Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1136/14.6T8VCT-B.G1
Relator: MARIA DE FÁTIMA ALMEIDA ANDRADE
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
DECLARAÇÃO NEGOCIAL
ANULAÇÃO
ERRO
POSSE
DIREITO DE RETENÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/25/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1- Na medida em que os recursos visam, por via da modificação de decisão antes proferida, reapreciar a pretensão dos recorrentes por forma a validar o juízo de existência ou inexistência do direito reclamado, está a pretendida alteração da decisão da matéria de facto por omissãolimitada ao efeito útil que da mesma possa provir para os autos, em função do objeto processual delineado pelas partes e assim já antes submetido a apreciação pelo tribunal a quo.
2- Recai sobre o terceiro que deduz embargos ao ato de penhora (ou qualquer outro ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens) alegar e provar que é possuidor e esta posse foi ameaçada ou ofendida, ou que é titular de outro direito incompatível com a realização ou âmbito da diligência ordenada judicialmente.
3- A anulação da declaração negocial em virtude de erro que atingiu os motivos determinantes da vontade, pressupõe a prova de que o declaratário conhecia ou não devia ignorar a essencialidade para o declarante, sobre que incidiu o erro.
4-Beneficiando a parte contrária da presunção da titularidade do direito de propriedade por via registral, não afastada pelos embargantes, incumbiria aos mesmos fazer prova da sua qualidade de possuidores.
5-A posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício de um direito real.
A posse envolve o “corpus” - elemento empírico que implica exercício de poderes de facto em termos de um direito real e o “animus” – elemento psicológico que integra a vontade de agir como titular de um direito real que se exprime por certa atuação de facto.
6-Tal poder de facto, tem contudo de ser público e nomeadamente do conhecimento dos interessados diretos como resulta do artigo 1262º do CC.
7- O contrato de compra e venda é um contrato “real quodeffectum” porquanto e por mero efeito do mesmo produz a transmissão de direitos reais de forma imediata e instantânea.
8- Transmitida a propriedade pelo titular e possuidor do respetivo direito real, considera-se igualmente transferida a posse por via do constituto possessório, o qual não exige um ato material ou simbólico para tal transmissão (artigo 1264º do CC).
9- Nesta situação, incumbe ao embargante de terceiro, anterior proprietário que pretende a seu favor invocar a existência de posse, alegar e provar factualidade da qual se possa inferir que tal transferência não ocorreu, ou então que ocorreu inversão do título de posse.
10- Por força do disposto no artigo 759º n.º 3 do CC, ao titular do direito de retenção sobre coisa imóvel são aplicáveis no que respeita aos seus direitos e obrigações as regras do penhor, pelo que a este titular do direito de retenção é conferido o direito da defesa da posse mesmo contra o verdadeiro dono da coisa nos termos do artigo 670º al. a) do CC.
11- São pressupostos, cumulativos, do direito de retenção previsto noart. 754º:
i- que alguém detenha licitamente uma coisa cuja entrega é devida a outrem;
ii- que o devedor (obrigado à restituição) seja simultaneamente credor daquele que à restituição tem direito;
iii- conexão entre o crédito do obrigado à restituição e a coisa detida que terá de resultar de despesas com a coisa efetuadas ou de danos pela mesma causados.
12- Não se enquadra na relação de conexão prevista no artigo 754º do CC o crédito derivado do alegado não pagamento do preço acordado no âmbito do contrato de compra e venda.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

J e M deduziram embargos de terceiro, contra “B” e “C”, peticionando pela sua procedência:

a)que lhes seja reconhecido que habitam no imóvel objeto da execução, aí fazendo a sua vida e a sua habitação permanente;

b)que seja reconhecido, pelos factos elencados no seu requerimento inicial, o erro na formação da sua vontade que veio a culminar na declaração negocial, nos termos do artigo 251º do CC e consequentemente;

- que seja declarada a anulabilidade do negócio de compra e venda nos termos do artigo 247º do CC;

ou quando assim se não entenda

- que lhes seja reconhecido nos termos do artigo 754º do CC o direito de retenção sobre o imóvel identificado nos autos, por não recebimento do preço de € 100.000,00 e das despesas mantidas ao longo dos anos com o referido imóvel.

Para tanto e em suma alegaram os embargantes:

- que vivem na casa objeto de execução;

- a pedido de seu filho e confiando no por ele informado de que tudo ficaria como antes; que ficariam a habitar na casa onde sempre viveram, sendo sempre deles, trazendo benefício ao mesmo a nível da sua atividade profissional, acederam a “colocarem a sua casa de família numa sociedade comercial”;

- para o efeito se tendo deslocado ao notário para assinar um documento – que agora sabem ser a escritura de compra e venda da sua habitação a “B”, criada pelo seu filho e de quem figurava como administradora única a sua companheira M;

- desconheciam os embargantes totalmente o que assinavam, confiando no seu filho a quem faziam a vontade;

- para si nada se tendo alterado, continuando a pagar as contas relativas a água, luz entre outros, até à afixação do auto de penhora na sua habitação;

- nunca receberam o preço da venda casa, € 100.000,00;

- agiram em erro, representando falsamente a vontade;

- se reunissem perfeito conhecimento da realidade naquela época (..) nunca teriam declarado a venda da sua casa de habitação;

