Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1702/20.0T8BRG-A.G1
Relator: JOSÉ CARLOS PEREIRA DUARTE
Descritores: INVENTÁRIO APÓS DIVÓRCIO
PASSIVO
ACORDO QUANTO À CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
USO EXCLUSIVO E ENCARGOS
ACORDO AUTÓNOMO QUANTO AO PAGAMENTO POR UM DOS CÔNJUGES
NULIDADE
ART.º 1730.º DO CÓDIGO CIVIL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O processo de inventário em consequência de divórcio não se destina apenas a dividir os bens comuns dos cônjuges, mas também a liquidar definitivamente as responsabilidades entre eles e deles para com terceiros, o que pressupõe sempre a relacionação de todos os bens, próprios ou comuns, e também daqueles créditos.
II – O processo de inventário, enquanto processo especial, regula-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns; em tudo o quanto não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum.
III – A prolação de despacho saneador, que conheça, total ou parcialmente do mérito de algum pedido ou de exceção perentória, sem que o estado do processo o permita, por não conter toda a matéria de facto relevante e a sua aquisição para o processo carecer de produção de prova, reconduz-se à invocação de um “erro de julgamento de direito”, quanto à questão de saber se estavam reunidas aquelas condições para a prolação de decisão de mérito e que, a verificar-se, determina a revogação da decisão, com a consequência de os autos prosseguirem os termos processuais adequados da fase do saneamento do processo, e não a qualquer nulidade, nomeadamente, por violação do principio do inquisitório, que trata de uma outra e diferente realidade, já no concreto domínio da produção de provas.
IV – Constitui cláusula essencial do “Acordo da casa de morada de família” a estipulação de qual dos cônjuges fica a utilizar aquela, durante a pendência da acção de divórcio e até à partilha.
V – As cláusulas, constantes de um documento escrito, subscrito por ambos os cônjuges, diferente e contemporâneo daquele “Acordo…”, que estipulam que o cônjuge que fica a utilizar a casa, assume o pagamento dos respetivos encargos, não são elemento essencial daquele “Acordo…”, mas elemento acessório, na medida em que o seu conteúdo está para além dele, não o contradiz, nem o modifica, mas apenas o completa.
VI – E, sendo assim, não tem de constar daquele e nada obsta à sua validade formal.
VII – Estando subjacente à invocação daquelas cláusulas, que as mesmas correspondem à vontade das partes e não tendo o recorrido alegado que a não integração daquelas cláusulas no “Acordo…” é uma consequência de as mesmas terem deixado de corresponder á vontade das partes, nada permite afirmar que as partes quiseram integrar naquele, apenas o que dele consta e nada mais.
VIII – O art.º 1730º do CC tem em vista evitar que, na partilha e pelos mais diversos motivos, a atribuição de bens a um dos cônjuges exceda, de forma manifestamente desproporcional, a quota que lhe cabe ou, dito de outra forma, tem-se em vista “vedar distribuições desigualitárias do património comum”.
IX - As referidas cláusulas não são nulas à luz do disposto no art.º 1730º do CC pois não implicam com a participação dos cônjuges no património comum e com a partilha, já que as mesmas se destinam a vigorar a partir do momento em que o divórcio decretado produz efeitos, constituem contrapartida do uso exclusivo da casa de morada de família pelo recorrido, suprindo as suas necessidades de habitação, ao contrário da recorrente que, teve de fazer face a essa necessidade, mediante o arrendamento de uma casa para si e para os filhos, nada obstava a que as partes estabelecessem que o recorrido pagaria uma determinada quantia, como “compensação” pelo facto de ter o uso exclusivo da casa, o tribunal podia dar de arrendamento a casa de morada de família a um dos cônjuges e estabelecer o pagamento de uma renda ao cônjuge não utilizador.
X – A pretensão do recorrido de fazer repercutir na meação da recorrente, aqueles encargos, mediante o seu relacionamento como passivo, no inventário em consequência do divórcio, depois de ter assumido, de boa fé, o seu pagamento, não poderia deixar de configurar um venire contra factum proprium e geraria um desequilíbrio patrimonial entre os ex-cônjuges, senão mesmo um locupletamento do recorrido à custa da recorrente.
Decisão Texto Integral:
Recorrente: AA
Recorrido: BB

ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

1. Relatório

A 24/0472017 AA apresentou em Cartório Notarial requerimento de Inventário, tendo em vista a partilha por divórcio contra BB, indicando que a partilha far-se-á de acordo com o regime da comunhão de adquiridos.

Com o referido requerimento juntou, além do mais, Acta de Conferência realizada na Conservatória do Registo Civil ..., a .../.../2009 e onde consta que a Sr.ª Conservadora decretou o divórcio por mútuo consentimento entre a requerente e o requerido, declarando dissolvido o casamento.

Foi designado cabeça de casal o requerido, e data para compromisso de honra e declarações de cabeça de casal, o que teve lugar, tendo o mesmo declarado que requerente e requerido foram casados no regime da comunhão geral de bens e requerido prazo para a apresentação da relação de bens.

A 23/01/2019 o cabeça de casal apresentou relação de bens, em que, no que releva à economia do recurso, relaciona no passivo as seguintes verbas:

“Verba n.º 1
Deve o património comum, ao cabeça de casal BB pelo pagamento das prestações e seguros mensais à Banco 1... relativo aos anos de 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017 e 2018 a importância total de (…) € 42 358,41.

Verba n.º 2
Deve o património comum, ao cabeça de casal BB pelo pagamento do seguro da habitação do casal, relativo aos anos de 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016 e 2017 a importância total de (…) € 1 144,67.

Verba n.º 3
Deve o património comum, ao cabeça de casal BB pelo pagamento do condomínio da habitação do casal, relativo aos anos de 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017 e 2018 a importância total de (…) € 4 865,00.

Verba n.º 4
Deve o património comum, ao cabeça de casal BB pelo pagamento do IMI relativo aos anos de 2012, 2013, 2014, 2015, 2016 e 2017 a importância total de (…) € 2 945,75.”

A requerente requereu a remessa dos autos ao tribunal, o que foi deferido.

A requerente, notificada da relação de bens, veio “reclamar” dizendo, no que releva à economia do recurso, que as verbas n.ºs 1 a 4 do passivo, associadas ao bem imóvel constante da verba n.º 1 da Relação de bens, devem ser excluídas do passivo; impugna os valores apresentados; na eventualidade de o cabeça de casal comprovar  a realização dos pagamentos que invoca, os mesmos não lhe conferem qualquer direito de crédito sobre o património dissolvido do casal porque, aquando da separação e divórcio, requerente e requerido acordaram em atribuir o uso e habitação exclusivo da casa de morada de família (verba n.º 1 da Relação de bens) ao cabeça de casal, ficando, este, em contrapartida, responsável pelo pagamento, sozinho e na totalidade, de todas as obrigações (dívidas e despesas) inerentes ao referido imóvel, tais como prestações dos empréstimos bancários contraídos para a aquisição daquele, seguros, quotas e despesas de condomínio e IMI, até á concretização da venda ou partilha do mesmo, como compensação (preço) pelo uso exclusivo do imóvel, conforme cláusulas 2.1.1.2. e 2.1.1.3. do contrato-promessa de partilha que outorgaram; a reclamante teve de arrendar um outro imóvel para si e para os filhos, pelo que ficou a pagar uma renda; aquele acordo de pagamento, como compensação pelo uso exclusivo, foi uma condição para tal atribuição; a pretensão do cabeça de casal viola o princípio da boa fé e constitui um enriquecimento sem causa à custa da requerente.
Arrolou testemunhas.

O cabeça de casal respondeu, dizendo, no que ora releva, que pode defender-se que o contrato promessa, porque não viola o principio da imutabilidade do regime de bens, é válido; e sendo assim não há que recorrer ao inventário, mas à execução específica do mesmo; a interessada AA recorreu ao inventário para se proceder à partilha, pelo que não pode invocar agora o contrato-promessa de partilha; mas o contrato-promessa é nulo porque as cláusulas 2.1.1.2. e 2.1.1.3. do contrato-promessa de partilha, ao responsabilizar somente o cabeça de casal pelo pagamento de todos os encargos relativos ao imóvel, viola o disposto no n.º 1 do art.º 1730º do CC; e sendo nulo, não pode ser invocado; não sendo nulo, ter-se-ia de arquivar o processo de inventário e discutir-se a partilha através de uma acção de execução específica; as despesas que o cabeça de casal continua a suportar têm de ser conferidas na conferência de interessados.

A 06/07/2021 foi proferido despacho que terminou da seguinte forma:
“Ora, sendo este o estado dos autos, importa que a requerente esclareça a sua posição por forma a que o Tribunal se pronuncie em conformidade, mormente quanto à validade daquele [contrato-promessa] e, após, quanto aos efeitos dali resultantes…”

Pronunciou-se a requerente dizendo, em síntese, que no contrato-promessa ficou a constar que o imóvel seria vendido, de comum acordo, partilhando ambos o produto da venda; face à forte resistência do cabeça de casal ao longo dos oito anos seguintes, que impossibilitou sempre a concretização da venda do imóvel, não restou alternativa à requerente senão instaurar processo de inventário, de modo que fosse efectivamente concretizada a partilha  ao longo dos oito anos que decorreram desde a celebração do contrato-promessa; o contrato-promessa foi junto para prova do acordo por si alegado.

A 08/03/2022 foi proferido despacho que apreciando a “reclamação” quanto às verbas n.ºs 1 a 4 do passivo, decidiu:
 “Em face do exposto, sem necessidade de mais considerações, importa concluir pela improcedência do pedido de exclusão de relacionação do passivo invocado.
Nessa perspectiva mantém a relacionação do passivo, devendo o cabeça de casal juntar documento emitido pela entidade bancária com os montantes por si pagos quanto ao período respectivo, bem assim, das respetivas e demais entidades, quanto aos demais valores indicados, a saber pagamento de seguros, IMI, e quotas com condomínio e que será sujeito a apreciação em sede de conferência.”

Interpôs a requerente recurso do referido despacho, pedindo que seja julgado procedente o recurso e a decisão recorrida ser substituída por Acórdão que:

A) Julgue procedente, por provada, a reclamação apresentada pela apelante contra a relação de bens, designadamente na parte em que peticionou a exclusão das verbas nºs 1 a 4 do Passivo da relação de bens, nos termos e pelos fundamentos aduzidos;
Se assim não se entender,
B) Declare a nulidade da decisão ora recorrida por violação do princípio do inquisitório, atenta a preterição por parte da Mma Juiz a quo da produção da prova testemunhal requerida pela apelante na reclamação contra a relação de bens, diligência essencial para a decisão da presente causa, determinando-se a inquirição das testemunhas arroladas pela apelante;
           
