Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
475/19.4T8AVV.G1
Relator: JOSÉ CARLOS PEREIRA DUARTE
Descritores: ALUGUER
DETERIORAÇÕES NA COISA LOCADA
PRESUNÇÃO DE CULPA
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – O art.º 1044º do CC, deve ser interpretado como contendo uma presunção de culpa do locatário pela deterioração ou perda da coisa locada, interpretação esta em coerência com o disposto no n.º 1 do art.º 799º do CC.
II – Assim, se o bem locado apesentar deteriorações, presume-se, que as mesmas são imputáveis ao locatário.
III - Não se trata, portanto, de uma questão de responsabilidade objectiva ou sequer de nexo de causalidade.
IV - Neste contexto e no que respeita á distribuição do ónus da prova, à luz do disposto no n.º 1 do art.º 342º do CC, incumbe ao locador alegar e provar a perda ou deteriorações da coisa locada, enquanto facto constitutivo do seu direito e à luz do disposto no n.º 2 do art.º 342º do CC, incumbe ao locatório alegar e provar que as mesmas são inerentes a uma prudente utilização, ou provêm de causa que não lhe é imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela por, nomeadamente, serem imputáveis a caso fortuito ou de força maior, facto imputável ao locador ou a terceiro, por constituírem factos impeditivos do direito do A.
Decisão Texto Integral:
Tribunal recorrido: Juízo Local Cível ... - Tribunal Judicial da Comarca ...
Recorrente: B... - Comércio de Bricolage, Lda
Recorrido: AA
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ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

1. Relatório

B... – Comércio de Bricolage, Lda, intentou acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra AA, pedindo fosse condenado a pagar-lhe a quantia de € 7.209,94, acrescida de juros de mora contados desde a citação ate efetivo e integral pagamento.

Alegou para tanto que se dedica à actividade de aluguer de viaturas; celebrou com o R. um contrato de aluguer do veículo que identifica, pelo período de tempo que também indica; aquando do aluguer, o veículo tinha os quilómetros que indica e reunia boas condições de utilização e circulação e não apresentava qualquer dano; o veículo foi entregue ao R. com o depósito de combustível cheio; no dia a seguir ao levantamento do veículo a A. foi contactada pelo R. que informou que o veículo tinha avariado, estava a perder óleo; a A. rebocou o veículo para oficina, onde foi verificado que o mesmo apresentava o filtro do óleo partido, tendo sido necessário colocar as peças que indica; porque apresentava ainda outros danos, o veículo foi deslocado para outra oficina, onde lhe foram colocadas as peças que indica; as referidas intervenções só ocorreram porque o R. não fez um uso prudente, normal e correcto do veículo; o veículo percorreu os quilómetros que indica e o depósito estava na reserva; o veículo tem um sistema de alerta quando o motor apresenta algum problema; quando foi recolhido o veículo apresentava um sinal luminoso de avaria no motor; o R. enquanto condutor também se apercebeu daquele sinal, pelo que deveria ter imobilizado de imediato a viatura, o que não fez; atendendo ao tipo de intervenção mecânica realizada no veículo, o R. fez uma utilização indevida do mesmo  e não prestou atenção ao sinal de bordo; nos termos das condições gerais e particulares do contrato de aluguer o R. é responsável pelos prejuízos que a A. teve de suportar.

O R. contestou por excepção, invocando a ilegitimidade passiva e por impugnação dizendo que não celebrou o contrato de aluguer invocado, em seu nome, mas em nome da sociedade que indica; quando visualizou a luz  no painel de instrumentos parou de imediato a viatura, do que deu conhecimento á A.; a causa da avaria foi a quebra do filtro de óleo; se fosse dado um mau e anormal uso á viatura, esta não necessitaria apenas dos componentes que indica; não existe nexo de causalidade entre a actuação do R. e a avaria.

Invocou ainda a litigância de má fé da A. e deduziu reconvenção.

Foi proferido despacho a convidar o R. a aperfeiçoar o pedido reconvencional, eliminando a confusão entre a sociedade e o respectivo gerente, esclarecendo quem foi, e em que medida, o prejudicado com os factos alegados.

A A. pronunciou-se quanto á excepção de ilegitimidade e litigância de má fé invocadas pelo R.

