Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
186/23.6T8MDL-A.G1
Relator: JOSÉ CARLOS PEREIRA DUARTE
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
IMPUGNAÇÃO
DECLARAÇÃO PERIÓDICA DE RENDIMENTOS
IRC
LIQUIDAÇÃO OFICIOSA
APRESENTAÇÃO TARDIA DA DECLARAÇÃO
PRINCÍPIO INQUISITÓRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/05/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Havendo reclamação de um crédito e sendo o mesmo reconhecido pelo Sr. AI, a impugnação deve atacar directamente tal reconhecimento, fundando-se, materialmente, na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos.
II - Uma das consequências ope legis da prolação e trânsito em julgado da sentença que declara a insolvência, é a imediata suspensão das acções executivas intentadas contra o insolvente e, sendo assim, de todos os seus apensos, nomeadamente o apenso da reclamação de créditos.
III - Nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 50º, n.º 1 do CIRE, a decisão judicial poderá ser, a par da lei e do negócio jurídico, uma das fontes da condição ou, melhor dizendo, uma das fontes do “facto futuro e incerto”, mas não é ela própria a condição, “o facto futuro e incerto”.
IV - Nos termos e para os efeitos da alínea c) do n.º 2 do art.º 662º do CPC se tiverem sido alegados factos relevantes para a decisão da causa, omissos da decisão de facto e se o tribunal ad quem tiver elementos probatórios para tal, ou seja, se em 1ª instância tiver sido produzida prova quanto a tais factos que permita considerá-los provados, deverá proceder à ampliação; se não tiver tais elementos, nomeadamente por a prova indicada ou requerida e produzida não ter incidido sobre tais factos, anulará a decisão para que a 1ª instância proceda a essa ampliação e realize novo julgamento.
V – O meio idóneo de prova de eventuais prejuízos em dado exercício é a contabilidade da empresa ou, mais estritamente, os documentos de suporte da mesma.
VI - Se além da prova testemunhal indicada e produzida, não foi indicada ou requerida a prova idónea dos factos, não deve haver lugar à anulação da decisão de facto para ampliação da mesma.
VII - Nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 134º do CIRE, às impugnações é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 25.º também do CIRE, o que significa que o impugnante deve oferecer, com a impugnação, todos os meios de prova de que disponha e é obrigado a apresentar as testemunhas que arrolar.
VIII - Não tendo a parte cumprido o ónus de apresentação de prova idónea no momento adequado (certamente em função da opção plasmada na sua pretensão de que “o crédito reclamado pela Autoridade Tributária seja RECONHECIDO SOB CONDIÇÃO, no sentido de aguardar por decisão no âmbito do processo de execução”) e não podendo o principio do inquisitório ser instrumentalizado pelas partes para contornar a preclusão dos direitos processuais à proposição da prova, emergente da sua falta de diligência, sob pena de se subverterem os princípios da igualdade substancial das partes (art.º 4º do CPC), do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes, com os quais aquele coexiste e que não anula nem invalida, não se impõe ao tribunal o suprimento dessa falta.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

1. Relatório

Por sentença de 30/03/2023, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de EMP01..., SA.

Foi aberto o apenso de reclamação de créditos mediante junção pelo Sr. AI da lista dos créditos reconhecidos e não reconhecidos, sendo que entre os reconhecidos estão os créditos da Autoridade Tributária e Aduaneira nos seguintes termos:

CapitalJurosCustasTotalNatureza do créditoFundamento
30,280,580,0030,86GarantidoIRC 2021
1 440 931,47202 632,4721 178,881 664 773,68ComumIRC/IVA/
Coimas/OT.AT/Custas


Entretanto o Sr. AI veio requerer a rectificação da classificação do crédito reconhecido a favor da AT no valor de € 30,86, enquanto crédito privilegiado, devido a erro de inserção.

A insolvente veio impugnar a “reclamação de créditos apresentada pela Autoridade Tributária (…) representada pelo Ministério, em relação aos valores reclamados e o reconhecimento do crédito por parte do Senhor Administrador de Insolvência”, alegando para tanto que a “credora reclamante alega que a insolvente é devedora ao Estado Português d[o] montante de € 1.664.773,68 (…) relativo a créditos tributários (…) que respeitam a processos de execuções fiscais pendentes na Direcção de Finanças de Braga”; “a insolvente/impugnante não compreende os valores da reclamação nem o reconhecimento automático do crédito por parte do Senhor Administrador de Insolvência, admitindo que apenas o reconheceu nos moldes apresentados por puro desconhecimento de toda a situação”; “[n]o âmbito do Processo de Execução n.º 935/18.4T8BGC-C, que corre termos no Juízo Central Cível e Criminal de Bragança, Juiz 1, veio o Ministério Público, em representação da Autoridade Tributária, reclamar créditos no valor total de € 887.118,68, relativo aos mesmos créditos tributários reclamados (…) nos presentes autos”; “[p]erante tal reclamação (…) apresentou a Executada, aqui Insolvente/impugnante, (…), Impugnação [dos] créditos reclamados, (…) aguardando ainda decisão sobre a impugnação apresentada; “a Autoridade Tributária”, no (…) processo de execução (…) reclamava créditos tendo as seguintes quantias como referência: € 285.111,50, € 284.074,06 e € 280.377,86, proveniente de IRC (…) relativo aos anos de 2018, 2019 e 2020”; a insolvente apresentou impugnação “alegando que desde o ano de 2016 que as liquidações de IRC respeitantes à Executada, aqui Insolvente/impugnante foram realizadas oficiosamente (…)” ano aquele em que a AT “considerou que o valor a pagar era de € 279.980,45”; “nesse ano o imposto a pagar era zero, porque a empresa teve um prejuízo de € 129.000,00, tendo sido entregue, em 23 de Maio de 2022, o IES e o IRC referente ao ano de 2016 e que comprovaram o valor do prejuízo da Executada, aqui Insolvente/impugnante, pelo que cabia à Autoridade Tributária proceder à competente correção e, quando muito, aplicar uma coima pelo atraso”; “[e]m relação ao ano de 2017, a liquidação também foi efectuada oficiosamente (…) pela Administração Fiscal [que considerou] que o valor a pagar referente a IRC é de € 285.577,12, quando a aqui Insolvente/Impugnante (…) teve um prejuízo no montante de € 474,00, pelo que o valor a pagar a título de IRC era zero”; “[r]elativamente ao ano de 2018, segundo a administração fiscal a aqui Insolvente/impugnante deve a título de IRC a quantia de € 285.111,50, [o qual]  foi apurado oficiosamente, [mas] a aqui Impugnante teve um prejuízo fiscal de € 20.761,38, conforme o IES e a declaração de IRC”; “[n]o que concerne ao ano de 2019 (…) a administração tributária, por liquidação oficiosa, referiu que a aqui Insolvente/Impugnante devia a título de IRC a quantia de € 284.070,06 (…) e a empresa nesse ano teve um prejuízo de € 255.463,20, conforme o IES e a declaração de IRC de 2019”; “[q]uanto ao ano de 2020 foi apurado que a empresa teve um prejuízo fiscal, pelo que o valor a pagar a título de IRC é de zero e não de € 280.377,86”; “[p]or t[u]do o exposto a aqui insolvente/impugnante não é devedora de qualquer quantia proveniente de IRC no que toca aos anos de 2016 e 2017, bem como quanto aos anos de 2018, 2019 e 2020, pois a mesma em todos os anos (…) teve prejuízo”; “[j]á quanto aos valores referentes ao IVA de 2019, 2020 e 2021, também nenhum montante é devido pela Insolvente/impugnante, logo também não são devidos juros de mora”; “atenta a impugnação aqui apresentada pela aqui Insolvente/Impugnante no âmbito do processo de execução, e inexistindo ainda qualquer decisão sobre a mesma (…), jamais poderia o senhor Administrador de Insolvência reconhecer o crédito reclamado pela Autoridade Tributária, ou a fazê-lo teria forçosamente de o fazer sob condição, aguardando por decisão do processo em causa”; “não pode aqui [a] aqui Insolvente/Impugnante conformar-se com o reconhecimento do crédito reclamado pela AT como Garantido e Comum no montante de € 1.664.773,68, pois nada garante que seja esse o valor em débito pela Insolvente à Autoridade Tributária, prejudicando os restantes credores reclamantes”; “requer-se que o referido montante reclamado pela Autoridade Tributária seja RECONHECIDO SOB CONDIÇÃO, no sentido de aguardar por decisão no âmbito do processo de execução”.

Foi proferido despacho a ordenar fosse solicitado ao processo 935/18.4T8BGC-C que informasse o estado dos autos e o cumprimento do contraditório pelo Sr. AI (apenas e tão só por este e não também pelo Ministério Público).

O Sr. AI pronunciou-se dizendo que no processo 935/18.4T8BGC-C a Insolvente admite estar em dívida o valor de € 1.627.364,96 relativo a créditos tributários; o processo falimentar é um processo colectivo e universal; não foram comunicados ao AI comprovativos de quaisquer reclamação e/ou impugnação nos termos e prazos consignados no âmbito do CPTT; mantêm os créditos reconhecidos conforme reclamados.

Do processo 935/18.4T8BGC-C veio a informação de que os autos aguardavam a designação de audiência prévia.

Foi designada data para tentativa de conciliação, a qual se realizou, sem sucesso.

Na data designada estavam presentes o Ministério Público e o representante da AT, Dr. AA.

Foi proferido despacho saneador onde foi consignado como objecto do litígio, no que releva:
2. Aferir se deve o crédito de que é titular a Autoridade Tributária, no valor de 1.664.773,68€ (um milhão, seiscentos e sessenta e quatro mil, setecentos e setenta e três euros e sessenta e oito cêntimos) ser reconhecido sob condição, por ter sido judicialmente impugnado em sede de acção executiva.

