Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1512/21.8T8FNC.G1
Relator: RAQUEL BAPTISTA TAVARES
Descritores: FIXAÇÃO JUDICIAL DE PRAZO
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O processo especial de fixação judicial do prazo, a que se reportam os artigos 1026º e 1027º, ambos do Código de Processo Civil, é um processo de jurisdição voluntária que visa unicamente a fixação de prazo, não cabendo no seu âmbito a discussão de questões de cariz contencioso atinentes à obrigação, designadamente relativas ao conteúdo, interpretação e exigibilidade.
II - O pedido formulado na ação é o da fixação do prazo e a causa de pedir a inexistência do mesmo ou o não acordo entre devedor o credor quanto ao momento do vencimento da obrigação.
III - Não se justifica, por inútil, a fixação judicial do prazo para cumprimento de obrigação a quem não reconheça a sua existência e se recuse, por consequência, a cumpri-la.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

M. L. intentou a presente ação especial de fixação judicial do prazo contra A. B. peticionando a fixação do prazo de 30 dias para a realização da escritura pública de compra e venda decorrente do invocado exercício de um direito de opção de compra contratado no âmbito do contrato de arrendamento celebrado entre as partes.
Regularmente citada a Ré invocou, entre o mais, a inutilidade da lide e a caducidade do direito invocado pela Autora, alegando inexistir qualquer obrigação e afirmando não estar disponível para outorgar a pretendida escritura de compra e venda, considerando, por isso, inútil a fixação de prazo para a mesma.
A Autora respondeu defendendo inexistir a invocada inutilidade pois apenas depois de fixado o prazo pode ser aferido o incumprimento definitivo da Ré, e apenas após tal incumprimento, numa eventual ação comum, pode ser discutida a obrigação.
Foi proferida sentença que julgou verificada a exceção dilatória de inutilidade da lide, e, em consequência, absolveu a Ré da presente instância.

Inconformada veio a Autora interpor recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

“a) O Tribunal a quo andou mal ao julgar procedente a exceção de inutilidade da lide.
b) De facto, a Recorrida não negou que no contrato celebrado não foi fixado um prazo para celebração da escritura pública.
c) A Recorrida alega, apenas e só, em sede de contestação, que atenta a (alegada) caducidade do exercício do direito de opção de compra, por parte da Recorrida, não está disponível para outorgar a escritura pública.
d) Tal alegação, em sede de contestação, não pode assumir a natureza de recusa de cumprimento.
e) Nesta data, a Recorrida, atenta a falta de estipulação de prazo para outorga da escritura pública não se encontra em mora; pelo que, não incumpriu definitivamente o contrato.
f) Atenta a falta de incumprimento definitivo do contrato, a Recorrente não pode socorrer-se de uma ação comum, na qual seria (eventualmente) alegada, discutida e decidia a questão substantiva da caducidade do direito de opção.
g) A jurisprudência recente dos Tribunais Superiores é unânime em considerar que no processo especial de fixação judicial do prazo não se discutem quaisquer questões substantivas relativas ao negócio cujo prazo se pretende fixar nomeadamente quanto à indagação da validade, modificação ou resolução do mesmo”.
Pugna a Recorrente pela procedência do recurso e pela anulação da sentença recorrida e sua substituição por outra que julgue totalmente improcedente a invocada exceção de inutilidade da lide e determine o prosseguimento da ação.
Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre apreciar e decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do Código de Processo Civil, de ora em diante designado apenas por CPC).
A questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo Recorrente é apenas a de saber se deve ser julgada verificada a inutilidade superveniente da lide ou se deve a ação prosseguir para ser fixado um prazo para cumprimento da obrigação.
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III. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Da inutilidade superveniente da lide

As incidências fáctico-processuais a considerar são as descritas no relatório e no despacho recorrido.

Relembra-se aqui o teor deste último:

“- DA INUTILIDADE DA PRESENTE LIDE
A autora intentou a presente ação especial de fixação judicial de prazo, peticionando afixação do prazo de 30 dias para a realização da escritura pública de compra e venda decorrente do invocado exercício de um direito de opção de compra contratado no âmbito do contrato de arrendamento celebrado entre as partes.