O R. veio declarar que a reconvenção devia ser considerada não escrita.

Foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a invocada excepção de ilegitimidade passiva, julgou verificados os demais pressupostos processuais, considerou não escrito o pedido reconvencional.

Foi designada data para julgamento, que se realizou, constando da acta que pelos lustres mandatários foi declarado que “consideram assente a seguinte matéria de facto: artigos 2º, 3º, 4º e 5º da petição inicial “.

Foi proferida sentença que decidiu:
Pelo exposto, julgo a presente ação improcedente, por não provada, e, em consequência, decido absolver o Réu AA do pedido.

A A. interpôs recurso, pedindo a revogação da sentença, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª. A matéria elencada nos artigos 15º, 16º, 17º, 28º, 29º, 30º, 31º e 32º da petição inicial deveria, como deverá ser considerada como provada.
2ª. Assim como deveria como deverá ser julgado provado que foi pela utilização desadequada, indevida que o Réu fez do veiculo que a A. se viu obrigada a suportar os danos com as reparações mecânicas a que o veiculo foi submetido.
(…)
28ª- Deverá em consequência da procedência do presente recurso ser o Reu condenado a pagar à A. a quantia de € 4.918,14 (quatro mil novecentos e dezoito euros e catorze cêntimos), acrescida de juros de mora calculados à taxa legal em vigor e contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Contra-alegou o R. dizendo, em síntese, que “…bem andou o Tribunal na apreciação critica da prova e na sua subsunção ao Direito, pelo que nenhuma censura merece a sentença recorrida, requerendo, pois e em consequência que a mesma seja confirmada com as devidas e legais consequências.”

2. Questões a apreciar

O objecto do recurso, é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.

As questões que cumpre apreciar são:
- a matéria elencada nos artigos 15º, 16º, 17º, 28º, 29º, 30º, 31º e 32º da petição inicial deve ser considerada como provada;
- o R. deve ser condenado a pagar á A. a quantia de € 4.918,14 (quatro mil novecentos e dezoito euros e catorze cêntimos), acrescida de juros de mora calculados à taxa legal em vigor e contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.

3. Fundamentação de facto
(…)
*
4. Impugnação da decisão quanto á matéria de facto
4.1. Dos requisitos do art.º 640º do CPC
(…)
4.2. Em concreto
(…)
Estão assim verificados os requisitos para que seja possível apreciar a impugnação da decisão da matéria de facto.

4.3. Da modificabilidade da decisão de facto
(…).

4.4. Da livre apreciação da prova e motivação da decisão de facto
(…)
4.5. Elementos a considerar
(…)
4.6. Em concreto
(…).