Terminou as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª – Vem o presente recurso da decisão proferida no douto despacho com a referência ...93, na parte em que julgou improcedente o pedido formulado pela requerente AA no incidente de reclamação contra a relação de bens que apresentou (referência ...70 e ...71), designadamente de exclusão de relacionação das verbas nºs 1 a 4 do Passivo da relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal (referência ...29), determinando que se mantivesse a relacionação de tais verbas do passivo.
2ª - Atenta, por um lado, a prova documental que foi apresentada pela apelante com a reclamação contra a relação de bens que apresentou, bem como a prova testemunhal cuja produção aí também requereu, a qual não foi atendida pela Mma Juiz a quo, não pode a aqui apelante conformar-se com a decisão prolatada pela Mma Juiz a quo, a qual, ressalvado o respeito devido, se impunha fosse diversa.
3ª - O casamento entre a apelante e o cabeça-de-casal foi dissolvido por decisão de divórcio por mútuo consentimento proferida em 08/05/2009, pela Conservatória do Registo Civil ....
4ª - Aquando da instauração do processo de divórcio por mútuo consentimento na Conservatória do Registo Civil ..., em 06/02/2009, o cabeça-de-casal e a apelante instruíram-no com os seguintes acordos: “relação de bens comuns, acordo da casa de morada de família, acordo sobre prestação de alimentos e acordo do exercício das responsabilidades parentais”.
5ª - Na mesma data (06/02/2009), e em simultâneo, o cabeça-de-casal e a apelante outorgaram um contrato-promessa de partilha dos bens comuns do casal – doc. ... junto à reclamação contra a relação de bens apresentada pela apelante (referência ...70).
6ª - Em conformidade e em complemento com o que tinham feito constar do ”acordo da casa de morada de família” que juntaram ao processo de divórcio por mútuo consentimento, designadamente que o uso e habitação da casa de morada de família ficava atribuído em exclusivo ao cabeça-de-casal, e como formalização do acordado, estipularam o cabeça-de-casal e a apelante AA no contrato promessa de partilha que celebraram as cláusulas seguintes :
- (cláusula) “2.1.1.2. - Durante o período que decorra entre a data de apresentação do requerimento de divórcio por mútuo consentimento e a data da venda do bem da verba um (casa de morada de família), apenas o primeiro contraente (cabeça-de-casal) habitará o apartamento e garantirá o cumprimento das obrigações inerentes aos contratos de empréstimo hipotecários a favor da Banco 1...;
- (cláusula) 2.1.1.3. - O primeiro contraente (cabeça-de-casal) responsabiliza- se pelos pagamentos das demais despesas correntes inerentes à casa de morada de família até à data da partilha.”
7ª - Tendo, assim, ficado expressamente acordado entre o cabeça de casal e a apelante AA, aquando da atribuição da utilização da casa de morada de família em exclusivo ao cabeça-de-casal, que este ficaria responsável pelo pagamento integral e da totalidade das prestações mensais dos empréstimos bancários (hipotecários) contraídos para a aquisição desta habitação junto da Banco 1..., seguros associados (multirriscos e vida), quotas e despesas do condomínio e IMI, entre outras, desde essa altura até à concretização da sua venda ou partilha, como compensação (preço) pelo uso e habitação exclusivo deste imóvel, e que foi, aliás, condição para tal atribuição.
8ª - Em consequência desse acordo, a apelante teve que arrendar um outro imóvel, para si e para os filhos, pelo qual ficou a pagar uma renda mensal de € 300,00.
9ª - Em violação do referido acordo que o cabeça-de-casal e a apelante haviam celebrado aquando do divórcio por mútuo consentimento, tendo-o inclusive formalizado através da celebração do contrato-promessa de partilha supra mencionado, relativamente à atribuição do uso e habitação da casa de morada de família em exclusivo ao cabeça de casal e, em contrapartida, a respetiva assunção por este da responsabilidade pelo pagamento, sozinho e na totalidade, de todas as obrigações (dívidas e despesas) inerentes a este imóvel, tais como prestações dos empréstimos bancários contraídos para a aquisição desta habitação junto da Banco 1..., seguros associados (multirriscos e vida), quotas e despesas do condomínio e IMI, até à concretização da venda ou partilha do mesmo, como compensação (preço) pelo uso exclusivo deste imóvel, na relação de bens que apresentou, no presente processo de inventário, o cabeça-de-casal relacionou sob as verbas nºs 1, 2, 3 e 4 do Passivo, alegadas dívidas do património comum do dissolvido casal a si, designadamente por alegados pagamentos das prestações e seguros mensais à Banco 1... relativos aos anos de 2009 a 2018, do seguro da habitação relativo aos anos de 2009 a 2017, do condomínio da habitação relativo aos anos de 2009 a 2018 e do IMI relativo aos anos de 2012 a 2017.
10ª – Tais despesas estavam associadas ao bem imóvel constante da verba nº1 da relação de bens, o qual constituíra a casa de morada de família do dissolvido casal e cujo uso e habitação ficou atribuído em exclusivo ao cabeça-de-casal aquando do divórcio entre ambos, tendo este ficado, desde essa altura, e continuando ainda no presente, a residir, em exclusivo, na casa de morada de família, bem comum do casal.
11ª - Porque efetivamente, e na realidade, o cabeça-de-casal e a apelante haviam acordado e estabelecido como condição para que o uso e habitação da casa de morada de família ficasse atribuído em exclusivo ao cabeça de casal até à concretização da venda ou partilha da mesma que este ficaria responsável pelo pagamento sozinho e na íntegra de todas as prestações mensais dos empréstimos bancários (hipotecários) contraídos para a aquisição desta habitação, seguros associados (multirriscos e vida), quotas e despesas do condomínio e IMI, como compensação (preço) pelo uso e habitação exclusivo deste imóvel, a apelante na reclamação que apresentou contra a relação de bens impugnou tais dívidas/créditos, rejeitando qualquer responsabilidade no pagamento de tais despesas, e requerendo a exclusão das mesmas (verbas nºs1 a 4 do Passivo) da relação de bens.
12ª - Nessa reclamação, a apelante opôs aos alegados créditos relacionados pelo cabeça-de-casal o acordo que ambos haviam celebrado relativamente à responsabilidade pelo pagamento de tais despesas associadas à casa de morada de família, designadamente de que o cabeça-de-casal como contrapartida/compensação pelo uso e habitação exclusivo da casa de morada de família que lhe ficara atribuído até à venda ou partilha assumira a obrigação e a responsabilidade do pagamento da totalidade de tais despesas (prestações  mensais dos empréstimos bancários (hipotecários) contraídos para a aquisição desta habitação, seguros associados (multirriscos e vida), quotas e despesas do condomínio e IMI).
13ª - Como prova inequívoca de tal acordo, juntou o contrato promessa de partilha outorgado pelo cabeça-de-casal e pela apelante, em .../.../2009, no mesmo dia em que instauraram o processo de divórcio por mútuo consentimento na Conservatória do Registo Civil ....
14ª - Do qual resulta de forma clara e inequívoca que entre a data da apresentação do requerimento de divórcio por mútuo consentimento e a data da venda ou partilha da casa de morada de família apenas o cabeça-de-casal habitará o imóvel, ficando ele, em contrapartida, responsável pelo pagamento, sozinho e na totalidade, de todas as obrigações (dívidas e despesas) inerentes a este imóvel (casa de morada de família), tais como prestações dos empréstimos bancários contraídos para a aquisição desta habitação junto da Banco 1... e demais despesas inerentes à casa de morada de família, conforme cláusulas 2.1.1.2 e 2.1.1.3 do contrato-promessa de partilha.
15ª – Alegou ainda a apelante, nessa reclamação, e comprovou documentalmente que, em consequência do uso e habitação da casa de morada de família ter sido atribuída em exclusivo ao cabeça-de-casal, ela teve que arrendar um outro imóvel, para si e para os filhos, pelo qual ficou a pagar uma renda mensal de € 300,00.
16ª - Situação que se manteve desde 2009 até ao presente, face à oposição demonstrada pelo cabeça-de-casal ao longo dos anos relativamente às tentativas de venda desse imóvel encetadas pela apelante, tendo aquele sempre oferecido forte resistência, recusando-se a mostrar o imóvel a potenciais interessados na sua compra, não tendo, inclusive, comparecido a uma escritura, cfr. notificação judicial avulsa e certificado de não comparência do cabeça de casal no dia da escritura de compra e venda que a apelante juntou à reclamação contra a relação de bens
17ª - Resultando dos documentos que foram juntos pela apelante com a reclamação contra a relação de bens que apresentou, nomeadamente quanto à impugnação das verbas nºs 1 a 4 do Passivo relacionadas pelo cabeça-de-casal- contrato promessa de partilha comprovativo do acordo celebrado relativamente à responsabilidade exclusiva do cabeça-de-casal pelo pagamento das despesas associadas à casa de morada de família e o contrato de arrendamento e respetivos recibos de renda comprovativos de que a apelante teve que arrendar um outro imóvel e pagar uma renda mensal – provado o acordo que havia sido celebrado pelo cabeça-de-casal e pela apelante quanto à responsabilidade exclusiva do cabeça-de-casal pelo pagamento da totalidade das despesas e obrigações associadas a este imóvel, dispunha a Mma Juiz a quo de elementos probatórios suficientes que lhe permitiam, nos termos do art. 1106, nº 3, do CPC, com segurança verificar a não existência dos créditos alegados pelo cabeça de casal sobre a apelante, e determinar, em consequência, a exclusão da relacionação de tais verbas do Passivo.
18ª - Não o tendo feito, fez errada aplicação do disposto no art. 1106º, nº 3, do CPC, fazendo errada apreciação e julgamento da matéria de facto existente nos autos.
19ª - Em complemento da prova documental que juntou à reclamação contra a relação de bens, para comprovação da matéria por si alegada relativamente à impugnação das verbas nºs 1 a 4 do Passivo relacionadas pelo cabeça de casal como alegado crédito sobre a apelante relativo às despesas associadas à casa de morada de família, a apelante requereu ainda a prestação de declarações de parte, ao abrigo do disposto no art. 466º, nº 1, do CPC, e a produção de prova testemunhal mediante a inquirição de cinco testemunhas.
20ª - Não obstante a prova documental apresentada pela apelante com a reclamação contra a relação de bens que deduziu, ser já manifestamente comprovativa do acordo celebrado pelo cabeça-de-casal e pela apelante quanto à responsabilidade pelo pagamento das supra referidas despesas associadas à casa de morada de família, designadamente a desoneração da apelante quanto ao pagamento das mesmas, que impunha, por si, uma decisão diversa da proferida pela Mma Juiz a quo, a inquirição das testemunhas arroladas pela apelante, todas elas com conhecimento direto da factualidade alegada, revelava- se uma diligência essencial para o apuramento da verdade e a justa composição do presente litígio, a qual certamente dissiparia quaisquer dúvidas que pudessem ainda restar à Mma Juiz a quo quanto à existência e teor do acordo que havia sido celebrado entre o cabeça-de-casal e a apelante quanto a esta matéria.
21ª - Tendo a Mma Juiz a quo proferido decisão de indeferimento da reclamação apresentada pela apelante contra a relação de bens no que a esta matéria diz respeito, designadamente julgando, desde logo, improcedente o pedido de exclusão de relacionação das verbas nºs 1 a 4 do passivo da relação de bens formulado por aquela, sem que tivesse sido sequer produzida a prova testemunhal requerida pela apelante, violou o princípio do inquisitório previsto no art. 411º, nº 1, do CPC, por omissão de diligências instrutórias que se revelavam essenciais para o apuramento da verdade e justa composição do litígio e boa decisão da presente causa.
22ª - A violação do princípio do inquisitório, mediante a omissão de um ato ou diligência instrutória, nos termos do nº 1 do art. 195º do CPC, produz nulidade da decisão quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
23ª - A Mma Juiz a quo antes de decidir de mérito, devia ter ordenado a produção da imprescindível prova complementar, designadamente a testemunhal, não o tendo feito, violou o disposto no art. 411º, nº 1 do CPC.
24ª - A inobservância do inquisitório verificada, constituiu uma omissão grave, consubstanciando uma nulidade processual, por tal omissão ter sido suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo, nos termos do art. 195º, nº 1 do CPC, nula a decisão prolatada pela Mma Juiz a quo.
25ª - Eventuais pagamentos que o cabeça-de-casal tenha feito das prestações mensais dos créditos bancários (hipotecários) contraídos pelo dissolvido casal para a aquisição da casa de morada de família, de eventuais seguros associados à mesma, quotas de condomínio e IMI, corresponderam à contrapartida (compensação) acordada pelo cabeça-de-casal com a apelante por forma a que lhe fosse atribuído o uso e habitação exclusiva desse imóvel, o que sucedeu, nos últimos doze anos, até ao presente, pelo que nada pode, a esse título, vir exigir no presente processo de inventário.
26ª - Não pode, por conseguinte, pretender o cabeça-de-casal, ao arrepio do acordo celebrado com a apelante AA aquando da atribuição a si da utilização exclusiva da casa de morada de família, locupletar-se às custas desta, tendo usado e habitado exclusivamente a casa de morada de família, bem comum do dissolvido casal, ao longo dos últimos doze anos, o que atentaria gravemente contra todos os limites e princípios da boa-fé, constituindo um verdadeiro enriquecimento sem causa (ilícito) do cabeça-de-casal às custas da apelante, que se viu privada da utilização da casa de morada de família ao longo de todos estes anos e teve que arrendar um outro imóvel, suportando a respetiva renda mensal.
27ª - Diga-se, aliás, e julga-se que ninguém acreditará, indo contra todas as regras da experiência comum, que a apelante tenha, aquando da atribuição por acordo da utilização da casa de morada de família ao cabeça-de-casal até à venda ou partilha, acedido a que este ficasse lá a viver de “graça”, ou seja, o cabeça-de-casal passava a usar e habitar em exclusivo a casa de morada de família e a apelante deixava essa habitação, passando a ter que arrendar um outro imóvel, pelo qual passou a pagar uma renda mensal, e ainda, por cima, continuava a ter que pagar exatamente o mesmo valor e comparticipação que o cabeça-de-casal nas despesas mensais associadas a esse imóvel – tais como prestações mensais dos créditos hipotecários contraídos para a aquisição da casa de morada de família, eventuais seguros associados à mesma, quotas de condomínio e IMI – o qual era e vem sendo utilizado e habitado em exclusivo pelo cabeça-de-casal sem que a apelante possa sequer a ele ter acesso.
28ª - E tanto assim não foi que, na mesma data em que assinaram o “acordo da casa de morada de família” que juntaram ao processo de divórcio por mútuo consentimento, o cabeça-de-casal e a apelante outorgaram, em simultâneo, o contrato promessa de partilha do qual fizeram constar expressamente que o cabeça-de-casal ficava a habitar em exclusivo a casa de morada de família, mas que, em contrapartida dessa exclusividade de uso e habitação do imóvel, ficava responsável pelo pagamento da totalidade das prestações dos créditos hipotecários à Banco 1..., bem como das restantes despesas associadas à casa de morada de família.
29ª - Essa é a ratio económica usual de tais acordos: assegurar que aquele que fica por si só a usar a casa que é de ambos, a partir do divórcio e até à partilha ou venda, seja também quem nesse período e por si só assegura os pagamentos correspondentes, sem o que aquele que a não fica a usar se veria a final onerado com pagamentos, à sua custa, dos encargos relativos a algo que não usou e pelo contrário em exclusivo ficou para o uso do outro.
30ª - Tirar da meação da apelante no património comum metade do que, por ter ficado a usar ele só a casa comum e de acordo com aquilo a que se vinculou, pagou também só o cabeça-de-casal, no período subsequente ao divórcio e até à partilha, representaria, a mais de contradição com a obrigação por ele assumida, um verdadeiro locupletamento à custa daquela, não consentido por lei.
31ª - A decisão prolatada pela Mma Juiz a quo violou claramente as exigências de justiça material e equidade que necessariamente deverão orientar todo e qualquer processo judicial.
32ª – Apesar da apelante entender que os documentos por si juntos à reclamação contra a relação de bens permitiam à Mma Juiz a quo, nos termos do art. 1106, nº 3, do CPC, com segurança verificar a não existência dos créditos alegados pelo cabeça de casal sobre a apelante, sempre deveria a Mma Juiz a quo, se dúvidas lhe subsistissem, proceder à inquirição das testemunhas arroladas pela apelante, ou, caso entendesse que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto, tal questão não devia ser incidentalmente decidida, deveria a Mma Juiz a quo remeter as partes para os meios comuns nos termos dos arts. 1092º e 1093º do CPC ex vi art. 1105º, nº 3, do CPC.
33ª - Tendo em conta toda a prova existente e carreada pela apelante, a Mma Juiz a quo, ao julgar improcedente o pedido por aquela formulado no incidente de reclamação contra a relação de bens que apresentou, designadamente de exclusão de relacionação das verbas nºs 1 a 4 do Passivo da relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal, determinando que se mantivesse a relacionação de tais verbas do passivo, fez errada apreciação e julgamento da matéria de facto, impondo-se, com o respeito devido, decisão diversa.
34ª - O montante da compensação in casu pelo uso exclusivo da casa de morada de família pelo cabeça-de-casal, tal como acordado nas cláusulas 2.1.1.2 e 2.1.1.3 do contrato-promessa de partilha que outorgaram, corresponde ao valor das prestações mensais dos empréstimos bancários contraídos para a aquisição desta habitação, seguros associados (multirriscos e vida), quotas e despesas do condomínio e IMI, até à concretização da venda ou partilha.
35 ª - Por todo o exposto, por inexistirem os alegados créditos do cabeça-de- casal sobre a apelante, relacionados sob as verbas nºs 1 a 4 do Passivo, não podendo, por isso, ser exigidos por aquele à apelante, nos termos supra aduzidos, devem os mesmos ser excluídos da relação de bens, tal como requerido na reclamação contra a relação de bens apresentada.