Em sede de contestação, a ré invocou, entre o mais, a exceção de inutilidade da presente lide, alegando a caducidade do direito invocado pela autora, inexistindo, portanto, qualquer obrigação. Pelo que afirma não estar disponível para outorgar a pretendida escritura de compra e venda, sendo, assim, inútil a fixação de prazo para a mesma.
Em resposta, a autora defendeu inexistir a invocada inutilidade, defendendo que apenas depois de fixado o prazo pode ser aferido o incumprimento definitivo da ré e que apenas após tal incumprimento, numa eventual ação comum, pode ser discutida a obrigação.
Cumpre, pois, apreciar se se verifica a invocada exceção de inutilidade da lide.
O processo de fixação judicial de prazo configura um processo especial que se encontra previsto nos artigos 1026.º e 1027.º do CPC.
Preceitua o artigo 1026.º do CPC que “quando incumba ao tribunal a fixação do prazo para o exercício de um direito ou o cumprimento de um dever, o requerente, depois de justificar o pedido de fixação, indica o prazo que repute adequado”.
A finalidade deste processo é, pois, a fixação de um prazo adequado para que possa julgar-se vencida a obrigação contratualmente assumida.
Nesta medida, no âmbito do processo especial em apreço, a causa de pedir traduz a inexistência de prazo ou a inexistência de acordo entre o devedor e o credor no que respeita ao vencimento da obrigação.
Tratando-se de um processo de jurisdição voluntária – sujeito, por isso, a uma tramitação simples e rápida, conforme decorre do preceituado nos artigos 292.º e seguintes e 986.º e seguintes, todos do CPC - a simplicidade do processado, que caracteriza estes processos, não se compagina com a discussão de outras questões de natureza substantiva, que acarretariam morosidade e complexidade acrescidas.
Está, assim, excluída a discussão de outras questões de “natureza contenciosa” relacionadas com a obrigação em que se baseia o pedido da fixação do prazo, nomeadamente, relativas à manutenção ou extinção da mesma.
Com efeito, como se destaca, entre outros, no acórdão do STJ de 14.11.2006, a jurisprudência constante do STJ vai "no sentido de que o processo de fixação judicial de prazo não comporta a discussão de questões de natureza contenciosa - inexistência ou nulidade da obrigação, incumprimento definitivo, resolução, etc - pois tudo isso são problemas a resolver no quadro de uma ação comum, insuscetível de confusão com o presente processo especial, de cariz menos formal e mais expedito” (disponível em www.dgsi.pt).
São requisitos de procedência da pretensão de fixação judicial de prazo a invocação de uma situação passível de gerar uma obrigação e a inexistência de prazo legal ou contratualmente definido.
Revertendo ao caso concreto, analisando o teor dos articulados, verifica-se que a ré nega a existência de qualquer obrigação, em face da sua caducidade, e manifesta expressamente que não irá celebrar a escritura para cuja celebração a autora pretende a fixação de prazo.
Coloca-se, assim, a questão de saber se, atenta a posição assumida pela ré em sede de contestação, rejeitando a existência da obrigação, se mostra justificada a fixação de tal prazo.
Tem-se entendido que “não se justifica, por ser manifestamente inútil, a fixação judicial de prazo para o cumprimento de obrigação a quem não reconheça a sua existência e se recuse, por consequência, a cumpri-la” (cfr., entre outros, acórdão da Relação de Évora de 25.01.2018, disponível em www.dgsi.pt).
Nas esclarecedoras palavras da Relação do Porto, “a ação especial para fixação judicial de prazo pressupõe a existência de uma obrigação indiscutível”, pelo que “contestada a existência da obrigação deve a ação ser julgada improcedente” (em acórdão de 31.05.2011, disponível em www.dgsi.pt).