4.7. Fundamentação de facto consolidada

4.7.1. Factos provados

1 – A Autora é uma sociedade comercial por quotas, com sede na Zona Industrial ..., lote ...3, ... ..., que se dedica à atividade de mecânica em geral, aluguer de máquinas, equipamentos e viaturas, comércio e aplicação de tintas, vernizes e produtos similares, comércio de materiais de bricolage, de equipamentos sanitários e similares, comércio de máquinas e ferramentas, de lareiras e de recuperadores de calor.
2 - No âmbito das suas funções a A. celebrou com o R., e por solicitação deste, um contrato de aluguer de veículos sem condutor, nos termos das condições gerais e particulares que fazem parte do referido contrato de aluguer.
3 - Assim, a A. alugou ao R., por solicitação deste, um veículo automóvel de marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-RD-.., adiante RD.
4 - Pelo período de dois dias, compreendido entre as 19h00 do dia 09/01/2019 e o dia 10/01/2019.
5 - Tendo o R. tomado conhecimento das condições gerais e particulares do contrato de aluguer em questão.
6 - Aquando do aluguer do RD o mesmo apresentava 45094 quilómetros, reunia as boas condições de utilização e circulação e não apresentava qualquer dano, conforme o R. verificou e declarou aquando da celebração do supra referido contrato de aluguer de veiculo sem condutor.
7 - O veículo RD foi entregue ao R. com o deposito do combustível cheio.
8 - Ainda nos termos do referido contrato ficou acordada uma caução no valor de 1.500,00 euros (mil e quinhentos euros), ficando ainda o locatário, aqui R., responsável pela totalidade do valor dos danos causados ao veículo.
9 - A referida caução foi entregue pelo R. através do cheque número ...43 do Banco 1....
10 - Assim, no dia 09/01/2019 pelas 19h00, o R. procedeu à recolha do RD nas instalações da A.
11 - Inesperadamente, no dia seguinte, pela manhã, a A. é contactada telefonicamente pelo R. que a informa que o RD tinha avariado e que estava parado na A... no sentido ...- Valença.
12 - Mais informando o R. que o mesmo não estava em condições de circular, uma vez que estava a perder óleo.
13 - Ora, face isto não restou alternativa à A. que não fosse chamar um reboque para recolher o RD no local onde o R. o havia deixado.
14 - E levá-lo para a oficina de BB, sita em ..., ..., ..., a fim de ser reparado.
15 - Apresentando 45150 Quilómetros quando no dia seguinte foi recolhido pelo reboque que a A. teve que contratar porque o RD não circulava.
16 - O R. percorreu com o RD 56 quilómetros entre as 19H00 do dia 09/01/2019 e a manha do dia 10/01/2019.
17 - O RD tem um sistema de alerta quando o motor começa a dar sinais de existir algum problema.
18 - Quando foi recolhido o RD apresentava um sinal luminoso no painel de bordo, de varia no motor.
19 - O R. enquanto condutor do RD também se apercebeu da presença daquele sinal luminoso.
20 – A viatura referida no ponto 3 dos factos provados perdeu óleo pelo filtro do óleo, o qual estava quebrado, o que teve como consequência o motor ficar sem lubrificação, sobreaquecer e “agarrar”.
21 - Na sequência do facto referido em 14 e tendo em vista a reparação da viatura, o mecânico BB procedeu à substituição de 16 tuchos hidráulicos, 4 casquilhos e 1 filtro de óleo e colocou 5 litros de óleo de motor;
22 - Pese embora intervenção do mecânico BB, o motor continuou a fazer barulho.
23 - A A. deslocou a viatura da oficina do mecânico BB, para a oficina de CC, onde chegou com o motor a bater, “agarrado”.
24 - Para reparar a referida avaria o mecânico CC procedeu à substituição dos pistões e bronzes e rectificou a cambota, colocou 6,5 l de óleo e 1 filtro de óleo e aplicou mão de obra.
25 - A intervenção do mecânico BB, referida no ponto 21, teve o custo de € 671,34 ( incluindo IVA), que a A. pagou.
26 – A  intervenção do mecânico CC, referida no ponto 24 dos factos provados, teve o seguinte custo: substituição dos pistões e bronzes e rectificação da cambota € 2.591,47 (s/IVA); colocação de 6,5 l de óleo e 1 filtro de óleo, € 97,00 (s/IVA); mão de obra relativa a tais trabalhos, um valor não concretamente apurado, valores que foram pagos.
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4.7.2. Factos não Provados:

a) (Eliminada)
b) (Eliminada)
c) (Eliminada)
d) Aquando da recolha do veículo, o depósito de combustível do RD estava na reserva.
[a sentença não tem alínea e]
f) Assim, para repor o deposito de combustível foi necessário despender a quantia de 51,53 euros, ou seja, 43 litros de combustível.
g) Pelo que, o RD circulou apenas 56 quilómetros e consumiu cerca de 43 litros de combustível, o que, por si só revela que algo andou mal na utilização do RD.
h) O R. ao aperceber-se da presença sinal luminoso no painel de bordo, deveria ter de imediato procedido à imobilização do RD, o que não fez.
i) (Eliminada)
j) Caso o [R.] tivesse respeitado [o sinal luminoso [de [a]varia no motor], os danos no RD não teriam ocorrido.
k) Para reparar a avaria referida no ponto 23, o mecânico CC colocou 11 litros de antigelo, 1 litro de óleo de direcção, 0,5  litro de óleo de travões, com o custo total de €  64,44 ( s/IVA).l) O R. abandonou o RD na auto estrada.
m) Para além das despesas que a A. suportou para colocar o RD em condições normais de circulação, a A. esteve privada do mesmo pelo período compreendido entre o dia 10 de Janeiro de 2019 e o dia 08 de Março de 2019, período no qual aquele RD esteve totalmente imobilizado.
n) O facto de não poder dispor do seu veículo automóvel impôs transtornos e incómodos à A. que viu desorganizado o seu ritmo habitual no que respeita à sua atividade de aluguer de veículos automóveis.
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5. Direito