O requerido e cabeça de casal contra alegou, pugnando pela manutenção do despacho recorrido, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

a) O Tribunal a quo não ouviu a prova testemunhal, e muito bem, porque o que se estava a discutir na reclamação apresentada ficou devidamente esclarecido com aprova documental junta aos autos nomeadamente pela recorrente.
A prova testemunhal nada iria acrescentar a matéria dada como provada no douto despacho recorrido
b) O contrato promessa de partilha celebrado entre recorrente e recorrido, se a recorrente se queria socorrer dele, teria que avançar com a execução específica do contrato e automaticamente excluir outras formas de partilha.
(ver Acordão desse Venerando Tribunal no porc. 2491/12. 8TBVCT. G1 de 8 /2/2018 in www.dgsi.pt )
c) A recorrente não se serviu do dito contrato promessa por saber de antemão que o mesmo era nulo e como tal não produziu nem podia produzir nenhum efeito entre as partes
d)Por outro lado, nada impedia que recorrente e recorrido, tivessem acordado na utilização a casa de morada de família até a partilha,
e) O que já não podiam acordar era que fosse só o recorrido a pagar o passivo, porque tal disposição é nula nos termos do artº 1730 n º1 do CC.
f) Embora sem relevância para os autos, não foi por causa do recorrido, que a recorrente teve que arrendar uma casa, foi razões do foro pessoal dela que o quis fazer.
g) Acrescente-se que a recorrente não pode querer socorrer-se do inventario para efetuar a partilha dos bens comuns e ao mesmo tempo “aproveitar” o então acordado no contrato promessa.
h) Uma modalidade excluí a outra
I) Quanto aos créditos alegados pelo aqui recorrido, eles estão todos devidamente documentados.
j) De todo o exposto no douto despacho recorrido e nestas humildes alegações resulta que a recorrente mais uma vez não tem razão e tem que contribuir para as despesas com os bens comuns e não continuar a sobrecarregar o aqui recorrido com todas das despesas como sempre fez e continua a fazer.
l) Não se alcança a existência de nenhuma nulidade, porquanto o que estava para decidir não necessitava prova testemunhal porque toda a prova foi documental.

A Mma Juiz a quo pronunciou-se quanto à invocada nulidade, dizendo:
“- Requerimento de interposição de recurso com arguição de nulidade da decisão proferida:
Não obstante, o Tribunal não ser alheio ao disposto nos nº4 do artigo 615º, do Código de Processo Civil, no que concerne à invocada nulidade relativa decisão objecto do presente recurso, cumpre esclarecer.
A recorrente invoca violação do princípio do inquisitório por preterição da produção da prova testemunhal.
O Tribunal, tal qual decorre da argumentação apresentada em sede de decisão, fez o enquadramento jurídico que se lhe afigurou cabível aos autos atenta a natureza e objecto dos mesmos, e entendeu ter os elementos necessários, nos termos ali referidos, para a prolação da decisão objecto de recurso.
Deste modo, e sempre salvaguardando o salvo o devido respeito por opinião diversa, entende-se que a decisão em apreço não padece do vício que lhe é apontado.
Contudo, Vªs Exªs analisando e decidindo farão como sempre a acostumada Justiça.”

2. Questões a decidir

O objecto do recurso, é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.

Analisando as conclusões da recorrente verifica-se que a mesma invoca, em primeiro lugar (conclusões 1ª a 18ª, máxime 17ª e 18ª) que, perante os elementos documentais juntos aos autos, o tribunal recorrido dispunha dos elementos probatórios suficientes que lhe permitiam verificar a não existência dos créditos alegados pelo cabeça de casal e, determinar, assim, a exclusão da relacionação de tais verbas do passivo, ou seja, invoca-se o erro de julgamento.

E, a seguir, invoca (conclusões 19ª a 31ª, máxime 21º e 22º) a nulidade da sentença por violação do princípio do inquisitório.

Já depois das conclusões, a recorrente pede, em primeiro lugar, que se julgue procedente, por provada, a reclamação apresentada pela apelante contra a relação de bens, designadamente na parte em que peticionou a exclusão das verbas nºs 1 a 4 do Passivo da relação de bens e, caso assim não se entenda, que se declare a nulidade da decisão ora recorrida por violação do princípio do inquisitório

Nos recursos também funciona, em regra, o princípio do dispositivo.

Mas tal princípio não pode ir ao ponto de postergar a precedência lógica que se impõe na apreciação das questões de direito.

Assim, as questões que cumpre apreciar, à luz da sua precedência lógica, são:
- nulidade da sentença por violação do princípio do inquisitório;
- saber se, tendo o cabeça de casal relacionado sob as verbas 1 a 4 do passivo, o que despendeu em prestações de empréstimo, seguro, IMI e condomínio relativamente a imóvel comum, devem as mesmas ser retiradas da relação de bens, tendo em consideração que as partes subscreveram um documento, denominado “Contrato-promessa de partilha”, em que ficou a constar que o cabeça de casal se obrigava a pagar aquelas despesas.


3. Fundamentação de facto

Consignou-se na decisão recorrida

“Resulta dos autos, quer dos documentos juntos, quer da posição das partes nos vários articulados juntos que:
1- O cabeça de casal manteve-se a residir, sozinho, naquela que tinha sido a casa de morada de família (descrito na verba 1 da relação de bens);
2- O imóvel foi adquirido pelo dissolvido casal;
3- O cabeça de casal assumiu o pagamento das quantias relativas às prestações bancárias, seguros, quotas de condomínio e IMI, em montante que se mostra impugnado pela reclamante.
4- Aquando do divórcio que correu termos junto da Conservatória ... proc. com o nº...09, foi junto além do mais acordo quanto à casa de morada de família, segundo o qual, aqueles declararam que “tendo em vista o seu divórcio por mútuo consentimento, declaram que o requerente marido irá habitar aquela que foi a casa de morada de família. ..., seis de fevereiro de 2009”.
5- (…) No âmbito daquele processo, em 08 de Maio de 2009 foi proferida decisão onde, além do mais, homologou-se o acordo da casa de morada de família” – cfr. fls. 12 e segs.
6- Está junto aos autos acordo, denominado de “contrato-promessa de partilha”, datado de 06 de fevereiro de 2009, em que figura como primeiro outorgante o cabeça de casal e segundo outorgante a reclamante, e onde além do mais consta o seguinte:
Considerandos: 1.1. Os contraentes estão casados entre si. 1.2. É vontade dos contraentes requerer o divórcio por mútuo consentimento e proceder à partilha dos bens comuns do casal. 1.3. No presente acto o primeiro contraente e segunda contraente prometem partilhar os bens comuns do casal. 1.4. Constitui o património comum do primeiro contraente e segunda contraente. (…) 2.1.1.2 Durante o período que decorra entre a data de apresentação do requerimento de divórcio e a data da venda da verba 1, apenas o primeiro contraente habitará o apartamento e garantirá o cumprimento das obrigações inerentes aos contratos de empréstimo das obrigações inerentes aos contratos de empréstimo hipotecários a favor da Banco 1.... 2.1.1.3. O primeiro contraente responsabiliza-se pelos pagamentos das demais despesas correntes inerentes à casa de morada de família até à data da partilha.
(…)” – cfr. doc. junto com a reclamação à relação de bens, contante de fls. 135 e segs..

