Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
211/17.0T8VLN.G1
Relator: JOSÉ DIAS CRAVO
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
PRAZO DE CADUCIDADE
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – O Tribunal da Relação pode alterar a matéria de facto fixada dentro do respeito pelo princípio da livre apreciação das provas, atribuído ao julgador em 1.ª instância.

II – Não podem os apelantes fazer assentar o recurso numa factualidade que representa a sua visão dos factos, mas que não se apurou após instrução e julgamento da causa.

III – Constitui entendimento pacífico do Tribunal Constitucional que o legislador ordinário goza de liberdade para submeter as acções de impugnação da paternidade a um prazo preclusivo, desde que acautelado o conteúdo essencial dos direitos fundamentais em causa, cabendo-lhe fixar, dentro dos limites constitucionais admitidos pelo respeito pelo princípio da proporcionalidade, o concreto limite temporal de duração desse prazo.

IV – A consideração do direito à verdade biológica e ao estabelecimento do respectivo vínculo jurídico, como direitos fundamentais, não impede que o legislador possa harmonizar ou até mesmo restringir o exercício de tais direitos em função de outros interesses ou valores igualmente tutelados, na medida em que não estamos perante direitos absolutos.

V – A fixação legal de prazos de caducidade para a propositura da acção de investigação da paternidade, não ofende o núcleo essencial dos direitos fundamentais à integridade e identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade e de constituir família, garantidos nos termos dos arts. 16º/1, 18º/2, 25º/1, 26º/1 e 3 e 36º/1 da Constituição da República, desde que tais prazos se mostrem proporcionados ou razoáveis.

VI – Não é inconstitucional a previsão de um prazo de dez anos para a propositura da acção de investigação de paternidade, contado da maioridade ou emancipação da investigante, contida na norma do art. 1817º/1 do CC (aplicável ex vi art. 1873º do mesmo código), na redacção da Lei 14/2009 de 1-4.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
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1 RELATÓRIO

Maria intentou contra A. F. a presente acção(1) declarativa de condenação, sob a forma de processo comum.

Alega, em síntese, que nasceu no dia 17 de Outubro de 1961 e que, apesar de apenas ter sido registada no assento competente como filha de sua mãe, é ela também filha do R., já que nasceu em consequência das relações sexuais que aquele manteve com a sua mãe em total exclusividade, sendo certo ainda que o R. sempre tratou a A. como sua filha, o que deixou de suceder sensivelmente há seis meses a esta parte, não a reconhecendo desde então como tal.

Conclui pedindo que seja declarada judicialmente a paternidade do R. relativamente à aqui A.

O R., válida e regularmente citado, não contestou a acção.

Procedeu-se à produção antecipada de prova requerida e foi elaborado o competente relatório pericial, que teve por objecto a investigação da paternidade da A.

Dispensada a realização da audiência prévia ao abrigo do disposto no art. 593º/1 do CPC, proferiu-se despacho saneador, identificaram-se o objecto do litígio e os temas da prova, sendo que tais despachos não mereceram das partes a apresentação de qualquer reclamação.

De seguida admitiram-se os meios de prova cuja produção foi requerida e agendou-se data para realização da audiência de discussão e julgamento, à qual se veio a proceder com inteira observância das formalidades legais, como consta da respectiva acta.

No final, foi proferida decisão que, na improcedência da acção, julgou caduco o direito de a A. Maria propor a presente acção de investigação de paternidade pelo decurso do prazo de dez anos a que alude o artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, e, em consequência, absolve-se o R. A. F. do pedido.
As custas foram fixadas a cargo da A.
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Inconformada com essa sentença, apresentou a A. recurso de apelação contra a mesma, cujas alegações finalizou com a apresentação das seguintes conclusões:

