Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1082/23. 2T8BRG.G1
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR DE ARRESTO
INDEFERIMENTO LIMINAR
ININTELIGIBILIDADE DA CAUSA DE PEDIR
PETIÇÃO INEPTA
PETIÇÃO DEFICIENTE
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1) Na providência cautelar de arresto é imprescindível, independentemente do grau de prova exigida, a alegação inteligível da factualidade integrante dos respectivos pressupostos exigidos no artº 392º, nº 1, do CPC.
2) Uma petição diz-se inepta – imprestável para viabilizar o prosseguimento da acção, inconsequente para alcançar a pretensão e até para proporcionar uma pronúncia cabal eficaz sobre esta e seus fundamentos no sentido da procedência ou improcedência – tanto quando, pura e simplesmente, faltar o pedido e a causa de pedir, como quando esta ou aquele forem ininteligíveis, impercetíveis, indecifráveis, inalcançáveis, o que obviamente sucederá perante alegações enevoadas e labirínticas onde não conseguem descortinar-se, nem depreender-se, os termos claros, precisos e concretos e os sujeitos certos de uma relação jurídica definida.
3) Da petição inepta deve distinguir-se a apenas deficiente.
4) Só esta e não aquela é susceptível de aperfeiçoamento e merecedora de convite para tal.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO [[1]]

AA, com domicílio em ..., ..., ... – ..., por si, e na qualidade de legal representante das sociedades A... MOTORSPORTS INC, e A... CONSTRUCTION & EXCAVATION CORP,  ambas domiciliadas em ..., ... ... – ..., requereu, no Tribunal ..., em 14-02-2023, Providência Cautelar (ARRESTO) contra BB, residente em ..., CC, residente em ..., e W..., LDA., com sede também em ....

Formulou o seguinte pedido:

“Nestes termos, deve, sem audiência prévia dos requeridos, o presente procedimento ser julgado procedente por provado e decretado o arresto de:
a) Todos os saldos bancários das contas de que seja titular o requerido BB, o requerido CC e a requerida W..., Lda. tomando em consideração a proporção do seu respectivo direito nas mesmas, e até ao montante suficiente para garantir o integral ressarcimento das requerentes;
b) O arresto do veículo automóvel da marca ... com a matrícula ..-NT-.., propriedade da requerida W..., Lda.
c) O arresto do veículo automóvel da marca ... com a matrícula ..-QD-.., propriedade da requerida W..., Lda.
d) O arresto do veículo automóvel marca ... com a matrícula ..-..-VL, propriedade da requerida W..., Lda.;
e) Proceda à pesquisa de veículos automóveis nos Registos Centrais Automóveis, e caso seja encontrado algum veículo, para além dos supra mencionados, desde já se requer se seja determinado o respetivo arresto;
f) O arresto de todos os bens/materiais que se encontrarem no edifício do armazém sito na Rua ..., ... ...;
g) O arresto de todos os bens/materiais que se encontrarem na sede da requerida W..., Lda, sita em Rua ..., ... ....
h) E que seja aplicada sanção pecuniária compulsória, ao abrigo dos artigos 365.º n.º 2 CPC e 829.º A do CC, que se mostre adequada a assegurar a efectividade da providência decretada, no valor mínimo de 100,00€ dia.
Efectuadas as diligências probatórias, decretada a providência e realizadas as diligências subsequentes, deve ser ordenada a notificação do requerido da decisão que decretou a providência, nos termos e para os efeitos do n.º6 do artigo 366.º e n.º 1 do artigo 372.º ambos do CPC.
Nos termos do artigo 369. n.º 1 do CPC, requer-se que, na decisão que vier a decretar a presente providência sejam as requerentes dispensadas do ónus de propositura da acção principal, por ser fundamentada e consistente a aparência da existência do direito acautelado e ainda, pelo facto da natureza da providência ora requerida ser adequada a realizar a composição definitiva do litígio.”.