4. Direito
4.1. Nulidade da sentença
A questão suscitada pela recorrente impõe que se antecipe para este momento o enquadramento jurídico do processo de inventário, quer no que respeita à Lei aplicável, quer no que respeita ao seu objecto e tramitação e, de seguida, que se analise a questão de saber se o facto de o tribunal ter decidido a questão que decidiu, sem produção de prova testemunhal, é susceptível de integrar nulidade.

4.1.1. Inventário – Lei aplicável
A Lei n.º 23/2013, de 05 de Março aprovou o regime jurídico do processo de inventário e revogou todo o conjunto de normativos do Código de Processo Civil então vigente que o regulava.

Entretanto, foi publicada a Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, que entrou em vigor a 01/01/2020 e alterou o Código de Processo Civil em matéria de processo executivo, recurso de revisão e processo de inventário, reintroduzindo no CPC o regime do processo de inventário (art.ºs 3º, 4º e 5º) e revogou o regime jurídico do processo de inventário aprovado em anexo à Lei n.º 23/2013, de 5 de março (art.º 10º).

A referida Lei contém um conjunto de normas transitórias.

Assim, o art.º 11º n.º 1 da referida Lei dispõe que o nela disposto também se aplica aos processos de inventário que, na data da entrada em vigor da mesma, estejam pendentes nos cartórios notariais, mas sejam remetidos ao tribunal nos termos do disposto nos artigos 11.º a 13.º

No que respeita ao regime a seguir no caso de processos remetidos a tribunal, dispõe o n.º 3 do art.º 13º que é aplicável à tramitação subsequente do processo remetido a juízo, o regime estabelecido para o inventário judicial no Código de Processo Civil.

Finalmente, nos termos do n.º 4, o juiz, ouvidas as partes e apreciadas as impugnações deduzidas ao abrigo do n.º 2, determina, com base nos poderes de gestão processual e de adequação formal, a tramitação subsequente do processo que se mostre idónea para conciliar o respeito pelos efeitos dos atos processuais já regularmente praticados no inventário notarial, com o ulterior processamento do inventário judicial.

Decorre destas normas que os efeitos dos atos processuais já regularmente praticados no inventário notarial se mantêm e, quanto à tramitação subsequente, aplica-se a nova Lei.

Resulta das incidências processuais relevantes, que a relação de bens foi apresentada a 23/01/2019, tendo sido o último acto praticado no inventário.

Na sequência da entrada em vigor da Lei 117/2019 a requerente pediu a remessa do inventário para o tribunal, o que foi deferido.

Em face de tudo o acima exposto, os efeitos dos atos processuais regularmente praticados no inventário notarial até à Relação de bens, inclusive, mantêm-se e quanto á tramitação subsequente, aplica-se a nova Lei.

4.1.2. Inventário – Objecto e tramitação
Nos termos do art.º 2º, n.º 3 da Lei n.º 23/2013, o inventário podia destinar-se, nos termos previstos nos artigos 79.º a 81.º, à partilha consequente à extinção da comunhão de bens entre os cônjuges.

Dispunha o n.º 1 do art.º 79º que decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens, salvo se o regime de bens do casamento for o de separação, o n.º 2 do mesmo normativo que as funções de cabeça de casal incumbem ao cônjuge mais velho e o n.º 3 que o inventário seguia os termos prescritos nas secções e subsecções anteriores…

Não sendo o inventário requerido pelo interessado a quem cabia o cargo de cabeça de casal, havia lugar à citação deste, à prestação de compromisso de honra e de declarações, acto no âmbito do qual havia lugar à entrega da relação de bens, sendo esta regulada pelo art.º 25º.

Também no novo regime do inventário se prevê que uma das suas funções é a partilha dos bens comuns do casal, nomeadamente na sequência do divórcio dos cônjuges (art.º 1082º alínea d) do CPC).

Mas, o processo de inventário em consequência de divórcio não se destina apenas a dividir os bens comuns dos cônjuges, mas também a liquidar definitivamente as responsabilidades entre eles e deles para com terceiros, o que pressupõe sempre a relacionação de todos os bens, próprios ou comuns, e também daqueles créditos – cfr. Ac. da RC de 06.05.2008, processo 202-E/1999.C1, consultável in www.dgsi.pt/jtrc.

No mesmo sentido, Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, in O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, pág. 155 referem:
“Acessoriamente, o inventário pode ter como finalidade a liquidação do património comum do casal, isto é, o pagamento de dívidas comuns e o recebimento de créditos comuns, bem como a liquidação das compensações entre o património comum e os patrimónios próprios de cada um dos cônjuges (cfr. art.º 1689º CC)).”

A este inventário aplica-se o disposto nos artigos 1133º e 1134º e, em tudo o que não estiver especificamente regulado, o regime definido para o inventário destinado a fazer cessar a comunhão hereditária (art.º 1084º n.º 2 do CPC).

Nos autos está em causa uma questão relacionada com o passivo.

Dispunha o art.º 25º n.º 2 da Lei n.º 23/2013, à semelhança do que dispõe hoje o art.º 1098º, n.º 3 do CPC, que as dívidas são relacionadas em separado, sujeitas a numeração própria.

No anterior modelo processual as diligências destinadas à verificação e aprovação do passivo tinham lugar na conferência de interessados.

Visando obstar aos inconvenientes para a celeridade e a economia da tramitação do inventário gerados com tal modelo, o actual regime antecipou, em regra, o momento da eventual controvérsia acerca da verificação do passivo, para a fase dos articulados, de modo a propiciar uma discussão escrita das partes acerca das dividas controvertidas, respectivos fundamentos e pertinentes meios probatórios (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, in ob cit. pág. 90-91, que aqui seguimos).

Assim, relacionadas as dívidas pelo ex-cônjuge cabeça de casal, o outro ex-cônjuge tem o ónus de as impugnar (art.º 1104º n.º 1, alínea e) do CPC).

Apresentada impugnação, o cabeça de casal tem o direito de responder à impugnação (art.º 1105º n.º 1 do CPC).

De referir que nos termos do n.º 2 do art.º 1105º as provas são indicadas com os requerimentos (incluindo a impugnação) e respostas.

O art.º 1105º n.º 3 do CPC dispõe que a “questão é decidida depois de efetuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz, sem prejuízo do disposto nos artigos 1092.º e 1093.º”.

Mas, especificamente quanto às consequências da falta de impugnação das dívidas ou do procedimento a adoptar em caso de impugnação, regula o art.º 1106º do CPC.

Assim e no caso de “todos os interessados” se opuserem ao reconhecimento da dívida, o n.º 3 do art.º 1106º dispõe que o juiz deve apreciar a sua existência e montante quando a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados.

Mas “a exigência da prova documental não deve inibir o exercício do juiz dos seus poderes inquisitórios em matéria probatória (art.º 411º), desde que essa exigência não seja feita ad substantiam ou ad probationem. Assim, o juiz pode determinar a realização de diligências probatórias de outra natureza, designadamente a inquirição de testemunhas e as declarações de parte, se as considerar indispensáveis para completar, interpretar ou esclarecer os resultados decorrentes da prova documental.” (cfr.  Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, in ob cit. pág. 93).

Além disso, importa ainda ter em consideração que,  passando o processo de inventário a integrar o processo civil e passando, concretamente, a integrar o elenco dos processos especiais (está incluído no Livro V do CPC que tem por objecto os processos especiais) é-lhe aplicável o art.º 549º do CPC, o qual dispõe que os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns; em tudo o quanto não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum ( no sentido do exposto, Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, in ob cit. pág. 12).

O processo de inventário não contém nenhuma especialidade no que diz respeito ao ónus de impugnação.

Destarte, tem nele plena aplicação o disposto no art.º 574º - “Consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados,… - aplicável à resposta à reclamação, nos termos do art.º 587º do CPC, ainda que o art.º 1106º

Finalmente cabe referir que a pronúncia do juiz terá lugar no momento do saneamento do processo – cfr. art.º 1110º, n.º 1, alínea a), que  dispõe que “Depois de realizadas as diligências instrutórias necessárias, o juiz profere despacho de saneamento do processo em que: a) Resolve todas as questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar; (…)”.

Assim e ao contrário do que sucedia no regime pretérito, não fica para a conferência a aprovação do passivo, mas apenas a deliberação sob a forma e momento do cumprimento das dívidas verificadas (cfr. art.º 1111º n.º 3 do CPC, o qual, apesar de dizer que “Aos interessados compete ainda deliberar sobre o passivo…”, deve ser interpretado tendo em consideração o disposto no art.º 1106º, n.º s 3 e 4 e 1110º, n.º 1, alínea a), ambos do CPC).

4.1.3. Do conhecimento da questão sem necessidade de produção de prova testemunhal
Para o processo declarativo em geral, dispõe o art.º 595º n.º 1 alínea b) que o despacho saneador destina-se a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo o permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção perenptória.

Tal sucederá quando a matéria de facto relevante já se encontra definida (provada) ao findar da fase inicial do processo, restando apenas o enquadramento jurídico respectivo (cfr. Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 3ª edição, pág. 299).

Ou, como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC Anotado, II, 3ª edição, pág. 659: “O juiz conhece do mérito da causa no despacho saneador, total ou parcialmente, quando para tal, isto é, para dar resposta ao pedido ou à parte do pedido correspondente, não haja necessidade de mais provas do que aquelas que já estão adquiridas no processo.”

E António Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, In CPC Anotado, I, 2ª edição, pág. 721-722, elencam um conjunto de situações em que é possível conhecer do mérito no saneador, nomeadamente quando:
- “toda a matéria de facto relevante esteja provada por confissão expressa ou tácita, por acordo ou por documento…”;
- “seja indiferente para qualquer das soluções plausíveis a prova dos factos que permaneçam controvertidos…”
- “todos os factos controvertidos careçam de prova documental, caso em que o juiz proferirá despacho saneador-sentença, depois de ter convidado as partes a juntar a prova documental necessária, nos termos do art.º 590º, 2, al. c)”

Destarte e no momento de proferir despacho saneador, o juiz tem de tomar uma de duas decisões: ou entende que os autos não estão em condições para conhecer do mérito e, assim, determina (nem que seja implicitamente) o seu prosseguimento para julgamento ou entende que estão reunidas as condições para proferir despacho saneador que conheça do mérito.

Se for proferido despacho saneador, que conheça, total ou parcialmente do mérito de algum pedido ou de excepção perenptória, sem que o estado do processo o permita, por não conter toda a matéria de facto relevante e a sua aquisição para o processo carecer de produção de prova, a interposição de recurso com este fundamento reconduz-se à invocação de um “erro de julgamento de direito”, quanto à questão de saber se estavam reunidas aquelas condições para a prolação de decisão de mérito e que, a verificar-se, determina a revogação da decisão, com a consequência de os autos prosseguirem os termos processuais adequados da fase do saneamento do processo e não a qualquer nulidade, nomeadamente, por violação do principio do inquisitório, que trata de uma outra e diferente realidade, já no concreto domínio da produção de provas.

Tudo o que se acaba de dizer, aplica-se ao processo de inventário, sem prejuízo das especificidades supra referidas, nomeadamente no que respeita ao n.º 3 do art.º 1106º do CPC.