1ª – No que concerne à matéria de facto, foram incorretamente julgados os seguintes factos dados como não provados: “- No período referido no ponto 7 dos factos provados a mãe da A. não manteve relações de sexo com outro homem para além do R.; - O R. sempre tratou a A. como sua filha, apesar de publicamente pretender evitá-lo;- Até se casar com a sua atual esposa não se conheceu ao R. qualquer outra mulher para além da mãe da A.; E, finalmente, - Segundo foi dito à A. pela esposa do R., desde há seis meses que a atitude deste último mudou, já não reconhecendo a A. como sua filha”;
2ª – Existindo, todavia, concretos meios probatórios constantes no processo e no registo de gravação que impunham que os mesmos sejam dados como provados, pelo que se deixam expressamente impugnados;
2ª – Relativamente ao evidenciado em primeiro lugar, apenas o recorrido se pronunciou, como se depreende do seu depoimento, nas passagens 00:00:01 a 00:15:58 (14h09m30s a 14h24m48s), concretamente na passagem a 7m50s, aludindo apenas e vagamente a outro homem que havia falecido há cerca de três anos;
3ª – Para além disso, neste facto dado como não provado vem uma concatenação com o facto provado sob o nº 7, não se divisando qualquer conexão com o mesmo;
4ª – Por outro lado, que o Recorrido sempre tratou a Recorrente como sua filha, apesar de publicamente pretender evitá-lo, resulta do facto dado como provado sob o nº 7;
5ª – Pois é das regras da experiência que se a esposa do recorrido reconhecia a recorrente como filha do seu marido, é por que aquele, seguramente, lho terá transmitido;
– Muito embora, o recorrido o negue no seu depoimento - passagem 12m52s, da contraposição do mesmo com o facto dado como provado em 7. é evidente que o mesmo falta à verdade;
7ª – Para tal facto dever dar-se como provado, releva o facto dado como provado e sob o nº 8 e o depoimento da recorrente, Maria – passagens 00:00:01 a 00:18:09 (entre as 14h30:15 e as 14:48:26), na passagem 02m23s;
– Onde releva que, para além de a ter tratado como filha com 7/8 anos de idade, o recorrido a chamou, já no estado de casada e nos campos lhe disse: “Anda cá, que eu sou o teu pai!”;
– Bem assim como o dado como provado em 9., pois é natural, de acordo com as regras da experiência, que um avô só trata a sua neta como tal, no pressuposto de o seu filho reconhecer ser pai daquela;
10ª – Que até o recorrido se casar com a atual esposa não se lhe conheceu qualquer outra mulher para além da mãe da recorrente, resulta do depoimento de parte do recorrido - 00:00:01 a 00:15:58 (14h09m30s a 14h24m48s), onde nenhuma alusão faz a tal facto, particularmente no hiato temporal entre 1961, ano do nascimento da recorrente, e 1974, ano do seu casamento;
11ª – Bem assim, das declarações de parte da recorrente, onde também nada refere a tal facto, ela que, embora criança entre 1961 e 1974, sempre morou em B. e nunca referiu ser conhecida ao recorrido outra mulher nesse período de tempo, que não a sua mãe;
12ª – E, finalmente, das declarações da testemunha, esposa do recorrido, M. G., passagens 00:00:01 a 00:09:17 (das 15h34m03s às 15h43m21s), onde nada diz sobre que o seu marido tivesse outra mulher que não a mãe da recorrente, ela que afirmou ser sempre residente no lugar de Lordelo, freguesia de B., onde veio a casar com o recorrido;
13ª – Por último, que desde há seis meses (atenta a data de entrada da ação em juízo), que a atitude do recorrido mudou, já não reconhecendo a recorrente como sua filha, resulta, desde logo, das declarações de parte da recorrente - Maria – passagens 00:00:01 a 00:18:09 (entre as 14h30:15 e as 14:48:26);
14ª – Com particular destaque na passagem 12m49s, onde frisou: “A mulher disse que o marido já não me reconhecia como filha”;
15ª – E na passagem 14:00, onde a recorrente se apercebeu, na conversa entre uma vizinha e a M. G., assim se reproduzindo:
“Recorrente – Ouvi a esposa (do recorrido) a falar com uma vizinha e esta disse-lhe: Olha, também casastes com o A. F. e ele tinha uma filha! E a mulher do A. F. respondeu: Tu vistes?”;
16ª – Tudo isto a propósito de uns campos de um familiar do recorrido emigrante no Brasil, que a recorrente e marido pretendiam adquirir e que originou uma mudança de comportamento do recorrido e esposa;
17ª – Acresce que, para além das já citadas regras da experiência, o nosso ordenamento jurídico consagra igualmente como meio de prova as presunções, as quais consistem, de acordo com o previsto no artigo 349º, do Código Civil, nas ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”;
18ª – Ora, articulando o facto dado como provado sob o nº 7, com as declarações da recorrente e da esposa do recorrido, M. G., deve dar-se por provado que, cerca de seis meses antes de a ação entrar em juízo, o recorrido deixou de tratar a recorrente como filha;
19ª – E tanto basta para, apenas por aqui, a ação ser tempestiva, à luz do previsto na alínea b), do nº 3, do artigo 1817º, do Código Civil, e, conjugando tal facto com o dado como provado sob o nº 11, é evidente que não resta outra decisão se não declarar a recorrente filha do recorrido;
20ª – Assim, os impugnados factos dados como não provados, deverão considerar-se como provados e, assim, ser alterada, nesta parte a decisão sobre a matéria de facto, em conformidade com o artigo 662º, do C.P.C.;
21ª – No plano do direito, conforme também o sufraga a decisão recorrida, suscita-se a constitucionalidade do artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, mesmo após a redação que lhe foi conferida pela Lei nº 14/2009, de 01/04, designadamente a fixação do prazo de 10 anos para propor a ação de investigação de paternidade;
22ª – Não partilha a recorrente a sustentação da constitucionalidade da sentença recorrida, que entendeu tomar a posição do acórdão nº 401/2011, do Tribunal Constitucional (que teve seis (!) votos de vencido) e que, ancorando-se nos princípios da confiança e da segurança, não declarou inconstitucional o nº 1, do artigo 1817º, do C. Civil;
23ª – Antes, de acordo com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31 de Janeiro, de 2017 – procº nº 440/12.2TBBCL.G.1.S1, interpretada assim a norma (aqui aplicável, ex-vi artº 1873º, do C.Civil), com tal prazo limitador “é inconstitucional uma vez que o direito a conhecer a ascendência biológica constitui dimensão essencial do direito à identidade pessoal, previsto no artigo 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, e o direito a estabelecer os concomitantes vínculos jurídicos traduz uma dimensão do direito a constituir família, previsto no artº 36º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa...”;
24ª – Também na doutrina, Jorge Duarte Pinheiro, na anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006, de 10/01/2006, in Cadernos de Direito Privado, nº 15, Julho/Setembro de 2006, pgs. 32-53, é de opinião que já não é razoável a imposição de prazos para a investigação da paternidade ou maternidade pois os testes de ADN permitem determinar com grande segurança a maternidade ou a paternidade de uma pessoa, muitos anos após a morte do hipotético progenitor, o que afasta o risco de incerteza das provas;
25ª – O próprio acórdão, aí anotado, na sua decisão deixa transparecer que a inconstitucionalidade assenta em qualquer prazo e não, especificamente, no prazo de dois anos;
26ª – Já com a Lei nº 14/2009 em vigor, destaca-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/04/2013, que mereceu de Cristina M.A. Dias anotação nos Cadernos de Direito Privado nº 45 – Janeiro/Março de 2014, pgs. 32-60, e onde esta civilista salienta que, ao nível do direito comparado, são muitos os ordenamentos jurídicos que consideram imprescritível o direito de investigação de paternidade: Itália, Brasil, Espanha e Alemanha e, numa versão que exclui os direitos patrimoniais, Macau;
27ª Imprescritibilidade que, nesse acórdão, colheu a sustentação do Sr. Juiz Conselheiro, Salazar Casanova, que no nº 4, da declaração de voto de vencido foi claro: “A solução, a meu ver, conduz necessariamente à questão da inconstitucionalidade do aludido prazo, que, a ser seguida, determina a imprescritibilidade da ação de investigação de paternidade”;
28ª – Muito recentemente e já após ter sido proferida a sentença de que se recorre, a aqui recorrente vê sufragado o seu entendimento de manifesta inconstitucionalidade da norma, no pertinente e aprofundado estudo do tema, levado a cabo pelo Sr. Professor Doutor Joaquim de Sousa Ribeiro e acolhido no nº 4009, março de 2018, da Revista de Legislação e de Jurisprudência, pgs. 214-238;
29ª – Como destaca o insigne Conselheiro, “…o reconhecimento judicial da paternidade só ganha pleno sentido e total clarificação do seu papel na ordem jurídica quando articulado com o sistema de direitos constitucionalmente garantidos à pessoa e com os imperativos que dela decorrem”;
30ª – Direitos esses que são o direito à identidade pessoal, previsto no artigo 26º, o direito a constituir família, ínsito no artigo 36º, da nossa Lei Fundamental, e o direito ao desenvolvimento da personalidade, acolhido ainda naquele artigo 26º e concretizado no artigo 70º, do Código Civil;
31ª – E tratando-se de direitos fundamentais, não vemos como possa compaginar-se o prazo limitador previsto no artigo 817º, nº 1 com tão sólido e vinculante princípio e, muito menos, com o disposto no citado artigo 26º da C.R.P.: “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade…”;
32ª – Malgrado tudo isto, a decisão recorrida, ancorando-se no Acórdão nº 401/2011, do Tribunal Constitucional, quanto à não declaração de inconstitucionalidade da norma em causa, assentou os seus pilares nos valores da segurança e da confiança que, como inúmeros autores e jurisprudência frisam, são típicos de direitos patrimoniais e não de direitos pessoais, que é o que está em causa;
33ª – Ao arrepio, até, dos factos dados como provados em 11. e em 7., bem assim da motivação, onde é afirmado, sem qualquer dúvida, que, “No caso dos autos, quanto à mencionada prova directa do vínculo biológico, em termos de exames científicos foi possível a sua obtenção e com resultados esmagadores;
34ª – É, assim, manifesto que a decisão recorrida enviou pela janela a dignidade da pessoa humana, consagrada na nossa Lei Fundamental (artigo 1º), com base numa notória hipervalorização do argumento da segurança jurídica;
35ª – Por outro lado, perfilhar que os princípios da segurança e da confiança, sustentados pelo Acórdão nº 409/2011, do Tribunal Constitucional, se sobrepõe ao direito à identidade pessoal, previsto no artigo 26º, ao direito a constituir família, ínsito no artigo 36º, da CRP, e ao direito ao desenvolvimento da personalidade, acolhido ainda naquele artigo 26º e concretizado no artigo 70º, do Código Civil, além de ser uma restrição que o nº 2, do artigo 18º, da CRP não permite, estabelece uma verdadeira paternidade em branco para o investigante com mais de 29 anos de idade;
36ª – Diga-se, ainda, em contraposição com a jurisprudência elencada do Tribunal Constitucional na sentença recorrida, os seguintes acórdãos, do mesmo Tribunal: Ac.nº 23/2006, de 10 de janeiro (D.R., I, de 08/12/2006), Ac. nº 476/2011, de 12/10/2011, Ac. nº 106/2012, de 06/03/2012, Ac. nº 166/2013 de 20/03/2013, Ac. nº 441/2013, de 15/06/2013, Ac. nº 350/2013, de 19/06/2013, e Ac. nº 750/2013, 23/10/2013, sustentam, tal como a aqui recorrente, a inconstitucionalidade da norma;
37ª – Convocando o que já consta na conclusão 23ª, deve ser declarado por este Venerando Tribunal que o nº 1, do artigo 1817º, do Código Civil, na versão atual da Lei nº 14/2009, de 1 de abril, interpretada no sentido de que a mesma estabelece um prazo de caducidade para propor ação de investigação de paternidade, é materialmente inconstitucional;
38ª – E, declarando tal inconstitucionalidade, atento o facto dado como provado no nº 11, dos factos dados como provados, deverá declara-se que a recorrente é filha do recorrido, com as legais consequências, nomeadamente o competente averbamento no assento de nascimento da recorrente;
39ª - A sentença recorrida, além de ter incorrido em erro de julgamento, violou os artigos 18º, nº 2, 26º e 36º, da Constituição da República Portuguesa, bem assim como o artigo 70º, do Código Civil.
Assim, obtendo provimento o presente recurso nos termos das conclusões expendidas, V.Exªs, Venerandos Juízes Desembargadores, revogando a decisão recorrida e substituindo-a por acórdão em conformidade, maxime que declare a inconstitucionalidade do nº 1, do artigo 1817º, do Código Civil, em conformidade com o vertido nas conclusões,
Farão Justiça!
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Foram apresentadas contra-alegações nas quais se pugna pela improcedência do recurso com a consequente confirmação da decisão recorrida.
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O Exmº Juíz a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida a este Tribunal.
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Foram facultados os vistos aos Exmºs Adjuntos.
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Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
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2QUESTÕES A DECIDIR