E foi consignado como tema da prova, também no que releva:
2) Termos da participação processual da insolvente no âmbito do processo n.º 935/18.4T8BGC-C (factos 5º a 7º do articulado com Ref.ª ...18).

Não foram apresentadas reclamações.

Após várias vicissitudes realizou-se o julgamento e foi proferida sentença cujo decisório, no que releva, tem o seguinte teor:
“(…)
2. Julgar totalmente improcedente a impugnação deduzida pela sociedade insolvente e, em consequência, julgar verificado o crédito reconhecido à Autoridade Tributária, nos termos nos termos constantes da lista apresentada pelo Sr. Administrador de Insolvência (rectificada a 24-05-2023).”

A insolvente interpôs recurso pedindo seja “revogada a decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, nos termos conjugados dos art.º 615.º, n.º 1, alínea c) e 666.º, n.º1, do CPC, ou caso assim se não entenda ser proferida uma outra decisão que defira a Impugnação do crédito reclamado pela Autoridade Tributária”, tendo terminado as suas alegações com  as seguintes conclusões:
I. Foi proferida Sentença em 02/01/2025, pelo Juízo de Competência Genérica de Mirandela- Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, a Impugnação da sociedade Insolvente, aqui Recorrente, contra a Reclamação de créditos apresentada pela Autoridade Tributária, foi julgada Totalmente Improcedente e em consequência, pugnou o Meritíssimo Juiz, por dar como verificado o crédito reconhecido à Autoridade Tributária, no montante de € 1.664.773,68.
II. Sucede que a Sentença Recorrida, não teve em consideração a OPOSIÇÃO apresentada pela sociedade insolvente, no Processo Executivo 935/18.4T8BGC-C, onde Autoridade Tributária reclama o valor de € 887.118,68 Oitocentos e oitenta e sete mil cento e dezoito euros e sessenta e oito cêntimos) valor diverso do Reclamado nos presentes autos, mais concretamente € 1.664.773,68 (Um milhão seiscentos e sessenta e quatro mil setecentos e setenta e três euros e sessenta e oito cêntimos), relativo a créditos tributários e que respeitam a processos de execuções fiscais pendentes, na Direcção de Finanças de Bragança, que contemplam para além dos valores dos impostos, juros de mora e valores a título de custas.
III. A Reclamação de créditos apresentada pela Autoridade Tributária ao Senhor Administrador de Insolvência, admitiu de imediato a mesma, não considerando certamente o que constava da contabilidade da Insolvente, nem averiguando junto do contabilista responsável se tal valor correspondia à verdade, apenas por se tratar de um Credito da Autoridade Tributaria, pois caso fosse um credor comum, realizaria diligencias para verificar o montante reclamado.
IV. Atento o facto, dos valores serem díspares, a aqui Recorrente, na Impugnação do Credito apresentada, peticionou que o montante reclamado pela Autoridade Tributária nos presentes autos, fosse reconhecido sob condição, no sentido de aguardar por decisão no âmbito do processo de execução, que há altura não tinha sido proferido, tendo mais tarde a execução sido extinta por inutilidade superveniente da lide, atendendo a insolvência da Recorrente.
V. No cumprimento do desenrolar do processo foi o Sr. Administrador de Insolvência, notificado para se pronunciar sobre a impugnação, tendo sustentando a manutenção da lista de credores reconhecidos e não reconhecidos oportunamente apresentada.
VI. Bem andou o Tribunal ao qualificar como FACTO PROVADO, que no processo executivo n.º 935/18.4T8BGC-C, a Autoridade Tributária, peticionou o reconhecimento do seu crédito sobre a sociedade insolvente, do montante de 887.118,68€ (oitocentos e oitenta e sete mil, cento e dezoito euros e sessenta e oito cêntimos), conforme documentação junta pela aqui Recorrente, embora o Meritíssimo Juiz, posteriormente em sede de fundamentação da sentença recorrida parece olvidar tal facto.
VII. Ora é no âmbito do processo executivo n.º 935/18.4T8BGC-C, que a Recorrente explica as razões de facto e de direito pelas quais entendia que não era devedora daquele valor, Oposição essa também junta aos presentes autos, e que apesar de referida a sua existência, a Recorrente acredita que tal não foi tida em consideração pelo Meritíssimo Juiz.
VIII. No que toca aos FACTOS NÃO PROVADOS, o Tribunal na prolação da Sentença, refere que “….não se deu como não provado, qualquer facto alegado pela aqui Recorrente, na sua impugnação do Credito Reclamado pela Autoridade Tributaria..”, afirmação com a qual a Recorrente não se pode conformar.
IX. A primeira grande falha na qualificação como NÃO PROVADO de todo o conteúdo vertido na Impugnação do crédito da Autoridade Tributária realizada pela Recorrente, contradizendo-se o Tribunal, uma vez que afirma ter considerado como prova relevante a Documental, logo o DOCUMENTO 1, a Reclamação de Créditos realizada pela Autoridade Tributaria, no total de € 887.118,68 (oitocentos e oitenta e sete mil cento e dezoito euros e sessenta e oito cêntimos), no âmbito do processo executivo nº 935/18.4T8BGC, que corre termos no Juízo Central Cível e Criminal de Bragança - Juiz 1, valor bem diferente da constante dos presentes autos, de € 1.664.773,68.
X. Sendo assim, e com o devido respeito, jamais poderia o Tribunal considerar “…..que qualquer facto alegado pela aqui Recorrente na sua impugnação do Credito Reclamado pela Autoridade Tributaria.”, resultou como FACTO NÃO PROVADO, atenta a disparidade de valores reclamados pela Autoridade Tributaria, estando latente a duvida poderia/deveria apurar efetivamente o motivo de tal disparidade de valores apurando o valor real o que não fez.
XI. O Tribunal refere que fundamenta a sua MOTIVAÇÃO, na apreciação critica da prova documental e testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, tendo ainda recorrido, no estritamente necessário às regras da experiencia comum, o que não é verdade considerando a prova documental dos autos, nem a prova testemunhal como veremos.
XII. No entanto no que toca à Impugnação do crédito reclamado pela Autoridade Tributaria pela aqui Recorrente, o Tribunal concluiu e passo a citar:“Da mesma forma, foi objecto de apreciação crítica o conteúdo do requerimento inicial apresentado pelo Ministério Público, no âmbito do processo n. 935/18.4T8BGC e respetivos anexos, bem como do articulado de impugnação, apresentado pela sociedade insolvente, no âmbito desse mesmo processo.”, que com o devido respeito, não se retira da Sentença proferida tal analise, ou juízo critico.
XIII. No que toca à prova testemunhal com relevância para o presente recurso, o Tribunal “a quo”, inquiriu, por sua vez, BB que, na qualidade prestador de serviços de contabilidade à sociedade insolvente, desde Maio de 2022, relatou, no essencial e de forma desinteressada o seu conhecimento sobre o conteúdo dos registos contabilísticos da referida sociedade.
XIV. Bem andou o Tribunal, ao considerar o depoimento do Dr BB, que era o contabilista da empresa, assumindo a qualidade de prestador de serviços, mas perdeu-se ao não esmiuçar o mesmo, pois como veremos pela transcrição do referido depoimento, foi dada uma explicação técnica ao tribunal sobre os débitos da Insolvente para com a Autoridade Tributaria, que fundamenta na íntegra a impugnação apresentada nos presentes autos.
XV. Ora atento o depoimento transcrito, o qual se considera integralmente reproduzido para efeitos das presentes conclusões, explicou de forma clara, a divida da Recorrente à Autoridade Tributaria a Titulo de IRC e IVA, afirmando que em relação ao imposto de IRC, a divida resultou em cerca de 90% das liquidações oficiosas realizadas pela AT, desconsiderando o ultimo ano 2014, para realizar o competente cálculo, pois a EMP01... apresentava resultados negativos, tendo as liquidações oficiosas sido apuradas, com base no ano de 2013, penúltimo ano, onde a empresa possuía resultados positivos.
XVI. Sendo assim, não poderá a Recorrente conformar-se com a Sentença proferida pelo Tribunal a quo, uma vez que a AT apurou os montantes a liquidar a titulo de IRC, fê-lo com base em resultados positivos do penúltimo ano entregue pela Recorrente, ou seja, ano de 2013 que deu um total a pagar de € 239.000,00 (duzentos e trinta e nove mil euros), sendo que a empresa só liquidou € 109.000,00 (cento e nove mil euros), demonstrando que algo já não estaria bem.
XVII. No ano de 2014, como refere a testemunha, a declaração apresentada, dá sete milhões de prejuízo, pelo que foi a Autoridade Tributaria evidentemente que achou mais vantajoso ter o ano de 2013 por referência para proceder às liquidações oficiosas.
XVIII. Contudo em 2013 a AT sabia que a aqui Recorrente apenas tinha liquidado € 109.000,00, o que já demonstrava falta de liquidez financeira, pois a maior parte das empresas prioriza os pagamentos à Autoridade Tributaria e Segurança social, para conseguirem obter financiamentos na Banca e até apoios concedidos pelo Estado.
XIX. Concluímos ainda, pelo depoimento do contabilista da empresa, que desde os anos de 2014 a 2022 a título de IRC, a sociedade contrariamente às liquidações oficiosas realizadas, após submissão das declarações, nunca deu qualquer valor a pagar à Autoridade Tributaria, contrariamente aos valores absurdos resultantes das liquidações oficiosas realizadas.
XX. Após estudo da temática das liquidações oficiosas, O PARECER DA ORDEM DOS CONTABILISTAS CERTIFICADOS é de que, as liquidações oficiosas de IRC emitidas pela AT não libertam o sujeito passivo da obrigação de entrega das declarações modelo 22 de IRC e das IES/DA respetivas, devendo o mesmo faze-lo, o que foi cumprido, em Julho de 2022, através do Dr CC (contabilista).
XXI. Apesar da entrega das declarações modelo 22, pela empresa, em momento posterior à emissão das liquidações oficiosas, de acordo com as alíneas b) ou c) do n.º 1 do artigo 90.º do CIRC, estas não produziram quaisquer efeitos, uma vez que, apresentavam prejuízo, logo só substituiriam as liquidações oficiosas se o resultado fosse positivo, o que originaria imposto a pagar, e se esse montante a pagar fosse superior aos valores constantes das liquidações oficiosas, ora dois pesos e duas medidas, afigura-se-nos tal lei como Inconstitucional.
XXII. No entanto a AT poderia sempre proceder à inspeção da contabilidade da aqui Recorrente, até pelo facto desta, no último ano não ter pago a totalidade do imposto, nem pagar as liquidações oficiosas, após ter sido notificado para o efeito, pelo que não se compreende esta falta de fiscalização por parte da Autoridade Tributaria.
XXIII. Na Sentença Recorrida, está vertido que:”….. a apreciação realizada pelo Tribunal, levou à formação da convicção em relação à FACTUALIDADE PROVADA, em grande medida, no conteúdo da prova documental apresentada (e susceptível de valoração).”, ora certo é, que tendo o tribunal valorado o depoimento da testemunha como tendo sido prestado, de forma desinteressada, não o valorou, pois caso o tivesse realizado, teria elencado nos FACTOS DADOS COMO PROVADOS o que se encontrava alegado na Impugnação apresentada pela aqui Recorrente.
XXIV. Contudo, quanto ao elenco de FACTOS NÃO PROVADOS, o Tribunal refere que “…o mesmo é o resultado da análise crítica da prova constante dos autos, bem como da ausência de elementos que sobre eles permita efectuar um juízo inverso, conclusão esta vertida na Sentença Recorrida.”, de forma alguma pode a aqui Recorrente conformar-se com tal afirmação, atento o facto de existirem nos presentes autos, elementos suficientes para alterar quer os factos provados, quer os não provados, seja através da prova documental carreada para os autos, quer através da prova testemunhal, no caso em concreto de um técnico de contabilidade Dr BB.
XXV. Ora a valoração da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, e os elementos constantes do processo certamente dariam provimento à impugnação de créditos realizada pela aqui Recorrente em Relação aos valores apresentados pela Autoridade Tributaria na sua reclamação, o que consequentemente levaria a uma fundamentação de direito diferente.
XXVI. O Tribunal na Sentença recorrida, no que toca à FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO, começa por analisar a natureza condicional do crédito reclamado pela Autoridade Tributária, atento o facto da aqui Recorrente no pedido realizado na impugnação pugnar pela natureza condicional do crédito reconhecido à Autoridade Tributária, atenta a pendência de incidente deduzido, ao abrigo do disposto no artigo 789º do Código de Processo Civil, no âmbito do processo executivo n.º 935/18.4T8BGC-C, pugnado por entender que não se trata de uma condição aguardar pela sentença do âmbito deste processo.
XXVI. Aliás refere ao abrigo do artigo 50º n.º 1 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, que a decisão judicial não constitui, por si só, uma condição, para os efeitos ali previstos, entendo que do referido artigo, podemos considerar que da decisão judicial proferida, possa derivar a condição.
XXVII. Pelas razões aduzidas, impõe-se concluir, também aqui, pela improcedência da impugnação apresentada, terminando assim o Meritíssimo Juiz a sua Fundamentação de Direito, que salvo o devido respeito, nos merece reparo atenta a prova produzida e não esmiuçada/considerada na sentença proferida.
XXVIII. Ora atendendo à prova constante dos autos e realizada em sede de audiência de julgamento, não se compreende a Sentença proferida pelo Meritíssimo Juiz, uma vez que, é inequívoca a discrepância de valores nas duas Reclamações de créditos apresentadas, versando sobre os mesmos períodos e os mesmos impostos.
XXIX. Sendo assim, no que toca à sua fundamentação, o Tribunal realizou uma valoração errónea da prova, factos provados e factos não provados, o que indubitavelmente, levou a que a fundamentação de Direito como consequência direta e necessária, fosse também errada, ou seja, a sentença carece de fundamentação legal, quando aplicado ao caso subjudice.
XXX. Perante tudo o que foi discorrido no presente Recurso, deve a impugnação do crédito da Autoridade Tributaria, apresentada pela aqui Recorrente ser procedente, com as demais consequências legais.
XXXI. Mais, no caso em concreto o que verdadeiramente importa é o resultado, ou seja, a efetiva lesão do interesse protegido da norma, isto é a presença do imposto devido que não tenha sido entregue.
XXXII. E, assim, se não houver lucro tributável, não há imposto devido. E não havendo imposto devido, não se verifica o evento jurídico – material de que a lei faz depender.
XXXIII. Se não houver imposto devido (por não haver lucro tributável) as liquidações desrespeitariam a valoração jurídica decorrente da harmonia do sistema fiscal, onde se contêm normas a requerer tributação de acordo com o lucro tributável do período e segundo a capacidade contributiva do devedor – conformemente, aliás, a uma visão do direito como ordem jurídica sistémica e unitária, onde, a propósito ganham proeminência os princípios constitucionais da tributação do lucro real, da justiça e da proporcionalidade (Cf. Neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28/02/2007, proferido no recurso n.º 1221/06).”