5.1. Enquadramento jurídico – a locação

O artigo 1022.º do CC define locação como sendo o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição.
E nos termos do disposto no art.º 1023º a locação diz-se arrendamento quando versa sobre coisa imóvel, aluguer quando incide sobre coisa móvel.
           
Do aludido contrato resultam direitos e obrigações para cada uma das partes: o locador tem obrigação de entregar ao locatário o bem imóvel ou móvel, proporcionando-lhe o respectivo gozo, tendo, no entanto, como compensação, o direito de exigir daquele o pagamento da respectiva retribuição; por sua vez, o locatário tem o direito de exigir do locador a entrega do bem imóvel ou móvel e que lhe seja proporcionado o respectiva gozo pelo período de tempo convencionado, tendo, no entanto, como correspectivo, de lhe pagar a retribuição devida por essa utilização - arts. 1031º e 1038º do CC.

Mas também são obrigações do locatário não fazer da coisa uma utilização imprudente (art.º 1038º alínea d) do CC

Além disso, nos termos do art.º 1043º n.º 1 do CC, na falta de convenção, o locatário é obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato e nos termos do n.º 2, presume-se que a coisa foi entregue ao locatário em bom estado de manutenção, quando não exista documento onde as partes tenham descrito o estado dela ao tempo da entrega.
           
E finalmente o artigo 1044.º do CC dispõe:
O locatário responde pela perda ou deteriorações da coisa, não exceptuadas no artigo anterior, salvo se resultarem de causa que lhe não seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela.

Relativamente à interpretação deste último, refere-se no Ac. do STJ de 21/11/2019, processo 4672/16.6T8LRS.L1.S2, consultável in www.dgsi.pt/jstj:

“E sobre o locatário impende também a obrigação primária de manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu – art. 1043º, nº 1.
Daí que possa ter evidentes e imediatos reflexos na vigência do contrato de locação a ocorrência de qualquer circunstância que determine a perda ou a deterioração, total ou parcial, da coisa que é seu objeto, sendo de distinguir diversas situações.
Podem ocorrer deteriorações inerentes a uma utilização prudente da coisa locada, caso em que o locatário não tem de promover a sua recuperação, como resulta da parte final do último preceito citado, cabendo ao locador suportar as consequências desse desgaste.
Já na hipótese de perda ou deteriorações que não possam ser consideradas como resultado de uma utilização prudente, a lei estabelece um regime segundo o qual as mesmas serão suportadas nuns casos pelo locatário, noutros pelo locador.
Assim, lê-se no art. 1044º: “O locatário responde pela perda ou deteriorações da coisa, não excetuadas no artigo anterior, salvo se resultarem de causa que lhe não seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela.”
Não tem sido unívoco, na doutrina, o entendimento acerca do que nesta norma se estatui.
Pires de Lima e Antunes Varela [Código Civil Anotado, Vol. II, 4ª edição, pág. 381] defendem que a responsabilidade do locatário aqui consagrada é objetiva, bastando que o evento danoso lhe seja devido, ainda que sem culpa; e isto porque o locatário utiliza no seu interesse uma coisa que não lhe pertence, sendo de estimular que dela faça um uso prudente.
É ideia, porém, contrariada, como estes autores dão conta, por Pereira Coelho [Direito Civil, Arrendamento, 1977, pág. 156] que defende uma imputabilidade a título de culpa. Também Menezes Cordeiro [Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, 2014, pág. 80], Menezes Leitão [Arrendamento Urbano, 7ª edição, pág. 89], Pinto Furtado [Manual do Arrendamento Urbano, I, 4ª edição, pág. 553] e Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e Caldeira Jorge [Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, 2014, pág. 80] preconizam entendimento no sentido de uma responsabilidade a título de culpa, em todo o caso agravada, por esta, no caso, se presumir.
Consideramos ser este o entendimento preferível, já que, na falta de outra indicação clara, a imputabilidade ao locatário deve ser entendida à luz do conceito que dela dá o CC no art. 488º, que é inequivocamente reportado a uma ideia de censura, e não de mera decorrência objetiva e material do dano.
Aliás, estando-se, como se está, no campo da responsabilidade contratual, só assim se assegura coerência com o princípio básico que enforma o art. 799º, nº 1.
Ademais, vai claramente neste sentido a sugestão dada pelo texto legal que afirma o princípio da responsabilidade do locatário, dele excetuando, todavia, casos configurados como factos impeditivos da aplicabilidade daquele, o que, por aplicação do nº 2 do art. 342º, leva à distribuição do ónus de prova nos termos indicados.
Tem sido esta a linha de entendimento seguida por este STJ, como se vê dos diversos acórdãos mencionados pelos últimos autores que citámos e, ainda, dos acórdãos de 15.2.2001[Relator Cons. Simões Freire, Col. Jur. – STJ, Tomo I, pág. 121], de 26.1.2006[Relator Cons. Duarte Soares, proc. 05B246, www.dgsi.pt] e de 28.2.2008[Relator Cons. Serra Baptista, proc. 08B158, www.dgsi.pt].