Como resulta do disposto no art. 608º/2, ex. vi dos arts. 663º/2, 635º/4, 639º/1 a 3 e 641º/2, b), todos do CPC, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.

Consideradas as conclusões formuladas pela apelante, esta deseja que:

- se altere a matéria de facto quanto ao decidido nos últimos quatro factos dados como não provados, que devem passar a ser considerados como provados (conclusões a 20º);
- procedente a impugnação da matéria de facto, se reaprecie em conformidade a decisão de mérito da acção (conclusões 18º e 19º);
- se reaprecie a decisão de mérito da acção (conclusões 21º a 39º).
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3 – OS FACTOS

A - FACTOS PROVADOS:

1. A A. nasceu no dia 17 de Outubro de 1961 e encontra-se registada como filha de E. A..
2. No assento de nascimento da A. não se encontra averbado o nome do seu pai.
3. O R. e a mãe da A. conheciam-se e eram naturais dos mesmos lugar e freguesia – Lordelo, B. – e tiveram, durante algum tempo, uma relação de namoro, isto numa altura em que o R. se encontrava emigrado no Canadá.
4. Nessa sequência desse namoro e da grande intimidade que existia entre o R. e a mãe da A., estes passaram a manter relações sexuais um com o outro.
5. De tais relações sexuais resultou a gravidez da mãe da A.
6. As relações de cópula completa havidas entre o R. e a mãe da A., E. A., ocorreram nos primeiros cento e vinte dias dos trezentos que precederam o nascimento daquela.
7. A esposa do R., M. F., reconhecia a A. como filha do seu marido.
8. Para além disso, quando a A. tinha 6, 7 ou 8 anos, numa altura em que o R. se encontrava em Portugal, foi ela abordada por este último, que a tratou expressamente como filha.
9. E o pai do R. e avô paterno da A., Manuel, sempre falou à A. como neta até à sua morte, e até lhe ofereceu dinheiro.
10. O réu apenas veio a contrair matrimónio em 10 de Agosto de 1974.
11. Encontra-se junto aos autos um relatório pericial que fixa em 99,99999994% a probabilidade de o R. ser pai biológico da A.
12. A presente acção deu entrada em juízo no dia 14 de Maio de 2017.
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B - FACTOS NÃO PROVADOS:

Com relevância para a boa decisão não se provou que:

- Com assiduidade o R. convivia com a mãe da A., indo à casa desta e saindo depois juntos, o que acontecia quer aos fins de semana, quer durante a semana;
- O R. chegou a prometer casar com a mãe da A.;
- No período referido no ponto 7 dos factos provados, a mãe da A. não manteve relações de sexo com outro homem para além do R.;
- O R. sempre tratou a A. como sua filha, apesar de publicamente pretender evitá-lo;
- Até se casar com a sua actual esposa não se conheceu ao R. qualquer outra mulher para além da mãe da A.;
- Segundo foi dito à A. pela esposa do R., desde há seis meses que a atitude deste último mudou, já não reconhecendo a A. como sua filha.
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A restante matéria alegada e não vertida nos “Factos provados” ou referida nos “Factos não provados” é meramente conclusiva ou de Direito.
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C – MOTIVAÇÃO:

Na formação da sua convicção o Tribunal relevou desde logo a confissão do R. – em sede de depoimento de parte – no que tange com o relacionamento amoroso que manteve com a mãe da A. numa altura em que, estando emigrado no Canadá, se encontrava na sua terra natal. Referiu que durante esse período tiveram entre si não mais do que meia dúzia de relações sexuais de cópula completa (cfr. assentada de fls. 40, reverso).

A A. referiu que quando tinha 6, 7 ou 8 anos foi procurada pelo R. (que estava de regresso do Canadá) e que nessa altura a tratou como “filha”, apesar de apenas se ter encontrado com aquele apenas mais algumas poucas vezes ao longo dos anos, “um bocadinho às escondidas”, como era normal naqueles tempos.

Das declarações da A. resultou que esta mantinha um bom relacionamento com a esposa do R. mas que nunca, nas conversas que mantiveram ao longo dos anos, aquela lhe disse que o R. a considerava como sendo sua filha, que nunca falaram deste assunto.

O marido da A. – A. G. – referiu que toda a família do R. a tinha como filha deste (o seu avô paterno era muito amigo da A. e tratava-a como neta, oferecendo-lhe presentes, o que aquela também já tinha referido nas suas declarações) e que inclusivamente trata o “meio-irmão” da A. como cunhado e vice-versa. Esclareceu o depoente que nunca ouviu o R. tratar a A. como filha e adiantou ainda, como já tinha resultado, embora de forma algo subliminar das declarações da A., que desde que está casado com esta última nunca a viu conversar com o R.

A testemunha R. M. (que explicou que vive numa freguesia confinante com a freguesia de residência da A. e ser proprietária de terrenos em B.) disse apenas que sempre ouviu dizer às pessoas da freguesia que a A. era filha do R., sendo que neste mesmo sentido depôs M. C. (também ela proprietária de terrenos em B.) apesar de não saber dizer se aquele lhe reconhecia a mencionada qualidade.

Como é evidente, o Tribunal tomou em linha de conta o teor do relatório pericial junto a fls. 43 e 44.
Não foi feita prova alguma no sentido de que, desde há seis meses a esta parte (ou seja, tendo por referência a data de entrada da acção em juízo), o R. deixou de reconhecer a A. como sua filha. Com efeito, a A. diz que ouviu a esposa dizer a uma vizinha que o R. já não reconhecia a A. como sua filha mas a verdade é que aquela, no depoimento que prestou, negou que tal conversa tenha acontecido, sendo certo que a referida “vizinha” não foi arrolada como testemunha.