4.1.4. Em concreto
Vejamos as incidências processuais relevantes.

Na sua “reclamação” e tendo em vista a exclusão da relação de bens das verbas n.ºs 1 a 4 do passivo, a recorrente requereu que lhe fossem tomadas declarações de parte, arrolou testemunhas e juntou documentos, nomeadamente um documento denominado “Contrato-promessa de partilha”.

O tribunal recorrido pronunciou-se quanto à pretensão da recorrente, tendo consignado os factos provados, consignando previamente o seguinte:
“Resulta dos autos, quer dos documentos juntos, quer da posição das partes nos vários articulados juntos que:
(…)”

O tribunal recorrido, não afirmou expressamente que estavam reunidas as condições para se pronunciar sem necessidade de mais provas (nem tinha de o fazer).

Mas fê-lo implicitamente, ao consignar os factos provados e ao decidir a questão que lhe estava colocada.

Nas conclusões 21ª a 24ª a recorrente invoca que a Mma. Juiz a quo não podia ter julgado improcedente o pedido de exclusão de relacionação das verbas nºs 1 a 4 do passivo da relação de bens formulado pela mesma, sem que tivesse sido produzida a prova testemunhal requerida pela apelante.

Desta forma, o que a recorrente alega é que não podia a sua pretensão ter sido conhecida, sem produção de prova.

Porém, tal alegação carece de fundamento.

Em primeiro lugar a recorrente começa por alegar, contraditoriamente (contradição que não é ressalvada pelo pedido de conhecimento subsidiário desta questão), que os autos contêm os elementos probatórios suficientes para uma decisão diversa à luz do disposto no art.º 1106º n.º 3 (conclusões 17ª, 18ª e 20ª), nomeadamente no que diz respeito ao contrato-promessa de partilha.

Por outro lado, como decorre do acima referido, a questão colocada pela recorrente só faria sentido se a decisão recorrida não contivesse toda a matéria de facto relevante e a sua aquisição para o processo carecesse de produção de prova.

Sucede que, muito embora a recorrente alegue que a para a decisão da questão por si colocada, era necessária a produção de prova, nunca alega os factos relevantes que, tendo sido alegados e sendo controvertidos, careciam de prova e impediam o conhecimento da questão.

Mas sempre se impõe dizer que, sem prejuízo de, como se verá adiante, se considerarem provados determinados factos por acordo, não vislumbramos que existam outros factos, alegados e controvertidos, relevantes para a exclusão da questão da exclusão da Relação de bens, das verbas n.ºs 1 a 4 do passivo, que não tenham sido considerados na decisão recorrida, e que careçam de prova por testemunhas.

Em face do exposto, improcede a invocada e pretensa “nulidade da sentença”.

4.2. Devem as verbas n.ºs 1 a 4 do Passivo” ser retiradas da relação de bens.
A resposta dar a esta questão passa por analisar, de forma breve, o divórcio por mútuo consentimento e, concretamente, o acordo quanto à casa de morada de família e os efeitos daquele.

4.2.1. Divórcio por mútuo consentimento –
O processo de divórcio por mútuo consentimento tem o seu regime repartido pelos artigos 1775º - 1778º-A do CC, artigos 994º-999º do CPC, artigos 271º a 274º do CRegisto Civil e art.s 12º a 14º do DL 272/2001, de 13 de Outubro.

Nos termos do disposto no art.º 1773º n.º 2 do CC, o divórcio por mútuo consentimento pode ser requerido por ambos os cônjuges, de comum acordo, na conservatória do registo civil, desde que o casal tenha chegado a acordo sobre os assuntos referidos no n.º 1 do artigo 1775.º do CC.

O art.º 1775º n.º 1 do CC dispõe que o requerimento de divórcio por mútuo consentimento é acompanhado pelos documentos ali indicados, nomeadamente (alínea d)) Acordo sobre o destino da casa de morada de família (idem, alínea f) do n.º 1 do art.º 272º do CRCivil).

O acordo a que se refere a alínea d) do n.º 1 do 1775º n.º 1 do CC e a alínea f) do n.º 1 do art.º 272º do CRCivil, tem por objecto essencial determinar quem fica a utilizar a casa de morada de família durante a pendência da acção de divórcio e até à partilha, pois, como dispõe o n.º 2 do art.º 1775º, caso outra coisa não resulte dos documentos apresentados, entende-se que os acordos se destinam tanto ao período da pendência do processo como ao período posterior (idem n.º 4 do art.º 272º do CRCivil).

Recebido o requerimento, o conservador convoca os cônjuges para uma conferência em que verifica o preenchimento dos pressupostos legais e aprecia os acordos referidos nas alíneas a), c) e d) do n.º 1 do artigo anterior, convidando os cônjuges a alterá-los se esses acordos não acautelarem os interesses de algum deles ou dos filhos, podendo determinar, para esse efeito, a prática de actos e a produção da prova, eventualmente necessária.

Nada obstando, homologa os referidos acordos e decreta, em seguida, o divórcio, procedendo-se ao correspondente registo… ( cfr. art.º 1776º n.º 1 do CC, art.º 12º n.º5 do DL 272/2001, aplicável ex vi art.º 14º n.º 3 do mesmo diploma).

Finalmente, o art.º 1776º n.º 3 do CC dispõe que as decisões proferidas pelo conservador do registo civil no divórcio por mútuo consentimento produzem os mesmos efeitos das sentenças judiciais sobre idêntica matéria (idem, o art.º 17º n.º 3 do DL 272/2001, de 13 de Outubro).

Resulta da fundamentação de facto (ponto 4), que correu termos junto da Conservatória do Registo Civil ... o processo nº ...09, tendo por objecto o divórcio entre a requerente e o requerido, ao qual foi junto, além do mais, acordo quanto à casa de morada de família, segundo o qual, “tendo em vista o seu divórcio por mútuo consentimento, declaram que o requerente marido irá habitar aquela que foi a casa de morada de família. ..., seis de fevereiro de 2009”.

Resulta ainda da fundamentação de facto que em tal processo (ponto 5), a 08 de Maio de 2009 foi proferida decisão que homologou o acordo da casa de morada de família” e, muito embora não conste da factualidade provada, resulta da certidão passada pela CRCivil de ..., junta com o requerimento inicial, que a referida decisão declarou a dissolução do casamento.

4.2.2. Efeitos do divórcio.
Dispõe o art.º 1788º que o divórcio dissolve o casamento e tem juridicamente os mesmos efeitos da dissolução por morte, salvas as excepções consagradas na lei.

O art.º 1688º do CC dispõe que as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges cessam pela dissolução…do casamento.

No entanto, dispõe o art.º 1789º n.º 1 do CC, que os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, mas retrotraem-se à data da propositura da acção quanto ás relações patrimoniais entre os cônjuges.

Tratando-se de divórcio por mútuo consentimento, requerido na Conservatória do Registo Civil, o mesmo inicia-se mediante “requerimento“ – cfr. 1775º n.º 1 do CC – pelo que a referência a “data da propositura da acção” deve ser tomada como “data da apresentação do requerimento de divórcio”.

Cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges, procede-se à partilha – 1º parte do art.º 1689º do CC.

Nela, os cônjuges receberão os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património – art.º 1689º n.º 1 do CCC

Havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum, e só depois as restantes – n.º 2 do art.º 1689º do CC.

E finalmente, os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; mas, não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor – art.º 1689º n.º 3 do CC.

Resulta das incidências processuais que a 24/04/2017 a aqui recorrente requereu no Cartório Notarial a instauração de inventário.

Neste ponto dá-se aqui por reproduzida a análise supra do processo de inventário.

4.3. Em concreto
Resulta das incidências processuais, que a 23/01/2019 o cabeça de casal apresentou relação de bens, em que, no que releva à economia do recurso, relacionou no passivo as seguintes verbas:
                                               “ Verba n.º 1
Deve o património comum, ao cabeça de casal BB pelo pagamento das prestações e seguros mensais à Banco 1... relativo aos anos de 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017 e 2018 a importância total de (…) € 42 358,41.
                                               Verba n.º 2
Deve o património comum, ao cabeça de casal BB pelo pagamento do seguro da habitação do casal, relativo aos anos de 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016 e 2017 a importância total de (…) € 1 144,67.
                                               Verba n.º 3
Deve o património comum, ao cabeça de casal BB pelo pagamento do condomínio da habitação do casal, relativo aos anos de 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017 e 2018 a importância total de (…) € 4 865,00.
                                               Verba n.º 4
Deve o património comum, ao cabeça de casal BB pelo pagamento do IMI relativo aos anos de 2012, 2013, 2014, 2015, 2016 e 2017 a importância total de (…) € 2 945,75.”

A requerente, aqui recorrente “reclamou”, pedindo a eliminação de tais verbas do passivo, alegando para tanto que, aquando da separação e divórcio, requerente e requerido acordaram em atribuir o uso e habitação exclusivo da casa de morada de família (verba n.º 1 da Relação de bens) ao cabeça de casal, ficando, este, em contrapartida, responsável pelo pagamento, sozinho e na totalidade, de todas as obrigações (dívidas e despesas) inerentes ao referido imóvel, tais como prestações dos empréstimos bancários contraídos para a aquisição daquele, seguros, quotas e despesas de condomínio e IMI, até à concretização da venda ou partilha do mesmo, como compensação (preço) pelo uso exclusivo do imóvel, conforme cláusulas 2.1.1.2. e 2.1.1.3. do contrato-promessa de partilha que outorgaram.

O cabeça de casal respondeu, dizendo, em síntese e no que releva, que o contrato-promessa é nulo porque as cláusulas 2.1.1.2. e 2.1.1.3. do contrato-promessa de partilha, ao responsabilizarem somente o cabeça de casal pelo pagamento de todos os encargos relativos ao imóvel, viola o disposto no n.º 1 do art.º 1730º do CC.

4.3.1. Da relacionação dos créditos de compensação
Decorre do artigo 1691.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil que, se ambos os cônjuges, no decurso do casamento, contraem um empréstimo, a obrigação de reembolso de tal empréstimo responsabiliza ambos.

Nas dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges, desde que não vigore entre estes o regime da separação de bens, respondem os bens comuns do casal, e, na falta ou insuficiência deles, solidariamente, os bens próprios de qualquer dos cônjuges. (artigo 1695º nº 1 do Código Civil).

Quando um dos cônjuges responde, na pendência do casamento, por dívidas de responsabilidade comum, para além do que lhe competia, surge um crédito de compensação a seu favor, sobre o outro cônjuge, crédito que só é exigível, porém, no momento da partilha dos bens do casal.

Assim dispõe o n.º 1 do art.º 1697º do CC:
1. Quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer; mas este crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime da separação.

E o mesmo sucede quando tal pagamento tenha ocorrido após a cessação das relações patrimoniais, desde que pelas dívidas pagas devessem responder os bens comuns, o que sucede sempre que as dívidas tenham a data do facto que lhes deu origem (art.º 1690º n.º 2 do CC), como sucede, quando, no decurso do casamento, os cônjuges contraem um empréstimo para aquisição de habitação própria, situação em que a obrigação de pagamento das prestações de amortização e juros que se vão vencendo.

O art.º 1689º n.º 3 estabelece como é dado pagamento ao crédito de compensação, dispondo que os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; mas, não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.

Impõe-se aqui distinguir as compensações dos créditos dos cônjuges.

Os regimes da comunhão – de adquiridos e geral – implicam a coexistência de três massas de bens: o património próprio de cada um dos cônjuges e o património comum.

A comunhão de vida entre os cônjuges traduz-se, muitas vezes, numa interpenetração entre os patrimónios comum e próprio de cada um dos cônjuges e entre os patrimónios próprios, ou seja, não há uma clara e inequívoca separação de patrimónios, podendo ocorrer transferências de valores entre as diferentes massas de bens - entre os patrimónios próprios de cada um dos cônjuges e o património comum, entre o património comum e o património próprio de cada um dos cônjuges.