As alegações não foram notificadas ao Sr. AI nem ao Ministério Público.

Ainda assim, não consta dos autos que tenham sido apresentadas contra-alegações.

Foi proferido despacho a admitir o recurso o qual foi notificado ao Sr. AI e ao Ministério Público, que não arguiram qualquer nulidade por omissão de contraditório.

2. Questões a apreciar

O objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso, cuja apreciação ainda não se mostre precludida.

O Tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas (isto é, questões que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis” (cfr. António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, p. 139).

Pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, pelo que não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida.

A recorrente pede que a sentença recorrida seja revogada “nos termos conjugados dos art.º 615.º, n.º 1, alínea c) e 666.º, n.º 1, do CPC”

O art.º 615º prevê as causas de nulidade da sentença, dispondo na alínea c) que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

Em momento algum das suas alegações ou conclusões a recorrente invocou que a sentença era nula à luz de tal alínea (ou de qualquer outra do n.º 1 do art.º 615º).

O art.º 666º prevê os vícios e reforma do acórdão proferido pela Relação.

Não foi proferido qualquer acórdão, pelo que a invocação de tal normativo traduz, certamente, um lapso.

Atentas as conclusões formuladas, a questão essencial que está colocada no recurso é de saber se a impugnação deve ser julgada procedente.

3. Fundamentação de facto

1) As incidências fácticas indicadas no antecedente relatório e que aqui se dão por reproduzidas.
2) No que releva à questão objecto do recurso (a sentença recorrida incluiu na fundamentação de facto matéria relativa à impugnação de um outro crédito, que não aqui não releva) o tribunal a quo considerou provado:
1. No processo executivo n.º 935/18.4T8BGC-C, o Ministério Público, em representação da Autoridade Tributária, peticionou o reconhecimento do seu crédito sobre a sociedade insolvente, do montante de 887.118,68€ (oitocentos e oitenta e sete mil, cento e dezoito euros e sessenta e oito cêntimos).
2. No seguimento do descrito em 1., a sociedade insolvente deduziu incidente de impugnação do crédito reclamado.
3) Não constam dos factos não provados quaisquer factos com pertinência à questão objecto do recurso.

4. Fundamentação de direito

4.1. Enquadramento jurídico
Dispõe o art.º 1º do CIRE que o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.

Decorre da primeira parte deste normativo que preside ao procedimento de insolvência um princípio de universalidade, o que significa, em primeira linha, a aglutinação de toda a vida patrimonial activa e passiva do insolvente e em segunda linha que todas as responsabilidades do mesmo são apreciadas no procedimento de insolvência, mais concretamente na verificação do passivo.

E por isso dispõe o art.º 90º do CIRE que “[o]s credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência”.

Destarte, “para poderem beneficiar do processo de insolvência e aí obterem, na medida do possível, a satisfação dos seus interesses, os credores têm de nele exercer os direitos que lhes assistem, procedendo nomeadamente, à reclamação dos créditos de que sejam titulares, ainda que eles se encontrem reconhecidos em outro processo”, como afirmam Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 3ª edição, pág. 438.

E por isso dispõe o art.º 128.º, n.º 1 do CIRE, que, “[d]entro do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, devem os credores da insolvência, incluindo o Ministério Público na defesa dos interesses das entidades que represente, reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham, no qual indiquem:…”

E o n.º 3 que “[a] verificação tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento.”

Da leitura conjugada dos três normativos citados – arts. 1º, 90 e 128º - resulta que no âmbito da reclamação de créditos ocorre uma extensão da competência material do tribunal competente para a insolvência, pois passa a poder conhecer de questões cujo conhecimento em princípio caberia a outros tribunais da jurisdição comum (ex: juízos de trabalho) ou a outras jurisdições (ex: administrativa ou fiscal).

Prosseguindo a análise do regime processual da reclamação de créditos, dispõe o n.º 1 do art.º 129º do CIRE que, nos 15 dias subsequentes ao termo do prazo das reclamações, o administrador da insolvência apresenta na secretaria uma lista de todos os credores por si reconhecidos e uma lista dos não reconhecidos.

E dispõe o n.º 1 do art.º 130º do CIRE, cuja epígrafe é “Impugnação da lista de credores reconhecidos”:
1 - Nos 10 dias seguintes ao termo do prazo fixado no n.º 1 do artigo anterior, pode qualquer interessado impugnar a lista de credores reconhecidos através de requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos.