M. F., esposa do R., referiu que o marido nunca reconheceu a A. como sendo sua filha e que nunca os ouviu falar um com o outro, como aliás a própria A. acabou por reconhecer implicitamente dizendo que teve poucas conversas com o R. ao longo dos anos (o marido daquela disse mesmo, como vimos, que durante o seu casamento – e casaram em Janeiro de 1981 – nunca viu a esposa conversar com o R., o que coonesta aquela versão dos factos, ou seja, que este último, pelo menos publicamente e perante as pessoas do seu círculo mais próximo, nunca reconheceu a A. como filha, a não ser naquele episódio da sua infância que acima relatámos).

A restante factualidade – alegada pela A. – que não consta dos factos provados e não provados considerou-se conclusiva (de facto ou de direito), pelo que não mereceu ter ali assento.

[transcrição de fls. 68 a 69vº].
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4 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO E DE DIREITO

I) Alteração da matéria de facto

Diverge a apelante quanto ao decidido nos últimos quatro factos dados como não provados, entendendo que os mesmos devem passar a ser considerados como provados.
Para tanto, indica o sentido da decisão e os elementos de prova em que fundamenta o seu dissenso, transcrevendo e indicando os trechos do depoimento de parte do R., das declarações de parte da A. e do depoimento da testemunha M. G. em que se baseia.
Mostram-se, assim, cumpridos todos os ónus impostos pelo art. 640º do CPC (cfr. as três alíneas do n.º 1).

Cumpre, pois, apreciar.

O art. 662º do actual CPC regula a reapreciação da decisão da matéria de facto de uma forma mais ampla que o art. 712º do anterior Código, configurando-a praticamente como um novo julgamento.

Assim, a alteração da decisão sobre a matéria de facto é agora um poder vinculado, verificado que seja o circunstancialismo referido no nº 1, quando os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A intenção do legislador foi, como fez constar da “Exposição de Motivos”, a de reforçar os poderes da Relação no que toca à reapreciação da matéria de facto.

Assim, mantendo-se os poderes cassatórios que permitem à Relação anular a decisão recorrida, nos termos referidos na alínea c), do nº 2, e sem prejuízo de se ordenar a devolução dos autos ao tribunal da 1ª. Instância, reconheceu à Relação o poder/dever de investigação oficiosa, devendo realizar as diligências de renovação da prova e de produção de novos meios de prova, com vista ao apuramento da verdade material dos factos, pressuposto que é de uma decisão justa.

As regras de julgamento a que deve obedecer a Relação são as mesmas que devem ser observadas pelo tribunal da 1ª. Instância: tomar-se-ão em consideração os factos admitidos por acordo, os que estiverem provados por documentos (que tenham força probatória plena) ou por confissão, desde que tenha sido reduzida a escrito, extraindo-se dos factos que forem apurados as presunções legais e as presunções judiciais, advindas das regras da experiência, sendo que o princípio basilar continua a ser o da livre apreciação das provas, relativamente aos documentos sem valor probatório pleno, aos relatórios periciais, aos depoimentos das testemunhas, e agora inequivocamente, às declarações da parte – cfr. arts. 466º/3 e 607º/4 e 5 do CPC, que não contrariam o que acerca dos meios de prova se dispõe nos arts. 341º a 396º do CC.

Deste modo, é assim inequívoco que a Relação aprecia livremente todas as provas carreadas para os autos, valora-as e pondera-as, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, socorrendo-se delas para formar a sua convicção.

Provar significa demonstrar, de modo que não seja susceptível de refutação, a verdade do facto alegado. Nesse sentido, as partes, através de documentos, de testemunhas, de indícios, de presunções etc., demonstram a existência de certos factos passados, tornando-os presentes, a fim de que o juiz possa formar um juízo, para dizer quem tem razão.

Como dispõe o art. 341º do CC, as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.

E, como ensina Manuel de Andrade, aquele preceito legal refere-se à prova “como resultado”, isto é, “a demonstração efectiva (…) da realidade dum facto – da veracidade da correspondente afirmação”.

Não se exige que a demonstração conduza a uma verdade absoluta (objetivo que seria impossível de atingir) mas tão-só a “um alto grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida” - in “Noções Elementares de Processo Civil”, págs. 191 e 192.

Quem tem o ónus da prova de um facto tem de conseguir “criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”, como escreve Antunes Varela - in “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, pág. 420.

O julgador, usando as regras da experiência comum, do que, em circunstâncias idênticas normalmente acontece, interpreta os factos provados e conclui que, tal como naquelas, também nesta, que está a apreciar, as coisas se passaram do mesmo modo.

Como ensinou Vaz Serra “ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência, ou de uma prova de primeira aparência” - in B.M.J. nº 112, pág. 190.

Ou seja, o juiz, provado um facto e valendo-se das regras da experiência, conclui que esse facto revela a existência de outro facto.
O juiz aprecia livremente as provas e decide segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto – cfr. art. 607º/5 do CPC, cabendo a quem tem o ónus da prova “criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”, como refere Antunes Varela – obra supracitada.

Se se instalar a dúvida sobre a realidade de um facto e a dúvida não possa ser removida, ela resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita, de acordo com o princípio plasmado no art. 414º do CPC, que, no essencial, confirma o que, sobre a contraprova, consta do art. 346º do CC.

De acordo com o que acima ficou exposto, cumpre, pois, reapreciar a prova e verificar se dela resulta, com o grau de certeza exigível para fundamentar a convicção, o que a apelante pretende neste recurso.
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Como já referido supra, pretende a apelante a alteração da matéria de facto quanto ao decidido nos últimos quatro factos dados como não provados, entendendo que os mesmos devem passar a ser considerados como provados. Isto porque entende terem sido incorrectamente julgados pelo Tribunal a quo esses factos.
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Vejamos, então, os factos em questão.

Além de outros, o Meritíssimo Juiz a quo considerou não provados os seguintes factos:

- No período referido no ponto 7 dos factos provados, a mãe da A. não manteve relações de sexo com outro homem para além do R.;
- O R. sempre tratou a A. como sua filha, apesar de publicamente pretender evitá-lo;
- Até se casar com a sua actual esposa não se conheceu ao R. qualquer outra mulher para além da mãe da A.;
- Segundo foi dito à A. pela esposa do R., desde há seis meses que a atitude deste último mudou, já não reconhecendo a A. como sua filha.

Motivando tal decisão, o tribunal consignou o seguinte:

Na formação da sua convicção o Tribunal relevou desde logo a confissão do R. – em sede de depoimento de parte – no que tange com o relacionamento amoroso que manteve com a mãe da A. numa altura em que, estando emigrado no Canadá, se encontrava na sua terra natal. Referiu que durante esse período tiveram entre si não mais do que meia dúzia de relações sexuais de cópula completa (cfr. assentada de fls. 40, reverso).

A A. referiu que quando tinha 6, 7 ou 8 anos foi procurada pelo R. (que estava de regresso do Canadá) e que nessa altura a tratou como “filha”, apesar de apenas se ter encontrado com aquele apenas mais algumas poucas vezes ao longo dos anos, “um bocadinho às escondidas”, como era normal naqueles tempos.

Das declarações da A. resultou que esta mantinha um bom relacionamento com a esposa do R. mas que nunca, nas conversas que mantiveram ao longo dos anos, aquela lhe disse que o R. a considerava como sendo sua filha, que nunca falaram deste assunto.