- a vontade real dos embargantes foi toldada por um erro, contrário ao que lhe foi transmitido, tendo a sua habitação vindo a servir de garantia a um crédito;

- se soubessem de tais circunstâncias e factos nunca teriam celebrado tal negócio;

- foi essencial a manipulação e indicações falsas do seu filho para caírem na situação de erro motivo;

- o erro proporcionado aos embargantes foi determinante na declaração negocial emitida, ou seja, formada que foi a convicção pelo seu filho de que nada se alteraria (…) de que a casa seria sempre dos embargantes – tanto assim é que nunca receberam qualquer valor pelo imóvel – os embargantes declararam toldados por uma convicção errónea, a venda da sua casa;

- «o destinatário da declaração “B”, entenda-se o filho dos embargantes, conhece e não pode ignorar a essencialidade do elemento sobre que incidiu o erro»;

- Caso assim não se entenda e porque têm a posse do imóvel, onde desde sempre residem – pagando a água, luz, custos de manutenção do imóvel e despesas de conservação do mesmo, atuando com o animus de exercerem um direito próprio - nunca lhes tendo sido pago o preço de venda, pretendem que lhe seja reconhecido o direito de retenção sobre o imóvel até que este seja registado em seu nome ou até ao pagamento do preço.


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Recebidos os embargos e notificados exequente e executados para contestar, não foi apresentada contestação.

Observado o disposto no artigo 567º n.º 2 do CPC apresentaram os embargantes alegações pugnando pela procedência dos embargos; apresentou a embargada “C” alegações pugnando pela improcedência dos embargos e em qualquer caso pela manutenção da hipoteca a seu favor registada sob o imóvel em causa.


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Após, e dando nota de que as alegações apresentadas pela embargada/exequente só são admitidas enquanto alegações de direito, proferiu o tribunal sentença decidindo:
“- reconhecer que os embargantes habitam no imóvel objeto da execução que ora se embarga;
- julgar improcedentes os presentes embargos de terceiro, na parte em que se pede que se reconheça o erro na formação da vontade e a anulabilidade do negócio de compra e venda, bem como na parte em que se pede o reconhecimento do direito de retenção dos embargantes sobre o imóvel em causa, devendo prosseguir a execução relativamente ao mesmo (imóvel descrito na Cons. do Registo Predial de Vila Nova de Cerveira sob º nº … da freguesia de Covas).”
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Do assim decidido apelaram os embargantes, oferecendo alegações e formulando as seguintes

Conclusões:

A) Os ora Apelantes, foram confrontados pela douta sentença, de que ora se recorre parcialmente;
B) O Tribunal a quo, não reconheceu, erroneamente, o erro na formação de vontade, no motivo dos Apelantes e bem assim como o direito de retenção dos mesmos sobre o imóvel, objeto dos presentes autos;
C) Assim, como não considerou provado, que os Apelante não receberam o preço do referido imóvel.
D) Os Apelantes são residentes e habitam, no Lugar de Baralho, Fontela, … Covas, tal como aliás foi devidamente reconhecido na douta sentença, objeto do presente recurso não merecendo a mesma, qualquer reparo nesta parte.
E) No dia 6 de Fevereiro de 2006, foram com o seu filho assinar um documento ao Cartório Notarial de Lisboa – que agora sabem, ser a escritura de compra e venda da sua habitação, vendendo à sociedade B, o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Cerveira sob o nº … da freguesia de Covas e inscrito na matriz predial urbana sob o artº … da indicada freguesia.
F) A sociedade B foi criada pelo seu filho, acionista, sendo que figurava como Administradora Única a Sra.M, companheira do filho.
G) Os Apelantes, foram levados, por ambos, a formalizar um documento, sendo que na verdade, desconheciam totalmente o que assinaram, confiando no seu filho e convencendo-se que não passaria de um ato necessário a fazerem a vontade do filho, podendo assim ajudar o mesmo, na sua vida profissional.
H) Para eles, e até à afixação do auto de penhora na sua habitação, nada se havia alterado, pagando sempre as contas relativas ao consumo doméstico, nomeadamente água, luz, entre outras despesas.
I) Os Apelantes agiram em erro;
J) Erro esse na sua formação de vontade, no motivo, ignorando o que de facto estava a acontecer, representando falsamente a realidade.
K) Os Apelantes, não reuniam perfeito conhecimento da realidade naquela época, e se soubessem quais as circunstâncias e espirito que levaram o seu filho à conduta que teve, nunca os mesmos teriam agido da forma que agiram, nunca iriam declarar a venda da sua casa de habitação.
L) Estamos na presença de um erro que atinge os motivos determinantes da vontade, consagrado no artigo 251º do Código Civil que refere “O erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objeto do negócio, torna este anulável nos termos do artigo 247º”.
M) E como referem, na doutrina, Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição Revista e Atualizada, “No caso do erro-motivo ou erro-vício há conformidade entre a vontade real e a vontade declarada. Somente, a vontade real formou-se em consequência do erro sofrido pelo declarante. Se não fosse ele, a pessoa não teria pretendido realizar o negócio, pelo menos nos termos em que o efetuou”.
N) Assim, como bem salienta, na jurisprudência, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 296/05.1TBVGS.C1.S1, “o erro motivo (Motivirrtum na terminologia civilista germânica) ou erro-vício não supõe desconformidade entre a vontade real e vontade declarada. O que acontece é que a vontade real formou-se em consequência de um erro sofrido pelo declarante e que, como se ponderou no Acórdão deste Supremo Tribunal de 4 de Janeiro de 1972, se não existisse tal erro, a pessoa não teria pretendido realizar o negócio ou, pelo menos, não nos termos em que o efetuou”.
O) A vontade real dos Apelantes, foi toldada por um erro, contrário ao que lhes foi transmitido, tendo vindo a sua habitação a servir de garantia a um crédito.
P) Os Apelantes, desconheciam por completo, a empresa B, nomeadamente, quem eram os administradores da mesma, fazendo única e exclusivamente o que foi solicitado pelo seu filho.
Q) Sendo que o que sabem de facto, é que nunca receberam o preço da venda do imóvel em causa, os € 100.000,00, aliás, como confessa a sociedade B, ao não contestar os Embargos de Terceiros, apresentados pelos Apelantes, não obstante se encontrar devidamente notificada;
R) Assim e contrariamente ao referido na douta sentença, em crise, e com o devido respeito, não se poderá considerar como não provado, que os ora Apelantes não tenham recebido o preço da venda em causa,
S) Já que a B, não logrou demonstrar o pagamento do preço, pois, nos termos do disposto no nº 1 do artº 567º do CPC, se o réu não contestar, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor;
T) A B, não contestou tais embargos, reconhecendo o erro criado aos ora Apelantes, bem assim como o não pagamento do preço.
U) Aliás, no seguimento da aplicação da lei, feita pelo douto Tribunal a quo, às alegações apresentadas pela Embargada C, o qual apenas as considerou na parte de direito;
V) Para além de que o facto de os Apelantes declararem na Escritura Pública de Compra e Venda, que receberam tal preço, não obsta a que na verdade, não o tenham recebido;
W) Tal Escritura, relativamente á questão do pagamento e recebimento do preço, apenas regista as declarações prestadas pelos Outorgantes na mesma, não podendo tal Escritura provar o efetivo recebimento do preço, até porque na verdade, o mesmo nunca foi pago aos ora Apelantes.
X) Pelo que, de facto, contrariamente ao decido pelo Tribunal a quo, deve ser considerado provado o erro determinante na declaração negocial emitida, existindo, como ficou comprovado um erro nos motivos determinantes da vontade dos Apelantes, nos termos do artigo 251º do Código Civil, pelo que a transmissão em causa deve ser anulada nos termos do artigo 247º do Código Civil, que dispõe “Quando, em virtude do erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, sobre que incidiu o erro”;
Y) Bem como deve ser considerado provado que os Apelantes não receberam o preço na venda do imóvel em causa, aliás como não foi sequer contestado pela B.
Z) Relativamente ao pedido de reconhecimento do direito de retenção dos Apelantes, sobre o imóvel objeto dos Embargos de Terceiro, por o não recebimento do preço e das despesas mantidas ao longo dos anos com o referido prédio, o Tribunal a quo, considerou erroneamente, julgar improcedente, o reconhecimento de tal direito de retenção, referindo para tal, na douta sentença, que “Também se dirá que é hoje consensual o entendimento de que o direito de retenção é um direito real de garantia e não simples instrumento de coerção. Atento o carácter absolto ou erga omnes dos direitos reais, é suacaraterísticao de serem eficazes contra terceiros, o chamado direito de sequela, pelo que vincula todos, mesmo os terceiros que venham a adquirir posteriormente a propriedade do imóvel. São pressupostos do direito de retenção, dito geral “artº 754º do CC: i)a detenção lícita de uma coisa suscetivel de penhora, por alguém a quem ela não pertence; ii) que esse detentor seja credor da pessoa a quem a coisa deve ser entregue; iii) que a detenção da coisa tenha originado despesa, efetuadas de boa-fé, ou causado danos. Estes requisitos são de verificação cumulativa.”
AA) Utilizando o raciocínio referido na douta sentença, os ora Apelantes, têm a posse de uma coisa, suscetível de penhora, entenda-se bem imóvel objeto da presente ação;
BB) Relativamente ao crédito, os ora Apelantes, nunca receberam o preço da venda do imóvel, logrando provar que o mesmo nunca lhes foi pago, em virtude de a B, confessar os factos articulados pelos Apelantes nos Embargos de Terceiro apresentados.
CC) Quanto às despesas que a detenção da coisa originou, aliado ao reconhecimento, de que os Apelantes habitam no imóvel objeto da ação, provado terá que considerar-se que são eles que têm suportado e suportam, os custos relativos á utilização diária da sua casa de morada de família, água, luz, custos de manutenção do imóvel, etc.
DD) Ora, o Direito de Retenção consiste na “faculdade de uma pessoa reter ou não restituir coisa alheia que possui ou detém, até ser paga do que lhe é devido por causa dessa coisa, pelo respectivo proprietário” (in RLJ, 104.º, 200) e tal como referem Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição Revista e Atualizada que “O direito de retenção consiste na faculdade que tem o detentor de uma coisa de a não entregar a quem lha pode exigir, enquanto este não cumprir uma obrigação a que está adstrito para com aquele.”
EE) Significa isto que, os Apelantes reúnem todas as condições para que lhes seja reconhecido o direito de retenção até ao pagamento integral do preço de € 100.000,00, acrescido das demais despesas que têm suportado com o imóvel em causa.
FF) Mais se dirá, que o crédito existente é sobre a B, e não sobre a C, contudo, tal como resulta do artº 779º do CC, para além da preferência sobre os demais credores do devedor (B), o direito de retenção prevalecerá sobre a hipoteca, mesmo que esta tenha sido registada anteriormente.
GG) Pelo que esteve mal o Tribunal a quo, ao considerar improcedente o direito de retenção dos Apelantes, já, que como se verifica da sentença em crise, o douto Tribunal a quo, relativamente às condições necessárias para a verificação de tal direito, apenas considerou não provado o não recebimento do preço pelos Apelantes;
HH) Ora, como já ficou devidamente demonstrado, os Apelantes não receberam o preço do imóvel.
II) Nestes termos, deverá ser reconhecido que os Apelantes agiram em erro, na formação da vontade, e como tal declara-se a anulabilidade do negócio;
JJ) E reconhecer-se que os ora Apelantes nunca receberam o preço do imóvel, facto comprovado nos autos e ao qual, o Tribunal a quo, não se pode sub-rogar à B, que não contestou, e,
KK) Subsidiariamente, deverá ser reconhecido o direito de retenção dos Apelantes sobre o imóvel objeto dos presentes autos.
Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, deve ser julgado procedente por provado o recurso interposto e, consequentemente, a sentença recorrida revogada, na parte supra delimitada.

