Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2356/08-2
Relator: TOMÉ BRANCO
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
MATÉRIA DE FACTO
DESCAMINHO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/05/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – A acusação deve ser rejeitada se não contiver factos, ou se estes forem insuficientes;
II – Para o efeito da imputação do crime de descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público do art. 355 do Cod. Penal, é conclusiva a alegação na acusação de que o arguido “furtou-se a qualquer contacto, fazendo com que o bem apreendido deixasse de estar à disposição das autoridades judiciais e frustrando, desta forma, os fins que determinaram a sua apreensão”.
III – Com tal redacção não se esclarece o que verdadeiramente o arguido fez ao bem – Vendeu-o? Doou-o? Escondeu-o? Entregou-o a 3º? Destruiu-o? Danificou-o?. Não se sabendo verdadeiramente aquilo que o arguido fez ao bem, também não é possível saber se a sua actuação constitui ou não crime,
Decisão Texto Integral: Acordam, precedendo conferência, na Relação de Guimarães:

I)
Nos autos de inquérito nº 26/05.8PEBRG que correram termos nos serviços do Mº Pº do Tribunal Judicial da comarca de Braga, declarado encerrado o inquérito, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido M... BARAOUI, com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática dos seguintes factos:
“No dia 19/04/2005, no âmbito do inquérito n.° 26/05.8PEBRG da 1ª secção de processos do M°P° de Braga, que correu termos contra o arguido, foi penhorado o seu veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ... -31-00.
O arguido foi então nomeado fiel depositário do referido veículo, com a obrigação de o manter ao seu cuidado e de o entregar sempre que tal lhe fosse exigido, bem como, não podendo com ele circular ou cedê-lo por qualquer forma, sob pena de incorrer na responsabilidade imposta por lei.
Não obstante e a partir dessa data das várias vezes que se tentou contactar o arguido/depositário para diligenciar pelo exame pericial do veículo apreendido, tal mostrou-se inviável na medida em que na morada fornecida pelo arguido nunca o veículo foi localizado.
Ora o arguido bem sabia que estava obrigado, pelas imposições decorrentes do seu cargo e da situação do bem, a mostrar e entregar o veículo quando tal lhe fosse exigido judicialmente, mas apesar disso e sabendo das sanções em que incorria se não cumprisse tais obrigações, furtou-se a qualquer contacto, fazendo com que o bem apreendido deixasse de estar, apesar disso, à disposição das autoridades judiciais e frustrando, desta forma, os fins que determinaram a sua apreensão.
Agiu voluntária e conscientemente com perfeito conhecimento da censurabilidade da sua conduta.
Tais factos foram enquadrados pelo Mº Pº como constituindo «um crime de descaminho p.p. pelo art.° 355° do C.P.».

Distribuídos que foram os autos ao 3º Juízo Criminal, foi então proferido despacho pela Mmº Juíza com o seguinte teor: (transcrição)
“- O tribunal é competente.
- Não há nulidades, ilegitimidades, excepções ou questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
***
O Digno Magistrado do Ministério Público acusou M... BARAOUI da prática de 1 crime de descaminho, p. e p. pelo art. 355°, do Cód. Penal.
Para tanto e em síntese, alegou que no dia 1 9/4/20 Y no âmbito de inquérito que correu termos na 1a secção de processos do M° P° de Braga, foi apreendido (por manifesto lapso refere-se penhorado) ao arguido o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ... -31-00, tendo este sido nomeado fiel depositário do mesmo, com a obrigação de o manter ao seu cuidado e de o entregar sempre que lhe fosse exigido, sob pena de incorrer na responsabilidade imposta pela lei.
Todavia, a partir dessa data e por várias vezes, tentou-se contactar o arguido para diligenciar pelo exame pericial do veículo apreendido, o que se mostrou inviável na medida em que o veículo nunca foi localizado na morada por ele indicada.
Além disso, sabendo que estava obrigado a mostrar e entregar o bem, o arguido furtou-se a qualquer contacto, fazendo com que o bem deixasse de estar à disposição das autoridades, frustrando, desta forma, os fins que determinaram a sua apreensão, agindo de forma voluntária e consciente, com perfeito conhecimento da censurabilidade da sua conduta.
O art. 355°, do Cód. Penal, insere-se no capítulo dos crimes contra a autoridade pública, consagrando que: "Quem destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou, por qualquer forma, subtrair ao poder público a que está sujeito, documento ou outro objecto móvel, bem como coisa que tiver sido arrestada, apreendida ou objecto de providência cautelar, é punido com pena de prisão até 5 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal".
Conforme refere Maia Gonçalves, Código Penal Português, anot., 10ª Ed. - 1996, pág. 907, nota 3 "neste artigo não é a propriedade o bem jurídico que essencialmente se visa proteger; visa-se antes defender o bem jurídico do poder público do Estado, de apreensão e guarda de objectos e documentos, cujo descaminho ou destruição, enquanto sob o poder público se pretende evitar".
E, os elementos típicos previstos são bem específicos: só a destruição, danificação, inutilização ou subtracção ao poder público a que está sujeito, de documento ou outro objecto móvel, bem como de coisa que tiver sido arrestada, apreendida ou objecto de providência cautelar, é que justifica tutela penal.
Trata-se de infracção unicamente punível a título doloso, em qualquer das modalidades previstas no art. 14°, do Cód. Penal.
In casu, cremos que a formulação utilizada na acusação é manifestamente insuficiente para atingir a densificação normativa exigida para a tutela penal.
Na verdade, tudo se reconduz ao facto do veículo nunca ter sido localizado na morada fornecida pelo arguido e da impossibilidade de contacto com este, daí se extraindo que, assim, o bem deixou de estar à disposição das autoridades judiciais.
Cremos que não só a mera dificuldade ou impossibilidade de contacto com o arguido não pode equiparar-se a subtracção como também a vaga referência à falta de localização do veículo também não o permite.
Na verdade, tendo o arguido a obrigação de cuidar do bem e não se referindo qualquer local de depósito deste, é mera presunção considerar-se que o mesmo deveria encontrar-se na morada indicada pelo arguido como sendo a sua residência, aquando da apreensão. Basta ver que o mesmo pode possuir garagem, armazém ou outro local onde o tenha guardado.
Por outro lado, a subtracção pressupõe que o agente retirou o bem do local onde se encontra, dele se apoderando de forma a fazê-lo coisa sua, circunstância que não ressalta expressa ou implicitamente da matéria aludida, visto que apenas se refere que devido à falta de localização e de contacto com o arguido o bem deixou de estar à disposição das autoridades judiciais.
E assim sendo, forçosa é a conclusão de que os factos vertidos na acusação não configuram a prática de qualquer crime, porquanto não se verificam os respectivos elementos típicos.
Aliás, se o cerne da infracção fosse constituído pela mera deslocalização do bem da residência do arguido e a impossibilidade deste aí ser contactado, seria este Tribunal territorialmente incompetente já que tal factualidade se reporta à Rua de S. Mamede, n.° 128, Ribeirão, Vila Nova de Famalicão – v. fls. 17 e identificação do arguido realizada na própria acusação.
Nestes termos e ao abrigo do preceituado no art. 311°, n.°s 2 a) e 3 d), do Cód. Proc. Penal, rejeita-se a acusação deduzida por ser manifestamente infundada. Notifique.
Honorários ao defensor nos termos legais”.
Desse despacho recorreu o Ministério Público, concluindo a sua motivação nos seguintes termos: (transcrição)
«1) Os indícios recolhidos em fase de Inquérito são, salvo melhor opinião, suficientes para remeter os autos à fase seguinte - a de julgamento - porquanto se não trata de indícios inconsistentes ou, de tal forma marginais, que se considerem inidóneos para fazer nascer esta fase.
2) A acusação proferida espelha esses indícios pois descrevem-se com suficiência os factos que constituem o crime imputado ao arguido, não se contrariando os princípios constitucionais de defesa do arguido.
3) Não podia assim a Mm° juiz considerar manifestamente infundada a acusação considerando que a formulação aí utilizada é manifestamente insuficiente para atingir a densificação normativa exigida para a tutela penal.
4) Para além do mais o entendimento jurídico que a Mm° Juiz "a quo" faz do conceito "subtracção" neste particular crime diverge do nosso, entendendo-se que para a perfectibilização do crime previsto no art.° 355° do C.P. basta que o arguido saiba que o bem fica à sua guarda e que pode ser interpelado para o entregar. Quando, ao invés, desaparece, frustra a possibilidade de localização do bem e prejudica o fim a que a sua apreensão se destina, praticando, por isso, o ilícito em análise.
5) O despacho recorrido, ao emitir as opiniões expressas, traduz um pré-julgamento, não de limitando, como é exigido nesta fase, a sanear o processo tendo em consideração o disposto no art.° 311° do C.P.P.
6) Desta sorte deveria a acusação ter sido recebida e designado dia para julgamento.
7) Não o fazendo violou a Mm' Juíz "a quo" o disposto naquele art.° 311° do C.P.P.».
Termina requerendo a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que receba a acusação.

Nesta instância o Exmº Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no qual defende a procedência do recurso.

Foi dado cumprimento ao artº 417º, nº 2 do C.P.P.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Fundamentação
Como é sabido as conclusões da motivação constituem o resumo do pedido e, como tal é o teor de tais conclusões que constitui o âmbito do recurso (artº 412º, nº 1 do C.P.P.).
In casu, a questão fundamental trazida à apreciação desta Relação é a de saber se a acusação contém uma narração de factos susceptível de integrar, ou não, o crime de descaminho imputado ao arguido.
Na hipótese negativa, justifica-se a rejeição da acusação por manifestamente infundada; se se concluir pela hipótese afirmativa, então, há que revogar a decisão recorrida, como pretende o recorrente.
Posta a questão, vejamos.
Do preceituado no artº 311º do C.P.P. resulta que, recebidos os autos no tribunal, sem que tenha havido lugar a instrução, e depois de se apreciar de nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação de mérito, o juiz deverá rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada, não a receber se ela representar uma alteração substancial dos factos nos termos dos artºs 284º, nº 1 e 285º, nº 3 do C.P.P. ou despachar designando dia para julgamento, resolvidas as questões anteriores.
O nº 3 do citado artº 311º do C.P.P., enuncia os casos em que se deve considerar manifestamente infundada a acusação deduzida.
Um desses casos, é precisamente a circunstância de a acusação não conter a narração dos factos.
Será então que, in casu, o libelo acusatório descreve os factos e as circunstâncias que consubstanciam o crime do artº 355º do C. Penal imputado ao arguido M... BARAOUI, como defende o recorrente/Mº Pº?
Pois bem, a resposta a esta questão não pode deixar de ser vincadamente negativa.
Na verdade, é bem evidente que, ao contrário do que sustenta o Exmº magistrado do Mº Pº recorrente, o libelo acusatório omite completamente factualidade da qual se possa extrair a conclusão formulada de que o arguido "furtou-se a qualquer contacto, fazendo com que o bem apreendido deixasse de estar, apesar disso, à disposição das autoridades judiciais e frustrando, desta forma, os fins que determinaram a sua apreensão”.
Ora, como impressivamente se observa na decisão recorrida, “tudo se reconduz ao facto do veículo nunca ter sido localizado na morada fornecida pelo arguido e da impossibilidade de contacto com este, daí se extraindo que, assim, o bem deixou de estar à disposição das autoridades judiciais. Cremos que não só a mera dificuldade ou impossibilidade de contacto com o arguido não pode equiparar-se a subtracção como também a vaga referência à falta de localização do veículo também não o permite”.
Ou seja, verdadeiramente, não se sabe o que é que o arguido fez ao bem. Vendeu-o ? Doou-o ? Escondeu-o ? Entregou-o a 3º ? Destruíu-o? Danificou-o?.
E não se sabendo verdadeiramente aquilo que o arguido fez ao bem, também não é possível saber se a sua actuação constitui ou não crime.
Acresce que a acusação deduzida nos presentes autos omite, igualmente, referência concreta às circunstâncias de tempo que terão rodeado a prática dos factos, sendo certo que tais circunstâncias são decisivas para a apreciação de questões prévias, como a prescrição do procedimento criminal.
Ora, não tendo a acusação fundamento, por ausência de factos que a suportem, as consequências de tal omissão, face ao disposto no artº 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea b), do C.P.P., não podem deixar de ser a rejeição dessa peça processual, por manifestamente infundada.
Submeter o arguido a julgamento, com base no teor da acusação de fls.106-107 constituiria, sem dúvida, uma situação de flagrante injustiça e violência.
Do exposto se conclui, sem necessidade de maiores considerações, que o Tribunal recorrido decidiu bem ao rejeitar a acusação do Mº Pº, por ser manifestamente infundada, uma vez que tal peça processual é de forma clara e evidente desprovida de fundamento, por ausência de factos que a suportem.
Em conclusão, não foram violadas quaisquer normas jurídicas, maxime as que são apontadas pelo recorrente nas suas motivações, não merecendo assim qualquer censura a decisão recorrida.
III)
DECISÃO
Pelo exposto, os Juízes desta Relação acordam em negar provimento ao recurso interposto, confirmando-se inteiramente a douta decisão recorrida.