Alegou, para fundamentar a pedida providência e o pretendido arresto, o seguinte [[2]]:

“I – DOS FACTOS
1.º
O Requerente é o Legal Representante e sócio das Requerentes, conjuntamente com a Sra. DD. (cfr. doc. n.º ... – Declaração de Registo, que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido).
2.º
O AA, Legal Representante das Requerentes, é corredor, nos seus tempos livres e participa em corridas de veículos motorizados por todo mundo; sendo que, para tal procede à compra e venda de veículos preparados para correr e de toda a logística e organização, para que tal seja possível.
3.º
Tendo para esse efeito, todas a licenças legais e necessárias.
4.º  
No seguimento da atividade de corredor, nos finais do ano de 2021, EE, apresentou um sobrinho seu ao Legal Representante das Requerentes, o aqui 1º Requerido BB, sendo que ambos nutriam uma paixão por carros de corrida e, inclusivamente ambos, participavam em corridas.
5.º
O Legal Representante das Requerentes e o 1º Requerido BB estabeleceram diversas conversas sobre carros de corrida e sobre a experiência de cada um, tendo-se desenvolvido uma relação, negocial e de amizade, no seguimento destes contínuos contactos.
6.º
O Requerido BB tomou conhecimento de que o Legal Representante das Requerentes e as próprias Requerentes, tinham elevada disponibilidade financeira, e investiam quantias avultadas na prática dessa actividade – corridas;
7.º
Nesse seguimento, o 1º Requerido BB, abordou o Legal Representante das Requerentes sobre uns veículos que estavam plenamente equipados e prontos para correr.
8.º
Convencendo-o a comprar os mencionados veículos de corrida da marca ... e toda a logística preparada especificamente para esses veículos correrem;
9.º
Acabando o Legal Representante das Requerentes por proceder à compra dos veículos da marca ..., com chassis n.º
a) ...71;
b) ...66;
c) ...17.
10.º
Essa logística foi adquirida com o propósito do Legal Representante das Requerentes participar nas corridas com essas viaturas e rentabilizar o seu investimento através do aluguer dos respetivos carros e dessa mesma estrutura que iria sendo “montada” para esse efeito;
11.º
Com tal disposição, o 1º Requerido BB, conseguiu que o Legal Representante das Requerentes transferisse as seguintes quantias:
a) Em 13/12/2021 - foi transferido o montante de €50.000,00 (cinquenta mil euros) da sociedade A... MOTORSPORTS, (cfr. doc. n.º ... - Transferência bancária, que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido).
b) Em 23/12/2021 - foi transferido o montante de €40.000,00 (quarenta mil euros) da sociedade A... CONSTRUCTION & EXCAVATION CORP, (cfr. doc. n.º ... -Transferência bancária, que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido).
c) Em 25/02/2022 - foi transferido o montante de €40.000,00 (quarenta mil euros) da sociedade A... CONSTRUCTION & EXCAVATION CORP, (cfr. doc. n.º ... - Transferência bancária, que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido).
d) Em 26/03/2022 - foi transferido o montante de €5.000,00 (cinco mil euros) da conta bancária de FF a pedido do Legal Representante das Requerentes, (cfr. doc. n.º ... - Transferência bancária, que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido).
e) Em 27/03/2022 - foi transferido o montante de €5.000,00 (cinco mil euros) da conta bancária de FF a pedido do Legal Representante das Requerentes (cfr. doc. n.º ... - Transferência bancária, que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido).
f) Em 13/04/2022 - foi transferido o montante de €30.000,00 (trinta mil euros) da sociedade A... CONSTRUCTION & EXCAVATION CORP, (cfr. doc. n.º ... – Transferência bancária, que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido).
12.º
Para além dos valores mencionados, foi ainda entregue em numerário, de forma faseada, e em numerário nas datas de 23.03.2022 e 14.06.2022, o montante de €29.024,38 (vinte e nove mil e vinte e quatro euros e trinta e oito cêntimos), tendo sido realizada pessoalmente ao 1º Requerido BB, pelo Sr. GG, irmão do Legal Representante das Requerentes.