Analisando este preceito e concretamente a expressão “qualquer interessado” referem Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit. pág. 527 que “… interessados devem considerar-se, além do insolvente, os credores em relação aos quais exista possibilidade de conflito com o titular do crédito reconhecido, segundo os termos concretos em que o reconhecimento se verificou.”

Por outro lado, afirmam os mesmos autores in ob. cit. pág. 527-528 que “em relação direta com a existência de duas listas de créditos, a impugnação pode fundar-se na indevida inclusão do crédito numa dessas listas. Tal significa que a impugnação pode ter como fundamento o facto de certo crédito constar da lista de créditos reconhecidos, quando devia constar da lista dos não reconhecidos. Correspondentemente, pode o fundamento da impugnação ser o de estar excluído da lista dos créditos reconhecidos quando dela devia constar.
Para além disso, a impugnação pode ter como fundamento incorreções relativas ao crédito reconhecido, respeitantes ao seu valor ou às suas qualidades.”

Decorre do n.º 1 do art.º 130º do CIRE que a impugnação terá de se dirigir, directamente, ao reconhecimento do crédito pelo Sr. AI e materialmente deverá fundar-se na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos.

De referir que nos termos do art.º 133º (sublinhado nosso), durante o prazo fixado para as impugnações e as respostas, e a fim de poderem ser examinados por qualquer interessado e pela comissão de credores, deve o administrador da insolvência patentear as reclamações de créditos, os documentos que as instruam e os documentos da escrituração do insolvente no local mais adequado, o qual é objecto de indicação no final nas listas de credores reconhecidos e não reconhecidos.

Nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 134º do CIRE, às impugnações é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 25.º também do CIRE, o que significa que o impugnante deve oferecer, com a impugnação, todos os meios de prova de que disponha e é obrigado a apresentar as testemunhas que arrolar.

E nos termos do n.º 4 do art.º 134º, as impugnações apenas serão objecto de notificação aos titulares de créditos a que respeitem, se estes não forem os próprios impugnantes (o que não sucedeu no caso, pois, como referido no relatório, a impugnação deduzida pela insolvente não foi notificada ao MP, sendo certo que tendo o mesmo estado presente na tentativa de conciliação, bem como o representante da AT, não foi suscitada a nulidade pela omissão da referida notificação).

E em concordância com tal dispositivo, dispõe o n.º 2 do art.º 131º que se a impugnação se fundar na indevida inclusão de certo crédito na lista de credores reconhecidos, na omissão da indicação das condições a que se encontre sujeito ou no facto de lhe ter sido atribuído um montante excessivo ou uma qualificação de grau superior à correcta, só o próprio titular pode responder.

4.2. Em concreto
Em primeiro lugar o Sr. AI reconheceu à AT um crédito no valor de € 1 664 773,68 relativo a “IRC/IVA/Coimas/OT.AT/Custas” sem que se alcance, desde logo, a que ano ou anos se reportam os créditos relativos a IRC e IVA e, respeitando a anos distintos, qual o valor relativo a cada um dos anos, nem quais os factos que determinaram, quais os factos determinantes das coimas, a que processos se referem as custas.

A recorrente invocou na sua oposição que não compreendia os valores.

Como referido, nos termos do art.º 133º (sublinhado nosso), durante o prazo fixado para as impugnações e as respostas, e a fim de poderem ser examinados por qualquer interessado e pela comissão de credores, deve o administrador da insolvência patentear as reclamações de créditos, os documentos que as instruam e os documentos da escrituração do insolvente no local mais adequado, o qual é objecto de indicação no final nas listas de credores reconhecidos e não reconhecidos.

Face a este normativo aquela invocação não procede pois cabia à recorrente  proceder à consulta da reclamação de créditos apresentada pela AT e respectiva documentação.

Note-se que a recorrente não invocou que o Sr. AI não tivesse dado cumprimento àquele normativo.

Em segundo lugar a aqui recorrente invocou que: em momento anterior à declaração de insolvência foi intentada uma acção executiva contra a ora insolvente EMP01...; na sequência da penhora de bens da mesma, foi apresentada reclamação de créditos por apenso a tal execução pela Autoridade Tributária; a EMP01... impugnou, ali, o crédito reclamado pela AT.

E pretendia que se aguardasse a prolação de decisão no processo nº 935/18.4T8BGC-C.

No recurso invoca que o tribunal a quo tinha que ter em consideração a impugnação deduzida no processo nº 935/18.4T8BGC-C.

A impugnação deduzida na reclamação de créditos apensa à acção executiva é formalmente irrelevante na medida em que, como ficou dito, os credores da insolvência, querendo obter a satisfação dos créditos, têm de reclamar os seus créditos, ainda que se encontrem reconhecidos em outro processo.
Havendo reclamação de um crédito e sendo o mesmo reconhecido pelo Sr. AI, a impugnação deve atacar directamente o reconhecimento do crédito, fundando-se, materialmente, na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos e não, como fez a recorrente, invocar a impugnação apresentada na reclamação de créditos apensa à acção executiva em que foram reclamados parte dos créditos agora reconhecidos.

Questão diversa, que apreciaremos oportunamente, é a de saber se a recorrente, na impugnação apresentada nos presentes autos, alegou factos susceptíveis de serem convocados no âmbito de uma ampliação da decisão de facto.

Por outro lado, de acordo com o art.º 88º n.º 1 do CIRE, a declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência”.

Ou seja, uma das consequências ope legis da prolação e trânsito em julgado da sentença que declarou a insolvência da EMP01..., foi a imediata suspensão da acção executiva intentada contra a mesma e, sendo assim, de todos os seus apensos, nomeadamente o apenso da reclamação de créditos.

Destarte, não tinha qualquer cabimento legal a pretensão da recorrente de que se aguardasse a prolação de decisão no processo nº 935/18.4T8BGC-C, já que tal decisão nunca viria a ocorrer, como, aliás, sucedeu, segundo informa a recorrente no recurso, por extinção por inutilidade superveniente da lide.

Em terceiro lugar pretendia a recorrente que o crédito da AT fosse reconhecido sob condição, na medida em que aguardava a decisão judicial a proferir na relação de créditos apensa à acção executiva, ou seja, a subsistência do crédito da AT estava sujeito ao facto futuro e incerto que era a prolação a decisão judicial, ela própria.

O tribunal recorrido julgou improcedente esta pretensão.

Mas a recorrente insiste na mesma defesa no recurso, sem extrair dela quaisquer consequências. Mas ainda assim impõe-se apreciá-la.

O art.º 50º do CIRE, cuja epígrafe é “Créditos sob condição”, dispõe:
1 - Para efeitos deste Código consideram-se créditos sob condição suspensiva e resolutiva, respetivamente, aqueles cuja constituição ou subsistência se encontrem sujeitos à verificação ou à não verificação de um acontecimento futuro e incerto, por força da lei, de decisão judicial ou de negócio jurídico.
2 - São havidos, designadamente, como créditos sob condição suspensiva:
a) Os resultantes da recusa de execução ou denúncia antecipada, por parte do administrador da insolvência, de contratos bilaterais em curso à data da declaração da insolvência, ou da resolução de actos em benefício da massa insolvente, enquanto não se verificar essa denúncia, recusa ou resolução;
b) Os créditos que não possam ser exercidos contra o insolvente sem prévia excussão do património de outrem, enquanto não se verificar tal excussão;
c) Os créditos sobre a insolvência pelos quais o insolvente não responda pessoalmente, enquanto a dívida não for exigível.

Resulta do n.º 1 do art.º 50º do CIRE, de forma meridianamente clara, que se consideram sob condição suspensiva ou resolutiva, respectivamente, os créditos cuja constituição ou subsistência está sujeita, por lei, decisão judicial ou negócio jurídico, à verificação ou à não verificação de um acontecimento futuro e incerto.

Ou seja: a decisão judicial poderá ser, a par da lei e do negócio jurídico, uma das fontes da condição ou, melhor dizendo, uma das fontes do “facto futuro e incerto”, mas não é ela própria a condição, “o facto futuro e incerto”.

Deste modo, a pretensão da recorrente não tinha fundamento, pelo que não merece censura a decisão recorrida que a julgou improcedente e, nesta parte, o recurso deve improceder.

Em quarto lugar, lida e relida a sentença recorrida, não tem qualquer correspondência na realidade a alegação de que nela se afirma  “….não se deu como não provado, qualquer facto alegado pela aqui Recorrente, na sua impugnação do Credito Reclamado pela Autoridade Tributaria..”.
Tal afirmação não consta em parte alguma da sentença.

Finalmente coloca-se a questão que constitui o cerne do recurso: saber se a impugnação deve ser julgada procedente.

Numa primeira abordagem a resposta é negativa: a factualidade constante da sentença recorrida não constitui – bem longe disso - plataforma mínima para a integração jurídica do caso.

Se não tiver sido estabelecida, pelo tribunal a quo, a plataforma imprescindível ao conhecimento do mérito da impugnação do crédito reconhecido, o tribunal ad quem também não o poderá fazer.

Mas dispõe o art.º 662º, n.º 2 da alínea c) do CPC que a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
(…) c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, (…) considere indispensável a ampliação desta.

A este respeito refere Abrantes Geraldes in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, pág. 357-358 (negrito nosso):
“Pode ainda revelar-se uma situação que exija a ampliação da matéria de facto, por ter sido omitida dos temas da prova matéria de facto alegada pelas partes que se revele essencial para a resolução do litígio, na medida em que assegure um enquadramento jurídico diverso do suposto pelo tribunal a quo. Trata-se de uma faculdade que nem sequer está dependente da iniciativa do recorrente, bastando que a Relação se confronte com uma omissão objectiva de factos relevantes.
Todavia, considerando que a reavaliação da pertinência é feita pela Relação, a possibilidade de anulação do julgamento para ampliação da decisão da matéria de facto deve ser encarada com rigor acrescido e reservada para os casos em que se revele indispensável.
Não basta que os factos tenham conexão com alguma das “soluções plausíveis da questão de direito”. Considerando a fase em que agora nos encontramos, a Relação deve ponderar o enquadramento jurídico em face do objecto do recurso ou de outros elementos a que oficiosamente puder atender, contando também com o que possa esperar-se de uma eventual intervenção do Supremo ao abrigo do disposto no art. 682º, n.º 3.”