Assim, Vossas Excelências farão a costumada

JUSTIÇA !”


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A recorrida “C”, apresentou contra-alegações, em suma pugnando pela improcedência do recurso.

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O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Foram colhidos os vistos legais.


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II- Âmbito do recurso.

Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC [Código de Processo Civil] – resulta das formuladas pelos apelantes serem as seguintes as questões a apreciar:

1) omissãona decisão da matéria de facto – nomeadamente por não inclusão do facto alegado relativo ao “não recebimento do preço” [conclusões Q) a W) e Y) dos recorrentes]/pertinência desta inclusão;

2) erro na aplicação do direito – face ao não reconhecimento do erro nos motivos determinantes da vontade dos Apelantes, nos termos do artigo 251º do Código Civil e subsequente anulação da transmissão em causa nos termos do artigo 247º do Código Civil, bem como ao não reconhecimento do direito de retenção sobre o imóvel em causa nos autos.


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III- Fundamentação


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Na sentença sob recurso foram dados como provados os seguintes factos(face à não apresentação de contestação):

1) Os Embargantes, residentes no Lugar de Baralho, Fontela, … Covas foram confrontados com a afixação na sua residência do Edital de Penhora afixado pela Agente de Execução Dra. Inês Falcão Costa.
2) Os Embargantes vivem desde sempre na casa que agora é objeto da presente execução.
3) São naturais de Covas, localidade e sociedade onde se inserem e vivem desde sempre, sendo que o embargante homem tem 85 anos e a embargante mulher 82 anos de idade.
4) Sofrem, principalmente o Embargante homem, de patologias de grau elevado.
5) Ao serem confrontados pelo auto de penhora, ficaram em tal estado de ansiedade, que a sua condição se debilitou em larga medida.
6) Nos anos de 2005/2006, o filho varão de ambos os embargantes, entretanto já falecido, tinha vários negócios relacionados com o imobiliário, comprando e vendendo imóveis, reabilitando, construindo e vendendo.
7) Determinado dia, o seu filho pediu-lhes para colocarem a sua casa de família numa sociedade comercial, indicando-lhes que tudo ficaria como antes, trazendo só benefícios ao mesmo a nível da sua atividade profissional.
8) Os Embargantes não entendem, não são especializados em quaisquer atos societários, limitando-se a atender ao pedido do filho com a garantia de que mais não era que uma mera ajuda formal.
9) À data, confiando no seu filho, acederam a fazer o que este lhes pediu com a certeza plena que tudo ficaria como sempre e fazendo assim a vontade ao filho.
10) O filho, por sua vez, informou-os de que não havia qualquer problema - os pais ficariam a habitar e a viver na casa onde sempre viveram, sendo sempre deles; seria somente para ajudá-lo na sua vida profissional.
11) Os Embargantes, perante tal pedido de seu filho e com a informação e certeza dada pelo mesmo, que não haveria qualquer problema para eles, acabaram por ajudar o seu filho.
12) No dia 6 de Fevereiro de 2006, foram com o seu filho assinar um documento ao Cartório Notarial de Lisboa – a escritura de compra e venda da sua habitação, vendendo à sociedade B.
13) A sociedade B foi criada pelo seu filho, acionista, sendo que figurava como Administradora Única a Sra.M, companheira do filho.
14) Os Embargantes desconheciam totalmente o que assinaram, confiando no seu filho e convencendo-se que não passaria de um ato necessário a fazerem a vontade do filho, podendo assim ajudar o mesmo.
15) Para eles e até à afixação do auto de penhora na sua habitação, nada se havia alterado, pagando sempre as contas relativas ao consumo doméstico, nomeadamente água, luz, entre outros.
16) Na escritura pública em causa, os embargantes declararam ter recebido €100.000,00.
17) Quando se detiveram com estes acontecimentos, confrontaram a sua outra filha e o seu marido, agora Administrador Único da B, a fim de saberem o que se passava e solicitando, implorando, para que a situação fosse sanada.
18) Apesar das boas relações mantidas até então, os mesmos nada resolveram, antes confirmaram a existência de uma ação que envolvia a casa dos embargantes e que estariam a tratar de resolver.”.