O marido da A. – A. G. – referiu que toda a família do R. a tinha como filha deste (o seu avô paterno era muito amigo da A. e tratava-a como neta, oferecendo-lhe presentes, o que aquela também já tinha referido nas suas declarações) e que inclusivamente trata o “meio-irmão” da A. como cunhado e vice-versa. Esclareceu o depoente que nunca ouviu o R. tratar a A. como filha e adiantou ainda, como já tinha resultado, embora de forma algo subliminar das declarações da A., que desde que está casado com esta última nunca a viu conversar com o R.

A testemunha R. M. (que explicou que vive numa freguesia confinante com a freguesia de residência da A. e ser proprietária de terrenos em B.) disse apenas que sempre ouviu dizer às pessoas da freguesia que a A. era filha do R., sendo que neste mesmo sentido depôs M. C. (também ela proprietária de terrenos em B.) apesar de não saber dizer se aquele lhe reconhecia a mencionada qualidade.

Como é evidente, o Tribunal tomou em linha de conta o teor do relatório pericial junto a fls. 43 e 44.
Não foi feita prova alguma no sentido de que, desde há seis meses a esta parte (ou seja, tendo por referência a data de entrada da acção em juízo), o R. deixou de reconhecer a A. como sua filha. Com efeito, a A. diz que ouviu a esposa dizer a uma vizinha que o R. já não reconhecia a A. como sua filha mas a verdade é que aquela, no depoimento que prestou, negou que tal conversa tenha acontecido, sendo certo que a referida “vizinha” não foi arrolada como testemunha.

M. F., esposa do R., referiu que o marido nunca reconheceu a A. como sendo sua filha e que nunca os ouviu falar um com o outro, como aliás a própria A. acabou por reconhecer implicitamente dizendo que teve poucas conversas com o R. ao longo dos anos (o marido daquela disse mesmo, como vimos, que durante o seu casamento – e casaram em Janeiro de 1981 – nunca viu a esposa conversar com o R., o que coonesta aquela versão dos factos, ou seja, que este último, pelo menos publicamente e perante as pessoas do seu círculo mais próximo, nunca reconheceu a A. como filha, a não ser naquele episódio da sua infância que acima relatámos).
(…)
Com o que discorda a apelante, nos seguintes termos:

- quanto ao primeiro dos factos em questão, apenas o recorrido se pronunciou; todavia, tal depoimento foi muito vago. Acresce que, o facto em causa tem uma concatenação com o facto provado sob o nº 7, não existindo, porém, qualquer conexão com o mesmo. Deve, assim, tal facto dar-se como provado;
- quanto ao segundo, dar-se o mesmo como provado resulta das regras da experiência, em face de se ter dado como provados os factos sob os nºs 7, 8 e 9;
- quanto ao terceiro, nenhuma prova se fez em sentido contrário, pois transcrevendo e indicando trechos do depoimento de parte do R., das declarações de parte da A. e do depoimento da testemunha M. G., não resulta qualquer referência a ser conhecida outra mulher ao recorrido nesse período de tempo - até se casar com a sua actual esposa, o que ocorreu em 1974 -, que não a mãe da recorrente;
- por último, esse facto resultou provado, desde logo das declarações de parte da A., devendo ainda atentar-se nas regras da experiência e presunções.

Quid iuris?

Revisitada a respectiva prova produzida, conclui-se não assistir razão à apelante (2), não se tendo adquirido convicção diferente daquela obtida pelo tribunal da 1ª instância.
Estando em causa uma acção declarativa de condenação, a prova dos factos constitutivos, sejam eles positivos ou negativos, incumbe à parte que invoca o direito (cfr. art. 342º do CC). Sendo que quanto ao primeiro e terceiro dos factos aqui em questão, não é pelo facto de estarmos perante “factos negativos” que se inverte o ónus da prova nem tão-pouco pela dificuldade que isso naturalmente representa. (3)

Assim, os factos em causa foram o resultado conjugado de toda a prova produzida em audiência de julgamento, tal como destacado pelo Tribunal a quo na motivação da decisão da matéria de facto.

A divergência da A. e ora apelante no recurso e que contende com os factos aqui agora em questão configura a sua versão, que não logrou ver provada. Efectivamente, não está em causa a não valoração dos invocados depoimento de parte do R., declarações de parte da A. e depoimento da testemunha M. G., que foram considerados como resulta da motivação da decisão da matéria de facto, mas a interpretação efectuada dessa prova e que esteve subjacente à fixação dos factos provados e não provados. Não sendo também bastante as regras da experiência e presunções que a recorrente invoca quanto ao segundo e quarto dos factos aqui em questão.

Lembra-se que estão em causa factos considerados não provados, pelo que se torna incompreensível o raciocínio da recorrente ao afirmar quanto ao primeiro e terceiro dos factos aqui em questão - factos negativos - que por não se ter provado o contrário, provado ficaram esses factos, ainda que nenhuma prova tenha sido feita relativamente aos mesmos. Não existindo aqui presunções. Isto é, por exemplo, quanto ao primeiro dos factos em questão, entendendo a recorrente ser vago o depoimento de parte do R., que aludia ter a mãe da A. outro homem quando ele manteve com ela relações sexuais, apesar de mais ninguém se ter pronunciado quanto a este facto, pugna para que se dê o mesmo como provado.
Já quanto ao segundo e quarto factos aqui em questão, o Tribunal a quo indica, analisando-a, a motivação da valoração dos depoimentos e declarações em causa.

Ora, da argumentação usada nas alegações, não se vê, “in casu”, fundamento para alteração da decisão de facto tomada na 1ª instância, quanto à matéria em apreço, tanto mais que aquando da “fundamentação da decisão sobre a matéria de facto controvertida” o Tribunal “a quo” fez uma análise crítica e detalhada de toda a prova produzida nos autos. Com efeito, na decisão proferida sobre a matéria de facto o Meritíssimo Juiz, que desenvolveu a fundamentação da sua decisão de modo criterioso e aprofundado, apreciando criticamente os depoimentos produzidos, deixou bem claros os motivos do seu julgamento, referindo quem lhe mereceu credibilidade e não, esclarecendo por forma a permitir compreender o raciocínio lógico que conduziu à decisão sobre a matéria de facto que nela se mostra explanada, com os fundamentos que aqui acolhemos porque os compreendemos.
A Apelante, no essencial, dissente da decisão louvando-se na sua divergência sobre a apreciação do depoimento de parte do R., declarações de parte da A. e depoimento da testemunha M. G..
Porém a apelante não pode limitar-se a invocar apenas parte da prova que lhe é favorável em abono da alteração dos factos.
E, assim, querendo impor, em termos mais ou menos apriorísticos, a sua subjectiva convicção sobre a prova.
Porque, afinal, quem julga é o juiz.
Por conseguinte, para obter ganho de causa neste particular, deve ela efectivar uma concreta e discriminada análise objectiva, crítica, logica e racional de toda a prova, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.
A qual, como é outrossim comummente aceite e já supra se mencionou, apenas pode proceder se se concluir que o julgador apreciou o acervo probatório com extrapolação manifesta dos cânones e das regras hermenêuticas, e para além da margem de álea em direito permitida e que lhe é concedida. E só quando se concluir que a natureza e a força da prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção, se podem censurar as respostas dadas.
Sendo que, repete-se, a intolerabilidade destas tem de ser demonstrada pela recorrente através de uma concreta e dilucidada análise hermenêutica de todo o acervo probatório produzido ou, ao menos, no qual se fundamentou a resposta (4).