Caso ocorra a dissolução do casamento, na partilha, tais transferências implicam créditos e débitos: os patrimónios próprios podem ser credores do comum e este daqueles ou de um deles e o património próprio de cada um dos cônjuges pode ser credor do outro.

O mecanismo das compensações visa evitar o enriquecimento de um dos cônjuges à custa do empobrecimento do outro e salvaguardar um certo equilíbrio patrimonial, enriquecimento esse decorrente, em especial, do pagamento de dívidas da responsabilidade de um dos patrimónios (próprio de um dos cônjuges ou comum) por um dos outros (comum ou próprio do outro cônjuge).

Mas apenas haverá compensações em sentido estrito “quando as dívidas comuns forem pagas com bens próprios de um dos cônjuges, bem como quando as dívidas de um só dos cônjuges sejam pagas com bens comuns.”  (Cristina Araújo Dias, Responsabilidade por Dívidas do Casal, II, 2021, pág. 291, obra que seguimos de perto e que na nota 535, pág. 290 critica a redacção do art.º 1697º do CC dizendo (sublinhado nosso): “O art.º 1697º pretende regular as compensações e, em rigor, não deveria dispor como faz: não há um crédito entre os cônjuges (daí não fazer sentido falar em “credor”), mas compensação do património comum ao próprio do cônjuge que pagou dívidas comuns com bens próprios, ainda que tal crédito passe pelo aumento da sua meação no património comum e por uma diminuição da meação do outro cônjuge como se este fosse devedor, atendendo ao disposto no art.º 1689º, n.º 3.”)).

E concretizando (pág. 291) afirma:
“O n.º 1 do art.º 1697º regula as compensações devidas pela comunhão a favor dos cônjuges quando este respondeu por dívidas comuns. O direito de crédito aí atribuído a um dos cônjuges tanto existe nos casos em que o cônjuge respondeu com bens próprios, como obrigado solidário (nos termos do art.º 1695º, n.º 1), como nos casos em que tenha respondido como obrigado conjunto (art.º 1695º, n.º 2), uma vez que, mesmo neste último caso, ele poderá ter querido satisfazer uma parte da dívida global superior á que lhe competia (muito embora, neste último caso, não tenhamos compensações stricto sensu).
Pretende-se que o cônjuge que pagou a mais do que devia tenha sempre o direito a ser compensado daquilo que pagou a mais.
Por sua vez, o n.º 2 do art.º 1697º, referindo-se às compensações devidas pelo património de um dos cônjuges ao património comum, pretende abranger todos os casos em que, por dívidas próprias, responderam bens comuns.”

E a seguir (pág. 294) refere:
“É efetivamente a meação do cônjuge não credor que compensará o cônjuge que respondeu com o seu património, por dívidas comuns (cfr. o art.º 1689º, n.º 3) verificando-se, desta forma, uma compensação do património comum ao próprio de um dos cônjuges. É que, note-se, dada a ausência de personalidade jurídica da comunhão, os titulares do património comum são, efetivamente, os cônjuges. No final, a compensação devida a um dos cônjuges pela comunhão será paga por um acréscimo da meação do cônjuge credor nos bens comuns, de valor igual ao da compensação devida e, necessariamente, por uma diminuição, na mesma proporção na meação do outro cônjuge.”

E mais adiante (pág.295) esclarece a diferença entre compensações“a haver entre o património comum e os patrimónios próprios dos cônjuges e, necessariamente, só nos regimes de comunhão” - e créditos entre os cônjuges “existentes entre os patrimónios próprios dos cônjuges, sem intervenção do património comum, possíveis em qualquer regime de bens e exigíveis a todo o tempo”, acrescentando que: “Se se trata de uma dívida comum, pela qual respondem os bens comuns, mas paga com bens próprios, temos, consequentemente, compensação e não créditos entre cônjuges.”

Mais directamente (pág. 297) refere (sublinhados nossos):
“Convém, neste ponto, e partindo da noção de compensações, distinguir as compensações dos créditos entre cônjuges.
A compensação é o meio de prestação de contas do movimento de valores entre a comunhão e o património próprio de cada cônjuge que se verifica no decurso do regime de comunhão. A compensação aparecerá, no momento da liquidação e partilha, ou como um crédito da comunhão face ao património próprio de um dos cônjuges ou como uma dívida da comunhão face a tal património, permitindo que, no fim, uma massa de bens não enriqueça injustamente em detrimento e á custa da outra.
Se assim é, a compensação apenas existirá se aquelas transferências se realizarem no decurso do regime matrimonial (e num dos regimes da comunhão).
Por definição, uma compensação presume um movimento de valores entre o património comum e o património próprio de um dos cônjuges. Se, durante o regime matrimonial, a transferência de valores se realizar entre os patrimónios próprios, haverá um crédito entre cônjuges, e não uma compensação. Tais créditos entre cônjuges obedecem a um regime jurídico distinto das compensações. Desde logo, salvo convenção em contrário, tais créditos são exigíveis desde o momento do seu surgimento, por estarem sujeitos ao regime geral do Direito das Obrigações, não se justificando o seu diferimento para o momento da partilha. O seu pagamento pode ser exigido durante o casamento, em esperar pela sua dissolução e pela liquidação e partilha do regime matrimonial.
(…) esses créditos [entre cônjuges] não integram a massa a partilhar nem constam de uma conta como as compensações.”

Assim, para que haja compensação, tem de verificar-se uma relação entre o património comum e o património próprio dos cônjuges. Se existirem apenas transferências de valores entre patrimónios próprios dos cônjuges, teremos créditos entre os cônjuges.

A este respeito João António Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, III, 3ª edição, 1991, págs. 391-392 afirmava:
“ Ao cabeça de casal competirá também relacionar o passivo.
Mas que passivo ?
Em primeiro lugar o que onera o património comum, isto é, o que se considera  como de responsabilidade de ambos os cônjuges, responsabilidade essa a apurar segundo os comandos dos art.ºs 1691º, 1693º-2 e 1694º- 1 e 2, todos do Cód. Civil.
Tal passivo tem de ser relacionado para se proceder oportunamente à sua aprovação e pagamento (…)
As dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges (incomunicáveis), essas não têm de relacionar-se (…).
(…)
E as dívidas dos cônjuges entre si ?
Como é sabido, no decurso da sociedade conjugal algumas vezes os cônjuges tornam-se reciprocamente devedores entre si e tal situação verifica-se sempre que por bens próprios de um deles se dá pagamento, total ou parcial, a dívidas da exclusiva responsabilidade do outro, ou quando tratando-se de dívida da responsabilidade solidária de ambos, um dos cônjuges satisfez voluntariamente maior quantia que o outro (Cód. Civil, 1695º -1).
De igual modo, surgirá crédito de um sobre o outro nas hipóteses previstas nos art.ºs 1682-4 e 1681º da lei substantiva.
Nos casos considerados, pendente o matrimónio persiste a inexigibilidade dos créditos, passando estes a ser exigíveis tão somente após a sua dissolução ou, melhor dizendo, na subsequente partilha, a não ser que vigore o regime de separação.
A execução desta disciplina não impõe que na partilha se dê pagamento ao cônjuge credor do que o outro lhe está devendo; estes créditos não respeitam ao património comum, mas ao património individual do cônjuge credor, constituindo, em contrapartida, elemento negativo do cônjuge devedor. Assim, não deverão ser objecto de relacionação, isto mau grado deverem ser considerados no momento da partilha para serem satisfeitos na conformidade do disposto no art. 1689º-3 do Código Civil.”

A citada obra foi continuada por Augusto Lopes Cardoso, com o titulo “Partilhas Litigiosas”, III, 2018, que assume uma posição diferente.

Abordando a questão do “Relacionamento do passivo reciproco” (pág. 336-343), afirma que “no decurso da sociedade conjugal algumas vezes os cônjuges tornam-se reciprocamente devedores”, referindo, de seguida, diversas situações em que tal se verifica (art.º 1697-1, art.º 1 695º -1, art.º 1 682º n.º 4, art.º 1 681º do CC).
 
E depois de referir (pág. 341) que o n.º 3 do art.º 1689º do CC dispõe que “Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum;(…)”, afirma: “Se são “pagos” é porque se deve aproveitar a fase em que existe meação por partilhar (…)
Assim, deverão dos ditos créditos/débitos de um cônjuge em relação ao outro ser objecto de relacionação, umas vezes como créditos sobre o património comum, outras como créditos de um cônjuge sobre o outro.”

Assim, e nesta obra, defende-se que o crédito compensatório deve ser relacionado e não apenas considerado na partilha.

No mesmo sentido Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, in O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, pág. 159, anotação ao art.º 1133º, referem que da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal deve constar o passivo do património conjugal, que no seu entender integra:

a) compensações devidas pelo património comum aos patrimónios próprios de cada um dos ex-cônjuges (cfr. art.º 1726º, n.º 2 do CC);
b) dívidas da responsabilidade de ambos os ex-cônjuges perante terceiros (art.ºs 1691º, 1693º, n.º 2 e 1694º, n.º 1, todos do CC);
c) dívidas de cada um dos ex-cônjuges perante o outro (art.ºs 1681º, 1682º, n.º 4, 1695º, n.º 1 e 1697º n.º 1 do CC), referindo que “ nestas dívidas só relevam aquelas que respeitam à partilha dos bens comuns, que são apenas aquelas que devem ser levadas em conta na meação de cada um dos cônjuges e que, por isso, sejam, não tanto dívidas do ex-cônjuge, mas antes dívidas da sua meação”.

O art.º 1689º, cuja epigrafe impressiva sugestiva é “Partilha do casal. Pagamento de dívidas”, estabelece no seu n.º 3 que os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; mas, não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.

É desde logo este normativo que manda ter em consideração no inventário os créditos de compensação.

Mas para se poder chegar a tal “pagamento”, são necessárias várias operações:
a) A separação dos bens próprios (no dizer do n.º 1 do art.º 1689º, «recebem os seus bens próprios»);
b) A liquidação do património comum, com a finalidade de apurar o valor do activo comum líquido, o que envolve operações de cálculo das compensações e de contabilização das dívidas a terceiros e entre os cônjuges;
c) A partilha em sentido restrito, ou seja, a partilha do activo comum líquido, concretizada em atribuições de carácter patrimonial.

E, para que se possa entrar na liquidação do património comum, para se poder calcular as compensações e contabilizar as dívidas a terceiros e entre os cônjuges, à luz das novas regras do processo de inventário, as mesmas devem ser relacionadas, para que possam ser objecto de impugnação por parte do outro cônjuge e objecto de “verificação do passivo”, como já ficou referido acima, com referência ao art.º 1104º n.º 1, alínea d) e 1106º ou, havendo impugnação, no saneamento, pois, como dispõe o art.º 1110º n.º 1 alínea a) do CPC, em tal despacho o juiz resolve todas as questões de influenciar na partilha e a questão dos créditos de compensação é uma questão com influencia na partilha, pois a sua existência e medida são determinantes para a medida da meação do cônjuge devedor.

Destarte, os créditos de compensação, devem ser relacionados no inventário, como se decidiu no Ac. desta RG de 07/03/2019, processo 170/11.2TBEPS.G2 consultável in www.dgsi.pt/jtrg em cujo sumário consta:
1. No processo de inventário em consequência de divórcio devem considerar-se, no que ao passivo concerne, quer os créditos da responsabilidade de ambos os cônjuges, quer os créditos entre cônjuges, que tenham sido originados no âmbito do casamento.
2. Quando o património próprio de um dos cônjuges responde por dívidas do património comum, esse cônjuge tem direito a ser compensado do que pagou em excesso (é a que se chama uma dívida de compensação stricto sensu).
3. Mesmo que tal pagamento ocorra depois da data em que terminaram as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, desde que a dívida satisfeita tenha sido contraída no decurso da comunhão e a ambos responsabilize, deve ser considerada na partilha, porque tem origem em crédito comum anterior, que integrava o passivo comum.
4. As dívidas entre cônjuges (que não sejam de compensação stricto sensu) originadas em ato anterior ao terminus das relações patrimoniais entre estes, também devem ser relacionadas no inventário, porquanto observam o regime do 1689º nº 3 do Código Civil: “os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum”.

