação pecuniária parcial da venda, mas sim apenas e tão só garantia especial do cumprimento de uma obrigação (cfr. artigos 623.º e seguintes do Código Civil), a qual deverá ser devolvida quando se concretizar o cumprimento da obrigação em causa, neste caso, a concretização da aquisição do bem vendido com o pagamento do preço que for devido (considerando a medida da dispensa do depósito do preço nos termos do artigo 815.º do Código de Processo Civil), sem prejuízo do disposto no artigo 172.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (“As dívidas da massa insolvente são imputadas aos rendimentos da massa, e, quanto ao excedente, na devida proporção, ao produto de cada bem, móvel ou imóvel; porém, a imputação não excederá 10% do produto de bens objeto de garantias reais, salvo na medida do indispensável à satisfação integral das dívidas da massa insolvente ou do que não prejudique a satisfação integral dos créditos garantidos”).

V - No presente caso, não tendo a proposta do credor sido acompanhada da caução exigida pelo n.º 4 do artigo 164.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, não poderá tal proposta relevar para os efeitos previstos no n.º 3 do mesmo preceito legal, sendo certo que, ainda que a caução tivesse sido devidamente prestada, a única consequência da preterição da proposta em causa seria o direito do credor garantido de ser compensado pelo Administrador da Insolvência em consonância com o disposto na parte final daquele n.º 3.

VI - Em consequência do exposto, julgo não verificada a nulidade da venda efetuada no passado dia 29 de novembro de 2018, no âmbito da presente insolvência, sobre o prédio descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Leiria com o n.º ...”.

Conforme decorre do despacho recorrido foi entendimento do tribunal a quo que a proposta do credor garantido deve sempre acompanhar-se da caução exigida pelo n.º 4 do artigo 164º do CIRE.

Nos termos do disposto neste preceito é ao administrador da insolvência que compete escolher a modalidade da alienação dos bens, devendo fazê-lo preferencialmente através de venda em leilão eletrónico, mas podendo, de forma justificada, optar por qualquer das que são admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente.

O credor com garantia real sobre o bem a alienar é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada (n.º 2 do referido artigo 164º), sendo-lhe permitido, no prazo de uma semana ou posteriormente mas em tempo útil, apresentar uma proposta de aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projetada ou ao valor base fixado ficando o administrador da insolvência obrigado, no caso de não aceitar a proposta, a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço (n.º 3 do referido artigo 164º).

E nos termos do n.º 4 deste preceito tal proposta só é eficaz se for acompanhada, como caução, de um cheque visado à ordem da massa falida, no valor de 20% do montante da proposta, aplicando-se, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 824.º e 825.º Código de Processo Civil.

O artigo 824º do Código de Processo Civil prevê que os proponentes devem juntar obrigatoriamente com a sua proposta, como caução, um cheque visado, no montante correspondente a 5% do valor anunciado ou garantia bancária no mesmo valor e que aceite alguma proposta, o proponente é notificado para, no prazo de 15 dias, depositar numa instituição de crédito a totalidade ou a parte do preço em falta.

O artigo 825º dispõe que se, findo esse prazo, não tiver sido depositado o preço, o agente de execução, ouvidos os interessados na venda, pode: a) determinar que a venda fique sem efeito e aceitar a proposta de valor imediatamente inferior, perdendo o proponente o valor da caução constituída nos termos do n.º 1 do artigo anterior; ou b) determinar que a venda fique sem efeito e efetuar a venda dos bens através da modalidade mais adequada, não podendo ser admitido o proponente ou preferente remisso a adquirir novamente os mesmos bens e perdendo o valor da caução constituída nos termos do n.º 1 do artigo anterior; ou c) liquidar a responsabilidade do proponente ou preferente remisso, devendo ser promovido perante o juiz o arresto em bens suficientes para garantir o valor em falta, acrescido das custas e despesas, sem prejuízo de procedimento criminal e sendo aquele, simultaneamente, executado no próprio processo para pagamento daquele valor e acréscimos.

Já o artigo 165º do CIRE a que a Recorrente faz apelo estabelece que aos credores garantidos que adquiram bens integrados na massa insolvente e aos titulares de direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, é aplicável o disposto para o exercício dos respetivos direitos na venda em processo executivo.

Esta disposição implica a aplicação aos credores garantidos e aos preferentes do disposto no artigo 815º do Código de Processo Civil, isto é, os credores com garantia real sobre os bens a vender são dispensados de depositar a parte do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes dele e não exceda a importância que tem direito a receber (v. neste sentido Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 9ª Edição, 2017, página 225).