E se pela fundamentação da decisão se conclui que a convicção do juiz foi formada a partir dessa análise, está o tribunal de recurso impedido de a censurar, a menos que na formação de tal convicção ocorresse violação de normas legais sobre as provas.

Também resulta evidente nos autos, que, quer na motivação da decisão sobre a matéria de facto, quer na fundamentação jurídica, o tribunal recorrido elencou de forma clara e exaustiva os seus argumentos.
Assim, não pode, como já referido, a apelante fazer assentar o recurso numa factualidade que representa a sua visão dos factos, mas que não se apurou após instrução e julgamento da causa. Tendo, assim, sido respeitado o ónus da prova e não tendo o Tribunal a quo cometido errado julgamento na apreciação da prova como pretende a recorrente.

Logo, porque todos os elementos convocados pelo tribunal a quo constam do processo e foram devidamente ponderados, entende-se nada haver aqui a corrigir, decidindo-se pela improcedência da impugnação quanto à alteração da matéria de facto.
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II) Reapreciação em conformidade com a alteração da matéria de facto da decisão de mérito da acção

Mantendo-se incólume o quadro factual julgado provado e não provado pelo Tribunal a quo, inexiste qualquer desacerto da solução jurídica dada ao caso sub judice, mercê da alteração da matéria de facto.

A apreciação jurídica da causa ter-se-á de fazer, pois, já no âmbito da próxima questão, isto é, para a hipótese de improceder a impugnação da matéria de facto, havendo desacerto da solução jurídica para o caso, deve reapreciar-se a decisão de mérito da acção.
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III) Reapreciação da decisão de mérito da acção

Por ocasião da propositura da presente acção de investigação de paternidade, a A. tinha 56 anos de idade.

O Tribunal a quo decidiu julgar procedente a excepção peremptória da caducidade do direito de acção, defendendo a bondade do juízo de constitucionalidade que tem vindo a ser feito pelo Tribunal Constitucional na sequência do Ac. nº 401/2011, de 22-09-2011 (acessível em www.tribunalconstitucional,pt): “Não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redacção da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante”.

Entende a apelante que o tribunal a quo errou independentemente da alteração da matéria de facto, ao considerar caduco o direito da recorrente à luz do previsto no art. 1817º/1 do CC, dado encontrarem-se já ultrapassados os 10 anos após a sua maioridade para poder intentar a acção.
Trata-se da vexata quaestio da inconstitucionalidade da norma em causa, que a recorrente logo esgrimiu na p.i., estribando-se no Ac. do STJ de 31-01-2017, prolatado no Proc. nº 440/12.2TBBCL.G1.S1, consultável in www.dgsi.pt.

A questão de saber se o estabelecimento de prazos de caducidade das acções de investigação de paternidade viola o direito fundamental à identidade pessoal, consagrado no art. 26º/1 da CRP, há muito que é debatida na nossa jurisprudência.

Dispõe o art. 1817º do CC, na redacção emergente da Lei nº 14/2009, de 1-04, no seu nº 1, que “a acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação”, aplicável à acção de investigação da paternidade, com as necessárias adaptações, por força do preceituado pelo art. 1873º do mesmo diploma legal.

Este normativo legal estabeleceu um prazo de caducidade, ao consagrar a possibilidade do direito “ser exercido dentro de certo prazo”, atento o estipulado pelo art. 298º/2 do CC.

No ordenamento jurídico nacional, defrontam-se, no que concerne à questão decidenda, duas teses contraditórias, uma que defende a inconstitucionalidade do prazo de caducidade e a consequente imprescritibilidade do direito à investigação da paternidade, e a outra que sustenta a sua constitucionalidade, com a reflexa caducidade do mesmo.

Deste modo, para os defensores da inconstitucionalidade, os prazos de caducidade impostos ao investigante, vedando que, a todo o tempo, se reconheça, por via judicial, a sua ascendência biológica, traduzem-se numa restrição violadora dos princípios constitucionais consagrados nos arts. 18º/2, 26º/1 e 36º/1, todos da CRP, configurando uma restrição desproporcionada do direito à identidade pessoal, considerando, ainda, que o estabelecimento da paternidade se insere no acervo dos direitos pessoalíssimos, tais como, o de conhecer e ver reconhecida a verdade biológica da filiação, a ascendência e a matriz genética de cada pessoa.

Assim sendo, o direito à investigação da paternidade ou da maternidade é imprescritível (5), sendo, portanto, a redacção actual do art. 1817º do CC, oriunda da Lei n.º 14/2009, de 1-04, inconstitucional, por violação do estipulado pelos arts. 18º, 25º/1, 26º/1 e 36º/1, todos da CRP, enquanto que, por sua vez, aqueles que defendem a constitucionalidade de tais prazos, fundamentam-se nos princípios da certeza e segurança jurídica, considerando insustentável a possibilidade de se instaurar a acção, a todo o tempo, por tal implicar uma situação de incerteza duradoura incidente sobre o pretenso pai e seus herdeiros, a perda ou envelhecimento das provas e, ainda, um incentivo no propósito da “caça às fortunas”.

Esta última tese encontrou a sua expressão acabada, no Acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional n.º 401/2011, de 22 de Setembro, que considera, perfeitamente, aceitável o estabelecimento de prazos para a propositura da acção de investigação da paternidade, não se devendo pôr em causa a segurança jurídica do pretenso pai e da sua família, só para garantir ao investigante o direito de dispor de todo o tempo para intentar a referida acção, pois que não se conceberia um regime de imprescritibilidade que mantivesse tal situação de incerteza, perfeitamente, evitável.

São quatro, essencialmente, as razões invocáveis para o sistema que defende a restrição temporal do direito de investigar, sustentáculos do regime da caducidade, ou seja, a segurança jurídica, a ordem pública, o envelhecimento ou perecimento das provas e a protecção do património.

A defesa da solução da imprescritibilidade do prazo da propositura da acção de investigação da paternidade filia-se, outrossim, em diversos princípios que informam o ordenamento jurídico-constitucional, nomeadamente, o princípio da verdade biológica, o direito à identidade pessoal ou o direito ao conhecimento da ascendência biológica e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade.

Como se disse, o Tribunal Constitucional decidiu “a) Não julgar inconstitucional a norma do art. 1817º/1 do CC, na redacção da Lei nº 14/2009 de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante; b) Não julgar inconstitucional a norma da alínea b) do n.º 3 do artigo 1817º do Código Civil, quando impõe ao investigante, em vida do pretenso pai, um prazo de três anos para interposição da ação de investigação de paternidade” (6), reafirmando a doutrina do Plenário daquele Tribunal, que, chamado a pronunciar-se, nos termos previstos pelo art. 79º-A/1 da Lei do Tribunal Constitucional, decidiu “Não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817º n.º 1 do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009 de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante”, considerando que “o limite temporal em causa no presente recurso é o prazo de caducidade estabelecido no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, aplicável às ações de investigação de paternidade, por força da remissão constante do artigo 1873.º, n.º 1, do mesmo diploma, segundo o qual essas ações só podem ser propostas durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.

Contudo, o alcance deste prazo só pode ser compreendido numa ponderação integrada do conjunto de prazos de caducidade estabelecidos nos diversos números do artigo 1817.º, do Código Civil.

