Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
936/11.3TBBCL.G1
Relator: ROSA TCHING
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
PRÉDIO RÚSTICO
PRÉDIOS CONFINANTES
VENDA DE QUOTA IDEAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/02/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1º- Não tem apoio, nem na letra do nº 1 do artigo 1380º do Código Civil, nem na sua razão de ser, a extensão do direito de preferência aos proprietários de terrenos confinantes de área inferior à unidade de cultura em caso de alienação de parte alíquota de determinado prédio rústico.
2º- O artigo 1380°, nº1 do C. Civil, ao estabelecer que “os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda (…) de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante”, excluí o direito de preferência em caso de alienação de parte ou partes alíquotas do prédio confinante.
3º- E compreende-se que assim seja, tendo em conta que a razão de ser do direito de preferência atribuído a proprietários de terrenos confinantes de área inferior à unidade de cultura foi a de facilitar o emparcelamento de prédios rústicos com o fim de criar maiores unidades de cultura e de maior rendimento, o que não sucede no caso de parte ideal do prédio vendido em virtude de não ser possível anexá-la ao outro prédio de modo a formar um todo.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães [1]
L…, solteira, maior, residente na Rua …, Barcelos, intentou a presente acção sob a forma comum e processo sumário, contra J… e mulher, M…, residentes na Rua…, Barcelos, e J… e mulher M…, residentes na Rua…, Barcelos, pedindo que:
- se reconheça ser a proprietária do prédio rústico identificado no art. 1.º da p.i.;
- seja reconhecido o seu direito de preferência na aquisição do prédio identificado no art. 6.º da p.i., vendido pelos primeiros aos segundos réus;
- se condenem os réus compradores a “abrir mão do objecto da venda a favor da autora” sendo os mesmos substituídos por esta na posição de adquirente;
- se julguem nulos todos os registos feitos “à data da venda do prédio objecto da preferência”.
Alegou, para tanto, que é dona de um prédio rústico confinante com o prédio vendido pelos primeiros aos segundos réus, não tendo sido notificada para exercer o seu direito de preferência, nem das respectivas condições da venda.
Procedeu ainda ao depósito autónomo da quantia de € 11.180,00, nos termos do disposto no art. 1410.º, n.º 1, do Código Civil.

Contestaram os réus, impugnando parte dos factos articulados pela autora e sustentando que esta não é titular de qualquer direito de preferência, pois tratou-se tão só da venda de metade indivisa de um prédio.

Proferido despacho saneador, foi dispensada a elaboração dos factos assentes e a da base instrutória, nos termos do disposto no art. 787º, nº2 do C. P. Civil.
Procedeu-se a julgamento, com observância do formalismo legal, decidindo-se a matéria de facto pela forma constante de fls. 69 a 71.

A final, foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente, absolvendo-se os réus, J…, M…, J… e M…, do pedido formulado pela autora.
As custas ficaram a cargo da autora.

Não se conformando com esta decisão, dela apelou a autora, terminando as alegações com as seguintes conclusões que se transcrevem:
“1- Dispõe o artigo 1380 do Código Civil “ que os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior á unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante”.
2-Entendeu o Mmº Juíz a quo que a recorrente não tem direito de preferência na compra e venda realizada entre os Réus por se tratar de uma venda de parte alíquota.
3- Sustenta a decisão essencialmente, nos seguintes argumentos:
- a preferência na medida em que não proporcionaria a aquisição plena do terreno, mas apenas de uma quota ideal, não permitiria alcançar o objectivo que está na base do artigo 1380, que é fomentar a exploração unitária de áreas que atinjam ou se aproximem da unidade de cultura considerada economicamente aconselhável;
- a preferência iria fazer ingressar um estranho na compropriedade, com todos os inconvenientes que normalmente daí decorrem e que seria estranho que a lei permitisse a aquisição da qualidade de comproprietário sem o assentimento e até em regra, contra a vontade dos demais consortes.
4- Os argumentos não convencem de todo.
5- Quando o comproprietário transmite o seu direito, é todo o prédio que é transmitido e não uma parte.
6- Paralelamente existem outros direitos de propriedade ( tantos quantos os comproprietários ) sobre o mesmo prédio.
7- A venda da quota do comproprietário é uma venda do prédio.
8- A preferência legal baseada na venda de determinada coisa tanto aproveita à venda do direito de propriedade na sua totalidade, como à venda de uma quota ideal dele ou à venda de uma fracção de determinada coisa.
9- Se a preferência não for dada sempre que o prédio pertença a mais do que uma pessoa, o proprietário confinante só poderia ter direito de preferência no caso excepcional de todos os comproprietários se decidirem a vender ao mesmo tempo o conjunto das suas quotas por um preço global.
10- O que significaria na prática, que ao proprietário ou comproprietário, interessado em vender o prédio ou a sua quota, se tornaria muito fácil afastar a preferência do dono de prédio confinante - bastaria vender o prédio em fracções sucessivas ou a pessoas diversas .
11- Como foi o caso em apreço, os comproprietários do prédio dos autos – M… e marido A…, em 24 de Julho de 2012, venderam a metade indivisa de que eram proprietários a J…, pai da segunda Ré M…, compradora de metade indivisa em causa nestes autos.
12- E aqui sim sairia frustada a ratio do artigo 1380 do CC.
13-Na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é licito servir-se da coisa comum, contando que não a empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito.
14- Qualquer um dos comproprietários rentabilizar o prédio.
15- O artigo 1380 não afasta, antes abrange a possibilidade de o direito de preferência ser exercido relativamente a venda de uma parte alíquota do prédio preferendo pelos proprietários dos terrenos confinantes.
16- O comprador de uma fracção ideal de um prédio indiviso pode vir a ser o primeiro preferente na venda das quotas dos seus consortes e, para além disso fica com o direito de exigir a divisão da compropriedade nos termos do artigo 1412 do CC.
17- O que no caso concreto seria logo possível uma vez que o outro comproprietário vendeu a sua parte.
18- O objectivo do artigo 1380 estaria cumprido até porque a recorrente pretende exercer o direito de preferência na segunda venda supra referida.
19- O argumento de entrar um estranho para a comunhão nem se compreende uma vez que no caso dos autos quem entra para a comunhão também é um estranho.
20- O comproprietário do prédio em causa não exerceu o seu direito de preferência.
21- Se a alienação da quota de um dos comproprietários apenas servisse de base ao direito de preferência dos outros comproprietários, pouco relevo útil teria então o comando contido no nº 1 do artigo 1409 do CC.
22- Se não houvesse outros possíveis preferentes não se vê em que situações tal primazia na graduação legal iria ser aplicada.”
A final, pede seja revogada a sentença recorrida e a sua substituição por outra que julgue a acção procedente.