Todavia, é também necessário atender ao disposto no artigo 541º do Código de Processo Civil segundo o qual as custas da execução, incluindo os honorários e despesas devidos ao agente de execução, apensos e respetiva ação declarativa saem precípuas do produto dos bens penhorados, o que significa que a referida dispensa do depósito do preço, de que beneficia o credor com garantia real, não abrange as custas prováveis da execução, incluindo os honorários e despesas devidos ao agente de execução.

E, na mesma linha de orientação estabelece o n.º 1 do artigo 172º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que antes de proceder ao pagamento dos créditos sobre a insolvência, o administrador da insolvência deduz da massa insolvente os bens ou direitos necessários à satisfação das dívidas desta, incluindo as que previsivelmente se constituirão até ao encerramento do processo; e o n.º 2 acrescenta que as dívidas da massa insolvente são imputadas aos rendimentos da massa, e, quanto ao excedente, na devida proporção, ao produto de cada bem, móvel ou imóvel, sendo que a imputação não excederá 10% do produto de bens objeto de garantias reais, salvo na medida do indispensável à satisfação integral das dívidas da massa insolvente ou do que não prejudique a satisfação integral dos créditos garantidos.

Este preceito traduz e concretiza a regra da precipuídade das custas do processo e despesas de liquidação.

Daqui decorre que é sempre necessário garantir que do produto da venda de bem objeto de garantias reais é depositada quantia equivalente a pelo menos 10% desse valor (que poderá ser superior considerando a parte final do preceito); deve ser sempre assegurado que os credores garantidos e, por isso, dispensados de depositar o preço, nos casos em que o crédito reconhecido seja igual ou superior ao preço apresentado, não sejam desonerados de depositar quantia necessária a salvaguardar o pagamento das custas do processo e das dívidas da massa, e que em princípio será correspondente a 10% do preço ou, dito de outra forma, não obstante a dispensa do depósito do preço que beneficiam por força do disposto nos artigos 815º do Código de Processo Civil e 165º do CIRE, é necessário que depositem sempre quantia equivalente a pelo menos 10% do preço para salvaguarda das custas do processo e dividas da massa, em cumprimento do preceituado no referido artigo 172º.

Estamos assim perante dois momentos distintos.

Num primeiro momento o artigo 164º do CIRE impõe ao credor garantido que apresente proposta de a fazer acompanhar, como caução, de um cheque visado à ordem da massa insolvente no valor de 20% do montante da proposta e manda aplicar com as necessárias adaptações os artigos 824º e 825º do Código de Processo Civil que regem designadamente a notificação para o depósito do preço e as consequências desse não depósito.

Trata-se de uma caução, de uma garantia, que será executada no caso de o preço proposto e aceite (ou a parte dele de que não esteja dispensado o credor) não ser pago; servindo de garantia o cheque visado que acompanha a proposta será devolvido ao proponente assim que este deposite o preço (ou a parte do mesmo em casa). Só se não for efetuado de todo o pagamento é que a caução poderá ser acionada.

Os credores com garantia real sobre o bem vendido beneficiando da referida dispensa do preço terão de depositar a parte do mesmo que não seja necessária para pagar a credores graduados antes dele e não exceda a importância que tem direito a receber, e, ainda que não existam credores graduados antes ou não exceda o seu crédito, terão sempre de proceder ao depósito da quantia necessária a salvaguardar o pagamento das custas do processo e das dívidas da massa, e que em princípio será correspondente a 10% do preço, em cumprimento do preceituado no referido artigo 172º.

Estamos aqui já num segundo momento a que se reportam os artigos 165º e 172º do CIRE e 815º do Código de Processo Civil.

Ao credor garantido, como é o caso da Recorrente, o artigo 165º do CIRE permite aplicar o disposto para o exercício dos respetivos direitos na venda em processo executivo, isto é, o disposto no referido artigo 815º do Código de Processo Civil e a inerente dispensa do depósito do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes dele e não exceda a importância que tem direito a receber, sempre sem prejuízo do depósito da quantia necessária a salvaguardar o pagamento das custas do processo e das dívidas da massa os termos que já referimos.

Face ao exposto temos de concluir que no âmbito do processo de insolvência não é admissível a interpretação de que o credor garantido quando apresenta proposta para aquisição do bem não se encontra obrigado à prestação da caução, já que o n.º 4 do artigo 164º do CIRE impõe expressamente como condição de atendibilidade ou de eficácia da proposta apresentada que ela seja acompanhada do cheque visado (caução) nele indicado.