Ou seja: se tiverem sido alegados factos relevantes para a decisão da causa, omissos da decisão de facto e se o tribunal ad quem tiver elementos probatórios para tal, ou seja, se em 1ª instância tiver sido produzida prova quanto a tais factos que permita considerá-los provados, deverá proceder à ampliação; se não tiver tais elementos, nomeadamente por que a prova indicada ou requerida, e produzida não incidiu sobre tais factos, anulará a decisão para que a 1ª instância proceda a essa ampliação e realize novo julgamento.

Destarte, apesar de a impugnação apresentada pela recorrente no processo nº 935/18.4T8BGC-C não ter qualquer relevância formal e apesar de a recorrente ter terminado a sua impugnação, requerendo que “o referido montante reclamado pela Autoridade Tributária seja RECONHECIDO SOB CONDIÇÃO, no sentido de aguardar por decisão no âmbito do processo de execução” e não, como era suposto, pedindo a exclusão do referido crédito da lista de créditos reconhecidos, considerando o princípio da prevalência da substância sob a forma, impõe-se aferir se materialmente a recorrente alegou factualidade concreta susceptível de ser convocada para a ampliação da decisão de facto.

Para tal e em primeiro lugar há que observar que a problemática trazida aos autos - o Sr. AI reconheceu à AT créditos relacionados com IRC, IVA, Coimas/OT.AT/Custas; a recorrente alega que a AT procedeu a liquidações oficiosas de IRC nos anos de 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020 nos valores de, respectivamente, € 279.980,45, € 285.577,12, € 285.111,50, € 284.070,06 e € 280.377,86; mais alega que em todos os referidos anos teve “prejuízo” pelo que o valor devido a título de IRC é € 0,00; a 23 de maio de 2022 entregou o IES e o IRC relativamente ao ano de 2016; entregou IRC e IES em relação ao ano de 2017, não indicando a data em que o fez; entregou IES e IRC relativamente a 2109, em 2019 - releva do direito tributário, pelo que se impõe enquadrá-la nesse âmbito especialíssimo, com conceitos e linguagem muito específicos, de tal forma que a apreciação das questões a que o mesmo respeitam são apreciados pela jurisdição administrativa.

Vejamos sucintamente.

Dispõe o art.º 59º n.º 2 do CPPT:
O apuramento da matéria tributável far-se-á com base nas declarações dos contribuintes, desde que estes as apresentem nos termos previstos na lei e forneçam à administração tributária os elementos indispensáveis à verificação da sua situação tributária.

Assim dispõe o art.º 117º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas – CIRC:
1 - Os sujeitos passivos de IRC, ou os seus representantes, são obrigados a apresentar:
(…)
b) Declaração periódica de rendimentos, nos termos do artigo 120.º;

Por sua o art.º 120º, n.º 1 do CIRC dispõe:
1 - A declaração periódica de rendimentos a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 117.º deve ser enviada, anualmente, por transmissão eletrónica de dados, até ao último dia do mês de maio, independentemente de esse dia ser útil ou não útil.

De referir que o n.º 1 do art.º 75º da Lei Geral Tributária - LGT dispõe (sublinhado nosso):
1 - Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos.

Decorre deste normativo que gozam de presunção de veracidade e boa fé as declarações apresentadas pelos contribuintes no prazo legal, por tal estar abrangido na expressão “nos termos previstos na lei”.

Se tais declarações forem apresentadas fora do prazo deixam de gozar de tal presunção, sendo livremente valoradas pela AT (cfr Ac. do STA de 03/02/2021, processo 0416/09.7BECBR, consultável in www.dgsi/pt/jsta).

Pode acontecer o sujeito passivo não apresentar a referida declaração de rendimentos no prazo legal.

Para tal hipótese rege o art.º 90º, n.º 2 do CIRC, o qual dispunha, na redacção dada pelo artigo 4.º da Lei n.º 82-C/2014, de 31/12/2014, em vigor a partir de 05/01/2015:
1 - A liquidação do IRC processa-se nos termos seguintes:
a) Quando a liquidação deva ser feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º, tem por base a matéria coletável que delas conste;
b) Na falta de apresentação da declaração a que se refere o artigo 120.º, a liquidação é efetuada até 30 de novembro do ano seguinte àquele a que respeita ou, no caso previsto no n.º 2 do referido artigo, até ao fim do 6.º mês seguinte ao do termo do prazo para apresentação da declaração aí mencionada e tem por base o valor anual da retribuição mínima mensal ou, quando superior, a totalidade da matéria coletável do exercício mais próximo que se encontre determinada;
c) Na falta de liquidação nos termos das alíneas anteriores, a mesma tem por base os elementos de que a administração fiscal disponha.
(…)

Já na redacção do art.º 231.º da Lei n.º 114/2017 de 29/12/2017, em vigor a partir de 2018-01-01, o referido normativo passou a dispor:
1 - A liquidação do IRC processa-se nos termos seguintes:
a) Quando a liquidação deva ser feita pelo sujeito passivo nas declarações a que se referem os artigos 120.º e 122.º, tem por base a matéria coletável que delas conste;
b) Na falta de apresentação da declaração a que se refere o artigo 120.º, a liquidação é efetuada até 30 de novembro do ano seguinte àquele a que respeita ou, no caso previsto no n.º 2 do referido artigo, até ao fim do 6.º mês seguinte ao do termo do prazo para apresentação da declaração aí mencionada e tem por base o maior dos seguintes montantes:
1) A matéria coletável determinada, com base nos elementos de que a administração tributária e aduaneira disponha, de acordo com as regras do regime simplificado, com aplicação do coeficiente de 0,75;
2) A totalidade da matéria coletável do período de tributação mais próximo que se encontre determinada;
3) O valor anual da retribuição mínima mensal.
c) (Revogada).

Se o sujeito passivo apresenta a declaração de rendimentos a que se refere o art.º 120º do CIRC, a liquidação do imposto devido tem por base a matéria colectável que dela conste; se o sujeito passivo não apresenta a referida declaração, há lugar a uma liquidação oficiosa por parte da AT.

Aliás, o mesmo decorre do artigo 59.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, o qual dispõe (sublinhado nosso):
1 - O procedimento de liquidação instaura-se com as declarações dos contribuintes ou, na falta ou vício destas, com base em todos os elementos de que disponha ou venha a obter a entidade competente.

Pela sua importância importa referir o n.º 3 do art.º 74º da LGT, o qual dispõe:
3 - Em caso de determinação da matéria tributável por métodos indirectos, compete à administração tributária o ónus da prova da verificação dos pressupostos da sua aplicação, cabendo ao sujeito passivo o ónus da prova do excesso na respectiva quantificação.

Um dos casos de determinação da matéria tributável por métodos indirectos é do art.º 90º, n.º 1, alínea b) do CIRC.

Prosseguindo.

O poder da AT de proceder a liquidações oficiosas está em tensão com o disposto no n.º 2 do art.º 104º da CRP, nos termos do qual a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o rendimento real.

Nessa medida coloca-se a questão de saber quais as vias para estabelecer a correspondência possível com a situação real do sujeito passivo.

O art.º 54º da LGT dispõe que o procedimento tributário compreende toda a sucessão de actos dirigida à declaração de direitos tributários, designadamente:
(…)
c) A revisão, oficiosa ou por iniciativa dos interessados, dos actos tributários;
(…)
f) As reclamações e os recursos hierárquicos;

Quanto à revisão, dispõe o art.º 78º n.º 1 da Lei Geral Tributária (sublinhado nosso):
1 - A revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou pode ser efectuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.

Quanto à reclamação graciosa, dispõe o art.º 68º do CPPT:
1 - O procedimento de reclamação graciosa visa a anulação total ou parcial dos actos tributários por iniciativa do contribuinte, incluindo, nos termos da lei, os substitutos e responsáveis.

Finalmente e quanto ao recurso hierárquico, dispõe o art.º 76º do CPPT:
Do ato de indeferimento total ou parcial da reclamação graciosa cabe recurso hierárquico no prazo previsto no n.º 2 do artigo 66.º, com os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 67.º

Neste âmbito importa ainda ter em consideração o art.º 103º do CIRC, o qual dispõe:
1 - A Autoridade Tributária e Aduaneira procede oficiosamente à anulação, total ou parcial, do imposto que tenha sido liquidado, sempre que este se mostre superior ao devido, nos seguintes casos:
a) Em consequência de correção da liquidação nos termos dos n.os 9 e 10 do artigo 90.º ou do artigo 100.º;
b) Em resultado de exame à contabilidade;
c) Devido à determinação da matéria coletável por métodos indiretos;
d) Por motivos imputáveis aos serviços;
e) Por duplicação de coleta.
2 - Não se procede à anulação quando o seu quantitativo seja inferior a (euro) 25 ou, no caso de o imposto já ter sido pago, tenha decorrido o prazo de revisão oficiosa do ato tributário previsto no artigo 78.º da Lei Geral Tributária.

Crê-se que haverá lapso na alínea a), na remissão para os n.ºs 9 e 10 do art.º 90º, na medida em que tais normativos não se reportam à correcção da liquidação.