Embora o disposto em todos estes preceitos não integre o objecto da questão de constitucionalidade que nos ocupa, o seu conteúdo não pode deixar de ser tido em consideração na apreciação da norma impugnada, uma vez que a sua eficácia flanquea­dora tem interferência no alcance extintivo do prazo de caducidade sob fiscalização. Os efeitos da aplicação deste prazo, só podem ser medidos, na sua devida extensão, se ponderarmos também a latitude com que são admitidas, no regime envolvente daquela norma, causas que obstem à preclusão total da ação de investigação, por força do decurso do prazo geral de dez anos, após a maioridade.

Ora, enquanto no n.º 2 se estabeleceu que se não fosse possível estabelecer a maternidade em consequência de constar do registo maternidade determinada, a ação já podia ser proposta nos três anos seguintes à retificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo inibitório, no n.º 3 permitiu-se que a ação ainda pudesse ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência de algum dos seguintes factos: a) ter sido impugnada por terceiro, com sucesso, a maternidade do investigante; b) quando o investigante tenha tido conhecimento, após o decurso do prazo previsto no n.º 1, de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação, designadamente quando cesse o tratamento como filho pela pretensa mãe; c) e em caso de inexistência de maternidade determinada, quando o investigante tenha tido conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação.

Como já acima se explicou, os prazos de três anos referidos nos transcritos n.º 2 e 3 do artigo 1817.º do Código Civil, contam-se para além do prazo fixado no n.º 1, do mesmo artigo, não caducando o direito de proposição da ação antes de esgotados todos eles. Isto é, mesmo que já tenham decorrido dez anos a partir da maioridade ou emancipação, a ação é ainda exercitável dentro dos prazos previstos nos n.º 2 e 3; inversamente, a ultrapassagem destes prazos não obsta à instauração da ação, se ainda não tiver decorrido o prazo geral contado a partir da maioridade ou emancipação.

Isto significa que o prazo de dez anos após a maioridade ou emancipação previsto no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil não funciona como um prazo cego, cujo decurso determine inexoravelmente a perda do direito ao estabelecimento da paternidade, mas sim como um marco terminal de um período durante o qual não opera qualquer prazo de caducidade.

Verdadeiramente e apesar da formulação do preceito onde está inserido ele não é um autêntico prazo de caducidade, demarcando antes um período de tempo onde não permite que operem os verdadeiros prazos de caducidade consagrados nos n.ºs 2 e 3, do mesmo artigo.

Face ao melindre, à profundidade e às implicações que a decisão de instaurar a ação de investigação da paternidade reveste, entende-se que num período inicial após se atingir a maioridade ou a emancipação, em regra, não existe ainda um grau de maturidade, experiência de vida e autonomia que permita uma opção ponderada e suficientemente consolidada.

Apesar de na atual conjuntura a cada vez mais tardia inserção estável no mundo profissional poder acarretar falta de autonomia financeira, eventualmente desin­centivadora de uma iniciativa, por exclusiva opção própria, a alegada falta de maturidade e experiência do investigante perde muito da sua evidência quando se reporta aos vinte e oito anos de idade, ou um pouco mais cedo nos casos de emancipação. Neste escalão etário, o indivíduo já estruturou a sua personalidade, em termos suficientemente firmes e já tem tipicamente uma experiência de vida que lhe permite situar-se autonomamente, sem dependências externas, na esfera relacional, mesmo quando se trata de tomar decisões, como esta, inteiramente fora do âmbito da gestão corrente de interesses.

O prazo de 10 anos após a maioridade ou emancipação, consagrado no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, revela-se, pois, como suficiente para assegurar que não opera qualquer prazo de caducidade para a instauração pelo filho duma ação de investigação da paternidade, durante a fase da vida deste em que ele poderá ainda não ter a maturidade, a experiência de vida e a autonomia suficientes para sobre esse assunto tomar uma decisão suficientemente consolidada.

Por estas razões cumpre concluir que a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante, não se afigura desproporcional, não violando os direitos constitucionais ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico, abrangidos pelo direitos fundamentais à identidade pessoal, previsto no artigo 26.º, n.º 1, e o direito a constituir família, previsto no artigo 36.º, n.º 1, ambos da Constituição.” (7).

Na verdade, o Tribunal Constitucional reconheceu que “interesses gerais ou valores de organização social em torno da instituição familiar podem justificar a consolidação definitiva na ordem jurídica de uma paternidade, porventura não correspondente à realidade biológica, a partir do decurso de um determinado lapso de tempo. Nessa situação estarão os interesses da segurança e da certeza jurídicas respeitantes ao comércio jurídico em geral, que exigem a estabilização das relações de filiação já estabelecidas. Os referidos valores exigem que as relações de parentesco sejam dotadas de estabilidade, impondo-se aos interessados o ónus de agirem rapidamente, de forma a clarificarem as relações de parentesco existentes. Tais considerações mantêm toda a validade nos casos em que ocorreu posse de estado. E, assim, uma opção válida do legislador pretender dar segurança jurídica” (8).

É, também, essa exigência mínima da segurança jurídica que decorre da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), que aceita que as ações de estabelecimento da filiação fiquem sujeitas ao cumprimento de determinados pressupostos, nomeadamente, a exigência de prazos, desde que não se tornem impeditivos do uso do meio de investigação em causa, ou representem um ónus exagerado, porquanto a existência de um prazo limite para a instauração de uma ação de reconhecimento judicial da paternidade não é, só por si, violadora da Convenção, importando verificar se a natureza, duração e características desse prazo resultam num justo equilíbrio entre o interesse do investigante em ver esclarecido um aspeto importante da sua identidade pessoal, o interesse do investigado e da sua família mais próxima, em serem protegidos de demandas respeitantes a factos da sua vida íntima, ocorridos há já muito tempo, e o interesse público da estabilidade das relações jurídicas (9).

No âmbito do controlo da constitucionalidade das leis importa dar prioridade, antes de mais, à Constituição da República Portuguesa, embora se não deva excluir, de todo, a relevância constitucional dos instrumentos internacionais vinculativos para o Estado, na medida em que possam considerar-se como correspondendo a direito constitucionalizado ou que possam ser utilizados como critério de interpretação de normas constitucionais.

O prazo de dez anos foi considerado razoável pelo Tribunal Constitucional e não contraria a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, cujo critério de julgamento é o de que os prazos não sejam impeditivos da investigação e não criem ónus excessivos, em termos probatórios, para as partes, e “não viola os direitos constitucionais ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico, abrangidos pelos direitos fundamentais à identidade pessoal, previstos no artigo 26º, nº1, e o direito a constituir família, previsto no artigo 36º, ambos da Constituição” (10).

As limitações temporais ao exercício do direito potestativo de investigação da paternidade, previstas no art. 1817º/1, 2 e 3 do CC, serão, assim, compatíveis com os direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, bem assim como com os princípios da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, satisfazendo as exigências que decorrem do direito ao estabelecimento do vínculo da filiação, que se integra, no âmbito dos «direitos, liberdades e garantias pessoais», face ao disposto pelos arts. 26º e 36º, por um lado, e com o direito à segurança e estabilização das relações jurídicas, incluído no quadro dos «princípios fundamentais», atento o preceituado pelo art. 2º, ambos da CRP, por outro.

Aliás, a ideia da segurança jurídica é sempre trazida à colação, a propósito da discussão sobre o prazo de caducidade (11), associado à propositura da ação de investigação da paternidade, como um valor superior do ordenamento jurídico, em relação aos direitos à identidade pessoal, à integridade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, incluindo ao próprio princípio da justiça, que pretere.