Ora, pressupondo a ação de fixação judicial do prazo a ausência de litígio sobre a existência, validade ou exigibilidade da obrigação e destinando-se unicamente a fixar o prazo de cumprimento que ficou omisso para que a essa obrigação deixe de faltar tal requisito, afigura-se evidente que no caso vertente tais pressupostos não se verificam.
Não assiste razão à autora quando afirma que apenas depois de fixado o prazo pode ser aferido o incumprimento definitivo da ré, pois que, em face do teor da contestação, já se mostra expressamente manifestado o incumprimento da eventual obrigação, sendo irrelevante a fixação de prazo para constituição da ré em mora.
De facto, não se antevê qualquer efeito útil na fixação de prazo sabendo-se antecipadamente que não vai ser cumprido. Reconduzir-se-ia a uma inutilidade jurídica, sendo certo que as decisões judiciais se destinam a produzir efeitos jurídicos na esfera das partes
É, assim, manifesta a inutilidade da presente lide.
A inutilidade da lide constitui uma exceção dilatória - porquanto radica na falta de um pressuposto processual (cfr. artigo 576.º, n.º 2, do CPC) -, a qual é de conhecimento oficioso, sendo aprecia da em sede de despacho saneador, caso o não tenha sido em momento anterior ou na sentença (cfr. artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, 578.º, a contrario, e 595.º, n.º 1, alínea a), todos do CPC).
Em consequência, nos termos do disposto no artigo 278.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil, declara-se extinta a presente instância por inutilidade da lide.
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Em conformidade e decorrência do que vem expendido:

a) Julga-se verificada a exceção dilatória de inutilidade da lide, e, em consequência, absolve-se a ré da presente instância;
b) Condena-se a autora nas custas da ação (cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Registe e notifique”.
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A Recorrente veio interpor o presente recurso por se não conformar com a decisão proferida pelo tribunal a quo que julgou verificada a inutilidade superveniente da lide.
Foi entendimento do tribunal a quo que tendo a Ré, em sede de contestação, rejeitado a existência da obrigação e assumido não ir cumprir, não se mostra justificada a fixação do prazo por ser manifestamente inútil a fixação judicial de prazo para o cumprimento de obrigação a quem não reconheça a sua existência e se recuse, por consequência, a cumpri-la; entendeu ainda não assistir razão à Autora quando afirma que apenas depois de fixado o prazo pode ser aferido o incumprimento definitivo da Ré uma vez que, em face do teor da contestação, já se mostra expressamente manifestado o incumprimento da eventual obrigação, sendo irrelevante a fixação de prazo para constituição da Ré em mora.
É contra este entendimento que se insurge a Autora/Recorrente sustentando que a Recorrida apenas alegou, em sede de contestação, que não está disponível para outorgar a escritura pública, não podendo tal alegação assumir a natureza de recusa de cumprimento e que, atenta a falta de estipulação de prazo para outorga da escritura pública, não se encontra em mora, não se podendo afirmar que incumpriu definitivamente o contrato.
A questão que se coloca nos presentes autos é, por isso e tal como já delimitado, apenas a de saber se deve ser julgada verificada a inutilidade superveniente da lide, tal como decidido pelo tribunal a quo, ou se deve a ação prosseguir para ser fixado um prazo para cumprimento da obrigação, como pretende a Recorrente.
Vejamos.
Dispõe o artigo 1026º do Código de Processo Civil (respeitante ao processo especial de fixação judicial do prazo, inserido no âmbito dos designados processos de jurisdição voluntária) que “quando incumba ao tribunal a fixação do prazo para o exercício de um direito ou o cumprimento de um dever, o requerente, depois de justificar o pedido de fixação, indica o prazo que repute adequado”.
A parte contrária é citada para responder, sendo que, na falta de resposta, é fixado o prazo proposto pelo requerente ou aquele que o juiz considerar razoável, ou, havendo resposta, o juiz decide, depois de efetuadas as diligências probatórias tidas por necessárias (artigo 1027º n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil).