Antes se vislumbra que a remissão será para o n.º 12, o qual dispõe:
12 - A liquidação prevista no n.º 1 pode ser corrigida, se for caso disso, dentro do prazo a que se refere o artigo 101.º, cobrando-se ou anulando-se então as diferenças apuradas.

Por sua vez o art.º 101º dispõe:
A liquidação de IRC, ainda que adicional, só pode efetuar-se nos prazos e nos termos previstos nos artigos 45.º e 46.º da Lei Geral Tributária.

O art.º 45º, n.º 1 da LGT, cuja epígrafe é “Caducidade do direito à liquidação”:
1 - O direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro.
(…)
4 - O prazo de caducidade conta-se, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário e, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu, excepto no imposto sobre o valor acrescentado e nos impostos sobre o rendimento quando a tributação seja efectuada por retenção na fonte a título definitivo, caso em que aquele prazo se conta a partir do início do ano civil seguinte àquele em que se verificou, respectivamente, a exigibilidade do imposto ou o facto tributário.
(…)

E o art.º 46º da LGT cuja epigrafe é Suspensão do prazo de caducidade, dispõe:
1 - O prazo de caducidade suspende-se com a notificação ao contribuinte, nos termos legais, da ordem de serviço ou despacho no início da ação de inspeção externa, cessando, no entanto, esse efeito, contando-se o prazo desde o seu início, caso a duração da inspeção externa tenha ultrapassado o prazo de seis meses após a notificação, acrescido do período em que esteja suspenso o prazo para a conclusão do procedimento de inspeção.
2 - O prazo de caducidade suspende-se ainda:
a) Em caso de litígio judicial de cuja resolução dependa a liquidação do tributo, desde o seu início até ao trânsito em julgado da decisão;
b) Em caso de benefícios fiscais de natureza contratual, desde o início até à resolução do contrato ou durante o decurso do prazo dos benefícios;
c) Em caso de benefícios fiscais de natureza condicionada, desde a apresentação da declaração até ao termo do prazo legal do cumprimento da condição;
d) Em caso de o direito à liquidação resultar de reclamação ou impugnação, a partir da sua apresentação até à decisão.
e) Com a apresentação do pedido de revisão da matéria colectável, até à notificação da respectiva decisão.

Do exposto decorre que tendo havido liquidações oficiosas, o estabelecimento da correspondência possível com a situação real do sujeito passivo pode ocorrer em virtude de uma revisão oficiosa da AT ou em virtude de actuação do sujeito passivo, por um dos meios supra referidos, tendo como limite o prazo da caducidade (que não é de conhecimento oficioso), sob pena de tais liquidações se consolidarem na ordem jurídica.

Neste contexto, a apresentação de declarações de IRC que não foram apresentadas no prazo legal, podem servir de base a uma reclamação graciosa, por iniciativa do sujeito passivo ou por convolação da AT ou a um pedido de revisão, também por iniciativa do sujeito passivo, mas também a uma revisão oficiosa.

Certo é que, como já referido, as declarações apresentadas fora do prazo legal, não gozam da presunção de veracidade e boa fé a que se refere o n.º 1 do art.º 75º da LGT, já que não foram apresentadas nos termos previstos na lei, o que tem como consequência que tal apresentação não tem necessariamente por efeito a anulação da liquidação oficiosa de IRC, porque os valores inscritos em tais declarações não se presumem verdadeiros, ficando sujeitas à livre apreciação da AT (cfr. o já citado Ac. do STA de 03/02/2021, processo 0416/09.7BECBR, consultável in www.dgsi/pt/jsta).

Por outro lado, face ao disposto no n.º 3 do art.º 74º da LGT, já supra referido, cabe ao sujeito passivo o ónus da prova do excesso da quantificação da liquidação, pelo que lhe cabe o ónus de apresentar elementos demonstrativos do excesso de quantificação, isto sem prejuízo de, dentro do prazo de caducidade do direito de liquidar o tributo, nos termos do disposto no art.º 58.º da LGT, incumbir à AT  “realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido.”, nomeadamente considerando os elementos em seu poder ou através de uma acção inspectiva.

Enquadrada a problemática no seu âmbito especialíssimo e voltando agora a nossa atenção para a reclamação de créditos, vejamos se a recorrente alegou factualidade que imponha a este tribunal fazer uso do disposto no art.º 662º, n.º 2, alínea c) do CPC.

Recorde-se ainda que o Sr. AI reconheceu à AT créditos relacionados com IRC,  IVA, Coimas/OT.AT/Custas.

Relativamente ao IVA a recorrente limitou-se a, pura e simplesmente, negar dever o mesmo, como decorre do art.º 15º da impugnação - “Já quanto aos valores referentes ao IVA de 2019, 2020 e 2021, também nenhum montante é devido pela insolvente/impugnantes, logo também não são devidos quaisquer juros de mora.” –, sem alegar quaisquer factos que, uma vez provados, permitissem concluir pela indevida inclusão do crédito respeitante a tal imposto na lista de créditos reconhecidos, pelo que se impõe concluir que a recorrente não alegou qualquer substrato factual, por mínimo que fosse, susceptível de determinar uma ampliação da decisão de facto.

E quanto a Coimas/OT.AT/ Custas a recorrente pura e simplesmente nada alega.

Relativamente ao IRC a recorrente alega que a AT procedeu a liquidações oficiosas de IRC nos anos de 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020 nos valores de, respectivamente, € 279.980,45, € 285.577,12, € 285.111,50, € 284.070,06 e € 280.377,86; mais alega que em todos os referidos anos teve “prejuízo” pelo que o valor devido a título de IRC é € 0,00, conforme declarações de IRC que apresentou.

Uma empresa apresenta prejuízo quando as suas despesas excedem as suas receitas.

Neste quadro, o “prejuízo” traduz-se numa conclusão que relaciona duas realidades concretas: as despesas de um lado e as receitas do outro.

O que seria convocável como facto seriam as despesas e respectivos valores e as receitas e respectivos valores em cada um dos anos referidos.

Porém, a recorrente nada alegou a esse respeito, pelo que não existem factos concretos convocáveis para uma ampliação da matéria de facto.

E não se invoque o disposto no art.º 11º do CIRE, o qual dispõe que no processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes.

Como decorre da sua letra, o mesmo só se aplica ao processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência (cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE Anotado, 3ª edição, pág. 120 e o ac. RL 10/12/2024, 18172/16.0T8LSB-D.L1-1, consultável in www.dgsi.pt/jtrl)), pelo que não se aplica à reclamação de créditos.

Mas mesmo que se considerasse convocável para a ampliação da decisão de facto a invocação da recorrente de que teve prejuízo nos anos a que respeitam as liquidações oficiosas, cabe perguntar se, como exige a alínea c) do n.º 2 do art.º 662º do CPC, existem elementos para proceder a essa ampliação, ou seja, se foi produzida prova demonstrativa daquela alegação.

Neste ponto importa recordar que, nos termos do n.º 3 do art.º 74º da LGT, em caso de determinação da matéria tributável por métodos indirectos (como sucede nas liquidações oficiosas a que se refere a alínea b) do n.º 1 do art.º 90º do CIRC) compete à administração tributária o ónus da prova da verificação dos pressupostos da sua aplicação, cabendo ao sujeito passivo o ónus da prova do excesso na respectiva quantificação.

Destarte, cabe ao sujeito passivo a prova de que o montante liquidado oficiosamente pela AT é excessivo, por nomeadamente, no período que estiver em causa, ter tido prejuízo.

E tal solução conforma-se com as regras gerais de direito probatório aplicáveis em direito civil, como sucede no caso dos autos na medida em que a recorrente, ao alegar que não há lugar à liquidação de IRC relativo aos anos 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020, por em todos eles ter tido prejuízo, está a alegar um facto extintivo do direito da AT, pelo que nos termos do n.º 2 do art.º 342º do CC, recai sobre a mesma o ónus da prova de tal alegação.

De referir que, muito embora se entenda que, apresentada, posteriormente a uma liquidação oficiosa, mas dentro do prazo de caducidade, uma declaração de IRC, cabe à AT, nos termos do art.º 58.º da LGT “realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido”, tal entendimento não pode ser transposto para os presentes autos, uma vez que o mesmo só se aplica no âmbito de um procedimento tributário com intervenção directa da AT, a quem, no referido âmbito, cabe tomar uma decisão, o que não é, manifestamente o caso.

Respondendo agora à questão colocada – se foi ou não produzida prova demonstrativa de que nos anos 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020 a recorrente teve “prejuízo” – impõe-se verificar, desde logo, que a recorrente nem sequer juntou as declarações de IRC relativas aos anos de 2016, 2017 e 2019 que alegadamente entregou à AT e nas quais, alegadamente, está inscrito que nos referidos anos teve prejuízo.

Sempre se dirá que mesmo que as tivesse juntado, não só tais alegadas declarações, por apresentadas tardiamente, não gozam, à luz do art.º 75º, n.º 1 da LGT, de presunção de veracidade e boa fé e não determinam a automática anulação das liquidações oficiosas dos referidos anos, como, nos termos gerais do direito civil, sendo uma declaração do sujeito passivo, aqui parte impugnante, só se provam a elas mesmas, mas não o respectivo conteúdo, pelo que não eram meio de prova idóneo dos prejuízos.

A recorrente arrolou e foi ouvido como testemunha BB, cujo depoimento transcreve no recurso, contabilista da EMP01... desde Maio de 2022, tendo o mesmo referido que nos anos de 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020 a EMP01... teve prejuízos.

Porém, a referida prova testemunhal, desacompanhada, desde logo, das declarações de IRC tardiamente apresentadas (e que a testemunha declarou serem relativas a todos os referidos anos) e desacompanhada de elementos contabilísticos comprovantes, é manifestamente insuficiente para considerar provada a referida alegação.

Expliquemo-nos.