Decorre do n.º 1 do art.º 1043º do CC que o locatário está obrigado a restituir o bem locado no estado em que o recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato.

E decorre do disposto no art.º 1044º que o locatário responde pela perda ou deteriorações da coisa, com excepção das que sejam inerentes a uma prudente utilização e das que resultarem de causa que lhe não seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela.

Este normativo vem sendo interpretado pela doutrina maioritária e pela jurisprudência como contendo uma presunção de culpa do locatário pela deterioração ou perda da coisa, interpretação esta em coerência com o disposto no n.º 1 do art.º 799º do CC (o qual dispõe que incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua), ou seja, que o incumprimento do dever de restituir a coisa no estado em que a recebeu (e que se presume em bom estado de manutenção), ou seja, sem deteriorações, incumbe ao locatário
Assim se o bem locado apresentar deteriorações, presume-se, á luz do disposto no art.º 1044º e n.º 1 do art.º 799º, que as mesmas são imputáveis ao locatário.

E compreende-se que assim seja, porque com a entrega da coisa, o domínio de facto sobre a mesma transfere-se para o locatário.

Não está, portanto em causa uma questão de responsabilidade objectiva e muito menos, como parece decorre da motivação de facto da sentença recorrida, de uma questão de nexo de causalidade.

Neste contexto e no que respeita á distribuição do ónus da prova, tendo em consideração o disposto no n.º 1 do art.º 342º do CC, incumbe ao locador alegar e provar as deteriorações, enquanto facto constitutivo do seu direito e à luz do disposto no n.º 2 do art.º 342º do CC, incumbe ao locatário alegar e provar que as mesmas são inerentes a uma prudente utilização, ou provêm de causa que não lhe é imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela por, nomeadamente, serem imputáveis a caso fortuito ou de força maior, facto imputável ao locador ou a terceiro, por constituírem factos impeditivos do direito do A.

E assim se afirma, relativamente ao arrendamento urbano, mas aplicável ao contrato de aluguer, que «ao senhorio cabe a prova da perda ou deterioração da coisa, estando dispensado de demonstrar se as mesmas decorrem de acto do locatário ou de terceiro» enquanto «ao locatário cabe a prova de que a perda ou deterioração não lhe são imputáveis nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela» - cf. Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, in Arrendamento Urbano - Novo Regime Anotado e Legislação Complementar, pág.218.

Neste sentido, já o Ac. desta RG de 29/09/2016, processo 88/14.7TBPCR-A.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg, em cujo sumário consta:  
V - Cabendo ao locador alegar e provar os danos, o ónus da prova de que eles resultam da normal e prudente utilização, ou que as deteriorações resultaram de causa que lhe não é imputável, cabe ao locatário por serem factos impeditivos do direito do locador.

É, pois, tal locatário responsável pelos danos que o bem locado apresentar, salvo se alegar e provar que os mesmos não lhe são imputáveis nem a terceiro a quem tenha permitido a respectiva utilização (artº 1044º do C. Civil).