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Conhecendo.

1)Cumpre apreciar em primeiro lugar a questão da decisão da matéria de facto que os recorrentes invocam padece de omissão – face à não inclusão nesta do alegado não recebimento do preço, apesar de na escritura pública declarado como recebido [vide 16) dos factos provados] e que por tal pugnaram os recorrentes que nos mesmos fosse incluído [conclusões Q) a W) e Y)].

Para a apreciação desta pretensão dos recorrentes importa ter presente os seguintes pressupostos:

1- Na reapreciação da matéria de facto – vide nº 1 do artigo 662ºdo CPC - a modificação da decisão de facto é um dever para a Relação, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou a junção de documento superveniente impuser diversa decisão. Cabendo ao tribunal da Relação formar a sua própria convicção mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou que se mostrem acessíveis.

Sem prejuízo de e quanto aos factos não objeto de impugnação,dever o tribunal de recurso sanar mesmo oficiosamente e quando para tal tenha todos os elementos, vícios de deficiência, obscuridade ou contradição da factualidade enunciada, tal como decorre do disposto no artigo 662º n.º 2 al. c) do CPC.

2- Os recursos visam o reexame das decisões proferidas em 1ª instância, motivo porque o objeto de recurso está limitado pelas questões que foram sujeitas a apreciação ao tribunal recorrido (salvo em situações limitadas e expressamente consagradas como por exemplo no caso de ocorrer alteração ou ampliação do pedido em 2ª instância (artigo 264º do CPC) ou de se impor o conhecimento oficioso de exceção ainda não decidida com trânsito em julgado [cfr. Ac. STJ, Relatora Ana Geraldes de 17/11/2016 in www.dgsi.pt/jstj ] .

3- Mais e na medida em que os recursos visam, por via da modificação de decisão antes proferida reapreciar a pretensão dos recorrentes por forma a validar o juízo de existência ou inexistência do direito reclamado, temos igualmente de concluir que a reapreciação da matéria de facto está limitada ao efeito útil que da mesma possa provir para os autos, em função do objeto processual delineado pelas partes e assim já antes submetido a apreciação pelo tribunal a quo [vide neste sentido Acs. deste TRG de 12/07/2016, Relator Jorge Seabra e de 15/12/2016, Relatora Maria João Matos, ambos in www.dgsi.pt/jtrg ].

É neste último pressuposto que claudica a pretensão dos recorrentes e justifica por tal a improcedência do pedido de inclusão de tal matéria por reapreciação da decisão de facto.

Com efeito o facto em causa relativo ao não pagamento não releva para a decisão de mérito, pelos motivos que melhor resultarão expostos na apreciação do mérito do recurso relacionado com os pressupostos do exercício do direito de retenção.

Conclui-se portanto não haver fundamento para introduzir o facto em questão na factualidade provada e eventualmente neste sentido reapreciar da pretensão da sua introdução, porquanto não tendo para a decisão da causa relevância jurídica, nessa medida configuraria a prática de atividade processual inútil, proibida desde logo pelo disposto nos artigos 6º n.º 1 e 130º do CPC.

Termos em que se julga improcedente a peticionada introdução nos factos provados da factualidade identificada no recurso.


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Do direito.

Em função do acima decidido, cumpre apreciar de direito, sendo certo que o tribunal não está vinculado às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito [vide artigo 5º nº 3 do CPC], sem prejuízo do limite imposto pelo artigo 609º quanto ao objeto e quantidade do pedido.

Como primeiro fundamento de recurso alegam os embargantes em suma serem donos e possuidores do imóvel penhorado, onde sempre moraram e continuam a morar porquanto e não obstante a escritura de compra e venda que outorgaram e nos termos da qual foi declarado venderem (no dia 6 de Fevereiro de 2006) a sua habitação à sociedade B (que nos autos principais é executada), tal declaração deveu-se a erro nos motivos determinantes da vontade dos Apelantes, nos termos do artigo 251º do Código Civil, pelo que deve ser anulada a declaração negocial de venda formalizada na escritura celebrada, nos termos do artigo 247º do Código Civil.

Preceitua o artigo 247º do CC “Quando, em virtude do erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, sobre que incidiu o erro”.

Declaratário no negócio em causa é a sociedade “B” que no ato da escritura foi representada pela administradora única M [conforme se extrai da escritura pública de compra e venda celebrada em 06/02/2006 cuja certidão se encontra junta a fls. 70 a 73 dos autos].

Para a procedência da pretensão dos recorrentes neste ponto, impunha-se portanto e como facto principal que estes tivessem alegado para que o pudessem provar, que a sociedade B conhecia ou não devia ignorar a essencialidade, para si recorrentes, sobre que incidiu o erro.