Impende sobre todo o comerciante a obrigação de ter escrituração mercantil efectuada de acordo com a lei (artigo 29.º do Código Comercial, na redacção do DL 76-A/2006, de 29/3).

Acrescente-se que o art.º 40º n.º 1 do C Com dispõe que todo o comerciante é obrigado a arquivar a correspondência emitida e recebida, a sua escrituração mercantil e os documentos a ela relativos, devendo conservar tudo pelo período de 10 anos, sendo que, nos termos do n.º 2 os documentos podem ser arquivados com recurso a meios electrónicos.

Por outro e de forma mais precisa, impende sobre todo o comerciante a obrigação de dispor de contabilidade organizada nos termos do Sistema de Normalização Contabilística, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13/07, como decorre do n.º 1 do artigo 123.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas [CIRC] e do n.º 3 do artigo 17.º do mesmo diploma.

Dispõe o art.º 123º do CIRC (sublinhado nosso):
1 - As sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, as cooperativas, as empresas públicas e as demais entidades que exerçam, a título principal, uma atividade comercial, industrial ou agrícola, com sede ou direção efetiva em território português, bem como as entidades que, embora não tendo sede nem direção efetiva naquele território, aí possuam estabelecimento estável, são obrigadas a dispor de contabilidade organizada nos termos da lei que, além dos requisitos indicados no n.º 3 do artigo 17.º, permita o controlo do lucro tributável.
2 - Na execução da contabilidade deve observar-se em especial o seguinte:
a) Todos os lançamentos devem estar apoiados em documentos justificativos, datados e suscetíveis de serem apresentados sempre que necessário;
b) As operações devem ser registadas cronologicamente, sem emendas ou rasuras, devendo quaisquer erros ser objeto de regularização contabilística logo que descobertos.
3 - Não são permitidos atrasos na execução da contabilidade superiores a 90 dias, contados do último dia do mês a que as operações respeitam.

E o n.º 3 do art.º 17º do CIRC dispõe:
3 - De modo a permitir o apuramento referido no n.º 1, a contabilidade deve:
a) Estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respetivo setor de atividade, sem prejuízo da observância das disposições previstas neste Código;
b) Refletir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo e ser organizada de modo que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se dos das restantes.
c) Estar organizada com recurso a meios informáticos.

De acordo com Luís Brito Correia, in Direito Comercial, Vol. I, pág. 253 e 257, a contabilidade corresponde à compilação, registo, análise e apresentação de informações, em termos monetários, sobre as operações patrimoniais do comerciante/empresa, devendo a sua elaboração ser orientada pelos princípios de clareza e de verdade, implicando o arquivo em pastas próprias, por ordem cronológica, de todos os documentos relativos a actos com expressão patrimonial (compras e vendas, entradas e saídas de caixa, operações bancárias, etc), tudo de forma a permitir que as autoridades públicas verifiquem da regularidade tributária e que os sócios tenham conhecimento da situação patrimonial da empresa, e servindo também para verificar a regularidade da actuação do comerciante, nomeadamente em caso da insolvência, tendo em vista o interesse público.

Em face de tudo o exposto e tendo por base o disposto nos artigos 17º, n.º 3 e 123º, n.º 2 do CIRC, “contabilidade organizada” é aquela que observar as seguintes regras:
i) todas as operações realizadas pelo sujeito passivo são objecto de registo/lançamento informático;
ii) o registo é efectuado de forma cronológica;
iii) os erros de registo são objeto de regularização contabilística logo que descobertos;
iv) o registo das operações não excede 90 dias, contados do último dia do mês a que as operações respeitam;
v) todos os registos estão apoiados em documentos justificativos, datados e suscetíveis de serem apresentados sempre que necessário.

A declaração de IRC é produzida com base na contabilidade da empresa; esta, ou melhor, os registos desta têm de estar apoiados em documentos justificativos; em consequência, o meio idóneo de prova dos eventuais prejuízos em dado exercício são os documentos justificativos.

E tal prova não foi junta pela recorrente.

Destarte e face à prova produzida, não existem elementos para determinar a ampliação da decisão de facto provada.

Mas cabe ir mais longe e perguntar se será caso, então, de anular a decisão.

A resposta a tal questão depende de saber se além da prova testemunhal a aqui recorrente indicou ou requereu outra prova idónea que não foi produzida.

É que, se tal não sucedeu, determinar a ampliação da decisão de facto será um puro e simples acto inútil, cuja prática está proibida pelo art.º 130º do CPC.

E a resposta é negativa

A recorrente (certamente em função da opção plasmada na sua pretensão de que “o referido montante reclamado pela Autoridade Tributária seja RECONHECIDO SOB CONDIÇÃO, no sentido de aguardar por decisão no âmbito do processo de execução”) limitou-se:
- a juntar, como prova documental, a reclamação de créditos do MP no processo n.º 935/18.4T8BGC-C e a impugnação que ali deduziu, a qual deu origem à factualidade provada sob os pontos 1 e 2 da fundamentação de facto da decisão recorrida, sendo no mais irrelevante para os presentes autos;
- a arrolar como testemunha BB, o qual foi ouvido e já supra valorado;
- a pedir o “depoimento de parte” dos administradores da insolvente, de que prescindiu na sessão de julgamento realizada a 30/10/2024.

Mas cabe ainda ir mais longe e perguntar se será caso de ordenar que a 1ª instância faça uso do princípio do inquisitório.

O art.º 411º do CPC, com a impressiva epígrafe de “Principio do inquisitório”, estabelece que incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litigio quanto aos factos de que lhe é licito conhecer.

Esta norma corresponde ao n.º 3 do art.º 265º n.º 3 do CPC na redacção do DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro.

No CPC de 1961 o poder inquisitório do juiz estava consagrado no n.º 3 do art.º 264º do CPC, que tinha o seguinte teor:
“O juiz tem o poder de realizar ou ordenar oficiosamente as diligências que considere necessárias para o apuramento da verdade, quanto aos factos de que lhe é licito conhecer.”

A substituição da expressão o “juiz tem o poder de” pela expressão “incumbe ao juiz“, evidencia uma mudança de paradigma: ali estávamos perante um poder discricionário; agora – desde 1995 - estamos perante um poder-dever.

A expressão “diligências necessárias” constitui um conceito indeterminado a preencher em função do caso concreto.

Como refere no Ac. da RP de 04/06/2013, processo 490/10.3TYVNG-O.P1, consultável in www.dgsi.pt/jtrp “ Só em concreto, isto é, nas concretas circunstâncias da actividade instrutória desenvolvida conforme tempestivamente proposto pelas partes, é que o tribunal poderá considerar a necessidade de outros meios de prova, que se revelem necessários "ao apuramento da verdade e à justa composição do litigio". E isso, poderá até acontecer no decurso da audiência de julgamento, ou até antes, se, na situação concreta, o tribunal entender antecipadamente ser essencial á realização desses objectivos a produção de qualquer meio de prova que as partes não requereram.”

Mas existem alguns elementos por que o juiz se deve guiar.

“Diligências necessárias“ são as indispensáveis, imprescindíveis, para estabelecer ou infirmar a realidade do facto carecido de prova.

Inerente à necessidade está a idoneidade, ou seja, há-de tratar-se de um meio de prova adequado, apropriado para provar ou infirmar o facto carecido de prova.

Por outro lado, o conceito de “diligências necessárias“ é funcionalmente orientado por dois referenciais prospectivos: o apuramento da verdade e a justa composição do litigio, ou seja, ao juiz apenas caberá ordenar as diligências que sejam funcionalmente orientadas ao apuramento da verdade e à justa composição do litigio.

Finalmente, trata-se de um poder-dever que conhece um limite inultrapassável: só pode ter em vista os factos alegados carecidos de prova ou de que o tribunal deva conhecer oficiosamente.

Este poder-dever manifesta-se na requisição de documentos (art. 436.º do CPC), na determinação do depoimento de parte (art. 452.º do CPC), no ordenar de perícia (art.ºs 467º n.º 1, 477º e, no que respeita à segunda perícia, o 487º n.º 2, todos do CPC), na realização de inspecção judicial (art. 490.º do CPC), na determinação de verificação não judicial qualificada (art. 494.º do CPC), na inquirição de testemunha no local da questão (art. 501.º do CPC), ou na inquirição oficiosa de testemunhas (art. 526.º do CPC).

Mas este principio “coexiste com os princípios do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes, de modo que não poderá ser invocado para, de forma automática, superar eventuais falhas de instrução que seja de imputar a alguma das partes, designadamente quanto esteja em causa a apresentação de meios de prova (…)” (cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, in CPC Anotado, 2ª edição, pág. 503, com sublinhado nosso)

Ou seja: o principio do inquisitório não se sobrepõe nem anula os princípios do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes; antes tem de ser compaginado e compatibilizado com eles.

Neste sentido se afirma no Ac. desta RG de 10/07/2019, processo 68/12.7TBCMN-C.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg que:
“O disposto no artigo 411º do CPC não descaracteriza, nem invalida, o princípio base do processo civil que é o do impulso processual, competindo às partes em toda a sua extensão, nomeadamente no tocante à indicação e realização oportuna das diligências probatórias.
Em suma, o exercício do dever de diligenciar pelo apuramento da verdade e justa composição do litígio, não comporta uma amplitude tal que o autorizem a colidir quer com o princípio da legalidade e da tipicidade que comanda toda a tramitação processual, quer com outros princípios fundamentais como o do dispositivo, da auto-responsabilidade das partes e o da preclusão, importando este que, ao longo do processo, as partes estão sujeitas, entre outros ónus, ao de praticar os atos dentro de determinados prazos perentórios.”