5.3. Em concreto

Resulta da factualidade provada que:
- a A. exerce, entre outras, a actividade de aluguer de viaturas (ponto 1 dos factos provados);
- no âmbito dessa actividade a A. acordou com o R., ceder-lhe o gozo de  um veículo automóvel de marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-RD-.., sem condiutor (ponto 2 dos factos provados), pelo período de dois dias, compreendido entre as 19h00 do dia 09/01/2019 e o dia 10/01/2019 ( ponto 3 dos factos provados).

Perante esta factualidade, impõe-se concluir que entre a A. e R. foi celebrado um contrato de aluguer, tendo por objecto a viatura identificada.

No decurso do período de aluguer, o veículo locado perdeu óleo (ponto 12 dos factos provados), pelo filtro do óleo, o qual estava quebrado, o que teve como consequência o motor ficar sem lubrificação, sobreaquecer e “agarrar” (ponto 20 dos factos provados).

Tendo em consideração tudo o acima exposto, em sede de enquadramento jurídico e concretamente á luz do disposto no art.º 1044º do n.º 1 do art.º 799º, ambos do CC, presume-se que a perda de óleo, pelo filtro do óleo, o qual estava quebrado, que teve como consequência o motor ficar sem lubrificação, sobreaquecer e “agarrar”, é imputável ao R..

Cabia ao R. ilidir a referida presunção e, assim, alegar e provar que aquela perda de óleo pelo filtro do óleo, o qual estava quebrado, resultou de causa que lhe não é imputável, nem a terceiro a quem tenha permitido a respectiva utilização, o que o mesmo não fez.

Note-se que a alegação do R. de que a avaria resultou da quebra do filtro do óleo e não por causa que lhe seja imputável (art.ºs 26º e 40º da contestação) revela um equívoco na medida em que se a avaria resulta da quebra do filtro do óleo,  juridicamente e à luz do disposto nos art.ºs 1044º e n.º 1 do 799º do CC, presume-se que tal lhe é imputável.

E para ilidir a presunção cabia ao R. alegar e provar factos concretos que permitissem concluir que a quebra do filtro do óleo, que deu origem à perda de lubrificação, a qual, por sua vez, foi causa de o motor “agarrar”, foi causada por um facto fortuito, de força maior ou imputável a terceiro a quem não tenha permitido a utilização do veículo ou até ao locador

Porém, o R. não o fez.

Compulsada a contestação dela não consta um único facto concreto no referido sentido.

E não o tendo feito, é o mesmo responsável pelos danos que o bem locado apresentar: o dano real traduzido no facto de o motor ter ficado “agarrado” e o dano patrimonial consequente traduzido no custo da reparação.

Vejamos então e agora os danos.
A A. pede que o R. seja condenado a pagar a quantia de € 4.918,14.
Este montante corresponde ao somatório das facturas dos mecânicos BB (€ 671,34) e CC ( € 4.247,07).

Está provado que na sequência da deteção da avaria, o veículo foi rebocado para a oficina de BB (ponto 14 dos factos provados).
Na sequência desse facto e tendo em vista a reparação da viatura, o mecânico BB procedeu à substituição de 16 tuchos hidráulicos, 4 casquilhos e 1 filtro de óleo e colocou 5 litros de óleo de motor (ponto 21 dos factos provados), o que teve o custo de € 671,34 ( incluindo IVA), que a A. pagou ( ponto 25 dos factos provados).

Porém, está provado que na sequência da intervenção do mecânico BB, o motor continuou a fazer barulho ( ponto 22 dos factos provados) e que a A. deslocou a viatura da oficina do mecânico BB, para a oficina de CC, onde chegou com o motor a bater, “agarrado” ( ponto 23 dos factos provados) e que, para reparar a avaria, procedeu à substituição dos pistões e bronzes e rectificou a cambota, colocou 6,5 l de óleo e 1 filtro de óleo e aplicou mão de obra ( ponto 24 dos factos provados).

Desta factualidade decorre que a intervenção efectuada pelo mecânico BB não reparou a avaria, pois o veículo chegou á oficina de CC com o a bater, agarrado, ou seja, aquela primeira intervenção não colocou o veículo em condições de funcionamento, ou seja, nas condições em que devia ter sido restituído.