E, mais recentemente, o Ac. também desta RG de 27/01/2022, processo 4218/21.4T8BRG-A.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg, com recensão de jurisprudência e doutrina e em cujo sumário consta:
1 – O processo de inventário em consequência do divórcio, instaurado para partilha do património comum do dissolvido casal, é norteado pelo objectivo de conseguir um equilíbrio no rateio final, ou seja, que nenhum dos ex-cônjuges, após a partilha, fica prejudicado em relação ao outro.
2 – O inventário em consequência de divórcio não se destina apenas a dividir os bens comuns dos cônjuges, mas também a liquidar definitivamente as responsabilidades entre eles e deles para com terceiros.
3 – A partilha envolve a satisfação dos créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro, uma vez que o artigo 1689º, nº 3, do Código Civil estabelece que esses créditos são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.
4 – Quando um dos cônjuges paga com bens próprios dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges, torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer e esse crédito é exigível no momento da partilha dos bens do casal.
5 – Tal crédito deve ser objecto de relacionação no inventário subsequente ao divórcio.
6 – Tendencialmente, no inventário devem ser solucionadas todas as questões emergentes da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges com influência na partilha do património comum, designadamente as que respeitam à liquidação das compensações devidas pelo pagamento de dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges suportado apenas por um deles.

4.3.2. Do facto de não constar do “Acordo da casa de morada de família” qualquer estipulação entre requerente e requerido quanto à responsabilidade pelo pagamento dos encargos relacionados com o imóvel.

Resulta da factualidade provada (ponto 4) que, aquando do divórcio que correu termos junto da Conservatória do Registo Civil ... processo nº ...09, foi junto, além do mais, acordo quanto à casa de morada de família, segundo o qual, requerente e requerido declararam que “tendo em vista o seu divórcio por mútuo consentimento, declaram que o requerente marido irá habitar aquela que foi a casa de morada de família. ..., seis de fevereiro de 2009” .

Mas a requerente alegou e ficou provado (ponto 6) que:
6- Está junto aos autos acordo, denominado de “contrato-promessa de partilha”, datado de 06 de fevereiro de 2009, em que figura como primeiro outorgante o cabeça de casal e segundo outorgante a reclamante, e onde além do mais consta o seguinte:
Considerandos: 1.1. Os contraentes estão casados entre si. 1.2. É vontade dos contraentes requerer o divórcio por mútuo consentimento e proceder à partilha dos bens comuns do casal. 1.3. No presente acto o primeiro contraente e segunda contraente prometem partilhar os bens comuns do casal. 1.4. Constitui o património comum do primeiro contraente e segunda contraente. (…) 2.1.1.2 Durante o período que decorra entre a data de apresentação do requerimento de divórcio e a data da venda da verba 1, apenas o primeiro contraente habitará o apartamento e garantirá o cumprimento das obrigações inerentes aos contratos de empréstimo das obrigações inerentes aos contratos de empréstimo hipotecários a favor da Banco 1.... 2.1.1.3. O primeiro contraente responsabiliza-se pelos pagamentos das demais despesas correntes inerentes à casa de morada de família até à data da partilha.
(…)” – cfr. doc. junto com a reclamação à relação de bens, contante de fls. 135 e segs..

Afirma-se na decisão recorrida:
“Compulsado o teor do acordo junto aquando do divórcio e objecto de decisão de homologação resulta que o acordo fixa a utilização da casa de morada de família pelo cabeça de casal.
Ora, da letra do acordo não resulta a desoneração da requerente e/ou do património comum em relação às dívidas do casal a operar em sede de partilha.

E mais adiante refere também:
Importa desde logo ter presente que a fase do divórcio no âmbito da qual foi acordada e homologada a atribuição provisória da casa de morada de família mostra-se ultrapassada. Sucede que, ali nada foi acordado a título de compensação.

Há que distinguir os elementos essenciais do negócio – as cláusulas que distinguem um certo tipo negocial dos restantes tipos (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., Coimbra Editora, pág. 384) -, dos seus elementos acessórios – trata-se de cláusulas que “complet[a]m o documento, que estejam além do conteúdo do mesmo («praeter scripturam») e não de estipulações que o contradigam, que estejam em contrário dele («contrarius consensus»)” (Mota Pinto, ob. cit. pág. 433).

Se o Acordo quanto ao destino da casa de morada de família em referência, tem por objecto essencial determinar quem fica a utilizar aquela durante a pendência da acção de divórcio e até à partilha, o mesmo não sucede quanto à matéria objecto das cláusulas 2.1.1.2. e 2.1.2.3., que estão para além daquele objecto essencial, que não o contradiz, nem o modifica, mas apenas o completa

Por isso também não se acompanha, com todo o respeito, a decisão recorrida quando afirma:
“Também não pode a requerente/reclamante com a junção de acordo de “contrato promessa de partilha”, anterior ao decretamento do divórcio – onde se homologou acordo de atribuição de casa de morada de família – alterar o que por decisão ficou estabelecido, ressalvando sempre o devido respeito por diversa opinião.”

As referidas cláusulas não modificam, nem alteram o referido “Acordo..”completam-no.

Destarte, estamos perante cláusulas acessórias contemporâneas (quer o Acordo…, quer o documento em que as mesmas se mostram inseridas, têm a data de 06/02/2009), do Acordo quanto ao destino da casa de morada de família.

E não constituindo aquelas matérias elemento essencial do referido Acordo…, não têm de constar do mesmo.

A elas não se opõe o n.º 1 do art.º 221º do CC, pois o que este dispõe é que as estipulações verbais acessórias anteriores ao documento legalmente exigido para a declaração negocial, ou contemporâneas dele, são nulas, salvo quando a razão determinante da forma lhes não seja aplicável e se prove que correspondem à vontade do autor da declaração.

Este normativo só rege para as estipulações verbais acessórias, mas já não quando as mesmas, sendo anteriores ou contemporâneas, tenham sido reduzidas a escrito.

Em face do exposto, tendo o objecto daquelas cláusulas, a natureza de estipulação acessória e estando as mesmas inscritas em documento escrito e assinado pelas partes, aliás contemporâneo do acordo quanto à casa de morada de família, nada obsta à sua validade formal e á possibilidade de serem consideradas, como devem ser.

Poder-se-ia, no entanto, considerar que tendo as partes subscrito um acordo quanto à casa de morada de família, as partes quiseram integrar nele apenas o que dele consta e nada mais, tendo, portanto, deixado “cair” a matéria objecto das cláusulas 2.1.1.2. e 2.1.2.3. do documento denominado “Contrato-promessa”.

Subjacente à invocação das referidas cláusulas, pela aqui recorrente, está a invocação de que as mesmas correspondem à vontade das partes.

E, neste contexto, o recorrido nada alegou de contrário, ou seja, que a não integração daquela cláusula no Acordo é uma consequência de a mesma ter deixado de corresponder á vontade das partes.

Finalmente, o documento escrito em que a mesma está inserido – denominado contrato-promessa de partilha e que não tinha de ser junto ao divórcio -  tem aposta a mesma data daquele acordo.

4.3.3. Do facto de a requerente não pretender, nestes autos, qualquer compensação pelo uso da casa de morada de família pelo requerido

A decisão recorrida prossegue dizendo:
Atente-se que a requerente alega que teve necessidade de arrendar um imóvel, e que em sede de acordo de contrato promessa de partilha, datado de 06.02.2009, mesma data em que fizeram juntar acordo de atribuição de casa de morada de família ao processo de divórcio e, antes daquele decretamento por homologação o que ocorreu em 08.05.2009
Na senda, invoca o direito, a título de compensação pelo contínuo uso e habitação da casa de morada de família pelo cabeça de casal, desde a data de divórcio e até à conclusão do processo de inventário, como forma de excluir a sua responsabilidade do passivo invocado.
Sem prescindir, alega ainda tal direito também lhe assiste atenta a sua privação do uso.

Com todo o respeito, mas a recorrente não declarou pretender qualquer compensação pelo facto de o recorrido estar a utilizar o imóvel e de a recorrente não só não a utilizar, como ter arrendado uma habitação para si e para os filhos.

O que a requerente invocou é que aquele acordo de pagamento constitui uma compensação pelo uso exclusivo da casa de morada de família pelo requerido.

E sendo assim, não é objecto dos autos a questão muito debatida na jurisprudência, de saber se numa situação de separação dos cônjuges, em que um deles se mantêm a habitar a casa de morada de família, este deve ao outro, privado dessa utilização, uma compensação por essa utilização.

Esta questão foi efectivamente analisada no Ac. do STJ de 13/10/2016, processo 135/12.7TBPBL-C.C1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj, citado na decisão recorrida, que, partindo do facto de, no âmbito do processo de divórcio, ter sido proferida decisão judicial de atribuição provisória da casa de morada de família a um dos cônjuges e em que não foi estabelecida qualquer contrapartida para o outro cônjuge, afirmou, nomeadamente:
“Interpreta-se, pois, a norma constante do nº 7 do art. 931º do CPC no sentido de a medida provisória e cautelar de atribuição da casa de morada de família poder ou não comportar, em função de uma valoração judicial concreta das circunstâncias dos cônjuges e atentas as exigências de equidade e de justiça, a fixação de uma compensação pecuniária ao cônjuge privado do uso daquele bem, pressupondo esta eventual atribuição a título oneroso uma aplicação analógica do regime que está previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família.
Desta configuração normativa conferida à decisão que atribui, a título provisório, a um dos cônjuges a casa de morada de família decorre que só existe direito a uma compensação pelo uso exclusivo se o juiz a tiver efectivamente atribuído na decisão proferida: ou seja, tal direito a uma compensação patrimonial pressupõe necessariamente, em termos constitutivos, a formulação de um juízo equitativo, em que o julgador, ponderadas as circunstâncias concretas da vida dos cônjuges e por imperiosas razões de justiça material, considera que o equilíbrio dos interesses em confronto só se satisfaz com a imposição ao beneficiário da utilização do imóvel de uma contrapartida por tal uso exclusivo; e, assim sendo, não existe direito à compensação pelo uso exclusivo se se consolidar a decisão provisória acerca do uso da casa de morada, sem nela se prever explicitamente qualquer obrigação de pagamento por parte do cônjuge beneficiado com o uso exclusivo – estando, deste modo, excluída a possibilidade de o outro cônjuge vir ulteriormente, como sucede no caso dos autos, em nova acção, apensada ao processo de divórcio, pretender obter compensação, não prevista na decisão provisória oportunamente proferida nos autos sobre esse tema.
Acresce, no caso dos autos, que a referida decisão provisória foi, de algum modo, a partir do decretamento do divórcio, substituída ou consumida pelo acordo, celebrado pelos cônjuges, judicialmente homologado, no qual identicamente se não prevê o pagamento de qualquer compensação pecuniária pelo uso exclusivo da casa, nele explicitamente atribuído ao R.: saliente-se que tal acordo, interpretado à luz do princípio da impressão do destinatário, só pode significar que nele se não contemplava o pagamento de qualquer quantia como contrapartida da utilização expressamente permitida ao R – implicando a pretensão formulada na presente acção uma modificação substancial dos termos de tal acordo, ao pretender transformar a utilização incondicionada, ali efectivamente prevista, numa utilização condicionada ao pagamento de quantia pecuniária, que não encontrava o mínimo rasto ou traço nas cláusulas que o integravam.”

Situação semelhante foi também apreciada no Ac. desta RG de 18/01/2018, processo 120/160T8EPS.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg, com a diferença de nesta estar em causa um pedido reconvencional.

Também não está aqui em causa, um pedido, por parte da recorrente, do  arrendamento da casa de morada da família, nos termos previstos no art.º 1793º do CC e que é objecto de um processo especial, previsto no art.º 990º do CPC.

A questão central é única e exclusivamente saber se, perante as cláusulas 2.1.1.2. e 2.1.2.3. do documento denominado “Contrato-promessa”, o cabeça de casal pode invocar no inventário os pagamentos que efectuou.

O cerne da questão colocada nos autos é, portanto, o cumprimento de um acordo celebrado entre as partes.

4.3.4. Da nulidade das cláusulas 2.1.1.2. e 2.1.2.3. do documento denominado “Contrato-promessa de partilha”, à luz do disposto no art.º 1730º do CC

Resta analisar a questão da validade das cláusulas 2.1.1.2. e 2.1.2.3., à luz do disposto no art.º 1730º do CC, questão que foi suscitada pelo recorrido na resposta à impugnação da recorrente e que a volta a invocar no recurso.

O art.º 1730º do CC dispõe que os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso.

Interpretando esta norma afirma Ana Filipa Morais Antunes in A inadmissibilidade de uma ablação in Direito e Justiça, 1(Especial), 19-38. https://doi.org/10.34632/direitoejustica.2013.9874, pág. 23:
De acordo com a regra enunciada, no momento da dissolução do casamento e consequente partilha, é reconhecido a cada um dos cônjuges o direito a levantar o valor correspondente a metade da comunhão conjugal. O legislador veda aos cônjuges a faculdade de estabelecerem que cada um deles terá direito, no momento da dissolução do casamento, a quotas diferentes no património comum.

A referida norma tem em vista evitar que na partilha e pelos mais diversos motivos, a atribuição de bens a um dos cônjuges exceda, de forma manifestamente desproporcional, a quota que lhe cabe ou dito de outra forma, tem-se em vista “vedar distribuições desigualitárias do património comum” (Ana Filipa Morais Antunes, in ob. cit. pág. 25.

O acordo plasmado nas cláusulas 2.1.1.2. e 2.1.2.3., não implica com a participação dos cônjuges no património comum e com a partilha e, assim, não é nula à luz do normativo citado.

Desde logo verifica-se que estamos perante um acordo para vigorar a partir do momento em que o divórcio decretado produz efeitoscfr. 2.1.1.2 Durante o período que decorra entre a data de apresentação do requerimento de divórcio e a data da venda da verba 1, …”.

De facto, o art.º 1688º do CC dispõe que as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges cessa pela dissolução… do casamento, o art.º 1789º n.º 1 do CC dispõe que os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, mas retrotraem-se à data da propositura da acção quanto ás relações patrimoniais entre os cônjuges e, tratando-se de divórcio por mútuo consentimento requerido na Conservatória do Registo Civil, o mesmo inicia-se mediante “requerimento “ – cfr. 1775º n.º 1 do CC –, pelo que a referência a “data da propositura da acção”, deve ser tomada como “data da apresentação no requerimento de divórcio”.

Ou seja, com o estipulado nas cláusulas 2.1.1.2. e 2.1.2.3. do “Contrato-promessa…” as partes quiseram estabelecer que, num momento em que já não existe casamento, já não existe comunhão de vida (em que, por isso e, nomeadamente, já não há obrigação de contribuir proporcionalmente para os encargos da vida familiar – art.º 1676º do CC), em contrapartida do uso exclusivo da casa de morada de família pelo recorrido, suprindo as suas necessidades de habitação, ao contrário da recorrente que, como veremos adiante, teve de fazer face a essa necessidade por outra via, o mesmo pagaria, sozinho, os encargos ali elencados, sem a contribuição da recorrente.

Assim se estabelece na cláusula 2.1.1.2 que “Durante o período que decorra entre a data de apresentação do requerimento de divórcio e a data da venda da verba 1, apenas o primeiro contraente habitará o apartamento e garantirá o cumprimento das obrigações inerentes aos contratos de empréstimo das obrigações inerentes aos contratos de empréstimo hipotecários a favor da Banco 1....

O cumprimento da referida obrigação é uma decorrência do uso exclusivo, pelo requerido, daquela que foi a casa de morada de família.

Por outro lado, o acordo estabelece que o recorrido procede ao pagamento dos encargos ali elencados; mas podiam as partes estabelecer que o recorrido pagaria uma determinada quantia como “compensação” pelo facto de ter o uso exclusivo da casa; e nesta circunstância, não se vislumbra em que medida ou de que forma é que tal acordo feriria o disposto no art.º 1 730º.

Além disso, importa ter em consideração que a recorrente alegou que teve de arrendar um outro imóvel para si e para os filhos, pelo que ficou a pagar uma renda.

Este facto não foi incluído na fundamentação de facto, mas devia tê-lo sido e deve ser aqui considerado, pois o recorrido não o impugnou especificadamente, tendo aqui aplicação o disposto no art.º 574º do CPC, ex vi art.º 549º do CPC, como referido supra.

Tendo em consideração este facto e tendo em consideração que, como já se referiu, o mecanismo das compensações visa evitar o enriquecimento de um dos cônjuges à custa do empobrecimento do outro e salvaguardar um certo equilíbrio patrimonial, admitir a pretensão do recorrido seria introduzir um desequilíbrio patrimonial gritante entre os cônjuges.

Além do já referido, se:
- nos termos do art.º 1793º do CC o tribunal pode dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, se esse arrendamento fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges nomeadamente a renda, como compensação pelo uso da casa;
- como afirmado no  Ac. do STJ de 13/10/2016, processo 135/12.7TBPBL-C.C1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj e citado na decisão recorrida, “Interpreta-se, pois, a norma constante do nº 7 do art. 931º do CPC no sentido de a medida provisória e cautelar de atribuição da casa de morada de família poder ou não comportar, em função de uma valoração judicial concreta das circunstâncias dos cônjuges e atentas as exigências de equidade e de justiça, a fixação de uma compensação pecuniária ao cônjuge privado do uso daquele bem, pressupondo esta eventual atribuição a título oneroso uma aplicação analógica do regime que está previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família.
então não se vislumbra qualquer razão para colocar em crise, à luz do disposto no art.º 1730º do CC, o acordo estabelecido pelas partes, nos termos em que o foi, ou seja, pagamento dos encargos em contrapartida ou como compensação do uso exclusivo da casa de morada de família pelo recorrido e do facto de a recorrente ter arrendado uma casa e pagar a respectiva renda.

No referido contexto fáctico, entender-se de outra forma, seria gerar um desequilíbrio entre os ex-cônjuges, senão mesmo um locupletamento do recorrido à custa da recorrente.

E em decorrência de tudo o exposto e concretamente face ao teor da cláusula 2.1.1.2., tendo o recorrido assumido o pagamento daqueles encargos no período que decorria entre a data de apresentação do requerimento de divórcio e a data da venda da verba 1 (cláusula esta, certamente, concluída de boa fé), vir agora pretender repercutir na meação da requerente aqueles encargos não poderia deixar de configurar um venire contra factum proprium.

Finalmente a jurisprudência, ainda que com fundamentação nem sempre coincidente, tem admitido acordos semelhantes ao dos autos.

Assim:
- o Ac. da RC de 07/10/2014, processo 741/13.2TBLRA.C1, consultável in www.dgsi.pt/jtrc:
- o Ac. da RL de  09/10/2014, processo 683/07.0TMLSB-B.L1-2, consultável in www.dgsi.pt/jtrl;
- o Ac. da RL de 24/06/2021, processo 2138/20.9T8PDL.L1-6, consultável in www.dgsi.pt/jtrl;
- o Ac. da RE de 09/02/2023, processo 185/21.2T8CCH.E1, consultável in www.dgsi.pt/jtre;
- o Ac. da RL de 28/02/2023, processo 1301/21.0T8PDL.L1-7, consultável in www.dgsi.pt/jtrl.

O recorrido cita em abono da sua posição o Ac. da RP de 11/04/2019, processo 1238/16.4T8MTS.P1, consultável in www.dgsi.pt /jtrp e em cujo sumário consta:
I - O contrato-promessa de partilha de bens, celebrado pelos cônjuges, subordinado à condição suspensiva do decretamento do divórcio, é válido por não ofender o princípio da imutabilidade do regime de bens do casamento imposto pelo artigo 1714º do Código Civil.
II - A lei proíbe, contudo, as estipulações ou cláusulas contrárias à “regra da metade” imperativamente imposta pelo artigo 1730º do mesmo diploma legal, proibição extensiva aos casos em que do contrato não constem os elementos necessários que permitam ajuizar sobre a observância dessa regra.
III - É, assim, nulo, por violação do nº 1 do artigo 1730º, o contrato-promessa de partilha que não contemple a totalidade das situações jurídicas ativas e passivas que compõem o património comum do casal, nem contenha a indicação do valor integral do conjunto dessas situações.

Porém e lido na integra o referido Acórdão, muito embora ali estivesse em causa um contrato-promessa de partilha, não estava em causa, nem lateralmente, a concreta questão que nos ocupa, ou seja, saber se, tendo o cabeça de casal relacionado sob as verbas 1 a 4 do passivo, o que despendeu em prestações de empréstimo, seguro, IMI e condomínio relativamente a imóvel comum, devem as mesmas ser retiradas da relação de bens, tendo em consideração que as partes subscreveram um documento, denominado contrato-promessa de partilha”, em que ficou a constar que o cabeça de casal se obrigava a pagar aquelas despesas.

Em face de tudo o exposto, improcede a invocada nulidade das cláusulas 2.1.1.2. e 2.1.2.3. do “Contrato-promessa…”, à luz do disposto no art.º 1730º do CC

4.3.5. Da impossibilidade de invocar o contrato-promessa
Alega o recorrido que querendo a recorrente socorrer-se do contrato-promessa teria de se socorrer da execução específica e não do inventário.

Em primeiro lugar, impõe-se considerar que estamos perante uma questão ultrapassada, por que o recorrido, não sendo o requerente do inventário e tendo sido citado para o mesmo, não deduziu qualquer oposição ao inventário.

Em segundo lugar e como já observado, não está aqui em causa qualquer questão relacionada com a partilha dos bens, mas apenas e tão só um acordo entre os então cônjuges, para vigorar em momento posterior àquele em que o divórcio produz efeitos patrimoniais, quanto à utilização da casa de morada e família até à venda e a contrapartida dessa utilização, acordo esse que, apenas, ficou a constar do documento intitulado “Contrato-promessa de partilha”.

Sendo assim, a questão suscitada não só é extemporânea, como não tem razão de ser.

4.4. Síntese
Em face de tudo, nada obstando à validade formal e substancial das cláusulas 2.1.1.2. e 2.1.2.3. do documento denominado “Contrato-promessa…”, a decisão recorrida, de manter no “Passivo“ da “Relação de bens “ apresentada a 23/01/2019, as verbas n.ºs 1 a 4, não se pode manter, devendo ser revogada e substituída por outra que determine a eliminação de tais verbas.

4.5. Custas
Quanto a custas, as mesmas são da responsabilidade do recorrido, por vencido, nos termos do art.º 527º n.º 1 do CPC.

5. Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 1ª Secção desta Relação em revogar a decisão recorrida e em consequência julgar o recurso procedente, determinando a eliminação das verbas n.ºs 1 a 4 do “Passivo” da “Relação de bens“, apresentada a 23/01/201.
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Custas pelo recorrido – art.º 527º n.º 1 do CPC
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Notifique-se
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Guimarães, 07/06/2023
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
 
Relator: José Carlos Duarte
Adjuntos: Maria Gorete Morais
Maria João Matos