Tal como se afirma na decisão recorrida a finalidade deste processo especial é a fixação judicial de um prazo, quando o credor e o devedor não cheguem a acordo, exorbitando do seu âmbito ou objeto a discussão sobre a existência, validade, conteúdo, exigibilidade ou eficácia do direito correspondente, questões a resolver em ação comum, estando apenas em causa no processo especial a apreciação e decisão da questão da razoabilidade do prazo.
A causa de pedir desta ação especial é efetivamente a inexistência ou a falta de acordo das partes quanto ao prazo de cumprimento da obrigação e o pedido é a fixação de prazo, tal como decorre, aliás, do próprio artigo 1026º.
O processo especial de fixação judicial do prazo tem, por isso, como finalidade ou objeto, a fixação de um prazo adequado e razoável, necessário ao cumprimento de uma obrigação.
Resulta “claro que neste processo ou ação especial que vimos analisando o seu único escopo se traduz na fixação de um prazo adequado a uma obrigação sem prazo” (v. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26 de outubro de 2004, Relator Isaías Pádua; neste sentido podemos ainda citar, entre muitos outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 06 de novembro de 2014, Relator Rui Correia Moura e de 24 de outubro de 2017, Relatora Cristina Coelho, do Tribunal da Relação de Évora de 15 de dezembro de 2016, Relator Mata Ribeiro e de 25 de janeiro de 2018, Relator Tomé Ramião, do Tribunal da Relação de Coimbra de 01 de março de 2016, Relator Carlos Moreira e de 17 de março de 2020, Relatora Ana Vieira, do Tribunal da Relação do Porto de 21 de janeiro de 2019, Relator Carlos Querido, de 11 de abril de 2019, Relator Aristides Rodrigues de Almeida e de 27 de abril de 2021, Relator José Igreja Matos, e do Tribunal da Relação de Guimarães de 20 de novembro de 2002, Relatora Rosa Tching e de 30 de novembro de 2017, Relatora Sandra Melo, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Este processo especial tem, por isso, como pressuposto que ao tribunal incumba a fixação de um prazo, aplicando-se às situações previstas no n.º 2 do artigo 777º do Código Civil, quando se torne necessário o estabelecimento de um prazo quer pela própria natureza da prestação, quer por virtude das circunstâncias que a determinaram, quer por força dos usos, e as partes não acordem na sua fixação, podendo também aplicar-se, aos casos previstos nos artigos 411º (fixação de prazo em caso de contrato promessa unilateral), 897º, n.º 2 (fixação de prazo à obrigação de convalidação) e 907º, n.º 2 (fixação de prazo para a obrigação de expurgação dos ónus ou limitações), todos do Código Civil (v. António Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código Civil Anotado, Vol. II, Almedina, 2020, p. 469).
Com a fixação do prazo o tribunal não decide da existência, validade, exigibilidade ou obrigação de o cumprir pois neste processo especial não está em causa a discussão de questões substantivas relativas ao negócio cujo prazo se pretende fixar (designadamente de vícios referentes à inexistência, nulidade, prescrição ou caducidade da obrigação) as quais devem ser decididas no âmbito da ação comum.
Neste sentido se pronunciou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de novembro de 2006 (Relator Nuno Cameira, disponível em www.dgsi.pt), onde se considera que “[...] o processo de fixação judicial de prazo não comporta a discussão de questões de natureza contenciosa - inexistência ou nulidade da obrigação, incumprimento definitivo, resolução, etc - pois tudo isso são problemas a resolver no quadro de uma ação comum, insuscetível de confusão com o presente processo especial, de cariz menos formal e mais expedito. Assim, por exemplo, no acórdão de 6.5.03 (Revista nº 03 A230) disse-se, textualmente, que não cabe na linearidade desta ação discutir a existência ou inexistência da obrigação, a sua nulidade ou extinção, validade ou ineficácia, e que nenhum tipo de indagação se justifica, para além daquele que respeite à fixação do prazo e adequação do mesmo”.
No caso dos autos a Autora/Recorrente veio peticionar que fosse fixado um prazo de 30 dias para a realização da escritura pública de compra e venda decorrente de um invocado exercício de direito de opção de compra acordado no âmbito do contrato de arrendamento celebrado entre as partes.