E também o Ac. desta RG de 05/11/2020, processo 1228/18.2T8PTL.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg:
Note-se que o princípio do inquisitório, apesar de consubstanciar um poder/dever que impende sobre o tribunal em sede instrutória, não configura a concessão de um direito substantivo de natureza processual que seja conferido às partes e a que o tribunal tenha de corresponder, uma vez que o cumprimento desse poder/dever tem de ser avaliado, delimitado e aplicado tendo em consideração os restantes princípios que continuam vigorantes no CPC, como sejam os princípios do dispositivo, da autorresponsabilidade e da igualdade das partes e da preclusão dos direitos processuais, sem esquecer o dever da imparcialidade do juiz, princípios esses aos quais o juiz vê também a sua atividade subordinada e que, por isso, também tem de dar cabal cumprimento, pelo que o cumprimento do princípio do inquisitório tem de ser necessariamente conjugado com aqueles outros princípios norteadores da lei processual civil.

O principio do dispositivo traduz, não apenas a liberdade de decisão sobre a instauração do processo, a conformação do objecto – causa de pedir e pedido – das partes, e o termo do processo, mas também a liberdade para, dentro dos condicionalismos legais, desde logo nos momentos estipulados na lei de processo, as partes apresentarem ou requererem as provas que tiverem por pertinentes e adequadas à demonstração do direito ou do facto impeditivo, modificativo ou extintivo, sob pena de verem precludido esse direito.

Nesta última perspectiva, essa liberdade traduz o exercício do direito à prova, corolário do direito à tutela jurisdicional efectiva, consagrado no art. 20.º da CRP, “direito fundamental à prova [que] implica que as partes tenham liberdade para demonstrar quaisquer factos, mesmo que não possuam o respetivo ónus da prova, desde que entendam que a sua comprovação diminuirá os seus riscos processuais” (Ac. da RC, de 21.04.2015, processo n.º 124/14.1TBFND-A.C1, in www.dgsi.pt/jtrc).

Constitui regra geral de direito civil que àquele “que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado” (n.º 1 do art.º 342º) e a “prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.” (n.º 2 do normativo citado).

Assim, a iniciativa da prova, o ónus da prova, a responsabilidade pela produção de determinada prova, cabe sempre à parte a quem aproveita o facto dela objecto, sob pena de não vir a obter uma decisão que lhe seja favorável, uma vez que o juiz julga secundum allegata et probata (art. 346.º do CC e art. 414.º do CPC).

O principio da autorresponsabilidade foi formulado por Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil. Coimbra Editora,1979, pág. 378, do seguinte modo (sublinhado nosso):
«As partes é que conduzem o processo por sua conta e risco. Elas é que têm de deduzir e fazer valer os meios de ataque e de defesa que lhes correspondam (incluindo as provas), suportando uma decisão adversa, caso omitam algum. A negligência ou inépcia das partes redunda inevitavelmente em prejuízo delas porque não pode ser suprida pela iniciativa e actividade do juiz. É patente a conexão deste princípio com o dispositivo»

Para Castro Mendes, «Estreitamente ligado ao princípio dispositivo está o da auto-responsabilidade das partes. Na medida em que o juiz está vinculado às alegações concordes ou incontestadas, ou a ausência de alegações, das partes, são estas que são responsáveis pelo resultado probatório e pelo conteúdo da decisão» (Do Conceito de Prova em Processo Civil. Edições Ática, 1961, pág. 162).

E, incisivamente, Lopes do Rego in Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, I, 2ª edição, 2004, pág. 533 (sublinhado nosso): “O exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal pressupõe que as partes cumpriram minimamente o ónus que sobre elas prioritariamente recai de indicarem tempestivamente as provas de que pretendem socorrer-se para demonstrarem os factos cujo ónus probatório lhes assiste - não podendo, naturalmente, configurar-se como uma forma de suprimento oficioso de comportamentos grosseira ou indesculpavelmente negligentes das partes. ”.

Também a jurisprudência se tem pronunciado sobre a compatibilização do princípio do inquisitório com o princípio da autorresponsabilidade das partes.

Assim o Ac. desta RG, de 20.03.2018, processo 14/15.6T8VRL-C.G1:
“Esta amplitude de poderes/deveres, no entanto, não significa que o juiz tenha a exclusiva responsabilidade pelo desfecho da causa. Associada a ela está também a responsabilidade das partes, sobre as quais a lei faz recair ónus, inclusive no domínio probatório, que se repercutem em vantagens ou desvantagens para as mesmas e que, por isso, aquelas têm interesse direto em cumprir».

E o Ac. do STJ de 18/10/2918, processo 1295/11.0TBMCN.P1.S2, consultável in www.dgsi.pt/jstj, considerando que não resultava das vicissitudes da tramitação dos autos “qualquer outro elemento probatório que os autores – sobre quem impendia, sob pena de preclusão, o ónus de apresentar até certo momento processual as provas disponíveis – não pudessem e devessem ter carreado para os autos “, ponderou que a “entender-se de outro modo, estava descoberta a forma de, por esta via, se colmatarem insuficiências e falhas cometidas pelas partes na instrução do processo.”

E no Ac. da RP de 23/04/2020, processo 6775/19.6T8PRT-A.P1, consultável in www.dgsi.pt/jtrp onde se afirma:
A atividade que o juiz desenvolve no exercício dos poderes conferidos pelo citado art.º 411º há de ter em mira a prevalência da verdade material sobre uma verdade meramente formal, e a justa composição do litígio, mas não pode deixar de ter presente os ónus que a lei especialmente impõe às partes, o que se torna evidente nas situações em que seria uma ofensa a estes imperativos que o juiz oficiosamente determinasse a realização de meios de prova que a parte, a quem incumbia a sua apresentação, não o tivesse feito nas condições em que o deveria ter efetuado.
(…)
O dever de oferecer os meios de prova de que dispõem, nos respetivos articulados, ou seja, no ato em que cada uma das partes desenvolve a sua argumentação e formula a sua pretensão, tem razões óbvias: traz coerência, inteligibilidade e sustentabilidade à argumentação, e permite à parte contrária avaliar melhor a sua consistência e viabilidade, assim como a necessidade e a medida da sua oposição, no exercício do contraditório.
(…)
O princípio do inquisitório não impõe ao tribunal o dever de acolher toda e qualquer pretensão instrutória de uma das partes em qualquer momento e condição formulada, e menos ainda que, oficiosamente, sob a invocação da relevância dos meios que aponta, lhe faculte a produção de qualquer prova que tempestivamente podia e devia ter oferecido e deixou de requerer, prejudicando com isso o regime especificamente prescrito para esse efeito e, em igualdade, para ambas as partes.”

E Nuno Lemos Jorge, in Os Poderes Inquisitórios do Juiz: Alguns problemas, Julgar n.º 3, 2007, pág. 70 refere:
“Se foi a própria parte a negligenciar os seus deveres de proposição da prova, não seria razoável impor ao tribunal o suprimento dessa falta.”

Do exposto pode extrair-se o seguinte.

Cabe às partes a iniciativa da prova, apresentando e requerendo, nos momentos estipulados na lei de processo, as provas que tenham por pertinentes, sob pena de verem precludido o direito de o fazer.

Ultrapassados que estejam os momentos processuais para as partes apresentarem ou requererem provas ou alterar os seus requerimentos probatórios, o principio do inquisitório não impõe ao juiz que defira, automaticamente, a “sugestão” de uma parte para ser realizada toda e qualquer diligência de prova, sob pena de se esvaziar e perder sentido o ónus de apresentar e requerer a prova nos momentos processuais determinados na lei.

O principio do inquisitório não pode ser instrumentalizado pelas partes para contornar a preclusão dos direitos processuais à proposição da prova ou às limitações probatórias, emergente da sua falta de diligência, sob pena de se subverterem os princípios da igualdade substancial das partes (art.º 4º do CPC), do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes, com os quais aquele coexiste e que não anula nem invalida.

No caso e como já referido, o n.º 2 do art.º 25º do CIRE, aplicável ex vi n.º 1 do art.º 134º, determina que o impugnante deve oferecer, com a impugnação, todos os meios de prova de que disponha.

Não tendo a parte cumprido o ónus de apresentação de prova idónea no momento adequado (certamente em função da opção plasmada na sua pretensão de que o crédito “reclamado pela Autoridade Tributária seja RECONHECIDO SOB CONDIÇÃO, no sentido de aguardar por decisão no âmbito do processo de execução”) e não podendo o principio do inquisitório ser instrumentalizado pelas partes para contornar a preclusão dos direitos processuais à proposição da prova, emergente da sua falta de diligência, sob pena de se subverterem os princípios da igualdade substancial das partes (art.º 4º do CPC), do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes, com os quais aquele coexiste e que não anula nem invalida, não se impõe ao tribunal o suprimento dessa falta.

Em face de tudo o exposto e em síntese:
- mantém-se a decisão recorrida quando julgou que o crédito reclamado pela AT não é um crédito sob condição suspensiva;
- não existem elementos para determinar, nesta instância, a ampliação da decisão de facto, nem elementos que permitam a anulação da decisão de facto, pelo que, com fundamentos acrescidos, a decisão recorrida deve manter-se e a apelação ser julgada improcedente.

4.3. Custas
Dispõe o art.º 527º, n.º 1 do CPC que:
1 - A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.
2 - Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.

A recorrente ficou totalmente vencida, pelo que é integralmente responsável pelas custas.

5. Decisão

Termos em que acordam os Juízes da 1ª secção da Relação de Guimarães em, por fundamentos acrescidos, manter a decisão recorrida e em consequência julgar a apelação improcedente.

Custas da apelação pela recorrente.

Notifique-se
*
Guimarães, 05/06/2025
(O presente acórdão é assinado electronicamente)

Relator: José Carlos Pereira Duarte
Adjuntos: Alexandra Maria Viana Parente Lopes
Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício