Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1738/17.9T8VRL.G2
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA
CHOQUE EM CADEIA
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/06/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Num acidente de viação em cadeia, as circunstâncias concretas podem afastar a presunção de primeira aparência de que a causa e a culpa de cada colisão é de atribuir ao condutor do veículo que embate no da sua frente, se as circunstâncias apuradas, à luz, designadamente da teoria da causalidade adequada na sua vertente negativa, convencerem que foi a manobra do primeiro da fila que originou os sucessivos choques daqueles que os seguiam.

2. Peticionando o autor o pagamento do custo orçamentado para reparação da sua viatura mas apurando-se que entretanto deixou de ser o dono do veículo e não modificou o pedido nem a causa de pedir quanto à indemnização concomitante, deve improceder tal pedido, sem que haja violação do princípio do contraditório por o tribunal recorrido ter entendido que deixou de ter legitimidade substantiva para tal exigir.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

O Autor A. M. intentou, em 12-10-2017, no Tribunal de Vila Real, acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra as rés:

1ª – X, COMPANHIA DE SEGUROS, SA; e
2ª – COMPANHIA DE SEGUROS Y PORTUGAL, SA.

Pediu a condenação de ambas a pagarem-lhe:

-a quantia de €77.320,17 (pelo custo da reparação do veículo sinistrado, privação do uso e outros prejuízos), acrescida dos juros de mora vincendos, à taxa de 4% ao ano, contados desde a data da citação;
-as quantias que se vencerem, nomeadamente a título de danos decorrentes da privação do uso do veículo.

Alegou, em síntese, que:

-Em 31-12-2016, ocorreu um embate entre três veículos: a autocaravana, matrícula XS, segura na X, propriedade de A. S. e por este conduzida; a autocaravana, marca Burstner, matrícula JE, segura na W, propriedade do autor e por este conduzida; e a autocaravana marca Peugeot, matrícula DP, segura na Y, propriedade de M. R. e por este conduzida – quando todos seguiam, por essa ordem, na faixa da direita da AE4, no sentido Porto-Vila Real e nas proximidades desta urbe.
-O condutor do XS (que ia à frente), pretendendo deixar aquela via, na saída de Parada de Cunhos/Vila Real Oeste, colocou-se na faixa de abrandamento a tal destinada; quando já depois aí circulava, tendo percebido que se enganou, retomou, de forma abrupta e intempestiva, a faixa de rodagem direita da AE4 (atento o referido sentido), passando a linha contínua e derrubando os pinos de borracha que lá se encontravam, atravessando-se e parando naquela “como se fosse uma parede”, ocupando-a, bem como uma parte da da esquerda.
-Apesar de seguir a uma velocidade não superior a 50 kms/h e de “guardar a distância de segurança” relativamente ao XS, o autor não pode evitar o choque na parte lateral traseira do seu JE, o qual, de seguida, foi embatido, no lado de trás direito, pela frente lateral esquerda do DP, que seguia (atrás de todos) a mais de 100 km/h, sem guardar a “distância de segurança” em relação àquele e que era conduzido sem atenção.
-O JE ficou incapaz de circular, por totalmente destruído, estimando-se a sua reparação no valor de 74.470,10€, que o autor não tem condições económicas para custear; tratava-se de uma autocaravana topo de gama, de 2010, devidamente equipada, utilizada por ele e esposa constantemente em viagens de lazer.
-A W pagou-lhe 38.291,93€ (seguro de danos próprios), pelo que as rés devem pagar-lhe a diferença: 36.178,17€.
-O autor despendeu 184,50€ (reboque) e (até 3-10-2017) 3.382,50€ (parqueamento) e perdeu os óculos (975,00€).
-Pela privação do uso da auto-caravana até àquela data (183 dias), sofreu o autor “prejuízo” de 36.600,00€, correspondente ao aluguer de uma idêntica (200,00€/dia).

Sendo o embate devido à culpa dos condutores do XS e do DP e os danos causados pelos mesmos, são as rés responsáveis solidariamente pela respectiva indemnização.

Em contestação:

-A ré X (seguradora do XS) impugnou parte dos factos, designadamente os relativos à descrita versão do acidente (acrescentando que o condutor desta foi surpreendido com nevoeiro cerrado no local que não permitia avistar a faixa para além de 40 m, por isso, teve de reduzir a velocidade, altura em que foi embatido pelo JE, cujo condutor seguia distraído, a menos de 10 m, e não atentou no trânsito à sua frente, motivo por que não conseguiu parar nem desviar-se, sendo a culpa do embate exclusivamente deste); bem como os respeitantes aos danos (alegando que, face ao valor comercial e ao custo da reparação, esta era excessivamente onerosa, que o autor já foi indemnizado pela sua própria seguradora e que os prejuízos relativos à privação do uso e ao parqueamento a partir daí – Março de 2017 – são da sua própria responsabilidade).

-A ré Y (seguradora do DP) excepcionou, alegando que o autor não é, desde 09-08-2017, proprietário do JE, logo não tem qualquer interesse (e consequentemente legitimidade) na sua reparação, nem quanto aos danos da privação de uso e do aparcamento subsequentes à alienação. Impugnou parte dos factos relativos à dinâmica do acidente, alegando que, mesmo na versão do autor, apenas será responsável pelos danos resultantes da colisão do DP com o JE, produzidos na traseira deste. Impugnou, ainda, também em parte, a factualidade concernente aos danos, dizendo que o valor venal do JE era de 50.000,00€ o do respectivo salvado de 4.000,00€, que a reparação dos estragos na frente do JE foi orçada em 34.991,04€, e, em 30.071,04€, os da traseira, verificando-se “perda total”.

O autor apresentou resposta, impugnando os documentos juntos.

Foi dispensada a audiência prévia, fixado o valor da causa, proferido saneador (no qual se considerou improcedente a alegada excepção de ilegitimidade activa ad causam), se fixou o objecto do litígio, se enunciaram os temas da prova (conforme fls. 92 e 93), se apreciarem os respectivos requerimentos e se designou a data para audiência final.

Por Acórdão de 17-12-2018 desta Relação foi anulada a decisão da matéria de facto constante da primeira sentença proferida e de que havia recorrido o autor (então com requerimento de ampliação da X).

Tendo em 14-06-2019 sido retomada a audiência em 1ª instância e nela sido produzida prova, foi proferida, em 02-09-2019, a nova sentença de cujo dispositivo – igual ao da primeira – resultou:

“Pelo supra exposto, julga-se a acção parcialmente procedente e, consequentemente, decide-se:
A) Condenar a Ré X, COMPANHIA DE SEGUROS, S. A. a pagar ao Autor A. M. a quantia de 484,50€ (quatrocentos e oitenta e quatro euros e cinquenta cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento;
B) Absolver a Ré X, COMPANHIA DE SEGUROS, S. A. do demais peticionado;
C) Absolver a Ré COMPANHIA DE SEGUROS Y PORTUGAL, S.A. do peticionado;
D) Condenar a Ré X, COMPANHIA DE SEGUROS, S. A. e o Autor A. M. no pagamento das custas processuais em função do respectivo decaimento.
Registe e notifique.”

O autor não se conformou e interpôs recurso per saltum para o STJ tendo alegado e assim concluído:

“1. O Recorrente aceita o enquadramento dos factos à luz das regras da responsabilidade civil extracontratual, plasmadas no artigo 483º e seguintes do Código Civil.
2. Contudo, dentro do mesmo quadro factual, designadamente dos pontos 4. a 8. dos factos provados, e jurídico, é de considerar a responsabilidade do condutor do veículo DP pelos danos causados à traseira da autocaravana JE.
3. Está assente um facto, isto é, o embate do JE pelo DP) do qual resultaram estragos na traseira daquele, os quais não teriam ocorrido se não fosse a manobra do condutor do DP.
4. Esses danos correspondem à violação o direito de propriedade do Autor, tornando ilícito o facto, e a prova da inobservância de leis ou regulamentos faz presumir a culpa na produção dos danos decorrentes de tal inobservância (e. g., Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05/07/2006).
5. O condutor do DP violou o artigo 18º, nº 1 do Código da Estrada, agindo com culpa, e assim se tornando responsável pela reparação dos danos.
6. O condutor do veículo DP poderá ser responsabilizado ao abrigo das normas atinentes à excepcional responsabilidade pelo risco, na qual se prescinde da ilicitude e da culpa (vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 05/03/2009).
7. A propriedade, a direcção efectiva no momento do acidente, a condução no seu próprio interesse e a falta de cuidado com que agiu impede o afastamento da sua responsabilidade ao abrigo do previsto no artigo 505º do Código Civil, pelo que é responsável pelos danos causados na parte traseira do JE, enquanto os danos causados na parte frontal do JE são da responsabilidade do XS.
8. Ora, em virtude do contrato de seguro provado, celebrado entre o condutor do veículo DP e a Ré Y, através do qual este havia transferido a responsabilidade civil pelos danos causados pela viatura a terceiros, a esta é chamada a responder conjuntamente com a Ré X, encontrando-se obrigada a indemnizar o Autor.
9. O desacordo do Recorrente com a douta sentença também se regista quanto ao segmento em que a mesma decidiu que o Autor carece de “legitimidade substantiva para impetrar o ressarcimento da respectiva reparação, demandando-se o naufrágio deste pedido indemnizatório”.
10. A douta sentença recorrida violou o princípio que proíbe as decisões surpresa e o artigo 3º, nº 3 do Código de Processo Civil.
11. Ainda que o juiz não esteja vinculado à alegação de direito feita pelas partes vê-se condicionado pelo quadro fáctico que as mesmas definem na acção, pelo que, sempre que pretenda afastar-se da construção jurídica erigida por estas encontra-se vinculado pelo artigo 3º, nº 3 do Código de Processo Civil e pelo princípio do contraditório a convidar as partes a pronunciarem-se.
12. A acção foi configurada pelo Autor com a convicção de que tinha o direito a ser indemnizado pelos danos sofridos no seu património na sequência dos embates frontal e traseiro que sofreu, onde se incluía, obviamente, a reintegração no seu património do valor dos danos da autocaravana, nunca tendo prescindido do seu direito de ser indemnizado da totalidade dos danos que sofreu.
13. A legitimidade substantiva do Recorrente não foi discutida nos autos até o momento em que douta sentença a decretou, pelo que, pretendendo o douto julgador apreciar tal questão encontrava-se obrigado a colocá-la às partes para o exercício do contraditório.
14. Sem prescindir, o Recorrente tem legitimidade para exigir e receber a indemnização correspondente aos danos patrimoniais sofridos na autocaravana, provados nos pontos 8., 10., 11., 12. e 14. dos factos provados.
15. A transmissão do direito de propriedade não tem por consequência a perda do direito à indemnização pelos danos sofridos no acidente.
16. Do artigo 483º, nº 1 do Código Civil resulta que lesado é quem sofre o dano, e que o lesado deve ser indemnizado pelos danos resultantes da violação do seu direito, pelo que este é o titular do direito às medidas destinadas a recolocar o seu património no estado em que se encontrava antes da lesão.
17. Decidindo que o Autor não tem direito a ser indemnizado a douta sentença viola o disposto no artigo 483º, nº 1 do Código Civil e o direito de propriedade constitucionalmente protegido do Autor (artigo 62º da Constituição da República Portuguesa).
18. O Recorrente teve um prejuízo decorrente da acção ilícita e culposa de terceiros, o que gerou na sua esfera jurídica um direito a ver o seu património reposto na situação em que estava antes da agressão.
19. Esse direito é independente de condições externas, nasce no momento da lesão e mantém-se na esfera jurídica do lesado até ao momento em que o dano seja totalmente eliminado ou compensado.
20. Devido ao carácter absoluto do direito de propriedade, configurado como ius utendi et abutendi, o lesado pode dispor do bem danificado como bem entenda, sem que isso afecte o seu direito a ser indemnizado pelo prejuízo que sofreu no momento da lesão.
21. O responsável só cumpre a sua obrigação de reparação do dano quando repõe inteira e cabalmente o património do lesado.
22. A alienação do bem danificado não significa que o lesado se conforme com a perda do seu património, aceite prescindir de ser indemnizado ou desista de responsabilizar o lesante, mas é apenas mais uma medida a tomar pelo lesado com vista ao seu ressarcimento integral, sendo ainda de considerar que o valor que o bem conserva é tomado em consideração para efeitos do cômputo da indemnização.
23. Não permitir ao lesado que aliene o veículo ou considerar esse seu comportamento como correspondendo a prescindir do direito a ser reparado pelos prejuízos que sofreu, é um castigo para este e um prémio para o lesante, uma vez que a reparação do veículo é apenas uma das formas de indemnizar previstas na lei, a qual tem como finalidade a protecção do lesado e dos seus direitos.
24. A douta sentença recorrida violou o disposto no artigo 562º e seguintes do Código de Processo Civil.
25. Quanto à forma de indemnizar, a lei postula a reconstituição natural que se conduz ao “dever de se reconstituir a situação anterior à lesão, isto é, o dever de reposição das coisas no estado em que estariam se não tivesse produzido o dano” (in Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, pág. 576).
26. Contudo, se a reconstituição natural não for possível, não repare integralmente os danos, ou seja excessivamente onerosa para o devedor, a indemnização ser fixada em dinheiro, transformando-se numa compensação pecuniária, conforme prescrito no artigo 566º, nº 1 do Código Civil.
27. São diversas as situações em a reparação pode não lograr a reconstituição do património do lesado, a qual será melhor atingida por via da substituição do bem ou da entrega de uma compensação monetária.
28. A reparação do veículo não é feita pela reparação do veículo pelo lesante, efectivando-se pela entrega ao lesado de uma quantia monetária reputada suficiente para o mesmo custear a reparação do bem.
29. A lei confere ao lesado e aos tribunais a escolha da forma da indemnização nos casos em que o valor da reparação é superior ao valor do bem, como ora sucede (vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09/02/2006, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 08/02/2018, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 16/01/2014, com remissão para Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/04/2010).
30. O Tribunal da Relação do Porto, contrariamente à douta sentença recorrida, compreendeu que a manutenção da propriedade do veículo apenas afecta a possibilidade de reconstituição do património do lesado por via da reparação, e nunca o seu direito a ser indemnizado pelos danos que sofreu.
31. Atente-se também no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14-09-2010, que declarou: “O princípio da reconstituição natural constante do art. 562.º do CC não impõe que o lesado se obrigue a deduzir pedido de reconstituição natural e subsidiariamente pedido de indemnização, podendo deduzir este último a título principal; tal princípio não obsta a que o lesante declare oportunamente a sua vontade de reparar os danos por reconstituição natural.”
32. “A ser assim, dir-se-á, o pedido de indemnização reconduz-se sempre a um pedido de reparação dos danos que será satisfeito, por via da indemnização, mas também pela via da reconstituição natural quando seja possível (…) não resultando do primado substantivo da reconstituição natural a impossibilidade processual da dedução de um pedido principal de indemnização pelos danos derivados do acto ilícito praticado no âmbito de responsabilidade civil extracontratual.”
33. É esta a interpretação que melhor se coaduna com a letra e a ratio da norma, justificando que se revogue a douta decisão recorrida por uma que condene a Ré (ou as Rés) a indemnizar o Autor pelo dano da destruição da sua autocaravana.
34. Em jeito de argumento ad nauseam convoca-se o Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, instituído pelo Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21/08, que prevê no artigo 41º, epigrafado “Perda total” que prevê a alienação do salvado do veículo sem que tal resulte em qualquer perda do direito à compensação ou seja entendida como prescindir do direito a ser indemnizado.
35. Se o lesado pode alienar o veículo na fase de negociação da indemnização com a empresa seguradora, é um contrassenso considerar que o mesmo deve manter a propriedade do mesmo quando demanda essa mesma entidade em juízo, seja porque a mesma se recusa a assumir a responsabilidade pela reparação dos danos, seja porque existe um diferendo quanto ao valor dos mesmos.
36. Aliás, a sua seguradora, que cobria danos próprios, pagou-lhe a quantia de €38 291,93, que correspondeu ao capital seguro (€47 246,87) menos a franquia (944,94) e o valor do salvado (€8 010,00), pressupondo, desse modo, que o Recorrente alienaria o veículo para assim obter o pagamento da integralidade do capital seguro.
37. Esse procedimento é também efectuado pelos Tribunais, conforme sumariado no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 14/11/2013.
38. O Autor tem ainda direito a ser indemnizado pela lesão do seu direito ao uso da viatura: a chamada privação do uso.
39. “…A perda temporária dos poderes de fruição de um bem comporta um prejuízo efectivo na esfera jurídica do lesado, o dano da privação do uso”, o que foi também decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08/04/2014, e no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/07/2015.
40. Relativamente ao quantum indemnizatório, uma vez que não ficou provado o valor do aluguer diário de uma autocaravana semelhante à do Autor, a indemnização pela privação do uso do veículo deve abranger o período entre a data do acidente e a data da reparação do veículo, fixando-se por equidade o seu montante diário, na senda do postergado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11/12/2012
41. O facto de o Autor ter alienado a viatura funcionará como um critério mais a ponderar num juízo de equidade, não eximindo a Ré da responsabilidade do pagamento indemnizatório.

O Recorrente requer que o presente recurso (interposto de decisão referida no nº 1 do artigo 644º do CPC), suba diretamente ao Supremo Tribunal de Justiça porquanto: o valor da causa e o valor da sucumbência são superiores à alçada da Relação; o recorrente, nas suas alegações, suscita apenas questões de direito e não impugna quaisquer decisões interlocutórias, a ser processado como de revista, com subida imediata ao STJ, nos próprios sutos e com efeito meramente devolutivo.

Termos pelos quais deve o presente recurso ser julgado procedente, modificando-se a decisão de direito em conformidade com o requerido, fazendo-se a tão necessária Justiça. “

A ré X interpôs recurso subordinado, tendo concluído as suas alegações deste modo:

“1. Com o devido respeito, a recorrente X – Companhia de Seguros, S.A. considera que os artigos 3º, 4º e 12º dos factos provados, e o artigo 32º dos factos não provados, foram incorretamente julgados pelo tribunal de 1ª instância.
2. Contrariamente ao que consta na motivação da douta sentença recorrida, os factos vertidos nos artigos 3º e 4º dos factos provados não podem ser aferidos dos depoimentos das testemunhas G. A., M. S. e E. A..
3. As testemunhas G. A. e M. S., que seguiam imediatamente atrás do XS, declararam que não viram que o XS se tivesse colocado na via de abrandamento destinada aos veículos que pretendam sair da auto estrada na saída de Parada de Cunhos/Vila Real Oeste, nem que tivesse passado a marca longitudinal/linha contínua que separa a via de abrandamento, nem que tenha derrubado 4 balizadores, nem que tenha retomado a via de trânsito direita da auto estrada colocando-se à frente do JE.
4. O depoimento da testemunha E. A. não tem qualquer relevo para prova desses factos/manobras, não só porque tem interesse direto que seja atribuída ao condutor do XS a responsabilidade exclusiva na produção dos dois embates (é mulher do proprietário do DP), mas também porque afirmou que seguia atrás do JE e a 30/40 metros do XS, mas que no local havia um banco de nevoeiro que impedia que avistasse os veículos que circulavam à sua frente.
5. Por outro lado, a realização das manobras mencionadas nos artigos 3º e 4º dos factos provados por parte do condutor do XS também não consta das declarações prestadas à GNR logo após a ocorrência do acidente, sendo certo que o condutor do XS, A. S., negou perentoriamente que tivesse feito aquelas manobras.
6. Assim, os factos vertidos nos artigos 3º e 4º dos factos provados devem ser julgados não provados, devendo, ao invés, ser julgados provados os factos alegados nos artigos 8º, 10º e 12º da contestação da ré X.
7. Em consequência desse novo julgamento, os artigos 3º e 4º dos factos provados deverão passar a ter a redação seguinte:
3. Devido ao intenso nevoeiro, o XS teve necessidade de reduzir a velocidade a que seguia.
4. O condutor do JE conduzia desatento ao trânsito que rodava à sua frente, e não mantinha entre este veículo e o XS a distância suficiente para evitar nele embater em caso de necessidade de diminuição de velocidade deste último”.
8. A recorrente discorda ainda do julgamento feito pela 1ª instância no que concerne ao nexo causal e à culpa na verificação dos dois embates, mais concretamente, a decisão ali tomada de que foi exclusivamente a conduta ilícita e censurável do condutor do XS que deu causa aos dois embates e que não existiram “circunstâncias que sustentem a violação de normas estradais pelos condutores da JE e da DP”, e que conduta do condutor do XS foi a “causa adequada dos dois embates”.

Com efeito,
9. Quanto ao primeiro dos embates (ocorrido entre a frente do JE e a traseira do XS), o autor e condutor do JE conduzia desatento ao trânsito que rodava à sua frente, e não mantinha entre este veículo e o XS a distância suficiente para evitar nele embater em caso de necessidade de diminuição de velocidade deste último, pelo que não conseguiu imobilizar o JE no espaço livre e visível à sua frente, nem desviar-se do XS, de forma a evitar o embate.
10. Relativamente ao segundo embate (ocorrido entre a frente do DP e a traseira do JE), o condutor do DP dedicava toda a sua atenção às marcas rodoviárias, seguindo desatento aos veículos trânsito que rodavam à sua frente, pelo que também não conseguiu imobilizar o DP no espaço livre e visível à sua frente, nem se desviar do JE, de forma a evitar o embate neste.
11. Assim, e contrariamente ao que foi decidido na douta sentença recorrida, deve ser julgado que o acidente ocorrido entre os veículos JE e XS se ficou a dever a culpa efetiva e exclusiva do autor, por violação das regras previstas nos artigos 18º, nº 1, 24º, nº 1 e 25º, nº 1, al. f) do Código da Estrada, e que o acidente ocorrido entre os veículos DP e JE se ficou a dever a culpa efetiva e exclusiva do condutor do DP, por violação dessas mesmas normas estradais.
12. Discorda, pois, a recorrente, das decisões que a condenaram a pagar ao autor a indemnização arbitrada ao autor e ao pagamento de custas, que devem ser revogadas e substituídas por outras que a absolva dos pedidos.
13. A recorrente discorda também da decisão do artigo 12º dos factos provados onde se julgou provado que “o custo da reparação do JE ascende a 74.470,10€”, que vem justificada no relatório de perda total de folhas 16 e no depoimento da testemunha J. G.. Com efeito,
14. Consta dos autos prova documental (documentos de folhas 15 e 16, e documentos números 9 a 12 juntos com a contestação da ré Y) e foi produzida prova testemunhal (depoimento da testemunha R. M.) donde resulta que os custos de reparação de JE totalizam € 55.743,00, IVA incluído
15. Esta prova deve sobrepor-se ao teor do documento de folhas 16, dado que esse documento não comporta qualquer orçamento dos custos de reparação do JE, constituindo apenas um relatório da sua perda total e, enquanto tal, com funções e objetivos que não os de um verdadeiro orçamento e sem rigor na avaliação dos danos.
16. Ao contrário dos documentos números 8 a 12 anexos à contestação da ré Y, que constituem verdadeiros orçamentos, o documento de folhas 16 não discrimina nem identifica sequer as peças necessárias de reparação ou de substituição, o custo das peças novas que as substituam, o tempo de trabalho ou de mão-de-obra exigidos em cada uma das especialidades (mecânico, chapeiro, pintor, eletricista), nem o tempo necessário para a reparação,
17. A virtual discrepância entre o montante constante no doc. de folhas 15 e nos documentos números 8 a 12 anexos à contestação da ré Y foi explicada pelo perito que os elaborou, tendo este esclarecido que que a orçamentação autónoma de cada uma das partes do veículo (frente ou traseira, p. ex.) é sempre superior à orçamentação global de todo o veículo.
18. Conclui-se assim que a reparação do JE importa em € 55.743,60, IVA incluído, não existindo nos autos prova suficiente de outro valor ou que coloque em causa a valia dos orçamentos apresentados pela Y e confirmados e explicados pelo respetivo autor, o perito e testemunha R. M..
19. Acresce que não se compreende a razão por que a 1ª instância optou por valorar o orçamento de maior custo, que não tem qualquer rigor na descrição da mão-de-obra e materiais necessários e custos parciais, em detrimento de um orçamento exaustivo e com um custo de reparação mais baixo.
20. Dado que o autor não reparou o JE, tendo-o vendido por reparar, não teve de despender qualquer quantia para reparar o JE, incluindo a parcela correspondente ao IVA, pelo que o seu eventual dano, a existir e que não se aceita, jamais corresponderá ao montante orçamentado para reparação do JE, qualquer que ele seja.
21. Deve ser alterada a decisão do artigo 12º dos factos provados, julgando-se provado que “O custo da reparação do JE foi orçamentado em € 55.743,00, IVA incluído”.
22. Dado que na audiência de 14.06.2019 o autor confessou que nunca reparou o JE, que acabou por não pagar nada pela sua reparação por o ter vendido pelo preço de € 20.000,00, e tendo presente que estamos perante uma ação de responsabilidade civil extracontratual que tem como escopo a restauração da situação que o lesado tinha anterior ao evento danoso, ao alienas o veículo sem proceder à sua reparação, o autor/lesado prescindiu dessa restauração, optando por uma indemnização em dinheiro que reponha o seu património.
23. Porque os factos referentes à (não) reparação do veículo se mostram fundamentais para a aplicação do direito e para a boa decisão da causa, afigura-se à recorrente que deve ser acrescentado aos factos provados um novo artigo, com a redação seguinte: “O autor não pagou qualquer quantia pela reparação do JE, antes o tendo vendido nos termos e nas condições referidos no artigo 25º dos factos provados”.

Sem prescindir,
24. O artigo 483º, nº 1 do Código Civil, ao determinar que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”, exige não só que para se constituir a obrigação de indemnizar é necessário a existência de um dano na esfera patrimonial do lesado, e que este dano seja causado pela ação ou omissão ilícita do lesante, mas também que o limite dessa obrigação de indemnizar tem como limite o dano causado.
25. Assim, para que haja um dever de indemnizar há que existir um determinado dano, um prejuízo causado ao lesado com a conduta do lesante, que pode ser patrimonial ou não patrimonial, correspondendo aquele à medida ou diferença entre “a situação atual do lesado e a situação (hipotética) em que ele se encontraria se não fosse o ato lesivo”.
26. No caso sub judice, provou-se que “À data do acidente, o JE tinha o valor comercial de 50.000,00€”; “Em consequência do embate, a W Seguros pagou ao Autor a quantia de 38.291,93€ a título de danos próprios”; e que “Em março de 2018, o Autor A. M. declarou vender a D. S., o qual declarou comprar, o veículo com a matrícula JE, marca Burstner, pelo valor de 20.000,00€”.
27. Retira-se desta factualidade que imediatamente antes do acidente o autor tinha no seu património a autocaravana JE com o valor de € 50.000,00, e que em resultado do sinistro e da venda que fez desse veículo arrecadou € 58.291,93, obtendo assim um acréscimo patrimonial de € 8.291,93.
28. Assim sendo, não está verificado um dos requisitos ou pressupostos essenciais da responsabilidade civil delitual: a existência de um dano na esfera jurídica do autor/lesado, sendo que resulta provado que o eventual ato lesivo serviu até para que o autor aumentasse o seu património.
29. Ora, não existindo dano, não há qualquer obrigação de indemnizar.
30. A inexistência de dano indemnizável tem ainda como consequência que o autor não possa exigir à seguradora X o pagamento de qualquer quantia a título de dano patrimonial por danos causados ao JE. Na verdade,
31. Sendo o seguro de responsabilidade civil automóvel um seguro de danos, a prestação do segurador “está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro”, sendo que “o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro” (artigos 128º e 130º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo DL 72/2008, de 16/04.
31. A douta sentença recorrida violou, por erro de aplicação ou de interpretação, os artigos 18º, nº 1, 24º, nº 1 e 25º, nº 1, al. f), do Código da Estrada, 483º, 487º, nº 2, 562º, 563º, 566º, nº 1 e 2 do Código Civil e 607º, nº 4, do Código de Processo Civil.

Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência:

a) Revogada a decisão proferida no artigo 3º dos factos provados julgando-se provado, em sua substituição, que “Devido ao intenso nevoeiro, o XS teve necessidade de reduzir a velocidade a que seguia”;
b) Revogadas as decisões proferidas no artigo 32º dos factos não provados e no artigo 4º dos factos provados julgando-se provado, em substituição desta, que “O condutor do JE conduzia desatento ao trânsito que rodava à sua frente, e não mantinha entre este veículo e o XS a distância suficiente para evitar nele embater em caso de necessidade de diminuição de velocidade deste último”;
c) Revogada a decisão proferida no artigo 12º dos factos não provados julgando-se provado, em sua substituição, que “O custo da reparação do JE foi orçamentado em € 55.743,00, IVA incluído”;
d) Aditado aos factos provados um novo artigo, com a redação seguinte: “O autor não pagou qualquer quantia pela reparação do JE, antes o tendo vendido nos termos e nas condições referidos no artigo 25º dos factos provados”;
e) Revogadas as decisões que condenaram a recorrente a pagar ao autor a quantia de € 484,50 e a pagar as custas na proporção do respetivo decaimento, sendo substituídas por outras que a absolva dos pedidos e do pagamento das custas;
f) Autor e ré Y condenados nas custas.
Assim se fazendo JUSTIÇA! .”

A mesma ré X respondeu ao recurso per saltum interposto pelo autor (sem conclusões), nele sustentando, em resumo, que o autor, por ter alienado o veículo, não pode peticionar o custo da respectiva reparação, que não teve prejuízo (pois até recebeu, do preço da venda e do seguro de danos próprios, mais do que o seu valor comercial), que os factos são insuficientes para dar lugar a indemnização pela privação do seu uso e que, de todo o modo, nunca tal privação poderia ser atendida depois que o vendeu.

A ré Y respondeu ao recurso per saltum do autor, defendendo que é inadmissível dirigi-lo directamente ao STJ, que ao condutor do veículo que segura (DP) não deve ser imputada qualquer responsabilidade mas apenas ao do XS (seguro na X) e que não deve ser atribuída ao autor a indemnização por ele pedida pelo custo da reparação da autocaravana.

A mesma ré Y respondeu também ao recurso subordinado da X, entendendo que não deve alterar-se a matéria de facto, nem imputar-se qualquer responsabilidade aos condutores dos veículos JE e DP.

Por fim, o autor respondeu ao recurso subordinado da ré X, manifestando o entendimento de que não deve alterar-se a matéria de facto e que tal recurso deve improceder.

No despacho a que se refere o artº 641º, nº 1, do CPC, não foi admitido o recurso da autor per saltum para o STJ. Foi-o, contudo, como de apelação para esta Relação, tal como o recurso subordinado da X, ambos com subida imediata nos autos e efeito devolutivo.

Corridos os Vistos legais, cumpre decidir, uma vez que nada a tal obsta.

II. QUESTÕES A RESOLVER

Pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal, se fixa o thema decidendum e se definem os respectivos limites cognitivos.

Assim é por lei e pacificamente entendido na jurisprudência – artºs 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 4, 637º, nº 2, e 639º, nºs 1 e 2, do CPC.

No caso, dada a patente prolixidade, interpretando e sintetizando aquelas em vista das alegações, de tudo se extrai que aquilo que importa apreciar e decidir é:

Quanto ao recurso do autor A. M.:

a) Se ao condutor do veículo DP (e, portanto, à ré Y, enquanto dele seguradora) é também imputável a responsabilidade (conjunta com a da ré X, seguradora do XS) pelos danos resultantes do embate daquele na parte traseira do JE (conclusões 2 a 8).
b) Se, independentemente disso, o entendimento seguido e a consequente decisão de que o autor carece de legitimidade substantiva para exigir a indemnização pelo custo da reparação do JE constitui decisão surpresa violadora do artº 3º, nº 3, do CPC, uma vez que tal pressupunha que aquele dela fosse prevenido para exercer o contraditório, pelo que deve ser revogada “em consonância” (conclusões 9 a 13).
c) Se, tendo o autor legitimidade substantiva para exigir a indemnização pelos danos no JE de que nunca prescindiu e apesar de o não ter reparado mas antes vendido, deve ser-lhe, ainda assim, atribuída (por outra forma) indemnização correspondente à diferença entre o valor do custo orçamentado da reparação e o valor já recebido (conclusões 14 a 37).
d) Se, semelhantemente, deve ser-lhe atribuída indemnização pela privação do uso do veículo, a fixar por equidade (uma vez que não se provou o valor do custo do aluguer diário de uma autocaravana semelhante), indemnização esta que “deve abranger o período entre a data do acidente e a data da reparação do veículo” (conclusões 38 a 41).

Quanto ao recurso subordinado da ré X:

a) Se deve modificar-se a matéria de facto quanto aos pontos provados 3, 4 e 32 (alterando aqueles e eliminando-se este, no sentido alegado na sua contestação), bem assim, quanto ao ponto provado 12 (corrigindo para 55.743,00€ o valor do custo orçamentado da reparação), e se deve, ainda, aditar-se tal matéria com novo facto (alusivo à não reparação e venda do JE).
b) Se, em consequência de tais alterações e contrariamente ao decidido na sentença, deve, quanto à culpa e ao nexo de causalidade, ser julgado que o acidente ocorrido entre os veículos JE e XS se ficou a dever a culpa efectiva e exclusiva do autor, condutor do primeiro, e que o acidente entre os veículos JE e DP se ficou a dever a culpa efectiva e exclusiva do condutor deste.
c) Se não se verifica, na esfera jurídica do autor, qualquer dano, enquanto pressuposto da obrigação de indemnizar, mormente quanto ao por ele pretendido valor da reparação (uma vez que não efectuou esta e vendeu o veículo por 20.000€, valor que acrescido ao que recebeu da sua seguradora ultrapassou o do seu valor comercial), devendo a decisão condenatória (por falta daquele requisito) ser totalmente (mesmo quanto aos 484,50€) revogada e alteradas as custas em conformidade.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O tribunal recorrido, nesta sede, julgou “pertinentes” e “atestou” como provados os seguintes factos:

“1. No dia 31 de Dezembro de 2016, pelas 11h30, na Auto-estrada A4, no sentido Porto – Vila Real, ao km 88,3, ocorreu um embate, no qual foram intervenientes a autocaravana de marca Burstner, com a matrícula JE, conduzida pelo Autor, a autocaravana de marca Peugeot, com a matrícula DP, “propriedade” de M. R. e por si conduzida, e a autocaravana de marca Fiat, com a matrícula XS, “propriedade” de A. S. e por si conduzida.
2. Os três veículos circulavam na A4, no sentido Porto – Vila Real, na via de trânsito da direita, sendo que na frente seguia o XS, seguido pelo JE, atrás do qual seguia o DP.
3. Sucede que o condutor do XS colocou-se na via de abrandamento destinada aos veículos que pretendam sair da Auto-Estrada na saída de Parada de Cunhos /Vila Real Oeste.
4. De seguida, o condutor do XS, passou a marca longitudinal/linha contínua que separa a sobredita via de abrandamento das vias de trânsito, derrubou quatro balizadores e retomou a via de trânsito da direita da auto-estrada A4, atento o sobredito sentido de marcha Amarante-Bragança, colocando-se à frente do JE.
5. Em consequência do descrito em 4), o JE, o qual circulava a uma velocidade não concretamente apurada, embateu na parte traseira esquerda do XS.
6. Sucede que, logo em seguida, o JE foi embatido no lado direito traseiro pela frente do DP, o qual seguia a uma velocidade não concretamente apurada.
7. No circunstancialismo referenciado em 1) a 6), verificava-se a existência de nevoeiro, e o piso encontrava-se seco [1] e em bom estado de conservação.
8. Em consequência dos embates indicados em 5) e 6), o veículo JE ficou danificado na frente e na traseira.
9. O JE é uma autocaravana Burstner Aviano I 694 G, de Maio de 2010, com 2800 cm3 de cilindrada, com, designadamente, toldo Fiamma 4,0m Deluxe Gre, antena parabólica automática, alarme, sensores de estacionamento, conversor, air bag condutor e passageiro, porta hartal com janela e estore, jante com pneu suplente, suporte de bicicletas para garagem, dois painéis solares de 110 W cada, depósito de gás GPL, duas baterias auxiliares de descarga lenta.
10. À data do embate, o JE tinha o valor comercial de 50.000,00€.
11. O salvado do JE foi avaliado em cerca de 8.010,0€.
12. O custo da reparação do JE ascende a 74.470,10€.
13. O JE era utlizado pelo Autor e sua família para os momentos de lazer, quer em Portugal, quer no estrangeiro.
14. Em consequência do embate, a W Seguros pagou na Autor a quantia de 38.291,93€, a título de danos próprios.
15. Pela ap. 05252 de 12.7.2010, afigura-se registada a aquisição a favor de A. M. do veículo com a matrícula JE, marca Burstner.
16. Pela ap. 04834 de 9.8.2017, afigura-se registada a aquisição a favor de G. A. do veículo com a matrícula JE, marca Burstner.
17. Em Fevereiro de 2017, o Autor A. M. declarou vender a J. G., o qual declarou comprar, o salvado do veículo com a matrícula JE, marca Burstner, pelo valor de 8.000,00€.
18. Em Agosto de 2017, o Autor A. M. e J. G. declararam sem efeito o acordo mencionado em 17).
19. Em 30-3-2015, o Autor despendeu a quantia de 975,00€ com a compra de óculos graduados.
20. Em 2.2.2017, o Autor despendeu a quantia de 300,00€ com referência ao parqueamento da autocaravana com a matrícula JE na oficina “Z., Caravanas e Autocaravanas”.
21. Em 6.2.2017, o Autor despendeu a quantia de 184,50€ com o reboque da autocaravana com a matrícula JE para …, Paredes.
22. O aluguer de uma autocaravana com as características do JE tem um custo diário não concretamente apurado.
23. À data do embate, a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo com a matrícula XS apresentava-se transferida para a X – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. pela apólice n.º 004511245790.
24. À data do embate, a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo com a matrícula DP apresentava-se transferida para a COMPANHIA DE SEGUROS Y PORTUGAL, S.A. pela apólice n.º 203197901.
25. Em Março de 2018, o Autor A. M. declarou vender a D. S., o qual declarou comprar, o veículo com a matrícula JE, marca Burstner, pelo valor de 20.000,00€.
26. Pela ap. 015787 de 27 de Março de 2018, afigura-se registada a propriedade do veículo com a matrícula JE, marca Burstner, a favor de D. S.. ”

Mais declarou como não provados os seguintes:

“27. No circunstancialismo referenciado em 4), o XS ficou atravessado nas vias de trânsito direita e esquerda, no sentido Porto – Vila Real.
28. No circunstancialismo indicado em 5), o JE embateu na lateral esquerda do XS.
29. O Autor circulava a não mais de 50 km/hora.
30. O condutor do DP qual seguia a uma velocidade superior a 100 kms/h e desatento ao trânsito que rodava à sua frente.
31. O nevoeiro que se fazia sentir no local do embate não permitia avistar a faixa de rodagem numa extensão superior a 40 metros.
32. O condutor do JE conduzia desatento ao trânsito que rodava à sua frente.
33. O condutor do JE seguia distanciado da traseira do XS a menos de 10 metros.
34. Em consequência do embate, os óculos referidos em 19) ficaram partidos.
35. Em 18.8.2017, o autor despendeu a quantia de 2.607,60€ com referência ao parqueamento da autocaravana com a matrícula JE na oficina de J. G..
36. O aluguer de uma autocaravana com as características da JE tem o curso diário de 200,00€.
37. O autor utilizava a autocaravana JE durante cerca de 20 dias por mês.”

As partes relevantes da “Motivação” do tribunal a quo serão mais adiante evidenciadas.

IV. APRECIAÇÃO

Uma vez que, em caso de procedência, a pretendida modificação da matéria de facto pode influenciar a responsabilidade pelas colisões e que apenas a ré X deduziu impugnação da respectiva decisão, pelo seu recurso subordinado e por essa parte se começará.

A. Matéria de Facto

Recurso subordinado da ré X

Pretende esta que os pontos provados 3, 4 e 12 e o não provado 32 sejam alterados e, ainda, que se adite um ponto novo.

Tal contende, desde logo, com a dinâmica do evento.

A este respeito e do comportamento dos protagonistas, o tribunal a quo, por um lado, julgou provado:

“3. Sucede que o condutor do XS colocou-se na via de abrandamento destinada aos veículos que pretendiam sair da Auto-Estrada na saída Parada de Cunhos/Vila Real Oeste.
4. De seguida, o condutor do XS, passou a marca longitudinal/linha contínua que separa a sobredita via de abrandamento das vias de trânsito, derrubou quatro balizadores e retomou a via de trânsito da direita da auto-estrada A4, atento o sobredito sentido de marcha Amarante-Bragança, colocando-se à frente do JE.”

E, por outro, julgou não provado, além do mais, que:

“32. O condutor do JE conduzia desatento ao trânsito”.

Àquela manobra do XS e, portanto, à conduta imprudente do respectivo condutor A. S. foi pela sentença – exclusivamente – imputada a causa e a culpa das duas sucessivas colisões e, assim, todos os danos subsequentes apurados.

Da respectiva motivação, aquilo que sobre o tema se colhe de mais substancial sobre as razões por que assim se decidiu, resulta das seguintes passagens:

“No que se refere à testemunha G. A., esposa do Autor, aduziu declarações facticamente estribadas, na qualidade de passageira da autocaravana JE, conduzida pelo seu marido, enquadrando o entorno temporal e espacial do embate referenciado nos autos, v.g., que as três autocaravanas entabulavam a viagem em conjunto, com a XS à frente, seguida pela JE e pela DP na A4, no sentido Porto-Bragança, indicando que, após o túnel do Marão, assomou um nevoeiro.
Ademais, relativamente ao iter subjacente ao embate, a depoente referiu com naturalidade e verosimilhança que, junto da saída para Parada de Cunhos, se apercebeu de um obstáculo e disse ao marido para travar, acrescentando, que o A. S. (condutor da XS) estava atravessado à frente da JE, ocorrendo o embate na parte lateral e traseira da XS, matéria que se compagina substantivamente quer com o declarado pelas testemunhas M. R. e E. A., quer com o admitido pela testemunha A. S., i.e., o engano do mesmo na saída para Parada de Cunhos e o reingresso abrupto e oblíquo na faixa de rodagem.
Concomitantemente, os danos percepcionados na frente e traseira do JE (fls. 13-14) afiguram-se objectivamente convergentes com um choque em cadeia com duas colisões sucessivas nas traseiras dos veículos XS e JE, o que não se afigura consonante com a tese do embate lateral na XS.
Noutro plano, a abordada colisão da autocaravana DP na traseira da JE antolha-se corroborada pelas testemunhas M. R. e E. A. e certificado pela fotografia de fls. 14.
[…]
As testemunhas M. R. e E. A., marido e mulher, entreteceram depoimentos eivados de consistência objectiva e guarnecidos do exigível lastro fáctico explicitante.
Ab initio, as testemunhas confirmaram a viagem conjunta das três autocaravanas, assinalando que M. R. conduzia a DP, tendo a seu lado a esposa E. A., seguindo a atrás da JE, a qual precedia a XS, na A4, no sentido Porto-Bragança, reiterando que, após o túnel do Marão, depararam com um tangível nevoeiro, confirmando, assim, o deduzido pela depoente G. A..
Numa segunda vertente de aferição, as testemunhas afloraram o engano do Sr. A. S. na saída para Parada de Cunhos, e enunciaram que o viram a “passar por cima dos pinos de borracha” e a ficar atravessado na auto-estrada, no âmbito de uma narrativa objectivamente fiável, que se coadunou substantivamente com o declarado pelo mesmo (o qual reconheceu o engano na saída para Parada de Cunhos, o desvio dos rails e a reentrada oblíqua na faixa de rodagem) com a configuração do local do embate (vd. fls. 14-verso, onde se verificam os balizadores junto dos rails) e com o atestado pela participação de fls. 10-verso a 12, que especifica a existência de 4 balizadores danificados.
Acresce que os depoentes reconheceram o embate da DP na traseira da JE, em congruência substancial com o indicado pela testemunha G. A..
[…]
No que se atem à testemunha A. S., condutor da autocaravana XS, afigurou-se linearmente nervoso (fácies e postura corporal) e emanou uma narrativa sincopada, opaca, pejada de hiatos, em sede de um inexorável comprometimento subjectivo.
Na verdade, conquanto a sobredita titubeância, o depoente reconheceu que ocupou a via de saída para Parada de Cunhos/Vila Real oeste e admitiu que reentrou na faixa de rodagem de forma atravessada, para se desviar dos rails, o que converge substantivamente com a danificação de 4 balizadores (vd. participação de fls. 10-verso a 12) e se prefigura consonante com o relatado pelas testemunhas G. A., M. R., A. S., E. A., inferindo-se, assim, que o mesmo transpôs de forma manifesta a linha contínua visualizada a fls. 14-verso que entronca com os balizadores (enfatize-se a tibieza com que o depoente referiu que “julgava que não tinha ocupado a linha contínua”, asserção elidida pela danificação dos balizadores), postando-se abruptamente à frente da JE, em sede de uma inevitável redução de velocidade, factologia inopinada que induziu a causação do embate.
Sublinhe-se, igualmente, que a testemunha não aduziu qualquer justificação plausível para apenas ter imobilizado a autocaravana umas dezenas de metros posteriores ao local do embate, e tampouco deduziu circunstâncias imputáveis ao condutor da JE, limitando-se a propugnar de forma canhestra a tese simplista do “embate na traseira”.
[…]
A testemunha E. R., militar da GNR que elaborou a participação de fls. 10-verso a 12, confirmou o teor da mesma e a inexistência de rastos de travagem, o que se coaduna com a índole da acção executada pelo condutor da XS, reingressando abruptamente à faixa de rodagem, postando-se imediatamente à frente da JE, com velocidade mais reduzida em função da manobra oblíqua de desvio dos rails (a qual foi reconhecida pela testemunha A. S..
[…]
A participação de fls. 10-verso a 12 atesta a danificação de 4 balizadores no local do embate, consequência linear da manobra evasiva do condutor da XS para se desviar dos rails (nos termos supra declarados pelo mesmo), certificando, assim, a transposição da linha contínua explicitada na fotografia de fls. 14-verso, a qual intersecciona com os preditos balizadores, concluindo-se que o XS reentrou na via de trânsito de forma assaz inopinada e enviesada, compatibilizando-se com o referenciado pelas testemunhas G. A., M. R. e E. A..
*
As fotografias de fls. 13-14 e 30-verso enunciam claramente os danos percepcionados na frente e na traseira da JE, os quais se compaginam com uma colisão em cadeia provocada pelo reingresso do XS na via de trânsito, sendo que não se vislumbram indícios de que o JE tenha embatido na lateral esquerda do XS.
[…]
No que tange aos factos 3) a 7), o Tribunal aferiu, aglutinadamente, as declarações das testemunhas G. A., M. R. e E. A., que descreveram credivelmente as vicissitudes anómalas imputáveis ao condutor da XS, A. S., o qual confirmou a entrada na via de abrandamento e o reingresso abrupto à via de circulação com uma manobra evasiva dos rails, em concatenação com a valoração da participação de fls. 10-verso a 12 e as fotografias de fls. 13-14, as quais atestam quer o derrube dos balizadores e transposição da linha contínua, quer os danos na frente a traseira do JE. ”

A ré apelante (X), partindo dos extractos por si localizados e destacados do depoimento da testemunha G. A., salientou que ela, devido ao nevoeiro, descreveu apenas que o XS, de repente, se encontrava à frente do JE conduzido pelo seu marido e que não viu qualquer manobra daquele a derivar da via de abrandamento ou de saída e a reingressar na auto-estrada.

Ou seja: a dita ré, recordando o que já alegara na contestação, pretende que daí se infira que, na origem de tudo, esteve uma travagem levada a cabo pelo condutor do XS imposta pelo nevoeiro, com a consequente redução da sua velocidade, a que se associou a desatenção do condutor do JE que seguia imediatamente atrás e a menos de 10 metros, cenário com que este deveria ter contado e diante do qual não reagiu como devia, sucedendo-se-lhe o segundo embate pelo DP, devido à sua velocidade excessiva, à desatenção do seu condutor e à curta distância a que circulava em relação àquele.

Ora, se é certo que a testemunha G. A., compreensivelmente devido à fraca visibilidade imposta pelos “bancos de nevoeiro” que se lhes deparou (“assomou”) após o túnel e que em alguns troços era mais intenso (“tangível”) que noutros, afirmou não ter visto qualquer manobra do XS, não o é menos que ela só se apercebeu da presença à sua frente deste veículo, precisamente devido às referidas condições climatéricas, quando “já estávamos mesmo em cima”, quando viu que “estava ali um obstáculo à frente” e que era – não um qualquer de entre os normalmente previsíveis! – a caravana do senhor A. S. (XS) “atravessada” (posição esta consentânea com o facto consensual de que o primeiro embate se deu entre a toda a frente do JE e, apenas, a parte traseira, lado esquerdo, do XS.

A testemunha, portanto, não afastou, ao depôr assim, o cenário que imediatamente terá antecedido o “atravessamento”, antes relatou, o que não deixa de ser significativo, que o XS lhes surgiu como um “obstáculo” e “atravessado” – aliás, “atravessado a ocupar as duas vias da auto-estrada” (como consta ao 4º minuto da gravação do seu depoimento, excluída da transcrição feita pela ré) –, posição esta (oblíqua) naturalmente não consentânea com uma suposta marcha (ainda que lenta, devido às referidas condições) em trajectória normal e recta dele pela via da direita, na auto-estrada, e sem qualquer outra explicação plausível que não fosse a travagem e redução de velocidade (ou até outra, como, por exemplo, a perda de adesão das rodas ao pavimento e consequente despiste).

Tal depoimento é, pois, compatível com o “engano” do condutor do XS e inerentes manobras de saída para a via de abrandamento e de reingresso inopinado e transgressivo na auto-estrada.

De resto, a testemunha não deixou de relatar, vincando embora e sempre não ter visto isso, que, no decurso da conversa tida entre todos (que eram amigos) logo após o acidente e no local, “percebeu-se” que o A. S. (XS) tinha-se “enganado” e, por isso, “virou para a saída da auto-estrada” e que, entretanto, “retomou” esta de novo (cfr. gravação, a partir do 3º minuto), deduzindo até a testemunha que os dois veículos (que antes se haviam interposto entre eles e vinham seguindo mas que não mais avistou) teriam precisamente continuado e avançado naquele entretanto (a deriva do A. S.) e até que lhes ressurgiu à sua frente apenas o XS, como obstáculo de todo inesperado.

Esta conversa, de cuja fiabilidade não há motivos para duvidar, tida logo e no local, sem tempo para cogitações e para cada um aggiornare a sua própria versão à frequentemente almejada desculpa pelo sucedido, é reveladora, pela sua espontaneidade, do que cada um puramente percepcionou e espontaneamente exprimiu acerca de como aquilo acontecera.

Semelhantemente, não releva a ênfase que a recorrente pôs na afirmação, também feita pela testemunha M. R., segundo a qual não viu a autocaravana XS, respondendo negativamente à pergunta sobre se se apercebeu da (sugerida) “saída” dela.

É que não viu mas explicou por que não poderia sequer ter visto (o traçado da via e do desvio, as condições de tempo e a circunstância de, interposta e à sua frente, seguir a autocaravana JE do autor, tal impediam). Logo, dali não pode inferir-se que a referida manobra não aconteceu.

Menos ainda que aconteceu como a X pretende.

Esta apelante pôs ainda em relevo que, no seu depoimento, a testemunha A. S. (condutor do XS) “referiu apenas que hesitou em sair ou não naquele local” e que negou “peremptoriamente” a transposição da linha contínua separada entre a via de abrandamento e a de circulação na auto-estrada.

Sucede que, ouvindo-se a gravação do seu depoimento, não se retira dele que “apenas hesitou”, nem que tenha sido assim tão “peremptória”.

O teor é bem mais completo e eloquente e o tom e os termos usados no seu discurso – nada peremptório – bem mais significativos do que aquela referida hesitação e esta negação, se descontextualizadas e apenas lidas, poderiam dar a entender.

Com efeito, ao dizer: “…eu vinha à frente, fui deparado com um forte nevoeiro, fiquei praticamente sem visualização, abrandei a minha marcha, abrandei a minha marcha, porque entretanto depois apareceu-me uma saída para Vila Real Oeste, fiquei um bocado ali no meio do nevoeiro sem saber o que fazer, se saía, se não saía, hesitei um bocado, saio, não saio, até que acabei por não sair, segui em frente e quando se deu o acidente, portanto, o senhor A. M. bateu-me na traseira e depois ainda houve o terceiro, o terceiro amigo, portanto, o senhor M. R. que acabou por bater na traseira da autocaravana do senhor A. M.”, ao reconhecer (cfr. minuto 4º) que efectivamente a auto-estrada era composta por duas vias (a descer, estando o piso molhado derivado ao nevoeiro) mas ali “aparecem três” (vis), ao justificar que “antes do nevoeiro vinha na faixa da direita”, ao repetir que “depois quando realmente avistei a saída fiquei naquele impasse, saio não saio, saio não saio, e tomei a decisão” e ao conceder que “ocupei a faixa de saída antes”, muito embora negue (aí em tom sobranceiro e atitude manifestamente racionalizada e defensiva) que não chegou a enveredar pela tal via, nem, por isso, a bruscamente virar e a retomar a auto-estrada, nem, para tal, a transpor a linha divisória contínua entre a faixa de rodagem desta e a da via de abrandamento, nem a passar por cima dos pinos, é evidente que assume uma parte da verdade, ou seja, aquela que considera desculpabilizante, mas esconde a outra relativa à gravidade, irregularidade e perigosidade da manobra que acabou por encetar.

O certo é que, naquelas condições, o mais natural é que se tivesse mesmo enganado e, não só ocupado antes, mas sim prosseguido depois pela via de saída até ao ponto em que acabou por se aperceber dessa sua exclusiva função e, surpreendido, após hesitações, decidiu já in extremis (isto é, na zona dividida por linha contínua e demarcada pelos pinos), emendar o seu erro, virar para a sua esquerda, passar por cima, com esta manobra se atravessando na auto-estrada.

Tanto é verdade que se atravessou que, ele próprio reconheceu que se viu quase a bater nos rails do seu lado esquerdo e embora “julgue” que não pisou a linha, admite que agiu “no meio daquela confusão toda”, confusão que naturalmente descredibiliza a parte defensiva da sua versão.

Assim como reconheceu que os pinos ficaram danificados.

De resto, a sua negação de que, apesar disso, não passou por cima deles e a sua pretensa justificação de que, se tivesse passado, haveria de fazer “estrondo” não colhe. Como se sabe, a composição dessas balizas é normalmente em borracha, adaptada à função de despertar a atenção (são flexíveis, como asseverou a testemunha E. A.), sendo natural que o impacto com eles não provoque significativo barulho nem estragos ostensivos no veículo, pelo que mesmo, não sendo muito audível, tal não afasta a ocorrência da referida transposição.

Em consonância, ainda, com o que se depreende do depoimento do condutor do XS, a esposa do condutor do DP e passageira deste, E. A. – porque seguiam mais atrás e, portanto dispunha de um ângulo de visão mais amplo embora perturbado pelo nevoeiro (e, portanto, sem contradizer o que referiu a testemunha G. A. que, como passageira do JE, seguia no meio e mais próxima do XS) –, descreveu que viu, a certa altura – explicando para tal que só a avistou quando se desviou, porque se fosse à frente e em recta não a via e, além disso, identificava-a por ter farolins em baixo e em cima –, “a parte branca” da XS “a ir para o outro lado” e até comentou para o marido “olha, o A. S. enganou-se” e “olha a porcaria que ele está a fazer” e que “vi-o a atravessar-se e a entrar pelo meio dos pinos”, em posição “obliquada”, pois, como asseverou, não era para sair ali, “ele é que se enganou”.

Admitiu, ainda, esta testemunha que “eles” (condutor do XS e sua esposa), ao discutiram, depois, ainda no local, como tinha aquilo acontecido, evidenciavam que “não tinham a noção” mas reiterou que “mostrei-lhes as marcas das rodas”, ao atravessar os pinos, marcas essas como “de travagem”, acrescentando que, nessa posição e direccionada com a frente voltada para os rails do lado esquerdo, se tendo quedado a autocaravana daqueles.

Não ocorre, pois, real contradição entre as suas próprias declarações nem com as das restantes testemunhas (designadamente por ora referir que viu a “parte branca” ora apenas “os farolins”, dadas as intermitências provocadas pelo nevoeiro, os diferentes ângulos de visão e porque foi para garantir que viu a autocaravana a sair da auto-estrada que disse identificá-la também pelos farolins em baixo e em cima (não comuns nas normais viaturas ligeiras).

O azedume que se nota nas suas palavras, simétrico ao da testemunha A. S., compreende-se. Eram amigos mas, em face do ocorrido e dos danos, desentenderam-se quanto à assunção de responsabilidade. Porém, não transparece do depoimento da referida E. A. que este tenha sido condicionado ou distorcido por tal circunstância. De resto, o invocado interesse directo daquela, além de não existir (a haver responsabilidade do seu marido, sempre a mesma está transmitida para a sua seguradora Y e, de todo o modo, como referiu, o seu problema está resolvido com esta, dizendo a testemunha que nada mais tem a ver com o assunto), também não nos parece que tenha ofuscado a sua credibilidade.

Acresce que a descrição que faz quanto ao seu posicionamento e ao comportamento do condutor seu marido ante o quadro que se lhe deparou, não nos gera qualquer dúvida de que as coisas se passaram de acordo com o que, afinal, entendeu o tribunal recorrido nem nos convence que, diferentemente, tenham ocorrido como a apelante pretende fazer crer

Tudo ponderado, nomeadamente as respostas à impugnação produzidas pelo autor e pela Y, concluímos, pois, que a motivação expendida na sentença, no que concerne ao apreço e valor dados a cada depoimento, em função da razão de ciência apresentada, do carácter espontâneo ou não, da isenção e verticalidade e, enfim, dos demais parâmetros utilizados, não padece de qualquer erro de julgamento com reflexo na decisão tomada e que deva ser corrigido, notando-se que está, aliás, devidamente ancorada noutros diversos meios de prova, que não apenas os referidos, e que não foram questionados.

Daí que, não resultando da prova produzida demonstrada a tese da apelante contrária à vertida nos pontos provados 3 e 4 nem a realidade da alegada factualidade referida no ponto não provado nº 32, não se elimine este nem se alterem aqueles, assim se corroborando o julgamento feito.

Continuando.

Relativamente ao ponto 12, no qual se deu como provado que “o custo da reparação do JE ascende a 74.470,10€”, pretende a apelante X que o mesmo deve ser alterado para “O custo da reparação do JE foi orçamentado em €55.743,00, IVA incluído.”

Baseou-se, para tal, nos argumentos de que, além de nenhuma reparação ter sido feita nem paga (até porque o autor, entretanto, vendeu a autocaravana), não se compreende a razão por que a 1ª instância valorou o orçamento (o de fls. 16) de maior custo, feito sem rigor, sem detalhe e para outros fins (para apreciação da “perda total”), em detrimento dos documentos nºs 8 a 12 anexos à contestação da Y e da carta de fls. 15 junta pelo autor, explicando que aquele valor é o global e correcto, apesar de não corresponder aos orçamentos parcelares da frente e da traseira do veículo na medida em que estes, quando separados, encarecem e, por isso, a soma dos respectivos valores não lhe equivale, como terá explicado a testemunha R. M. e sendo certo que, apesar de esta referir que, após desmontagem, poderia haver um incremento de 20%, tal não é certo nem está adquirido, nunca, de todo o modo, alcançando o valor que foi dado como provado na sentença.

Na motivação, expôs-se que a testemunha J. G. “admitiu que foi o próprio que elaborou o orçamento vertido a fls. 16 (a pedido da W), o qual contempla de forma objectivada o valor de 74.470,10€”, que a testemunha L. M. não mostrou ter disso conhecimento, “enredando-se em enunciados genéricos e conclusivos quanto ao custo da reparação da JE”, que a testemunha R. M. “aflorou a avaliação que executou dos danos da JE e do custo da respectiva reparação, com referência ao indicado a fls. 69-verso a 74”, e que, no contexto de outros factos (entre eles, o 12), “o Tribunal sopesou as missivas de fls. 15 e 16-verso a 17 e 68 e o anúncio de fls. 31-verso, sendo que, quanto ao valor da reparação da JE, aferiu-se, conjugadamente, o relatório de fls. 16 e as declarações da testemunha J. G. nos termos sobreditos. ”.

Acrescentou-se, porém, na sequência da anulação da primeira decisão e divergindo do que nesta fora decidido e, em parte, dos fundamentos para tal adiantados, o seguinte:

“Relativamente ao relatório de fls. 16, o valor da reparação foi orçamentado pela testemunha J. G., que explicitou linearmente o respectivo iter (v.g., os contactos com os fornecedores das peças), o qual se prefigurou contextualmente estribado, quer em função da testemunha titular conhecimentos técnicos para o efeito (dedica-se à actividade de construção e reparação de autocaravanas), quer ante o facto da JE ter sido avaliada especificamente na oficina do depoente, sendo que não foram produzidas contraprovas minimamente sustentadas.
Na verdade, o relatório de 69-verso a 74, elaborado pela S., Lda, a qual efectuou a quantificação do valor estimado de reparação a pedido da Y, não contempla os fundamentos objectivos exigíveis para contraditar o relatório de fls. 16, elaborado por J. G., i.e., conquanto discrimine alguns detalhes da reparação (v.g. valor de mão-de-obra, peças) não explicita devidamente as fontes dos valores estimados, pelo que, ante a credibilidade imanente do declarado por J. G. na audiência, conclui-se que o relatório de fls. 69-verso a 74 se configura marcadamente claudicante. ”

Ora, sendo certo que a recorrente X reproduz no presente recurso aquilo que contra-alegou no anterior (ao apelo de então deduzido pelo autor recorrente em que este questionara a decisão de dar como provado valor diverso – 65.062,08€ - do que agora o foi), a verdade é que, para defender que tal custo foi de 55.743,60€, não atacou aquela acrescida fundamentação (só assim se compreende que reafirme agora que não se compreende a razão por que a 1ª instância optou por valor o orçamento de maior custo, uma vez que ela está bem explícita).

E não a atacou, quer relativamente ao argumento de que o referido J. G. se dedica à construção e reparação e, portanto, tem melhores conhecimentos técnicos na matéria, quer ao de ter sido feita a avaliação na sua própria oficina, quer, ainda, ao de não ter sido apresentada contra-prova minimamente sustentada.

Bem assim, quanto ao argumento de o outro orçamento de fls. 16, não se encontrar objectivamente elaborado de modo a contraditar eficazmente aquele, designadamente porque, apesar de referir alguns detalhes, não explicita as fontes dos valores adoptados, apresentando-se claudicante e, por isso, não credível.

Logo por aí o recurso, nesta parte, também claudica.

Ainda assim, sempre se diga que, tendo em conta o que referiram os autores de cada um dos documentos, o teor destes e que, efectivamente, dada a condição do de 16, este se mostra melhor apetrechado e mais distanciado em relação às partes do que a testemunha que elaborou o de fls. 69 a 74 a pedido da Y para a qual é prestador de serviços, não se acha motivo para divergir do julgamento feito e para proceder à alteração pretendida.

Por fim:

Estando já bem claro nos autos – e sendo, aliás, consensual para as partes – que a autocaravana JE do autor não chegou a ser reparada, antes foi por ele vendida no estado em que ficou em resultado do acidente, pelo preço que consta no facto 25, e, portanto, que aquele valor fixado como custo da reparação é, apenas, uma estimativa, um orçamento, não um valor que ele tenha pago ou deva pagar em contrapartida da reparação, não há também motivo para se proceder ao aditamento de qualquer ponto de facto, como pretendia a recorrente X.

Deste modo, deve julgar-se improcedente o recurso subordinado da X na parte relativa à impugnação da matéria de facto, assim se fixando a factualidade tal como decidida pelo tribunal recorrido.

B. Matéria de Direito

B1. Recurso do autor A. M.

A primeira questão por este suscitada consiste em saber se ao condutor do veículo DP (e, portanto, à ré Y, enquanto dele seguradora) é também imputável a responsabilidade (conjunta com a da ré X, seguradora do XS) pelos danos resultantes do embate daquele na parte traseira do JE (conclusões 2 a 8).

Na sentença, o tribunal recorrido, sem incisivamente se debruçar sobre a circunstância de aquele (DP) ter embatido neste (JE) “por trás”, entendeu que a causa e a culpa do acidente e, portanto, das duas colisões, uma primeira atingindo a frente da JE (com o XS) e outra “logo em seguida” a sua traseira (pelo DP), se deveu exclusivamente à conduta ilícita e censurável do condutor do veículo XS e também a esta os danos ocorridos, nos seguintes termos [2]:

1) Da responsabilidade pelo embate ocorrido entre os veículos com as matrículas JE, XS e DP
[…]
In casu, perscrutando-se a factualidade provada, constata-se que: (i) No dia 31 de Dezembro de 2016, pelas 11h30, na Auto-estrada A4, no sentido Porto – Vila Real, ao km 88,3, ocorreu um embate, no qual foram intervenientes a autocaravana de marca Burstner, com a matrícula JE, conduzida pelo Autor, a autocaravana de marca Peugeot, com a matrícula DP, “propriedade” de M. R. e por si conduzida, e a autocaravana de marca Fiat, com a matrícula XS, “propriedade” de A. S. e por si conduzida; (ii) Os três veículos circulavam na A4, no sentido Porto – Vila Real, na via de trânsito da direita, sendo que na frente seguia o XS, seguido pelo JE, atrás do qual seguia o DP; (iii) Sucede que o condutor do XS colocou-se na via de abrandamento destinada aos veículos que pretendam sair da Auto-Estrada na saída de Parada de Cunhos /Vila Real Oeste; (iv) De seguida, o condutor do XS, passou a marca longitudinal/linha contínua que separa a sobredita via de abrandamento das vias de trânsito, derrubou quatro balizadores e retomou a via de trânsito da direita da auto-estrada A4, atento o sobredito sentido de marcha Amarante-Bragança, colocando-se à frente do JE; (v) Em consequência do descrito em 4), o JE, o qual circulava a uma velocidade não concretamente apurada, embateu na parte traseira esquerda do XS; (vi) Sucede que, logo em seguida, o JE foi embatido no lado direito traseiro pela frente do DP, o qual seguia a uma velocidade não concretamente apurada.
[…]
Em concatenação com o supra mencionado, aquilatando-se a dinâmica do evento sob julgamento, atesta-se que o condutor da autocaravana XS transpôs a sobredita linha contínua que separava a via de abrandamento e as vias de trânsito, actuando em manifesta postergação do plasmado, designadamente, nos arts. 3.º/2 e 13.º/1 e 2, 18.º/1 e 24.º/1, do Código da Estrada e 60.º/1, do Regulamento de Sinalização de Trânsito, atestando-se que, em consequência de tal factologia, a autocaravana JE embateu na traseira da XS e a autocaravana DP embateu na JE.
Ademais, inexistem circunstâncias que sustentem a violação de normas estradais pelos condutores da JE e da DP.
Infere-se, assim, que o condutor da autocaravana XS agiu ilicitamente, em ostensiva violação das preditas normas do CE, postulando-se, assim, a valoração da respectiva censurabilidade.
[…]
Na situação concreta, sopesando-se o sobredito quadro fáctico, conclui-se que um condutor-médio, colocado nas mesmas circunstâncias em que se encontrava o condutor da XS, segundo as normais pautas de diligência e prudência, não teria efectuado a manobra e não teria reingressado na via de trânsito.
Acresce que não se provaram quaisquer factos passíveis de configurarem a existência de causas extrínsecas ou de força maior que induziram a actuação do mesmo.
Conclui-se, assim, que o condutor da autocaravana XS, incumprindo as citadas normas, criou um risco proibido para os utentes da via, o qual era cognoscível, previsível e evitável para o homem prudente, dotado das capacidades do homem médio, isto é, emite-se um juízo de censurabilidade do citado condutor, o qual, ao abrigo do referenciado dever objectivo de cuidado, deveria ter evitado aquele acidente lesivo, agindo, assim, com culpa negligente.
Enfatize-se, igualmente, que se demonstra a existência de uma relação fáctica e juridicamente causal intercorrente entre a infracção daqueles deveres e a produção do resultado, sob o crivo das doutrinas da causalidade adequada e do escopo da norma violada.
Consequentemente, infere-se que a conduta ilícita e censurável da autocaravana XS gerou um risco ilícito quer para o Autor e para o condutor da autocaravana DP, sendo causa adequada dos dois embates, prefigurando um facto ilícito e culposo extracontratual, nos termos do art.º 483.º do Código Civil.
Em decorrência, o condutor do XS é responsável pelos danos perpetrados no Autor, nos termos do art.º 504.º/3, do Código Civil, sendo que as acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação devem ser propostas contra a empresa de seguros (art.º 64.º/1 al. a) do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto), que se reconduz à Ré X Companhia de Seguros, postulando, assim, a inexorável absolvição da Ré Y.”

O autor, porém, sustenta que os estragos do segundo embate (na traseira do JE) estão causalmente ligados ao facto praticado pelo condutor do DP, que a sua manobra foi a causa dos mesmos, pois que estes não teriam ocorrido se não fosse o seu comportamento.

Sustenta, ainda, que, ao violar o disposto no artº 18º, nº 1, do Código da Estrada, ele presume-se, em primeira aparência, culpado, não tendo sido feita contraprova desta.

Com efeito, uma vez que embateu “logo em seguida”, tal implica que não guardou a distância suficiente, circulava de forma descuidada e sem tomar precauções, como é comum acontecer e ajuizar-se.

Por fim, defende também que o condutor do DP é ainda responsável “pelo risco”.

A seguradora deste (Y) contrapõe que não resultou provado qualquer comportamento ilícito do respectivo condutor, que o comportamento do do XS é que, ilícita e censuravelmente, criou um obstáculo não expectável, dando origem ao primeiro embate dele com o JE que “foi condição essencial e única” do segundo, o qual não teria ocorrido se não fosse aquele, isto é, “se não tivessem existido tais circunstâncias extraordinárias e excepcionais”. Tendo no nosso sistema jurídico sido adoptada a doutrina da causalidade adequada, na sua formulação negativa, esta “não exige que a causalidade tenha de ser directa e imediata, admitindo a existência de uma causalidade indirecta, desde que o facto inicial desencadeie outro que provoque o dano”.

Ora, sabemos, de acordo com a factualidade provada, que as três autocaravanas transitavam na A4, nas imediações de Vila Real, todas pela via da direita, indo na frente a XS, seguindo-a a JE e atrás desta a DP.

Sabemos também que, acerta altura, o condutor da XS deixou aquela via e enveredou pela da saída (para o seu lado direito) que dá para Parada de Cunhos.

Sabemos, ainda, que, instantes após, o mesmo veículo transpôs, virando para o seu lado esquerdo, a linha contínua que separa a via da direita da auto-estrada da referida via de saída por onde passara a circular, derrubando até os balizadores aí colocados, e retomou a referida rodovia, assim se colocando aí na frente do JE que por ela prosseguia.

Sabemos, finalmente, que, em consequência, daquela manobra inopinada de derivação da via de abrandamento situada do lado direito para a via contígua à esquerda (a direita da auto-estrada) e do obstáculo assim gerado para a trajectória do JE que seguia por esta, eclodiu o embate dele com a parte traseira esquerda do XS, seguindo-se o embate da frente do DP na traseira do lado direito do JE.

Não sabemos mais nada sobre a dinâmica dos três veículos, nem sobre o comportamento dos respectivos condutores (seja porque nada mais foi alegado, seja porque, do que o foi ou daquilo que porventura se discutiu na audiência, nada mais resultou provado ou foi pelo tribunal a quo considerado).

Neste contexto, propendemos para corroborar o entendimento seguido na sentença, aliás em linha com o que defende a Y e, assim, para não acolher a tese do autor.

Nos termos do artigo 483º, do Código Civil, a obrigação de indemnização a cargo do autor do facto ilícito culposo compreende apenas os danos que forem resultantes do evento lesivo.

O artigo 563.º, do mesmo diploma, concretiza que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.

Por detrás desta simplicidade, as expressões da lei (ser resultado de; que provavelmente não teriam ocorrido) escondem a imensa e difícil questão da causalidade.

Ninguém aceita que as citadas normas legais tenham em vista a causalidade natural, isto é, que a causa se possa afirmar por aplicação de critérios puramente naturalísticos ou relativos às regras de sucessão dos acontecimentos próprios da natureza das coisas. A mera simultaneidade ou sequência espácio-temporal não é suficiente para se afirmar a existência de uma relação de causa efeito entre um evento e uma consequência para outrem.

A regra legal é, antes de mais, uma regra de actuação humana ou que pretende funcionar como tal. Daí que, nos elementos da sua previsão, deva estar reflectida a lógica das actuações humanas, ponderando, designadamente, aquilo com que a pessoa, no caso concreto, pode ou deve contar, porque é esse factor (humano) espoletador dos acontecimentos e suas consequências que a regra estigmatiza e torna responsável (por que danos, é a questão a que responde a teoria da causalidade).

Antunes Varela [3], citando as teses de Trimarchi aparentemente divergentes da teoria da causalidade adequada, acentua que “verdadeiramente útil e exacta é a ideia de que a causalidade (jurídica) se não resolve forçosamente por uma fórmula unitária, válida para todos os casos. A formulação que mais convém à responsabilidade baseada nos factos ilícitos pode, com efeito, não ser a que melhor se adapta à responsabilidade baseada no risco ou na prática dos factos ilícitos danosos.”

Defendendo que a teoria da causalidade adequada é o “rumo certo” para a resolução da causa (jurídica) relevante este autor, de seguida, sustentava que “O pensamento fundamental da teoria é que, para impor a alguém a obrigação de reparar o danos sofrido por outrem, não basta que o facto praticado pelo agente tenha sido, no caso concreto, condição (s.q.n.) do dano; é necessário ainda que, em abstracto ou em geral, o facto seja uma causa adequada do dano. Há que escolher, entre os antecedentes históricos do dano, aquele que, segundo o curso normal das coisas, se pode considerar apto para o produzir, afastando aqueles que só por virtude de circunstâncias extraordinárias o possam ter determinado. Que o facto seja condição do dano será requisito necessário; mas não é requisito suficiente, para que possa ser considerado como causa desse dano. (…) Tudo está, entretanto, em saber quando é que um facto pode, abstractamente considerado, ser apontado como causa de certo dano. (…) ”.

O autor prossegue enunciando a formulação positiva (a relação de causalidade afirma-se quando de acordo com as regras da experiência e o devir normal das coisas o acto for de molde a provocar o dano, for uma consequência normal, natural ou típica daquele) e a formulação negativa da causalidade adequada (a relação de causalidade é excluída quando o facto que actuou como condição do dano for em geral de todo em todo indiferente para a verificação do dano, o qual só sobreveio em virtude de circunstâncias excepcionais, anormais ou extraordinárias), e interroga-se sobre as circunstâncias que devem intervir na formulação do juízo de prognose sobre a capacidade do facto para em abstracto, de acordo com a sua natureza em geral, provocar um determinado dano (defendendo que as circunstâncias a incluir nesse juízo são apenas as circunstâncias reconhecíveis à data do facto por um observador experiente e ainda as circunstâncias efectivamente conhecidas pelo agente, ainda que ignoradas por outras pessoas), para depois afirmar o seguinte quanto à melhor formulação do conceito de causa adequada: “Em condições regulares, desprendendo-nos da natureza do evento constitutivo da responsabilidade, dir-se-ia que um facto só deve considerar-se causa (adequada) daqueles danos (sofridos por outrem) que constituam uma consequência normal, típica, provável dele. (…) Mas já não será assim relativamente aos casos … em que a obrigação de indemnização pressupõe um facto ilícito culposo do agente (quer se trate de responsabilidade aquiliana, quer se trate de responsabilidade contratual). Desde que o devedor ou lesante praticou um facto ilícito, e este actuou como condição de certo dano, compreende-se a inversão do sentido normal dos acontecimentos. Já se justifica que o prejuízo (embora devido a caso fortuito ou, em certos termos, à conduta de terceiro) recaia, em princípio, não sobre o titular do interesse atingido, mas sobre quem, agindo ilicitamente, criou a condição do dano. Esta inversão só deixa de ser razoável a partir do momento em que o facto ilícito se pode considerar de todo em todo indiferente na ordem natural das coisas, para a produção do dano registado. Só quando para a verificação do prejuízo tenham concorrido decisivamente circunstâncias extraordinárias, fortuitas ou excepcionais …”.

Afirmando que o nosso sistema jurídico optou definitivamente pela teoria da causalidade adequada, mas sem se decidir expressamente pela sua formulação positiva ou negativa, deixando essa tarefa ao julgador, e que quando a lesão procede de facto ilícito “a posição que, em princípio, deve reputar-se adoptada no nosso direito constituído” é a formulação negativa, este autor sistematiza assim os corolários da teoria da causalidade adequada:

1.º “para que haja causa adequada, não é de modo nenhum necessário que o facto, só por si, sem a colaboração de outros tenha produzido o dano. Essencial é que o facto seja condição do dano, mas nada obsta a que, como frequentemente sucede, ele seja apenas uma das condições desse dano”;
2.º “para que um dano seja considerado como efeito adequado de certo facto, não é necessário que ele seja previsível para o autor desse facto. (…) Essencial é apenas que o facto constituía, em relação a estes [os danos subsequentes ao facto], uma causa (objectivamente) adequada.
3.º “a causalidade adequada não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu ao dano. É esse processo concreto que há-de caber na aptidão geral ou abstracta do facto para produzir o dano.”

A propósito deste último corolário, Antunes Varela, na referida obra, afirma ainda o seguinte, quanto à intervenção no processo causal de um acto de terceiros: “O acto de terceiro ou do próprio lesado, causadores imediatos do dano, podem, no entanto, ser ainda imputáveis ao agente, se deverem ser tidos como efeito adequado do facto gerador da responsabilidade. (…) A pessoa gravemente agredida vem a falecer no hospital, em virtude da imperícia do cirurgião ou por não haver sangue necessário a uma transfusão: nenhuma destas circunstâncias impedirá que a morte do agredido possa ser imputada ao acto do agressor.

Segundo Pessoa Jorge [4]“para saber se certo prejuízo decorre do acto ilícito em termos de ser indemnizável pelo autor deste, é necessário averiguar. 1.º se o acto ilícito foi conditio sine qua non do prejuízo, e não o será se estes se tivesse dado mesmo sem aquele; Se o acto ilícito é, abstractamente considerado, causa adequada do prejuízo; 3.º Se, concretamente, o prejuízo resultou do acto ilícito pelo processo ou forma que atribui a este abstractamente a natureza de causa adequada”.

Aplicando estas teses, afirmou-se no Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 05.02.2013 [5] que “o ordenamento jurídico nacional consagra a doutrina da causalidade adequada, ou da imputação normativa de um resultado danoso à conduta reprovável do agente, nos casos em que pela via da prognose póstuma se possa concluir que tal resultado, segundo a experiência comum, possa ser atribuído ao agente como coisa sua, produzida por ele. Trata-se da formulação negativa desta teoria, porquanto não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha, só por si, determinado o dano, aceitando que na sua produção possam ter intervindo outros factos concomitantes ou posteriores, não sendo qualquer relação fenomenológica ou, antes, ôntico-naturalística, embora condição próxima da produção de um resultado danoso (causal) entre dois fenómenos, que releva para efeitos da teoria da causalidade adequada, mas antes aquela condição que for determinante, no plano jurídico, isto é, entre um comportamento, juridicamente, censurável, e o resultado danoso.

Também o Acórdão do STJ, de 03-12-2009 [6], se pronunciou nos seguintes termos sobre a doutrina da causalidade adequada: “não pressupõe a exclusividade de uma causa ou condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o dano. (…) Hão-de ser… as circunstâncias a definir a adequação da causa, mas sem perder de vista que para a produção do dano pode ter havido a colaboração de outros factos, contemporâneos ou não, e que a causalidade não tem de ser necessariamente directa e imediata, bastando que a acção condicionante desencadeie outra condição que, directamente, suscite o dano – causalidade indirecta. Pode também acontecer que a lesão resulte de duas ou mais causas, que vários factos tenham contribuído para a produção do mesmo dano, isto é, que haja um concurso real de causas, o que sucede, designadamente, quando nenhum dos factos, singularmente considerado, é suficiente, só por si, para produzir o efeito danoso, mas o primeiro é causa adequada do facto que se lhe sucede, praticado por outro sujeito. Relevará, nessa aferição global da adequação, a necessidade de, num juízo de prognose posterior objectiva, formulado a partir das circunstâncias conhecidas e cognoscíveis de um observador experiente, se poder afirmar que certo facto …, quando em colaboração com outro ou outros, provocaria ou favoreceria a espécie de dano em causa, surgindo este, pois, como uma consequência provável ou típica daquele facto.”

Ainda no Acórdão de 18-12-2013 [7], citando Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 8ª ed., pág. 700, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que o nexo causal entre o facto e o dano não tem necessariamente que ser directo e imediato, podendo ser indirecto e mediato; a relação jurídica de causalidade não deixa de existir se “o facto, embora não tenha ele mesmo provocado o dano, desencadeie outra condição que directamente o produza, contanto que esta segunda condição se mostre uma consequência adequada da primeira. A solução justifica-se, porque o dano, muitas vezes, apenas se torna possível pela intermediação de factores de diversa ordem (factos naturais, acções ou omissões do próprio lesado ou de terceiro) sendo razoável que o agente responda por esses factos posteriores, desde que especialmente favorecidos pela sua conduta ou tão só prováveis segundo o curso normal das coisas”.

No Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16-12-09 [8], assinala-se que “a teoria da adequação depara-se, pois, com várias dificuldades. Uma delas resulta do facto de o critério de adequação dever ser geral e abstracto, enquanto, depois de o resultado verificado, dificilmente se poder negar a sua previsibilidade e normalidade. O que conduz à conclusão de que o nexo de adequação se tem de aferir segundo um juízo ex ante e não ex post, portanto segundo um juízo de prognose póstuma: o juiz deve deslocar-se mentalmente para o passado, para o momento em que a conduta foi praticada e ponderar, enquanto observador objectivo, se, dadas as regras gerais de experiência e o normal acontecer dos factos – o id quod plerumque accidit – a acção praticada teria como consequência a produção do evento. Caso conclua que a produção do evento era imprevisível ou que, sendo previsível, era improvável ou de verificação rara, a imputação objectiva não deverá ter lugar. A adequação deve, naturalmente, referir-se a todo o processo causal e não só ao resultado, sob pena de um alargamento excessivo da imputação. É neste contexto que se situam os problemas da intervenção de terceiros ou da interrupção do nexo de causalidade, que têm em vista aqueles casos em que o resultado se verifica em consequência de uma co-actuação do lesado ou de terceiro. O critério da causalidade resolve o problema por recurso ao concurso real de causas adequadas, simultâneas ou subsequentes, considerando qualquer dos lesantes responsável pela reparação de todo o dano. Esta conclusão impõe-se ao menos nos casos em que a causa operante interrompeu a série causal hipotética e em que a causa operante só provocou o dano porque os termos da causalidade hipotética já decorridos favorecem a sua eficácia causal, de tal modo que o dano, tal como concretamente se verificou, não se teria verificado se não fossem esses termos. Quando isso suceda, estamos perante um caso de concorrência efectiva de causas – e não de um caso de causalidade hipotética e, portanto, não se coloca o problema da relevância negativa da causa hipotética.”

Como também se refere no Acórdão da Relação de Lisboa, de 01-06-2010 [9], “Em termos de adequação, o facto apenas pode considerar-se causal na medida em que, considerado no desenvolvimento do processo que conduziu ao dano e em face das regras da experiência comum, modifique o “círculo de riscos” da verificação do dano, fazendo acrescer a possibilidade objectiva de produção do resultado verificado, relevando, no critério de imputação da causalidade, a formulação de um juízo de prognose posterior objectiva que, partindo das concretas circunstâncias conhecidas e das cognoscíveis de um observador experiente, permita afirmar que o facto, mesmo tendo em conta a actuação do lesado, favorecia aquele dano, surgindo como uma consequência provável ou típica daquele facto.”

Parecendo que talhado para esta ocorrência, refere lapidarmente o Acórdão do STJ, de 11-10-2005 [10], “III - No acidente de viação, em que ocorre um choque em cadeia, há nexo de causalidade entre o primeiro embate e as consequências danosas do segundo, de acordo com a tese da causalidade adequada na sua formulação negativa, que deve-se entender adoptada no nosso sistema legal. IV - Com efeito, a primeira colisão é condição daquela que se lhe segue e o choque em cadeia não é nenhum evento extraordinário ou excepcional, no contexto normal dum acidente de viação”.

Voltando ao nosso caso.

Apesar de o veículo JE circular depois do XS e de nele ter embatido “por trás”, a verdade é que foi este, com a sua manobra ilícita e reprovável, ao guinar da faixa de saída abruptamente para a sua esquerda, ao invadir a auto-estrada e ao atravessar-se nesta, assim cortando a linha de trânsito e barrando a trajectória dos demais utentes que por esta prosseguiam normalmente, que deu origem ao quadro circunstancial no seio e a partir do qual emergiu o risco potencial de estes, surpreendidos e sem nada poderem fazer, colidirem com tal obstáculo, como, consumando-se aquele, acabou por colidir a JE.

Numa perspectiva vulgar ou naturalística, é certo que foi o DP (e não o XS) que embateu na traseira do JE e, portanto, aquele que, imediata e directamente, lhe produziu os danos.

Porém, numa perspectiva jurídica, se para o condutor do DP, não era expectável um tal acontecimento à sua frente, já quanto ao do XS era de esperar que, ao proceder como procedeu, naquelas circunstâncias, tinha, ou pelo menos devia ter tido, consciência de que iria possivelmente fazer com que nele colidisse o utente da via que, ao reingressar nela, primeiro se lhe deparasse e, em cadeia, os subsequentes, uns nos outros.

Isso é das regras da experiência de qualquer condutor, sobretudo em tais vias.

O embate “por trás” aconteceu porque aquele, ao obstaculizar inopinadamente o prosseguimento da trajectória do DP, forçou este, sem que o seu condutor nada tivesse feito para isso ou pudesse e devesse fazer para tal evitar, a atingi-lo.

Foi ele que criou as condições propícias a tal e o resultado surgiu como adequado ao risco delas adveniente, nada mais tendo sido necessário para a sua consumação.

A manobra do XS não foi indiferente, alheia, pelo contrário, ao embate do DP na traseira do JE, e para este não concorreram outras causas relevantes conhecidas.

No processo dinâmico despoletado, é certo que o embate na traseira do JE não foi provocado concomitante e directamente pelo XS, mas não há dúvida que foi este que gerou as condições necessárias que, uma vez verificadas, adequadamente bastaram para, logo de seguida, o DP embater na traseira do JE. Apesar da relação deste embate com a manobra do XS ser apenas indirecta e mediata, ela não deixa de poder e dever ser ligada e imputada à manobra desencadeada e à conduta que a impulsionou daquele.

O nexo de causalidade relevante exclui, portanto, o DP.

Com este problema da imputabilidade se prende o da culpa.

O autor apelante sustenta, com efeito, que, pelo facto de o DP ter embatido “por trás” no JE, violou o nº 1, do artº 18º, do Código da Estrada (“O condutor de um veículo em marcha deve manter entre o seu veículo e o que o precede a distância suficiente para evitar acidentes em caso de súbita paragem ou diminuição de velocidade deste, tendo em especial consideração os utilizadores vulneráveis.”), e, portanto, que em face da chamada “prova da primeira aparência”, ele se presume culpado pelo ter embatido na traseira do JE.

Sucede é que, pelo facto de o embate ter ocorrido, está afastada a inferência de que o condutor do DP não guardou a “distância suficiente” e, portanto, que a ele é imputável a colisão. Além de, aquilo que aconteceu à sua frente, não se tratar propriamente de uma “súbita paragem ou diminuição de velocidade” do JE, e de nada se saber sobre como circulava o DP e se comportou o seu condutor e, portanto, nada se poder censurar por aquilo que fez e não devia ter feito ou por aquilo que não fez e devia ter feito, a verdade é que do circunstancialismo apurado resulta ilidido o que à primeira vista parece (a “primeira aparência”).

Se é certo que, na maior parte das vezes, o juízo de responsabilidade jurídica corresponde ao que vulgarmente emana da propalada expressão popular “quem bate por trás, paga”, não o é menos que, em algumas, como esta, a justa imputação afasta tal perspectiva vulgar, ainda que compreensível empírica e estatisticamente.

É que, como também não escapa à experiência, certos casos há em que é ao comportamento reprovável, doloso ou tão só negligente, do condutor da frente, que deve ser imputada a responsabilidade pelo choque por ela originado.

Este é um deles.

De facto, ao proceder como procedeu, o condutor do XS não só em geral violou elementares deveres de cuidado impostos aos utentes da via naquelas circunstâncias, como especialmente ao afrontar normas de comportamento – referidas na sentença – tipificadas no Código da Estrada e que ali não observou, ao contrário daquilo a que estava obrigado, se tornou merecedor de censura por isso.

Juízo de censura este em que não participa o condutor do DP, apesar daquela referida “aparência”, desvanecida pela realidade apurada e da qual não resulta que este tivesse praticado qualquer facto ilícito que, afastando o curso dinâmico gerado pelo comportamento do condutor do XS ou concorrendo com o mesmo, permita justamente atribuir-lhe qualquer culpa pelo embate na traseira do JE em que aquele culminou.

Carece, pois, de razão o autor, tanto mais que baseando-se, sobretudo, no argumento de que não foi feita contraprova da referida aparência e que o condutor do DP circulava sem guardar distância suficiente, de forma descuidada, sem tomar as devidas precauções, a verdade é que aquela foi feita (a do XS) e não se provaram factos relativos a estas suas conclusões.

Não vale também dizer-se, como se esforça o apelante por dizer e justificar mas sem êxito, que o referido embate se deveu ao risco ou perigo próprios da circulação e da condução e que, portanto, há responsabilidade objectiva a esse título do condutor do DP.

Como está bom de ver, e de perceber, na origem do processo dinâmico que, interrompendo a normal circulação dos veículos, confluiu nas colisões, não esteve qualquer fenómeno atribuível à natureza da máquina ou da actividade, mas sim a manobra do XS devida à conduta da pessoa que o timonava.

Deste modo, não procede o argumento de que “estão provados todos os requisitos positivos para a procedência da responsabilização do condutor do veículo DP pelo risco”, tanto mais que, para além de citar jurisprudência a tal matéria respeitante mas ao caso inaplicável, acaba o recorrente por, apenas, enfatizar os mesmos aspectos que antes invocou para responsabilizar a título de culpa aquele condutor e que, por isso, já refutámos.

Daí que, não sendo o aludido embate na traseira do então seu JE imputável, a qualquer título, ao DP, deve julgar-se improcedente esta questão.

A segunda questão suscitada no recurso do autor A. M. consiste em saber se, independentemente de estarmos perante responsabilidade singular (do condutor do XS) ou plural (também do do DP), o entendimento seguido na sentença e a consequente decisão aí tomada segundo a qual o autor carece de legitimidade substantiva para exigir a indemnização pelo custo da reparação do JE constitui decisão-surpresa violadora do artº 3º, nº 3, do CPC, uma vez que tal pressupunha que aquele dela fosse prevenido para exercer o contraditório, pelo que deve ser revogada “em consonância” (conclusões 9 a 13).

Ora, o autor, como proprietário do veículo JE embatido e danificado, peticionou a condenação no pagamento do valor estimado em orçamento para, ele próprio, proceder à reparação dos estragos causados no veículo e para, assim, o compensar do desembolso que para o repor na situação ex ante terá de fazer e, assim eliminar o seu prejuízo.

Pressuposto primeiro de tal pretensão é que ele seja – como alegou – dono da viatura, senhor de a mandar reparar de modo a repô-la e preservá-la no seu estado pretérito ao acidente e a defender a integridade do seu património a fim de que este não fique diminuído pela depreciação no valor e utilidades dela resultante do sinistro, nem prejudicado pelo pagamento do custo da reparação e, portanto, que seja titular do direito a ser reembolsado do mesmo.

Desse alicerce parte a construção jurídica empreendida pelo próprio autor e vertida na petição, certamente congeminada, não na sua cabeça, mas no âmbito do patrocínio forense.

À alegada convicção de que se afirma imbuído segundo a qual teria direito a ser indemnizado pelo referido prejuízo – custo da reparação dos estragos na frente e na traseira do veículo – não é estranho aquele pressuposto e, portanto, a sua função básica para alcançar a pretendida compensação para o perspectivado desembolso.

Por isso, também não é surpresa o abalo e até frustração que para a referida construção jurídica (e para quem nela assentou as suas expectativas), consequentemente para o destino do pedido que no seu topo pretendia fosse alcançdo, representaria – como no entendimento do tribunal a quo vertido na sentença acabou por representar – a venda que entretanto fez do veículo e, portanto, a opção por não o reparar e, contrariamente ao pressuposto, não ter de desembolsar o custo da reparação.

Mal se percebe, pois, que invoque estarmos diante de decisão-surpresa.

A referida construção foi talhada e as perspectivas da sua subsistência pensadas e formuladas, não pelo próprio enquanto cidadão normal presumivelmente sem conhecimento das condições de êxito das mesmas e, por isso, menos ciente e prevenido das suas vicissitudes, mas antes segundo orientação técnico-jurídica devidamente habilitada repercutida obviamente na expressão e fundamentação das suas pretensões em juízo.

Se no próprio pode compreender-se algum desapontamento vulgar e acrítico por, afinal, a sentença, considerar não verificado aquele pressuposto básico para ele porventura sem relevo ao imaginar que a venda do veículo sinistrado (logo desvalorizado) não o coibiria de, além do preço, receber o valor da suposta reparação (apesar de a não ter desembolsado), não se crê que, em verdade e em rigor, possa estar-se perante decisão-surpresa, uma vez que devidamente patrocinado em juízo por quem está dotado de capacidade de prever e de prevenir as referidas vicissitudes – como a venda entretanto feita – e seus reflexos no direito e na pretensão e, por isso, não pode afirmar-se surpreendido pelo desfecho e fundamento aduzido para o mesmo.

A decisão e respectivo fundamento não são inopinados, apartados de enquadramento factual vertido nos autos nem de uma subsunção normativa de todo inesperada em face dele. Ela assenta na falha de um alegado pressuposto básico e primeiro integrante daquele e, portanto, num desfecho jurídico consequente de esperado e normal prognóstico, aliás induzido pelo próprio autor: contra o que seria de pressupor em face do pedido, ele é que decidiu vender, no decurso da acção, a viatura que, segundo a petição, se propunha reparar!

Não se vislumbrando, pois, que haja real surpresa para o seu representante no foro, parece que também não a haverá para ele, pois, ao despojar-se do bem que fazia parte do seu património desfalcado e que pretendia restaurar, era lógico e previsível que poderia ser, como foi, confrontado com uma decisão que lhe negasse os meios para o repor por aquele ter deixado de o integrar.

A não ser assim, de cada vez que, ao elaborar a sentença, o tribunal ajuizasse não se verificar um pressuposto de facto de qualquer direito (um prejuízo, por exemplo) ou que ele não preenche a respectiva previsão normativa (não constitui verdadeiro dano, não foi causado pelo facto ilícito, etc.) e, portanto, aprestando-se para o negar, sempre teria de ser prevenido quem o exerce e pretende, sob pena de poder invocar surpresa.

Refere o Prof. Miguel Teixeira de Sousa que “A verdade é que a decisão surpresa é aquela em que o tribunal decide algo com que a parte, de forma previsível, não podia contar.” [11]

Como refere o Acórdão da Relação de Coimbra, de 13-11-2012 [12]:

“I – O princípio do contraditório é um dos princípios basilares que enformam o processo civil.
II - Não obstante, importa notar que este princípio, tal como todos os outros, não é de perspetivação e aplicação inelutável e absoluta. Podendo congeminar-se casos em que ele pode ser mitigado ou mesmo postergado, vg. em situações de atendível urgência ou, no próprio dizer da lei, de manifesta desnecessidade.
III - O cumprimento do princípio do contraditório não se reporta, pelo menos essencial ou determinantemente, às normas que o juiz entende aplicar, nem à interpretação que delas venha a fazer, mas antes aos factos invocados e às posições assumidas pelas partes.
IV - A decisão-surpresa a que se reporta o artigo 3º, nº 3 do CPC não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito nem com a expectativa que elas possam ter acalentado quanto à decisão quer de facto quer de direito.”.

Pode ocorrer, pois, inconformismo e discordância, sim. Decisão-surpresa, não.

Improcederá, pois, esta questão.

A questão subsequente (terceira) invocada pelo mesmo autor no recurso principal, consiste em saber se este tem legitimidade substantiva para exigir a indemnização pelos danos no JE (da qual nunca prescindiu) e se, apesar de o não ter reparado mas antes vendido, deve ser-lhe, ainda assim, atribuída (por outra forma) indemnização correspondente à diferença entre o valor do custo orçamentado da reparação e o valor já recebido (conclusões 14 a 37).

Em sede de determinação dos danos eventualmente indemnizáveis, ponderou-se na sentença:

“In casu, sopesando-se a matéria fáctica provada, certifica-se que: (i) 19. Em 30-3-2015, o Autor despendeu a quantia de 975,00€ com a compra de óculos graduados; (ii) Em 2.2.2017, o Autor despendeu a quantia de 300,00€ com referência ao parqueamento da autocaravana com a matrícula JE na oficina “Z., Caravanas e Autocaravanas”; (iii) Em 6.2.2017, o Autor despendeu a quantia de 184,50€ com o reboque da autocaravana com a matrícula JE para …, Paredes.
Equacionando o exposto, no que se atem aos valores despendidos pelo Autor com referência ao parqueamento da JE, configuram cristalinos danos emergentes objectivamente imputáveis ao vertente acidente de viação, consubstanciando ónus financeiros que impendem sobre a esfera patrimonial do Autor a título de resultado lesivo perpetrado pela conduta ilícita do condutor da XS, postulando-se, assim, o ressarcimento dos mesmos pela Ré X em sede da assumpção da responsabilidade civil inerente ao sobredito contrato de seguro.
No que concerne aos óculos e à remanescente despesa com parqueamento do JE, sucumbiu a sua demonstração, impondo-se o decaimento da pretensão indemnizatória formulada pelo Autor.
Ademais, aferiu-se que o custo da reparação do JE ascende a cerca de 74.470,10€.

Porém, assentou-se como provado que:

(i) Em Março de 2018, o Autor A. M. declarou vender a D. S., o qual declarou comprar, o veículo com a matrícula JE, marca Burstner, pelo valor de 20.000,00€.
(ii) Pela ap. 015787 de 27 de Março de 2018, afigura-se registada a propriedade do veículo com a matrícula JE, marca Burstner, a favor de D. S..
Infere-se, assim, que, no decurso da lide, o Autor vendeu o veículo JE, pelo que não titula o direito de propriedade atinente ao mesmo.
[…]
Subsumindo os enunciados supra à situação concreta, aferindo-se que o Autor não titula hodiernamente o direito de propriedade a JE, conclui-se que não possui legitimidade substantiva para impetrar o ressarcimento da respectiva reparação, demandando-se o naufrágio deste pedido indemnizatório.”

O autor apelante argumenta que a sentença, apesar de distinguir o conceito de legitimidade substantiva para exercer um direito do de titularidade do mesmo, acabou por confundir uma coisa com a outra e por contradizer-se.

Defende, pois, que a venda do veículo não significa a abdicação nem daquele dano (custo da reparação) nem de qualquer outro dos demais danos diversos sofridos por força do acidente, uma vez que de tal bem era nessa altura proprietário e, portanto, foi o lesado.

A este respeito, a co-ré Y (DP) contrapõe que, tendo sido o pedido indemnizatório (de condenação no pagamento do valor da reparação) deduzido sob invocação da qualidade de proprietário do JE, nela interessado, tendo aquele deixado de ser dono e, assim, abdicado da perspectivada reparação, deixou de ter legitimidade para impetrar o ressarcimento do respectivo custo.

Por sua vez, a X explanou o seguinte:

“O autor instaurou a presente ação no dia 12.10.2017.
Como causa de pedir, alegou que era proprietário do veículo sinistrado JE (artigo 2º da petição inicial), que a reparação desse veículo havia sido orçamentada em determinada quantia (artigo 38º da p.i.), que não possuía condições económicas que lhe permitissem custear essa reparação (artigo 53º da p.i.), e que, dessa quantia necessária para a reparação, a W Seguros havia assumido e pago ao autor a quantia de € 38.291,93.
Em face desta causa de pedir, o autor peticionou a condenação das rés a pagar-lhe a quantia de € 36.178,17, correspondente à diferença entre o valor orçamentado para a reparação do JE e o recebido pela W, justificando esse pedido nos custos de reparação do JE.
Ou seja, o autor reclamou a restauração do seu veículo nas condições em que se encontrava antes do acidente, invocando para efeito de legitimidade dessa pretensão o facto de ser o dono e o legítimo possuidor da autocaravana JE, e que pretendia repará-la.
Sucede que no decurso da ação o autor alienou o veículo JE. Na verdade, em sede de julgamento apurou-se que em março de 2018 o autor vendeu a D. S. aquela autocaravana, pelo preço de € 20.000,00, que a registou a seu favor, tendo em consequência, sido julgado provado a seguinte matéria de facto, a qual não foi objeto de impugnação por parte do autor no recurso que interpôs da sentença (artigos 25º e 26º dos factos provados):
25. Em Março de 2018, o Autor A. M. declarou vender a D. S., o qual declarou comprar, o veículo com a matrícula JE, marca Burstner, pelo valor de 20.000,00€.
26. Pela ap. 015787 de 27 de março de 2018, afigura-se registada a propriedade do o veículo com a matrícula JE, marca Burstner a favor de D. S..”
Em rigor, e perante esta nova factualidade, o autor deveria ter usado da faculdade prevista no artigo 588, nº 1 do Código de Processo Civil e, através de articulado superveniente, vir aos autos informar que a restauração/reparação do JE inicialmente pretendida já não era possível, precisamente por ter alienado o veículo, alterando por esse meio a causa de pedir no sentido de que, em consequência do acidente ter sofrido uma redução na sua esfera patrimonial que deveria ser reposta pelas rés.
Porém, nada disse, aguardando que esse facto ficasse arredado dos autos, de forma a obter vantagens indevidas.
Com efeito, a procedência do pedido de pagamento do valor da reparação, aliado ao facto de o demandante não ter despendido aquele valor por ter vendido o veículo por € 20.000,00, significaria que o autor acabaria por embolsar a quantia de € 94.470,01 (€ 38.291,93+€ 36.178,17+€ 20.000,00), tudo em face de um veículo que tinha o valor comercial de € 50.000,00 (artigo 10º dos factos provados).
Isto é, com o acidente o autor preparava-se para aumentar o seu património em € 44.470,01, sem causa legítima e à custa das rés.
Assim sendo, bem andou a douta sentença recorrida quando decidiu que no momento em que alienou o JE, o autor prescindiu da sua reparação que, aliás, deixou de poder fazer, por impossibilidade legal, deixando de ter legitimidade substantiva para exigir a reparação do JE ou o valor necessário para esse efeito.”

Do mesmo passo e sem prescindir, ainda acrescentou:

“II. Falta de requisito da obrigação de indemnizar: o dano.
A recorrida teve já oportunidade de trazer perante este tribunal superior esta questão na apelação que deduziu da douta sentença, mostrando-se necessário replicá-la neste preciso momento, de forma a justificar a falta de razão das pretensões do ora recorrente.
O nº 1 do artigo 483º determina que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
É perfeitamente pacífico o entendimento no nosso ordenamento jurídico de que um dos pressupostos ou requisitos da obrigação de indemnizar decorrente desse artigo 483º é a existência ou verificação de um dano, que este dano seja causado pela ação ou omissão ilícita, e que o limite dessa obrigação de indemnizar tem como limites o dano causado.
Assim, para que haja um dever de indemnizar há que existir um determinado dano, um prejuízo causado ao lesado com a conduta do lesante, que pode ser patrimonial ou não patrimonial.

Ensina Antunes Varela que o dano patrimonial “é o reflexo do dano real (destruição, subtracção ou deterioração de carta coisa) sobre a situação patrimonial do lesado” e que esse dano corresponde à medida ou diferença entre “a situação atual do lesado e a situação (hipotética) em que ele se encontraria se não fosse o ato lesivo”.

Torna-se necessário chamar à colação a lei e estes ensinamentos perante o que vem provado nos artigos 10º, 14º e 25º, e que é o seguinte:

- “À data do acidente, o JE tinha o valor comercial de 50.000,00€”;
- “Em consequência do embate, a W Seguros pagou ao Autor a quantia de 38.291,93€ a título de danos próprios”; e
- “Em março de 2018, o Autor A. M. declarou vender a D. S., o qual declarou comprar, o veículo com a matrícula JE, marca Burstner, pelo valor de 20.000,00€”.
Do exposto resulta que antes do acidente o autor tinha no seu património a autocaravana JE no valor de € 50.000,00, e que em resultado do sinistro e da venda que fez desse veículo, arrecadou €58.291,93, ou seja, obteve um ganho no seu património € 8.291,93, valor a mais do que possuía antes do acidente.
Pelo exposto, e salvo melhor opinião, afigura-se à ré que não se verifica um dos requerisitos essenciais da responsabilidade civil delitual, a existência de um dano na esfera jurídica do autor. Pelo contrário, o ato lesivo serviu para aquele aumentar o seu património.
Não existindo dano, não há qualquer obrigação de indemnizar.
Por sua vez, a inexistência de dano indemnizável determina que não possa ser exigido à recorrida X) o pagamento de qualquer quantia a título de dano patrimonial por danos causados ao JE, acionada que foi na qualidade de seguradora do veículo a quem o recorrente imputa a responsabilidade pelo acidente (o que se rejeita).
Sendo o seguro de responsabilidade civil automóvel um seguro de danos, a prestação do segurador “está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro”, sendo que “o dano a tender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro” (artigos 128º e 130º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS) aprovado pelo DL 72/2008, de 16/04.
Aplicando estas normas legais aos factos provados no que respeita aos prejuízos suportados pelo autor decorrentes dos danos provocados no seu veículo JE, conclui-se que o valor patrimonial do JE imediatamente antes do sinistro, que era de € 50.000,00, foi já reposto no património do autor, até com excesso, tendo sempre presente que ao alienar o veículo o autor não só prescindiu, como tornou impossível a reparação desse veículo.
Estando o autor já ressarcido da totalidade do dano decorrente do acidente, não poderá aquele exigir da ré X, enquanto seguradora do virtual responsável pelo acidente, o pagamento de qualquer quantia, sob pena de enriquecimento ilegítimo.”

Ora, não se trata aqui obviamente do problema da legitimidade ad causam a seu tempo suscitado, analisado e decidido.

Sem embargo de se ter partido de uma distinção conceitual bebida na Doutrina citada, afigura-se-nos que, na realidade, o sentido e o efeito prático do que a este propósito se entendeu, expressou e decidiu na sentença nada mais significa e implica senão que o autor apelante, ao vender o veículo carente de reparação e, portanto, ao colocar-se, por sua vontade, numa situação em que deixou de querer e poder fazê-la, inviabilizou a perspectiva em que se baseara de, para obter a restauração natural da coisa danificada, ficar ainda assim ele próprio prejudicado pelo desembolso do respectivo custo necessário e que, portanto, tendo-se desse modo eximido de vir a carregar tal prejuízo, afastou a fatalmente a possibilidade de por ele pretender vir a ser indemnizado e de, portanto, vir a titular esse direito de crédito.

Desse ponto de vista, não é legítimo que ele persista em querer e o tribunal atribuir-lhe uma prestação indemnizatória por esse alegado dano que não sofreu nem sofrerá.

É claro que a venda não o despoja dos vários outros prejuízos por ele sofridos em consequência do acidente. Pense-se na hipótese, felizmente não ocorrida, de ter sofrido lesões corporais. Sempre conservaria o direito à respectiva indemnização.

Nem mesmo dos prejuízo resultantes dos estragos na viatura, como será, por exemplo, o de estes lhe terem reduzido o seu valor venal e, portanto, o respectivo património, já que, como é óbvio, ter e vender um veículo danificado em consequência do acidente não é o mesmo que tê-lo e vendê-lo íntegro e antes dele.

Simplesmente, trata-se de prejuízos, de danos e de prestações indemnizatórias com fundamento e natureza diversos e logo diferenciadores da causa de pedir e do pedido por na substância de cada um destes assim se reflectirem.

Se, por efeito do acidente e dos estragos acarretados, a viatura passou a valer (no mercado) menos do que valia e, ao aliená-la, o lesado seu dono se viu constrangido a receber um preço menor do que aquele que lhe pagariam se não fosse tal situação, é claro que essa diferença resultou num prejuízo, correspondente dano e constitui determinado fundamento para certo pedido em conformidade.

Mas se, propondo-se conservá-la como dono e repará-la ele próprio de modo a repô-la na situação anterior, peticiona o custo previsto da reparação que terá de desembolsar para o efeito, o prejuízo daí resultante não é o mesmo. Este traduzir-se-á na diminuição do seu património financeiro na medida do preço que terá de pagar.

O dano é, então, diferente, o fundamento (no quadro factual e jurídico que atina com a diversidade de danos indemnizáveis pelo acto lesivo, respectivos pressupostos e critérios de indemnização) outro, e o pedido substancialmente não se confunde.

Nesta perspectiva, se se compreende a sua afirmação de que “a alienação do bem danificado não significa que o lesado se conforme com a perda do seu património, aceite prescindir de ser indemnizado ou desista de responsabilizar o lesante”, é bem verdade que, como reconhece o próprio recorrente nas suas alegações, “a reparação do veículo é apenas uma das formas de indemnizar previstas na lei”.

A forma por que optou era na realidade uma.

Se, como acrescenta, a alienação do veículo “significa, tão só, a demonstração de que, no caso concreto, o lesado não tem interesse na reparação do seu bem, o que é legítimo, optando por uma outra forma de reconstituir o seu património” e se tal “sempre passará pela prestação a que o lesante se encontra obrigado em virtude da prática do facto lesivo”, então tratar-se-á de outra.

Daí decorre que perdendo o direito à prestação tal como a configurou e peticionou com fundamento naquela finalidade, mas não tendo alterado, em consonância com a nova realidade fáctica superveniente, a causa de pedir nem o pedido, outra solução não resta ao tribunal senão, por um lado, negar aquela e, por outro, escusar-se de se pronunciar sobre outra, muito menos impô-la, desde logo ao arrepio dos princípios adjectivos.

Tratar-se-ia de objecto diverso (artº 609º, nº 1, CPC), alheio ao objecto do processo tal como disposto e pretendido em função do pedido e da causa de pedir primitivos e em torno dos quais se estabilizou a instância da presente acção.

Na sentença não se negou, em absoluto, o direito a ser indemnizado por qualquer forma lícita, nem disso se tratava. Afastou-se, sim, foi o de o ser por via da entrega do valor do custo da reparação, que era o pretendido e cujo direito ao tribunal competia apreciar.

Como resulta da jurisprudência que o próprio autor cita mas não o abona, “cabe ao lesado optar pela indemnização, ou pela reparação” [13] e “nunca se deverá eleger o valor de reparação como medida da indemnização em dinheiro. Na verdade, aquele valor apenas deverá ser considerado com o fito de proceder à reparação”. [14]

Sendo certo que não resulta do “primado substantivo da reconstituição natural” – que era a visada – “a impossibilidade processual da dedução de um pedido principal de indemnização pelos danos derivados do acto ilícito” [15], a verdade é que temos de nos cingir àquele pedido, sendo processualmente impossível mesmo que substantivamente para tal haja fundamentos “que se revogue a sentença recorrida substituindo-se a decisão por uma que condene a Ré (ou as Rés) a indemnizar pelo dano da destruição da sua autocaravana.”

É que este outro dano (o consequente à destruição) não foi alegado, fundamentado e muito menos peticionado. Apenas o foi o consequente à reparação.

De resto, como defende a ré X, resultando dos factos que o veículo tinha o valor comercial de 50.000€ (facto 10), tendo o autor recebido da sua seguradora 38.291,93€ (facto 14) e pela sua venda mais 20.000€ (facto 25), ou seja, tendo embolsado um valor superior ao do bem, não pode pretender ainda mais o da suposta reparação ou qualquer outro por um eventual prejuízo associado que não alegou nem pediu e que dificilmente se concebe como agora arquitecta no recurso: “indemnização correspondente à diferença entre o valor do custo orçamentado da reparação e o valor já recebido”.

Improcede, pois, nesta parte, o recurso.

Respeita a questão seguinte (a quarta) do recurso do autor a semelhante problema de saber se deve ser-lhe atribuída indemnização pela privação do uso do veículo, a fixar por equidade (uma vez que não se provou o valor do custo do aluguer diário de autocaravana semelhante), indemnização esta que, segundo diz, “deve abranger o período entre a data do acidente e a data da reparação do veículo” (conclusões 38 a 41).

Sendo caso para perguntar, desde logo – qual data da reparação (se o autor decidiu não a efectuar e se despojou do veículo sinistrado)? – é evidente que, por razões similares, também nesta parte o recurso deve improceder.

Sobre isto consta da sentença:

“No que tange à privação de uso do JE, […]

Na situação sub judice, talqualmente o supra referenciado, o Autor alineou o JE, pelo que a pretensão indemnizatória concernente à privação de uso é infundamentada, postulando-se o decaimento do respectivo pedido condenatório e de valores vincendos.“

Valendo-se daquilo que usualmente se entende acerca da indemnização por tal dano, a verdade é que, como salientam as rés, por um lado apenas se provou que se tratava de uma auto-caravana que era “utilizada pelo autor e sua família para os momentos de lazer, quer em Portugal, quer no estrangeiro”.

Não se provou que tal utilização ocorresse “constantemente”, como alegara na petição, nem “durante cerca de 20 dias por mês” (?) como alega agora, nem que o custo diário do aluguer de uma idêntica fosse de 200€.

Desconhece-se, pois, a extensão, a intensidade da utilização que lhe era efectivamente dada e que, dada a natureza do veículo, presume-se ser incerta, apenas nos tempos livres (desconhecendo-se quais).

Daí que a alegada privação consequente ao sinistro e aos danos desde logo não se nos apresente com uma densidade concreta e suficientemente constrangedora, prejudicial para a sua pessoa e vida em família, e merecedora de ser compensada, como se admite (e tem admitido) ser de presumir em relação a qualquer outro veículo automóvel ligeiro de passageiros mantido e utilizado pelo dono para os seus múltiplos afazeres quotidianos, sejam eles pessoais, profissionais, familiares, recreativos ou quaisquer outros benefícios com cuja disponibilidade conte para a respectiva satisfação confortável.

Não é possível, neste caso, reconhecer se e em que medida a tal nível ocorreu insatisfação, constrangimento ou outro prejuízo atendível.

Mas mais:

Tendo o sinistro ocorrido em 31-12-2016, o certo é que o autor logo em Fevereiro de 2017 (cerca de um mês após!) vendeu a autocaravana a J. G. e, embora tendo ambos acordado em Agosto seguinte dar sem efeito o negócio, em Março de 2018 vendeu-a a D. S..

Tal significa que, desde o sinistro, jamais esteve no seu horizonte dispor de tal veículo e utilizá-lo, pelo que, devido a essa sua postura, não pode conceber-se estar e sentir-se privado das utilidades de um bem com que logo deixou de contar, que por isso se encontra prejudicado e que tal representa um dano merecedor de indemnização, ainda que a fixar em termos equitativos, sequer pelo período de cerca de um mês em que ainda a teve até se ter decidido pela venda, muito menos “até à data da reparação”.

Daí que deva também improceder esta questão e com ela totalmente a apelação do autor.
*

Retomando agora o recurso subordinado da ré X, importa apurar se, contrariamente ao decidido na sentença, deve, quanto à culpa e ao nexo de causalidade, ser julgado que o acidente ocorrido entre os veículos JE e XS se ficou a dever a culpa efectiva e exclusiva do próprio autor, condutor do primeiro, e que o acidente entre os veículos JE e DP se ficou a dever a culpa efectiva e exclusiva do condutor deste.

Quanto a este último embate, defendeu a recorrente que:

“Da mesma forma que o condutor do JE, também o condutor do DP dedicava toda a sua atenção à linha de divisão das vias de trânsito, que lhe serviam como guia e orientação na condução. Como afirmou este condutor, o nevoeiro não permitia que visse os veículos que circulavam à sua frente, mas isso não o impediu de “ir andando” e de se orientar na estrada “pela linha do meio”.
Tal como o condutor do JE, também o condutor do DP dedicava toda a sua atenção às marcas rodoviárias marcadas no pavimento, seguindo desatento aos veículos ao trânsito que rodava à sua frente. E porque também seguia a velocidade e a distância desadequadas às condições que no momento se faziam sentir, não conseguiu imobilizar o DP no espaço livre e visível à sua frente, nem se desviar do JE, de forma a evitar o embate.
O acidente entre os veículos DP e JE ocorreu, pois, por culpa efetiva e exclusiva do condutor do DP, o qual, com o descrito comportamento, violou as regras previstas nos artigos 18º, nº 1, 24º, nº 1 e 25º, nº 1, al. f) do Código da Estrada, contraordenações que foram a única causa deste segundo embate. ”.

E, quanto àquele, sustentou que:

“Como se depreende deste testemunho, o autor e condutor do JE não prestava a sua atenção aos veículos que rodavam à sua frente, mas antes às marcações da via, de forma a guiar-se pelas mesmas dada a reduzida visibilidade causada pelo nevoeiro.
As fracas condições de visibilidade impediam-no de avistar os veículos que o precediam, desconhecendo, por isso, a distância que o separava da autocaravana XS. Mesmo assim, continuou a sua marcha, e apenas conseguia avançar porque se guiava por uma das marcas longitudinais marcadas no pavimento que dividia as vias de trânsito.
Porque tinha toda a sua atenção nas marcas rodoviárias, seguia desatento ao trânsito que rodava à sua frente, sendo necessário que a esposa o tivesse alertado para a presença do XS. E porque seguia a velocidade e a distância desadequadas às condições que no momento se faziam sentir, não conseguiu imobilizar o JE no espaço livre e visível à sua frente, nem se desviar do XS, de forma a evitar o embate.
O acidente entre os veículos JE e XS ocorreu, pois, por culpa efetiva e exclusiva do autor, o qual, com o descrito comportamento, violou as regras previstas nos artigos 18º, nº 1, 24º, nº 1 e 25º, nº 1, al. f) do Código da Estrada, contraordenações que foram a única causa deste primeiro embate.”

Ora, dependendo tal pretensão da preconizada modificação da decisão de facto e não a tendo logrado, logo por aí claudica esta pretensão recursiva subordinada.

Por outro lado, quanto à imputação (ora ao autor, ora ao condutor M. R.) do embate “por trás” (ora no XS pelo JE, ora neste pelo DP), uma vez que os argumentos utilizados andam de par com os esgrimidos pelo próprio autor, no seu recurso principal, em defesa da responsabilidade conjunta, vale aqui, quanto a ambos, aquilo que, para os refutar e afastar, já a propósito do seu recurso nessa parte atrás ficou dito e que ora se reitera, seja quanto à causalidade, seja quanto à culpa, remetendo-se para as razões, com apelo à necessária adaptação, então referidas acerca do embate na traseira do JE pelo DP

Apesar de ambos terem embatido “por trás”, já atrás se disse quanto ao DP – e são semelhantes as de referir quanto ao JE – que não resultam demonstradas as referidas razões de imputação aos respectivos condutores de qualquer responsabilidade, essencialmente porque não provada a matéria em que as mesmas se tentaram estribar e, pelo contrário, assentes as que, como na sentença, atribuem ambas as colisões à manobra do XS e à conduta do seu timoneiro.

Daí que a questão deva improceder.

A última questão suscitada e respeitante ao recurso subordinado da X consiste em saber se não se verifica, na esfera jurídica do autor, qualquer dano, enquanto pressuposto da obrigação de indemnizar, mormente quanto ao por ele pretendido valor da reparação (uma vez que nem efectuou esta e vendeu o veículo por 20.000€, valor que acrescido ao que recebeu da sua seguradora ultrapassou o do valor comercial da viatura), devendo a decisão condenatória (por falta daquele requisito) ser totalmente (mesmo quanto aos 484,50€) revogada e alteradas as custas em conformidade.

Ora, quanto ao pretendido valor da reparação, já atrás nos referimos a propósito do recurso do autor, julgando-se que esta recorrente a suscitou mais como resposta ao mesmo do que como apelação, pois que não foi condenada em tal pedido.

Quanto à sua condenação no valor de 484,50€, julga-se que só por lapso a englobou, uma vez que nenhuma questão a tal objectou nas suas alegações.

Daí que também por aí improceda o recurso.

V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedentes ambos os recurso (principal e subordinado) e, em consequência, em negar-lhes provimento.
*
Custas de cada um deles pelo respectivo recorrente - (artºs 527º, nºs 1 e 2, e 529º, do novo CPC, e 1º, nºs 1 e 2, 3º, nº 1, 6º, nº 2, referido à Tabela anexa I-B, 7º, nº 2, 12º, nº 2, 13º, nº 1 e 16º, do RCP).
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Notifique.
Guimarães,06 de Fevereiro de 2020
Este Acórdão vai assinado digitalmente no Citius, pelos Juízes-Desembargadores:

Relator: José Fernando Cardoso Amaral
Adjuntos: Helena Maria de Carvalho Gomes de Melo
Eduardo José Oliveira Azevedo



1. Trata-se, por certo, de lapso esta alusão à “secura” do pavimento, uma vez que, segundo a sentença, o nevoeiro, que “assomou” após o túnel do Marão e que era “tangível”, naturalmente o humedeceu – como os depoentes confirmaram dizendo que o piso estava molhado.
2. De que se não transcrevem as longas considerações teóricas.
3. Das Obrigações em Geral, 5.ª edição, Vol. I, pág. 845, nota 1.
4. Direito das Obrigações, 1976, pág. 569.
5. Relatado pelo Consº Hélder Roque, in www.dgsi.pt.
6. Relatado pelo Consº Alves Velho, in www.dgsit.pt.
7. Relatado pelo Consº Fernando Bento, in www.dgsi.pt.
8. Relatado pelo Desemb. Henrique Antunes, in www.dgsi.pt.
9. Relatado pela Desemb.ªMárcia Portela, proc. 129/07.4TBPST.L1-6, in www.dgsi.pt.
10. Relatado pelo Consº Bettencourt de Faria, processo 05B2360, in www.dgsi.pt.
11. Comentário no Blog do IPPC ao Acórdão da Relação do Porto, de 08-03-2019, no processo 14727/17.4T8PRT-A.P1.
12. Processo 572/11.4TBCND.C1, relatado pelo Desemb. José Avelino Gonçalves, in www.dgsi.pt.
13. Acórdão da Relação de Lisboa, de 09-02-2006, processo 11972/2006-6.
14. Acórdão da Relação do Porto, de 16-01-2014, processo 4135/07.0TBVFR.P1.
15. Fazendo fé na transcrição do Acórdão do STJ, de 14-09-2010, feita pelo próprio autor, já que de nenhum indica melhores elementos identificativos e localizadores.