A Ré, em sede de contestação veio invocar a caducidade do direito invocado pela Autora e, consequentemente, a inexistência de qualquer obrigação da sua parte, afirmando expressamente não estar disponível para outorgar a escritura de compra e venda, considerando inútil a fixação de prazo para a mesma.
Ora, o fim ulterior visado pelo requerente da ação especial de fixação judicial do prazo será, uma vez fixado o prazo, o de permitir que possa contar com uma data limite para o cumprimento da obrigação pelo requerido, indispensável, desde logo, para a determinação da mora (v. o citado Acórdão da Relação do Porto de 21/04/2021).
Sustenta a Recorrente que a Recorrida, atenta a falta de estipulação de prazo para outorga da escritura pública não se encontra em mora, pelo que, não incumpriu definitivamente o contrato e que, em face dessa falta de incumprimento definitivo, a Recorrente não pode socorrer-se de uma ação comum, na qual seria (eventualmente) alegada, discutida e decidia a questão substantiva da caducidade do direito de opção.
Não entendemos, contudo, que assim seja.
Conforme resulta do disposto no artigo 406° do Código Civil os contratos devem ser pontualmente cumpridos, sendo que o devedor só cumpre a obrigação, quando realiza a prestação a que está vinculado (cfr. artigo 762º do mesmo diploma).
Considerando o regime geral previsto para o incumprimento dos contratos (artigos 801º e seguintes do Código Civil) há uma distinção capital a estabelecer, consoante a prestação se atrasa ou se torna definitivamente impossível.
Na primeira hipótese, de mora, chegado o vencimento o devedor não cumpre mas a prestação poderá ainda ser realizada com interesse para o credor, podendo vir a executá-la mais tarde (a prestação continua a ser materialmente possível e o credor continua a ter interesse nela); já na segunda hipótese, a prestação impossibilita-se de vez, tornando-se, em definitivo, irrealizável, seja quando a prestação, sendo inicialmente realizável, se impossibilita subsequentemente, em termos definitivos, ficando o devedor impedido de cumprir a prestação, seja nos casos em que a prestação, em consequência do retardamento, deixa de ter utilidade para o credor.
De acordo com o disposto no artigo 801, n.ºs 1 e 2 do Código Civil tornando-se impossível a prestação por causa imputável ao devedor e tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor pode resolver o contrato.
O caráter definitivo do incumprimento da obrigação ocorre quando: a) em consequência de mora do devedor, o credor perder o interesse na prestação; b) se, estando o devedor em mora, o credor lhe fixar um prazo razoável para cumprir e, apesar disso, aquele não realizar a prestação em falta; c) se o devedor declarar inequívoca e perentoriamente ao credor que não cumprirá a obrigação.
Pode assim afirmar-se que o incumprimento definitivo abrange os casos de impossibilidade da prestação, quer quando esta se torna absolutamente inviável, quando a probabilidade da sua realização se torna extremamente improvável (por não depender exclusivamente da vontade do devedor) ou mesmo quando o devedor manifesta perante o credor o propósito de não cumprir.
O incumprimento definitivo, na falta de cláusula resolutiva ou prazo essencial, traduz-se na perda do interesse objetivo do credor, em consequência da mora do devedor, na recusa deste em cumprir a obrigação, ou no decurso do prazo admonitório, situações que permitem à contraparte o direito de resolver o contrato (cfr. artigo 808º do Código Civil; v. ainda Acórdão da Relação do Porto de 18/12/2018, Processo n.º 4070/17.4T8VNG.P1, disponível em www.dgsi.pt).
Assim, entendendo-se como incumprimento definitivo a recusa de cumprimento, nela se incluindo não só a declaração de não querer cumprir, como, em geral, todo o comportamento do devedor suscetível de indicar que não quer ou não pode cumprir, é de concluir que para a Recorrente poder instaurar a ação de processo comum, na qual será eventualmente discutida e decidida a questão substantiva da caducidade do direito de opção, não carece da fixação de prazo para que a Ré incorra em mora e nem de transformar a mora em incumprimento definitivo (designadamente através da interpelação admonitória) pois a própria Ré veio afirmar que não irá outorgar a escritura pública, não estando para tal disponível.