Os réus contra-alegaram, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:

Os factos dados como provados na 1ª instância são os seguintes:
1. Encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial de Barcelas a favor da autora a aquisição, por partilha extrajudicial, do prédio rústico denominado "Campo do Dourado", de cultura e ramada , sito no Lugar de…, concelho de Barcelos, a confrontar do norte e poente com J…, do sul e nascente com o prédio referido em 4., descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos sob o n.º 873 e inscrito no art.º 1212 da respectiva matriz rústica.
2. A autora, por si e antes os seus ascendentes, têm pago os impostos e cultivado o dito prédio, agindo na convicção de serem donos do referido prédio e de que não lesam direitos de outrem.
3. Fazendo-o de uma forma pública, à vista de toda à gente e sem oposição de ninguém.
4. Em data não apurada, a autora tomou conhecimento do contrato de compra e venda celebrado perante o adjunto do Ex.mº Sr. Conservador da Conservatória do Registo Predial de Barcelos, no dia 3 de Dezembro de 2010 através do qual o réu J…, com o consentimento da sua mulher, declarou vender, pelo preço de € 10.000,00 (dez mil euros), ao segundo réu J…, que declarou aceitar, metade indivisa do prédio rústico, sito no Lugar de…, concelho de Barcelos denominado "Campo do Dourado", de cultura, ramada, pinhal e mato, descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos sob o n.º 927 da freguesia de Paradela e inscrito no art. 1211.º da matriz rústica respectiva.
5. O prédio referido em 4. tem a área de 3.800 m2 e é sito no Lugar de… e confronta do sul e nascente com o referido em 1., do poente com M… e do nascente com A….
6. Ambos os prédios são aptos e destinados à cultura.
7. Os réus J… e mulher não são donos de qualquer prédio confinante com aquele referido em 4.

FUNDAMENTAÇÃO:
Como é sabido, o âmbito do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente – art. 660º, n.º2, 684º, n.º3 e 690º, n.º1, todos do C. P. Civil - , só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, ainda que outras, eventualmente, tenham sido suscitadas nas alegações propriamente ditas. [2]

Assim, a questão a decidir traduz-se em saber se o artigo 1380° do Código Civil confere ao proprietário de prédio confinante de área inferior à unidade de cultura o direito de preferência no caso de venda de parte alíquota de determinado prédio rústico.