Mesmo que in casu se pudesse configurar uma situação de dolo por parte do filho, ainda assim e por ser terceiro em relação ao declaratário teria sempre este último de conhecer tal situação (artigo 254º n.º 2 do CC).

E neste ponto, como bem notou o tribunal a quo nada foi alegado.

Na verdade todo o circunstancialismo descrito pelos embargantes e que se encontra, no que releva, transcrito nos factos provados respeita ao que com o seu filho falaram e acordaram. Não sendo o seu filho a contraparte no negócio ora pelos recorrentes questionado, nem sequer tendo no ato da escritura atuado em representação daquela impõe-se concluir, tal como o fez o tribunal a quo que não foram alegados factos que permitam a procedência da pretendida anulação do contrato de compra e venda celebrado entre os recorrentes e a executada “B” por não demonstrado (nem alegado) o conhecimento por parte desta da essencialidade sobre que incidiu o erro alegado pelos recorrentes.

Improcedente esta anulação, temos que a executada “B” beneficia da presunção da titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel penhorado por via registral (artigo 7º do C. R. Predial).

Registo este fundado em aquisição derivada – o ato de compra e venda que os recorrentes pretendiam por esta via ver anulado, mas não lograram ver procedente.

Dispõe o artigo 342º n.º 1 do CPC “Se a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.”.

Daqui se extrai que o terceiro que deduz embargos ao ato de penhora (ou qualquer outro ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens) tem de alegar e provar ou que é possuidor e esta posse foi ameaçada ou ofendida, ou que é titular de outro direito incompatível com a realização ou âmbito da diligência ordenada judicialmente.

Afastada a titularidade do direito de propriedade, face à presunção registral acima já aludida em benefício da executada e não afastada, incumbiria aos embargantes fazerem prova da sua qualidade de possuidores.

Concretizaram estes a alegada posse sobre o imóvel nos seguintes termos tal como ficou provado: que vivem no imóvel penhorado e sempre lá viveram (n.ºs 1 e 2 dos f.p.); quando acederam a pedido do filho a celebrar o negócio que este lhes propôs mas que depois se aperceberam ser uma escritura de C/V, este disse-lhes que “tudo ficaria como antes” (7 f.p.); que " tudo ficaria como sempre” (9 f.p.); tendo sido informados por seu filho que “não havia qualquer problema - os pais ficariam a habitar e a viver na casa onde sempre viveram, sendo sempre deles; seria somente para ajudá-lo na sua vida profissional” (10 f.p.); “até à afixação do auto de penhora na sua habitação, nada se havia alterado, pagando sempre as contas relativas ao consumo doméstico, nomeadamente água, luz, entre outros” (15 f.p.).

Para a apreciação da pretensão dos recorrentes neste ponto, entende-se oportuno efetuar um prévio enquadramento jurídico do contrato de compra e venda aludido nos autos, bem como dos requisitos exigidos para a aquisição da posse.

Caraterizando o tipo contratual entre as partes celebrado - contrato de compra e venda - pode desde logo afirmar-se ser este um contrato oneroso e sinalagmático, significando que as obrigações de vendedor e comprador têm cada uma a causa na outra (sinalagma genético) o que determina a sua conexão em sede de execução contratual (sinalagma funcional), aplicando-se-lhe por tal a este tipo contratual as regras relativas ao sinalagma contratual como a exceção de não cumprimento (artigos 428º e segs.) ou resolução por incumprimento (artigo 801º n.º2) do CC. [cfr. sobre a caraterização do contrato de C/V Luís M. T. M. Leitão, in Direito das Obrigações, vol. III, p. 9 e segs. que aqui seguimos].

E estando em causa a compra e venda de imóveis, está a mesma sujeita a escritura pública, tal como o determina o artigo 875º do CC..

A transferência do direito de propriedade dá-se, por princípio, por mero efeito do contrato, como resulta dos art.ºs 408.º, nº. 1; 874º e 879º, todos do C.C., determinando a sua celebração a constituição de duas obrigações – a entrega da coisa vendida [879º b) do CC] e a obrigação de pagar a respetiva contrapartida acordada, ou seja o preço [879º al. c) do CC].

Assim diz-se que o contrato de compra e venda é um contrato obrigacional – face à constituição das obrigações acima aludidas – mas simultaneamente é um contrato “real quodeffectum” porquanto produz a transmissão de direitos reais de forma imediata e instantânea [879º al. a do CC], sendo esta uma emanação do princípio da consensualidade do qual se extrai que a declaração de vontade das partes sustentada em título, formal quando assim seja por lei exigido, é só por si suficiente para operar a transmissão da propriedade (conforme ao preceituado no artigo 408º do CC).

A este princípio da consensualidade está associado o princípio da causalidade, porquanto a válida transmissão do direito real está dependente da existência de uma justa causa de aquisição. Afetando o vício do negócio causal a transmissão da propriedade – vício que in casu os recorrentes invocaram mas não lograram provar, nos termos acima referidos.

Conforme já referido, são obrigações essenciais do contrato de compra e venda a entrega da coisa e o pagamento do preço.