A questão que aqui se coloca é exatamente a de saber se perante a posição da Ré, que negou a existência da obrigação (por ter caducado o direito da Autora) e manifestou a intenção de recusa em cumpri-la, por não ir realizar a escritura pública, ainda assim se justifica a fixação de prazo para cumprimento da obrigação, remetendo para a posterior ação comum de incumprimento o conhecimento da apreciação efetiva da existência da obrigação.
Ora, a resposta a esta questão terá de ser necessariamente negativa.
Entendemos não se justificar, por ser inútil, a fixação judicial de prazo para o cumprimento de obrigação a quem não reconheça a sua existência e se recuse, por consequência, a cumpri-la, pois nestes casos a estipulação de tal prazo não é essencial para eventual apreciação de uma situação de mora e subsequente incumprimento definitivo da obrigação, caso esta venha a ser julgada existente e válida, visto que o devedor considera, desde logo, não ter qualquer intenção em cumprir a obrigação, assumindo, assim, o incumprimento definitivo.
Neste sentido se pronunciam os já citados Acórdãos da Relação de Évora de 25 de janeiro de 2018 e da Relação de Lisboa de 24 de outubro de 2017 (onde se considera que “[N]egando a R. a existência da obrigação, recusa-se, consequentemente, a cumpri-la [5], pelo que é, em todo o caso, também, defensável o entendimento de que não se justifica a fixação judicial de prazo para cumprimento da obrigação, a quem antecipadamente declarou não a cumprir”, e onde se citam os Acórdãos da Relação de Lisboa de 29/03/1984, CJ, Tomo II, pág. 119, da Relação do Porto de 16/02/1989, CJ, Tomo I, pág. 194); no mesmo sentido podemos ainda citar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de dezembro de 2016 (Relator Oliveira Barros, disponível em www.dgsi.pt) onde se afirma que “[T]em-se, de resto, repetidamente feito notar,- e tal é o que se revela, a todas as luzes, irrecusável -, não se justificar, por inútil, a fixação judicial de prazo para o cumprimento de obrigação a quem não reconheça a sua existência e se recuse, por consequência, a cumpri-la.
Em face do exposto impõe-se concluir que, tendo a Ré negado a existência da obrigação, por entender encontrar-se caduco o direito da Autora, manifestando a intenção de recusa em cumpri-la, por não ir realizar a escritura pública, se mostra efetivamente inútil a fixação judicial do prazo para cumprimento da obrigação.
Não merece, por isso, censura a sentença recorrida que julgou verificada a inutilidade da presente lide, improcedendo integralmente o recurso.
As custas deste recurso são da responsabilidade da Recorrente (artigo 527º do Código de Processo Civil) em face do seu integral decaimento.
***
SUMÁRIO (artigo 663º n.º 7 do Código do Processo Civil):

I - O processo especial de fixação judicial do prazo, a que se reportam os artigos 1026º e 1027º, ambos do Código de Processo Civil, é um processo de jurisdição voluntária que visa unicamente a fixação de prazo, não cabendo no seu âmbito a discussão de questões de cariz contencioso atinentes à obrigação, designadamente relativas ao conteúdo, interpretação e exigibilidade.
II - O pedido formulado na ação é o da fixação do prazo e a causa de pedir a inexistência do mesmo ou o não acordo entre devedor o credor quanto ao momento do vencimento da obrigação.
III - Não se justifica, por inútil, a fixação judicial do prazo para cumprimento de obrigação a quem não reconheça a sua existência e se recuse, por consequência, a cumpri-la.
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IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Guimarães, 26 de maio de 2022
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Raquel Baptista Tavares (Relatora)
Margarida Almeida Fernandes (1ª Adjunta)
Afonso Cabral de Andrade (2º Adjunto)