Compete, especificamente, ao Tribunal Constitucional administrar a justiça, em matérias de natureza jurídico-constitucional, nos termos do disposto pelo art. 221º da CRP.

O sistema de controlo da constitucionalidade adoptado pela Constituição da República é um sistema misto, que combina o modelo americano do sistema difuso, que confere competência aos tribunais das diferentes ordens, nos feitos submetidos a julgamento, para recusarem a aplicação de normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados, de acordo com o disposto pelo art. 204º, com o modelo austríaco do sistema concentrado, em que o Tribunal Constitucional, para além de decidir, abstractamente, conhece ainda dos recursos de constitucionalidade dos demais tribunais, em conformidade com o preceituado pelo art. 280º, ambos da CRP, a quem não compete a última palavra sobre a matéria, podendo, no exercício da fiscalização concreta da constitucionalidade, recusar a aplicação de normas escolhidas para a regulação do caso ajuizado, por as julgarem inconstitucionais, mas cujas decisões o Tribunal Constitucional pode revogar.

A preponderância assumida, em veste constitucional, respaldada nas exigências provenientes da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, pelos valores da segurança jurídica e da estabilidade das relações jurídicas, no confronto ponderado e proporcional com os direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, decorrentes do direito ao estabelecimento do vínculo da filiação, determina, no sentido do não afrontamento reiterado da jurisprudência do Tribunal Constitucional, que se adopte, no caso em apreço, a construção da constitucionalidade do prazo de caducidade do direito de acção de investigação da paternidade, com a consequente confirmação da decisão recorrida.

Tal entendimento tem também vindo a ser maioritariamente adoptado pelos mais recentes acórdãos do STJ, identificando-se, entre outros, os prolatados já no corrente ano em 5-06-2018, 3-05-2018, 3-05-2018 e 13-03-2018, respectivamente nos Procs. nºs 65/14.8T8FAF.G1.S1, 454/13.5TVPRT.P1.S3, 158/15.4T8TMR.E1.S1 e 2947/12.2TBVLG.P1.S1, todos acessíveis in www.dgsi.pt.

Improcede, pois, o recurso.
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5 – SÍNTESE CONCLUSIVA (art. 663º/7 CPC)

I – O Tribunal da Relação pode alterar a matéria de facto fixada dentro do respeito pelo princípio da livre apreciação das provas, atribuído ao julgador em 1.ª instância.
II – Não podem os apelantes fazer assentar o recurso numa factualidade que representa a sua visão dos factos, mas que não se apurou após instrução e julgamento da causa.
III – Constitui entendimento pacífico do Tribunal Constitucional que o legislador ordinário goza de liberdade para submeter as acções de impugnação da paternidade a um prazo preclusivo, desde que acautelado o conteúdo essencial dos direitos fundamentais em causa, cabendo-lhe fixar, dentro dos limites constitucionais admitidos pelo respeito pelo princípio da proporcionalidade, o concreto limite temporal de duração desse prazo.
IV – A consideração do direito à verdade biológica e ao estabelecimento do respectivo vínculo jurídico, como direitos fundamentais, não impede que o legislador possa harmonizar ou até mesmo restringir o exercício de tais direitos em função de outros interesses ou valores igualmente tutelados, na medida em que não estamos perante direitos absolutos.
V – A fixação legal de prazos de caducidade para a propositura da acção de investigação da paternidade, não ofende o núcleo essencial dos direitos fundamentais à integridade e identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade e de constituir família, garantidos nos termos dos arts. 16º/1, 18º/2, 25º/1, 26º/1 e 3 e 36º/1 da Constituição da República, desde que tais prazos se mostrem proporcionados ou razoáveis.
VI – Não é inconstitucional a previsão de um prazo de dez anos para a propositura da acção de investigação de paternidade, contado da maioridade ou emancipação da investigante, contida na norma do art. 1817º/1 do CC (aplicável ex vi art. 1873º do mesmo código), na redacção da Lei 14/2009 de 1-4.
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6 – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar o recurso totalmente improcedente, assim se confirmando a decisão recorrida.
Custas pela A. recorrente.
Notifique.
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Guimarães, 17-12-2018

(José Cravo)
(António Figueiredo de Almeida)
(Maria Cristina Cerdeira)


1. Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Valença – Juízo C. Genérica – Juiz 1
2. Isto sem prejuízo de ter razão quanto ao primeiro dos factos em questão ter uma concatenação com o facto provado sob o nº 7, não existindo, porém, qualquer conexão com o mesmo. Tratando-se, todavia, tal referência ao facto provado sob o nº 7 de um lapso, já que a concatenação era para o nº 6, o mesmo é rectificável, nos termos do art. 249º do CC.
3. Neste sentido, vd. o Ac. do STJ de 7-02-2008, prolatado no Proc. nº 07A4705 e acessível in www.dgsi.pt.
4. Neste sentido, vd. Ac. da RC de 29-02-2012, proferido no Proc. nº 1324/09.7TBMGR.C1, consultável in www.dgsi.pt.
5. Sendo o prazo do art. 1817º/1 do CC, um prazo de caducidade e não de prescrição “é erróneo afirmar que estas ações são (ou deviam ser) «imprescritíveis». “Embora a caducidade e prescrição sejam dois modos de ser do mesmo fenómeno extintivo e liberatório dos direitos subjetivos ou de quaisquer posições jurídicas subjetivas, na caducidade surpreende-se uma mais forte e objetiva tutela da certeza e segurança jurídica”, Remédio Marques, Caducidade da acção de investigação da paternidade: o problema da aplicação imediata de lei 14/2009 de 1 de abril às acções pendentes, Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LXXXV, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, 200 e 201.
6. Vd Acórdão do TC nº 247/2012, de 22.05.2012, Processo nº 638/10 e acessível in www.dgsi.pt.
7. Cfr. Ac. do Tribunal Constitucional n.º 401/2011, Diário da República, 2ª Série, de 3 de Novembro de 2011.
8. Vd. Ac. do Tribunal Constitucional nº 247/2012, de 22.5.2012, Processo nº 638/10, fazendo-se alusão ao Acórdão do TC nº 401/2011, de 22.09.2011, Processo n.º 497/2010 e acessível in www.dgsi.pt.
9. Cfr. caso Mizzi contra Malta, de 12 de janeiro de 2006, Processo nº 26111/02, European Court of Human Rights – Reports of Judgments and Decisions, Council of Europe, Strasbourg, Carl Heymanns Verlag, 2006, I, 106 e ss.; § 88=http://www.echr.coe.int/Documents/Reports_Recueil_2006-I.pdf.; Acórdão de 6 de julho de 2010, proferido no caso Backlund contra Finlândia, Processo nº 36498/05; Acórdão de 6 de julho de 2010, proferido no caso Gronmark contra Finlândia, Processo nº 17038/04, http://www.echr.coe.int/Documents/Reports_Recueil_2010-V.pdf.; Acórdão de 20 de dezembro de 2007, proferido no caso Phinikaridou contra Chipre, Processo nº 23890/02, www.echr.coe.int/hudoc.
10. Vd. Ac. do STJ, de 29.11.2012, Proc. Nº 367/10.2TBCBC-A.G1.S1 e acessível in www.dgsi.pt.
11. O fundamento de um prazo de caducidade contende com razões objetivas de segurança jurídica, sem atenção à negligência ou inércia do titular, mas, apenas, com o propósito de garantir que dentro do prazo nela estabelecido a situação se defina, Vaz Serra, Prescrição Extintiva e Caducidade, BMJ nº 107, 191.