O não cumprimento da obrigação de pagar o preço, faculta ao vendedor (para além do mais) o recurso à ação de cumprimento (817º do CC) ou até à resolução do contrato, mas neste caso e face às limitações impostas pelo artigo 886º do CC, apenas se houver convenção em contrário; ainda não tiver sido entregue a coisa, ou ainda não tiver sido transmitida a propriedade da coisa.

Por sua vez o incumprimento da obrigação de entrega da coisa gerará para o comprador o direito de requerer ação de cumprimento (artigo 817º e segs. do CC); execução específica da obrigação (827º do CC) ou até resolução contratual nos termos do artigo 801º n.º 2 do CC.

É através do cumprimento da obrigação de entrega da coisa que se atribui a posse ao comprador – tradição material ou simbólicaefetuada pelo anterior possuidor, conforme decorre do artigo 1263º al. b) do CC..

Posseque igualmente se adquire:

i- “a) Pela prática reiterada, com publicidade, dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito” (artigo 1263º al. a do CC).

Sendo considerada pública a posse “que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados” [artigo 1262º do CC];

ii- por “Constituto possessório” [al. c) do artigo 1263º do CC].

Definido este no artigo 1264º do CC, o qual dispõe e no que ora releva no seu n.º 1 “1. Se o titular do direito real, que está na posse da coisa, transmitir esse direito a outrem, não deixa de considerar-se transferida a posse para o adquirente, ainda que, por qualquer causa, aquele continue a deter a coisa.”

Por esta via dispensa-se o ato material da aquisição da posse decorrente de um acordo estabelecido entre o novo proprietário e o anterior proprietário e possuidor que passa a detentor por uma “causa detentionis” [cfr. CC Anot. Pires de Lime e Ant. Varela, vol. III em anotação ao artigo 1264º do CC].

iii- por inversão do título da posse [al. d) do artigo 1263º do CC].

Inversão esta que se pode dar, tal como resulta do artigo 1265º do CC “por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por ato de terceiro capaz de transferir a posse.”

Ou seja, uma vez mais [tal como no caso da al. a) deste artigo] se exigindo que a atuação possessória seja nomeadamente conhecida do interessado anterior titular do direito.

A posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício de um direito real (artigo 1251º), sendo assim “o exercício de poderes de facto sobre uma coisa, em termos de um direito real (rectios: do direito real que corresponde a esse exercício)” (cfr. Prof. Orlando de Carvalho, Introdução à Posse in RLJ 122, p. 104).

A posse envolve portanto o “corpus” - elemento empírico que implica exercício de poderes de facto em termos de um direito real e o “animus” – elemento psicológico que integra a vontade de agir como titular de um direito real que se exprime por certa atuação de facto.

Em caso de dúvida estabelece o artigo 1252º n.º 2 do CC uma presunção de posse naquele que exerce o poder de facto, ou seja que detém a coisa, a qual se justifica perante a dificuldade em fazer prova do elemento intelectual – a intenção de atuar como titular do direito correspondente aos poderes exercidos.

Tal poder de facto, tem contudo de ser público e nomeadamente do conhecimento dos interessados, como resulta do já citado artigo 1262º.

In casu interessada direta no conhecimento desta atuação é a referida “Babel”.

Esta, por via do contrato de compra e venda viu para si transferida a propriedade do bem em questão, entendendo-se como consequência transferida a posse para a mesma por via do constituto possessório, o qual não exige um ato material ou simbólico para a transmissão da posse (artigo 1264º do CC).

Aos embargantes incumbia o ónus de provar factualidade da qual se pudesse inferir que tal transferência – que por via deste instituto dispensa a tradição material – não ocorreu.

Ou ainda que após esta, se deu uma inversão (agora da sua parte) do título de posse.

Em qualquer destas situações seria perante a adquirente ora embargada que os embargantes tinham de fazer conhecida a sua posição [sobre a necessidade de tornar conhecido dos diretos interessados a atuação possessória vide Ac. STJ de 07/02/2013, Relator Granja da Fonseca in www.dgsi.pt] .

E nenhuma factualidade neste sentido por referência à compradora foi alegada.

A implicar a conclusão de que os embargantes não fizeram prova de factualidade necessária à conclusão de que sobre o imóvel em questão mantiveram ou mantêm a posse, não sendo para tal suficiente o que consta nos factos provados.

Como tal e no que à propriedade ou exercício de poderes de facto correspondentes a tal direito concerne, temos que os embargantes não provaram factualidade suficiente para o efeito, a implicar por esta via a improcedência dos embargos deduzidos, tal como decidido pelo tribunal a quo.

Em segundo lugar peticionaram os embargantes, ora recorrentes que - que lhes seja reconhecido nos termos do artigo 754º do CC o direito de retenção sobre o imóvel identificado nos autos, por não recebimento do preço de € 100.000,00 e das despesas mantidas ao longo dos anos com o referido imóvel, invocando para o efeito e uma vez mais serem do imóvel possuidores, o que e conforme supra analisado ficou por demonstrar.

Não obstante, na medida em que por força do que preceitua o artigo 759º n.º 3 do CC, ao titular do direito de retenção sobre coisa imóvel são aplicáveis no que respeita aos seus direitos e obrigações as regras do penhor, temos que a este (titular do direito de retenção) é conferido o direito da defesa da posse mesmo contra o verdadeiro dono da coisa nos termos do artigo 670º al. a) do CC.

Nesta perspetiva se justifica a apreciação da pretensão dos recorrentes, na medida em que o por si alegado seja suscetível de lhes conferir o direito de retenção.

Dispõe o artigo 754º do CC “O devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados.”

Extrai-se deste normativo os pressupostos de que depende o funcionamento em termos gerais deste direito real de garantia, por contraponto às situações previstas no artigo 755º, às quais e fora de tais pressupostos gerais é ainda reconhecido este direito real de garantia.

Assim e fora das situações previstas expressamente no artigo 755º nas quais manifestamente se não enquadra a pretensão dos recorrentes, são pressupostos, cumulativos, do direito de retenção previsto neste art. 754º:

i- que alguém detenha licitamente uma coisa cuja entrega é devida a outrem [na verdade podendo estar em causa uma mera detenção ou posse precária ou uma posse propriamente dita]. Relevante é portanto que subjacente a tal poder de facto (de detenção ou posse) esteja uma atuação lícita e que exista o dever de restituir a coisa ao credor;

ii- que o devedor (obrigado à restituição) seja simultaneamente credor daquele que à restituição tem direito;

iii- conexão entre o crédito do obrigado à restituição e a coisa detida que terá de resultar de despesas com a coisa efetuadasou de danos pela mesma causados.

É precisamente neste último requisito que falha a pretensão dos recorrentes de forma manifesta [sobre o enquadramento jurídico do direito de retenção e identificação dos seus pressupostos, bem como distinção deste instituto da exceção de não cumprimento do contrato, vide Parecer dos Profs. Ferrer Correia e Dr. Joaquim Sousa Ribeiro publicado in CJ 1988, TI, p. 17 e segs.; “Do direito de retenção (arcaico mas eficaz…)” – artigo do Prof. e Conselheiro Júlio Gomes, publicado in Cadernos de Direito Privado n.º 11 de Julho/Setembro 2005, p. 3 e segs.; “Garantia das Obrigações” de Luís M- T. M. Leitão, edição 2015 Almedina, p. 232 e segs. que aqui se seguiram].

Embora tenham invocado o direito de retenção sobre o imóvel em causa pelo não recebimento do preço de € 100.000,00 e das despesas mantidas ao longo dos anos com o referido imóvel, facto é que no que às despesas em concreto respeita, nada em concreto alegaram ou provaram.

Assim restaria como crédito alegado o preço acordado.

Ocorre que o preço que alegaram não ter recebido não se enquadra manifestamente nos fatores de conexão estabelecidos pelo legislador para enquadrar o direito de retenção.

Este preço (que alegaram não receberam) terá sido a contrapartida alegada pela venda. Representa portanto uma das duas obrigações essenciais do contrato de compra e venda entre as partes celebrado que em sede de execução contratual se encontra conexionada com a obrigação da entrega e cuja violação confere ao credor o direito (para além do mais) de recorrer à ação de cumprimento (817º do CC) ou até à resolução do contrato se (em respeito pelo disposto no artigo 886º do CC) existir convenção em contrário; ainda não tiver sido entregue a coisa, ou ainda não tiver sido transmitida a propriedade da coisa. No caso da não entrega da coisa sendo ainda facultado ao vendedor invocar a recusa da entrega da coisa enquanto o comprador não satisfazer a sua obrigação de pagamento.

A questão coloca-se assim em sede de execução contratual, mas não tem qualquer conexão com as situações previstas para o direito de retenção – despesas feitas por causa da coisa ou danos por ela causados.

Como critérios distintivos do direito de retenção versus exceção de não cumprimento podem realçar-se (entre outros): no direito de retenção está sempre em causa a obrigação de restituição de uma coisa, enquanto na exceção de não cumprimento pode estar em jogo a não realização de uma prestação de outra natureza; o direito de retenção pode surgir fora de qualquer relação sinalagmática ao invés do que se verifica para a exceção de não cumprimento do contrato; a exceção de não cumprimento é deduzida (tipicamente) quando as obrigações principais ainda não foram cumpridas, enquanto o direito de retenção surge como dedução legítima daquele que já cumpriu a sua obrigação principal – ainda que alguns autores, como Galvão Teles, defendam ser possível a dedução alternativa de um ou outro instituto, nomeadamente quando num contrato sinalagmático as obrigações principais se ajustem ao modelo descrito no artigo 754º [cfr. Júlio Gomes no artigo citado sobre os critérios distintivos aqui citados].

Temos assim que a situação descrita pelos recorrentes manifestamente se não enquadra no campo de aplicação do instituto do direito de retenção (independentemente de em concreto se ter ou não verificado o pagamento do preço) já que em causa está o não cumprimento de uma obrigação essencial da relação sinalagmática entre as partes estabelecida a qual se não ajusta sequer ao modelo descrito no artigo 754º do CC, motivo porque a sua pretensão tem nesta sede de igualmente improceder.

Do exposto resulta a total improcedência do recurso interposto pelos recorrentes.


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IV. Decisão.

Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelos embargantes, consequentemente se mantendo a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes.





Guimarães, 2017-05-25


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(Maria de Fátima Almeida Andrade)

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(Alexandra Maria Rolim Mendes)

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(Maria Purificação Carvalho)