Em sentido negativo pronunciou-se o Tribunal a quo estribado nos ensinamentos de Antunes Varela [3] e dos Acórdãos do STJ, de 9.11.99 [4] e de 10-04-2003 [5].
Persiste, porém, a autora/apelante em defender que o artigo 1380º abrange a possibilidade do direito de preferência ser exercido relativamente a venda de uma parte alíquota de determinado prédio pelos proprietários dos terrenos confinantes.
Isto porque, existindo na compropriedade tantos direitos de propriedade quantos os comproprietários, há que considerar que a venda da quota do comproprietário é uma venda do prédio.
Porque se assim não fosse, o proprietário confinante só poderia ter direito de preferência no caso excepcional de todos os comproprietários decidirem vender, ao mesmo tempo, o conjunto das suas quotas por um preço global.
E porque se a alienação da quota de um dos comproprietários apenas servisse de base ao direito de preferência dos outros comproprietários, pouco relevo útil teria então o comando contido no nº 1 do artigo 1409 do CC.
Cremos, porém, não assistir-lhe razão.
Desde logo, porque se é certo existirem, na compropriedade, tantos direitos de propriedade quantos os comproprietários, a verdade é que todos estes direitos incidem sobre a mesma coisa, pelo que cada um dos comproprietários apenas tem direito a uma quota ideal ou intelectual do objecto da compropriedade.
Ora, traduzindo-se o direito pertencente a cada um dos comproprietários num direito de propriedade sobre uma parte não especificada da coisa comum [6], contrariamente ao que defende a autora/apelante, nenhum dos comproprietários é, individualmente, titular de um direito autónomo de preferência.
Tal direito radica no conjunto dos comproprietários, pertencendo a todos eles, como unidade.
E muito menos se vê que se possa equiparar a venda de uma de parte alíquota de determinado prédio rústico à venda do prédio.
Em segundo lugar porque o artigo 1380°, nº1 do C. Civil, estabelece expressamente que “os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda (…) de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante”, o que, segundo entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência [7], excluí o direito de preferência em caso de alienação de parte ou partes alíquotas do prédio confinante.
E compreende-se que assim seja, tendo em conta que, conforme se escreveu no Acórdão do STJ, de 27.02.1986 [8], a razão de ser do direito de preferência atribuído a proprietários de terrenos confinantes de área inferior à unidade de cultura foi a de facilitar o emparcelamento de prédios rústicos com o fim de criar maiores unidades de cultura e de maior rendimento, o que não sucede no caso de parte ideal do prédio vendido em virtude de não ser possível anexá-la ao outro prédio de modo a formar um todo.
Acresce que, sendo o artigo 1380º uma norma de natureza excepcional, na medida em que afecta significativamente o poder de disposição que integra o direito de propriedade, retirando, em certas formas de alienação, ao proprietário o direito de escolha do outro contraente, é o mesmo insusceptível de aplicação analógica aos casos de venda de parte ideal de um prédio, conforme o disposto no art. 11º do C. Civil
E se é certo não ser o seu carácter excepcional impeditivo de uma interpretação extensiva, a verdade é que, quer a letra da lei ( na qual não cabe senão os casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento do prédio), quer as supra mencionadas razões de interesse público que determinaram a atribuição do direito de preferência aos proprietários de terrenos confinantes de área inferior à unidade de cultura, inviabilizam uma tal interpretação, impedindo que se considere abrangido pela previsão do citado art. 1380º, um direito de preferência em caso de alienação de parte alíquota de prédio confinante.
Entende-se, assim, que não tem apoio, nem na letra do nº 1 do artigo 1380º do Código Civil, nem na sua razão de ser, a extensão do direito de preferência aos proprietários de terrenos confinantes de área inferior à unidade de cultura em caso de alienação de parte alíquota de determinado prédio rústico.
E nem se diga, como o faz a autora/apelante, que este entendimento esvazia de conteúdo a norma do artigo 1409º do Código Civil, porquanto os casos de preferência contemplados num e noutro artigo reportam-se a situações distintas e foram instituídos para fins diferentes.
Com efeito, enquanto que a razão de ser do direito de preferência atribuído a proprietários de terrenos confinantes de área inferior à unidade de cultura, nos termos do citado artigo 1380º, é a de permitir uma mais eficiente exploração agrícola, a atribuição do direito de preferência aos comproprietários, em caso de venda ou dação em cumprimento a terceiros, nos termos do artigo 1409º do Código Civil, tem em vista a redução progressiva do número de proprietários, de acordo com a ideia de que a propriedade singular permite o melhor aproveitamento da coisa, porquanto elimina diversos conflitos que frequentemente se travam entre comproprietários.

Improcedem, por isso, todas as conclusões da autora/apelante.

DECISÃO:
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a douta sentença recorrida.
Custas pela autora/apelante.
Guimarães, 2 de Julho de 2013.
Maria Rosa Tching
Espinheira Baltar
Henrique Andrade
-----------------------------------------------------------------------------------------------------------
[1] Apelação nº 936/11.3TBBCL.G1.
2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
Relatora - Maria Rosa Tching ( nº 1047)
Adjuntos – Des. Espinheira Baltar
- Des. Henrique Andrade
[2] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, p. 84 e Ano III, tomo 1, p. 19, respectivamente.
[3] In, Cód. Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, p. 272.
[4] In, www. dgsi. pt. proc. n.º 99A731.
[5] In, www. dgsi. pt. proc. n.º 03B671.
[6] Cfr. Mota Pinto, “Compropriedade”, in Rev. Dir. Est. Soc., ano XXI, ns. 1 a 4, pp. 95 e seguintes e Pires de Lima e Antunes Varela, in “ Código Civil Anotado”, vol. III, 2ª edição, pp. 344 e ss..
[7] Cfr. Antunes Varela , in, “Código Civil Anotado”, vol. III, 2ª edição, p. 272 e Acórdãos do STJ, de 27.02.1986, in, BMJ, nº 354, p. 532, de 9.11.99 proc. n.º 99A731. e de 10-04-2003, in, www.dgsi.pt., proc. n.º 03B671.
[8] in, BMJ, nº 354, p. 532