Por isso e na medida em que tudo isto ocorre sem qualquer intervenção do R., o mesmo não é responsável pelo custo da intervenção do mecânico BB.

Não sendo dito em contrário nos autos, a viatura só vem a ficar em condições de funcionamento na sequência da intervenção do mecânico CC.
E neste âmbito o R. é responsável pela mesma que, como decorre do ponto 26 dos factos provados, teve o seguinte custo: substituição dos pistões e bronzes e rectificação da cambota € 2.591,47 (s/IVA); colocação de 6,5 l de óleo e 1 filtro de óleo, € 97,00 (s/IVA); mão de obra relativa a tais trabalhos, um valor não concretamente apurado, valores que foram pagos.

Aos montantes de € 2.591,47 e € 97,00 acresce IVA à taxa legal de 23%, pelo que ao primeiro montante acresce € 596,03 e ao segundo montante acresce € 22,31, tudo num total de € 3.306,81.

A esta quantia acrescem juros de mora á taxa legal dos juros civis desde a citação, a qual ocorreu a 08/11/2019 ( cfr. AR junto a 13/09/2019) (art.ºs 805º n.º 1, 806º n.ºs 1 e 2 do CC), até integral pagamento.

Muito embora tenha ficado provado que a intervenção de do mecânico CC implicou mão de obra, o valor concreto não ficou provado.

Não tendo sido apurado o custo da mão de obra relativamente aos trabalhos de substituição dos pistões e bronzes, rectificação da cambota, colocação de 6,5 l de óleo e 1 filtro de óleo, tem aplicação o disposto no art.º 609º n.º 2 do CPC – não havendo elementos para fixar a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado em incidente de liquidação.

Esta condenação tem como limite o peticionado na acção declarativa.

Tendo em consideração o valor de mão de obra indicado na factura, o limite é de € 700,00.

Sobre a quantia que vier a ser liquidada, acrescem juros de mora á taxa legal dos juros civis, desde a sentença de liquidação até integral pagamento (805º n.º 3, 1ª parte, do CC).

Em face de tudo o exposto, o recurso deve ser julgado procedente e em consequência a sentença recorrida deve ser parcialmente revogada e substituída por outra que julga parcialmente procedente por provada a acção e em consequência deve o R. ser condenados a pagar á A. a quantia de € 3.306,81, acrescida de juros de mora á taxa legal dos juros civis desde 08/11/2019 até integral pagamento e a quantia, a apurar em incidente de liquidação, relativa ao custo da mão de obra aplicada nos trabalhos de substituição dos pistões e bronzes, rectificação da cambota, colocação de 6,5 l de óleo e 1 filtro de óleo, até ao limite de € 700,00, quantia essa acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a sentença de liquidação até integral pagamento, mantendo-se a absolvição do R. em tudo o mais peticionado.

6. Decisão

Termos em que acordam os juízes que compõem a 1ª Secção da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pela A. e em consequência, revogar parcialmente a sentença recorrida, a qual se substitui por outra que julga parcialmente procedente por provada acção e em consequência:

a) condena-se o R. a pagar á A.:
i - a quantia de € 3.306,81, acrescida de juros de mora á taxa legal dos juros civis desde 08/11/2019 até integral pagamento;
ii - a quantia, a apurar em incidente de liquidação, relativa ao custo da mão de obra aplicada nos trabalhos de substituição dos pistões e bronzes, rectificação da cambota, colocação de 6,5 l de óleo e 1 filtro de óleo, até ao limite de € 700,00, quantia essa acrescida de juros de mora à taxa legal vencidos desde a sentença de liquidação até integral pagamento;
b) mantêm-se a absolvição do R. em tudo o mais peticionado.
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Custas da acção e do recurso por A. e R. na proporção do decaimento – art.º 527º n.º 1 do CPC.
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Notifique-se
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Guimarães, 02/03/2023

(O presente acórdão é assinado electronicamente)
 
Relator: José Carlos Pereira Duarte
Adjuntos: Maria Gorete Roxo Pinto Baldaia de Morais
José Fernando Cardoso Amaral