Em face do teor do n.º 4 do artigo 164º do CIRE, que rege expressamente para as propostas apresentadas pelos credores com garantia real, a junção à proposta de um cheque visado no valor de 20% do montante da proposta, é uma formalidade de cumprimento obrigatório, cujo não cumprimento afeta a sua eficácia e, por isso determina que a proposta não deva ser aceite (neste sentido o Acórdão da relação do Porto de 11/01/2011 relatado pelo Desembargador M. Pinto dos Santos e o Acórdão da Relação de Évora de 13/09/2018 relatado pelo Desembargador Mata Ribeiro, podendo ler-se no sumário deste último que: “1. No âmbito de alienação de bens em processo de insolvência, a proposta apresentada por credor garantido tendo em vista a aquisição do bem a vender, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projetada ou ao valor base fixado, deve ser acompanhada de caução, por meio de um cheque visado, no valor de 20% do montante da proposta, como o impõe artº 164º n.º 4 do CIRE, por ser uma formalidade não dispensável, de cumprimento obrigatório. 2. Perante o não cumprimento de tal formalidade a proposta não deve ser aceite”; ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

Conforme bem se refere na decisão recorrida “A exigência legal da entrega da referida caução pelo credor garantido constitui norma jurídica especial que não conflitua de modo algum com a dispensa concedida ao credor garantido do depósito da parte do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes dele e não exceda a importância que tenha direito a receber (remissão do artigo 165.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas para as regras do processo executivo). Com efeito, a caução constitui, não contraprestação pecuniária parcial da venda, mas sim apenas e tão só garantia especial do cumprimento de uma obrigação (cfr. artigos 623.º e seguintes do Código Civil), a qual deverá ser devolvida quando se concretizar o cumprimento da obrigação em causa, neste caso, a concretização da aquisição do bem vendido com o pagamento do preço que for devido (considerando a medida da dispensa do depósito do preço nos termos do artigo 815.º do Código de Processo Civil), sem prejuízo do disposto no artigo 172.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”.

No caso concreto não vem questionado que a Recorrente apresentou a proposta sem a fazer acompanhar do cheque visado no valor de 20% do montante da proposta a título de caução; é certo que no requerimento que acompanhou a proposta enviado ao administrador da insolvência a Recorrente requereu que fosse notificada para efetuar o depósito de 20% do valor da proposta.

Porém, como já referimos, a junção do cheque visado a título de caução conforme impõe o artigo 164º reporta-se a um primeiro momento em que é apresentada a proposta e é condição de eficácia desta; enquanto que a notificação para depósito de parte do preço ou de quantia necessária a salvaguardar o pagamento das custas do processo e das dívidas da massa reporta-se já a um segundo momento quando a proposta já foi aceite.

Assim, não tendo a proposta da Recorrente sido acompanhada da caução referida no n.º 4 do artigo 164º do CIRE a mesma carecia de eficácia e, por isso, não podia ser atendida para os efeitos previstos no n.º 3 do mesmo preceito legal; sendo que, nenhuma imposição recai sobre o administrador da insolvência no sentido de notificar o credor para juntar o cheque visado, este é que com a sua proposta o deve juntar, a título de caução, como condição de atendibilidade e eficácia da mesma.

De todo o modo, acrescenta-se ainda que, conforme também salientado pelo tribunal a quo, mesmo que a proposta apresentada fosse eficaz nos termos previstos no n.º 4 do CIRE, a única consequência da preterição da proposta apresentada pela Recorrente seria a obrigação do administrador da insolvência a colocar na situação que decorreria da alienação ao preço apresentado em consonância com o disposto na parte final do n.º 3 daquele preceito, e não a nulidade da venda.

O administrador da insolvência, como resulta do n.º 3 do artigo 164º e sem prejuízo da responsabilidade assinalada, tem o poder de rejeitar a proposta do credor garantido, mesmo que ela seja de valor superior “ao da alienação projetada ou ao valor base fixado”.

Neste sentido referem Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, 2013, página 652) que “segundo resulta do regime do n.º 3, o facto do administrador não aceitar a proposta do credor garantido e proceder ã venda por pior valor não afeta a validade da alienação, nem a sua eficácia. Mas então administrador “fica obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação” ao preço por ele oferecido”.

Assim, tal como decidido pelo tribunal a quo, não se verifica a nulidade da venda efetuada no dia 29 de novembro de 2018 sobre o prédio descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Leiria com o n.º ....

Em face do exposto, improcede o recurso, não merecendo censura a decisão recorrida.

As custas do recurso são integralmente da responsabilidade da Recorrente atento o seu integral decaimento (artigo 527º do Código de Processo Civil).
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SUMÁRIO (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil):

I – Em face do teor do n.º 4 do artigo 164º do CIRE, que rege expressamente para as propostas apresentadas pelos credores com garantia real, a junção à proposta de um cheque visado no valor de 20% do montante da proposta, é uma formalidade de cumprimento obrigatório, cujo não cumprimento afeta a sua eficácia.
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IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Guimarães, 14 de março de 2019
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Raquel Baptista Tavares
Margarida Almeida Fernandes
Margarida Sousa