13.º
Num valor total de €199.024,38 (cento e noventa e nove mil e vinte e quatro euros e trinta e oito cêntimos) no período de 13/12/2021 a 14/06/2022.
14.º
A acrescer os valores já entregues ao 1º Requerido BB, o Legal Representante das Requerentes procedeu à compra de três veículos, marca ..., e respetivos atrelados, como já referido anteriormente.
15.º
A confiança na pessoa do 1º Requerido BB foi-se estreitando, tendo este várias vezes “dito” que o Legal Representante das Requerentes o estava a ajudar a realizar um sonho, poder correr sem que tivesse custos, pois a sua vida não lhe permitia tal possibilidade.
16.º
Nesta sequência, o Legal Representante das Requerentes foi acreditando nas palavras do 1º Requerido BB.
17.º
Assim, todas as relações negociais se foram estreitando e fixando, nomeadamente com o outro sócio, aqui 2º Requerido, CC.
18.º
Também este responsável pelos negócios que se foram cruzando entre as partes; apesar de que o interveniente principal foi sempre o 1º Requerido BB.
19.º
O Legal Representante das Requerentes procurou, junto do 1º Requerido BB, “formalizar” os negócios entre ambos, mas o 1º Requerido ia recuando insistentemente;
20.º
Daí, em Janeiro de 2022, o Legal Representante das Requerentes, ter contactado a sua irmã FF, para que junto do 1º Requerido BB formalizassem a transmissão das quotas da empresa W..., LDA., para ele (Código de Acesso da Certidão Permanente n.º ....); (cfr. doc. n.º ... – Certidão Permanente, que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido).
21.º
Considerando que nesta data, o Legal Representante das Requerentes, se encontrava ausente do país.
22.º
No dia 24 de Janeiro de 2022, FF, enviou um e-mail a todos intervenientes, inclusive ao 1º Requerido BB, a reforçar a necessidade de ceder as quotas e que era necessário reunir todos os dados (cfr. doc. n.º ... – Email, que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido).
23.º
Foi elaborado um acordo que consistia numa cessão e unificação de quotas e alteração do pacto social da empresa W..., LDA. (cfr. doc. n.º ...0 - Acordo de cessão e unificação de quotas e alteração do pacto social, que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido).
24.º
Inicialmente, o 1º Requerido BB, não apresentou qualquer oposição;
25.º
Contudo, com a decorrência do tempo, foi criando dificuldades, tendo apresentado pretextos para não ceder as quotas da sociedade ao Legal Representante das Requerentes.
26.º
FF alertou, várias vezes, o 1º Requerido BB que tinha de proceder à assinatura do acordo de cessão e unificação de quotas e alteração do pacto social da empresa W..., LDA., pois este garantiu tal facto ao Legal Representante das Requerentes;
27.º
A irmã do Legal Representante das Requerentes insistia sobretudo nas quantias avultadas de dinheiro que já tinham sido transferidas para a sociedade.
28.º
Acreditando, assim, desde o início, o Legal Representante das Requerentes na existência de um crédito sobre a empresa W..., LDA. e, consequentemente, sobre o 1º Requerido BB.
29.º
A referida cessão de quotas embora tenha sido assinada pelo Legal Representante das Requerentes, na data de 26.01.2022, a mesma nunca foi assinada pelo 1º Requerido BB; não produzindo qualquer efeito.
30.º
Neste seguimento, tentou o Legal Representante das Requerentes prosseguir pela elaboração de um Contrato de Prestação de Serviços (cfr. doc. n.º ...1 – Contrato de Prestação de Serviços, que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido);
31.º
Contrato esse onde constariam os veículos, a logística e bens materiais vários que constam de lista discriminativa (cfr. doc. n.º ...2 – Lista de bens, que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido),
32.º
Tal Contrato seria uma forma de o Legal Representante das Requerentes ficar salvaguardado relativamente aos valores investidos.
33.º
Mas também esse contrato nunca foi subscrito pelo 1º Requerido BB, nem pelo outro 2º Requerido CC, em representação da empresa Requerida.
34.º
Assim, o Legal Representante das Requerentes, até à presente data, não conseguiu ter acesso à sociedade, aos valores transferidos, ou aos materiais mencionados.
35.º
A relação entre o Legal Representante das Requerentes e 1º Requerido BB descambou, havendo mesmo ruptura de contactos.
36.º
Após esta situação, o 1º Requerido BB comunicou ao Sr. GG, irmão do Legal Representante das Requerentes, que exigia o valor de €240.000,00 (duzentos e quarenta mil euros), para devolver todo o material que teria sido comprado pelas Requerentes.
37.º
Aliás, como os bens estavam na posse do 1º Requerido BB, este já após a compra dos veículos mencionados supra, tentou apropriar-se dos mesmos através de passaportes técnicos que falsamente preencheu, procedendo ao registo destes em seu nome para uma corrida, sem qualquer autorização para tal.
38.º
O 1º Requerido BB apoderou-se, ainda, de material adquirido com o dinheiro do Legal Representante das Requerentes, nomeadamente, atrelados e veículos automóveis e outros materiais.
39.º
Posto isto, e tendo percepção destas falsidades, o Legal Representante das Requerentes, deslocou-se a ..., pela ocasião de uma corrida, para recuperar os carros e parte do seu material.
40.º
Tendo conseguido com a ajuda do Sr. HH, pessoa a quem adquiriu os respetivos carros de corrida.
41.º
Tal situação, desenvolveu-se numa enorme discussão pública com intervenção das autoridades espanholas, chegando mesmo a haver ameaças de morte durante o decorrer da mesma.
42.º
Acabando assim, por terminar definitivamente a relação estabelecida entre o Legal Representante das Requerentes e o 1º Requerido BB.
43.º
No decorrer desta situação, o Legal Representante das Requerentes solicitou ao 1º Requerido BB a prestação de contas relativamente às verbas transferidas e a entrega de todo o material que tivesse sido adquirido com essas mesmas verbas.
44.º
Entre muitas e más desculpas e falsas explicações do destino das quantias supramencionadas, ficou o 1º Requerido BB de entregar os bens constantes da lista (vide doc. n.º ...1), assim como de devolver todos os valores recebidos.
45.º
O Legal Representante das Requerentes tem conhecimento que, parte desse material que o 1º Requerido BB se prontificou a entregar, já foi abusivamente vendido a terceiros, nomeadamente, veículos automóveis, o atrelado e material.
46.º
Cabe ainda mencionar que, o 1º Requerido BB sempre teve intenção de enganar o Legal Representante das Requerentes, fazendo-o mesmo acreditar que todo o valor transferido tinha sido investido na empresa W... LDA., e que estava seguro.
47.º
O 1º Requerido BB, procurou apresentar despesas sem qualquer cabimento e sem apresentar os respectivos comprovativos, por isso o Legal Representante das Requerentes não pode aceitar que não seja devolvido o material da lista já junta (vide doc. n.º ...2).
48.º
Atendendo a todo o enredo supra exposto, o Legal Representante das Requerentes prosseguiu com uma queixa crime contra o aqui 1º Requerido BB, que corre termos no DIAP ..., sob o Processo n.º 4507/22...., da 1ª Secção.
49.º
Contudo, considerando que tal processo, até ao momento não teve o desenvolvimento necessário para salvaguardar as pretensões das Legal Representante das Requerentes, entendeu-se, assim, iniciar a presente providência cautelar.
50.º
O 1º Requerido BB acabou por demonstrar que nunca teve intenção de proceder à cessão e unificação de quotas e elaboração do pacto social, ou mesmo à celebração de um contrato de prestação de serviços.
51.º
Pelo que se verifica a falta de intuito de proceder à devolução dos valores transferidos.
52.º
Atendendo ao supra exposto, o 1º Requerido BB, teve intenção de prejudicar o Requerentes, apropriando-se do montante de €199.024,38 (cento e noventa e nove mil e vinte e quatro euros e trinta e oito cêntimos);
53.º
E também pretendeu fazer seu o material, melhor identificado no documento n.º ...2.

II – DO DIREITO

54.º
O 1º Requerido BB tinha intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de engano sobre factos que astuciosamente provocaram e determinaram um prejuízo patrimonial avultado ao Legal Representante das Requerentes.
Acresce que,
55.º
É do conhecimento do Legal Representante das Requerentes, que o 1º Requerido BB se encontra atualmente sem emprego fixo.
56.º
Este sempre demonstrou ter “gostos” acima das suas posses, designadamente no que concerne à competição com automóveis topo de gama.
57.º
O armazém sito na Rua ..., ... ..., onde estava instalada a Requerida W..., LDA., está completamente inactivo.
58.º
Atendendo aos indícios invocados e em face do modo de agir do 1º Requerido BB, este revela propósito de não cumprir a obrigação.
59.º
Soma ainda que o 1º Requerido BB se prepara para praticar atos de alienação que diminuirão o valor do seu património, de tal modo que o mesmo se torne insuficiente para garantir o pagamento do crédito invocado pelas Requerentes.
60.º
É, portanto, temível que o 1º Requerido BB possa mesmo estar a entrar em situação de Insolvência.
61.º
Dúvidas não existem quanto ao acentuado deficit entre o crédito exigível e o valor do património conhecido do devedor, 1º Requerido BB, existindo ainda sério risco de dissipação e/ou oneração do seu património.
62.º
Assim resulta, suficientemente e pelo exposto, que o 1º Requerido BB, na presente data, não reúne património suficiente para solver os seus débitos, incluindo os ora reportados às Requerentes.
63.º
O justo receio de perda da garantia patrimonial verifica-se sempre que os devedores, aqui Requeridos, adotem, ou tenham o propósito de adotar, relativamente ao seu património, quaisquer atos suscetíveis de fazer recear pela sua solvabilidade para satisfazer o direito do credor.
64.º
“Como escreveu Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 119/120),
integra o conceito de justo receio qualquer causa idónea a provocar num homem normal esse receio; pode tratar-se do receio de insolvência do devedor (a provar através do apuramento geral dos bens e das suas dívidas) ou do da ocultação, por parte deste, dos seus bens (se, por exemplo, ele tiver começado a diligenciar nesse sentido, ou ousar fazê-lo para escapar ao pagamento das suas dívidas); ou do receio de que o devedor venda os seus bens (como quando se prove que está tentando fazê-lo) ou de qualquer outra actuação do devedor que levasse uma pessoa de são critério, colocada na posição do credor, a temer a perda da garantia patrimonial do seu crédito.”
65.º
No caso concreto, e de acordo com as regras da experiência, o 1º Requerido BB, o 2º Requerido CC e a Requerida W..., Lda. não vão ser capazes de pagar a sua dívida, nomeadamente devido à falta de estabilidade económica e ao montante do crédito que está em causa.
66.º
Encontrando-se o Legal Representante das Requerentes numa posição que, por perda de confiança, e por todas as vezes que o 1º Requerido BB se comprometeu e não cumpriu, receia que todo o valor investido se perca e que todas as tentativas de resolução desta situação sejam efetivamente frustradas.
67.º
Para mais, a circunstância de o devedor, 1º Requerido BB, não ter cumprido as suas obrigações, relativamente ao Legal Representante das Requerentes, e o facto de existir fundado receio de alienação de bens por parte daquele, e a prova do valor do crédito existente, apresentam-se como bastante para justificar o receio da perda da garantia patrimonial.
68.º
Tal preocupação estende-se obrigatoriamente ao outro sócio da Requerida, CC, assim como à própria Requerida W..., Lda.
69.º
Há, assim, uma real situação de perigo de insatisfação do crédito, decorrente da inexistência de bens que possam responder.
70.º
Nos termos do n.º 1 do artigo do 391.º CPC “O credor que tenha receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor”.
71.º
Constituem, portanto, pressupostos do procedimento cautelar de arresto a probabilidade da existência de um crédito e o justo receio de perda da garantia patrimonial.
72.º
Devendo, de acordo com o n.º 1 do artigo 392.º do CPC, deduzir os factos que tornam provável a existência de crédito e justificam o receio invocado, indicando os bens que devem ser apreendidos, o que o Legal Representante das Requerentes considera ter satisfeito com o acima alegado.
73.º
Nos termos do artigo 366.º n.º 1 do CPC, requer-se que a presente providência seja decretada, sem prévia audiência dos Requeridos, por ser manifesto que, a sua audiência prévia colocariam em risco sério, quer o fim, quer a eficácia deste Arresto.”

Em 20-02-2023, foi proferido o seguinte despacho, que é recorrido:

- INDEFERIMENTO LIMINAR POR VERIFICAÇÃO DE EXCEÇÃO DILATÓRIA INSUPRÍVEL –
Determina o artigo 590.º, n.º 1, do CPC que «nos caos em que, por determinação legal (…), seja apresentada a despacho liminar, a petição inicial é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente (…)», o que sucede nos casos em que ocorre a ineptidão da petição inicial, qualificando-se como tal toda aquela em que seja ininteligível a causa de pedir [art.º 186.º, n.ºs 1 e 2 , al. a) do CPC].
Isto posto, havendo fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável do seu direito, poderá o lesado requerer a providência conservatória ou antecipatória adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado, sendo certo que o interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em ação, já proposta ou a propor (art.º 362.º, n.ºs 1 e 2 CPC).
Por sua vez, a propósito do arresto, referem os artigos 816.º, n.º 1 do CC e 391.º, nº 1 do CPC, o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor.
Sucede, porém, lida a petição inicial, a mesma é ininteligível, no que tange ao apuramento do alegado crédito e, bem assim, à pessoa dos credores e devedores.
Com efeito, se a dado momento da petição é alegado que AA adquiriu 03 veículos automóveis ao requerido BB, pelos quais as suas sociedades requerentes A... MOTORSPORTS INC e A... CONSTRUCTION & EXCAVATION CORP CORP pagaram a quantia total de 199.024,38€ (art.º 9.º a 12.º), certo é que, posteriormente, acaba por orientar a alegação no sentido de que – afinal – terá sido celebrado um qualquer negócio (não alegado em parte alguma (1) – cfr. art.º 17.º a 19.º 16.º) que haveria de culminar na transmissão das participações sociais da sociedade W..., LD.ª (art.º 20.º, 22.º, 23.º, 26.º), como, já na parte final da peça, dá a intuir que as quantias monetárias referidas terão sido entregues ao 1.º requerido, para investir na sociedade comercial W..., LD.ª (art.º 46.º da petição) e , por esta via, financiar os deleites automobilísticos do mesmo.
1 Os artigos 16.º a 19.º referem-se, de forma conclusiva a e genérica, a «relações negociais», «negócios que se foram cruzando entre as partes» e «formalizações de negócios».
Significa isto, pois, que da leitura da petição inicial não se alcança qual a concreta relação jurídica donde emerge o crédito alegadamente existente, designadamente, se estamos perante uma compra e venda dos automóveis indicados em 9.º, um contrato-promessa de transmissão de participações sociais, um trespasse de estabelecimento apto à prossecução da atividade desportiva ou mútuos concedidos ao 1.º requerido, para que este financiasse (ou realizasse suprimentos) a sociedade comercial indicada, com os valores assim mutuados.
Por outro lado, a petição é ininteligível, outrossim, também no que diz respeito à determinação dos sujeitos intervenientes nos (também ininteligíveis) negócios alegados, pois se começa por dizer que AA (legal representante das requerentes) adquiriu 03 ... a BB, logo de seguida se menciona que o crédito existe sobre a sociedade W..., LD.ª (art.º 28.º), como, por fim, não se vislumbra que concreto vínculo assumiu o último dos requeridos CC (o alegado em 17.º não representa nada).
Em suma: a petição ininteligível, o que decorre da circunstância de não ser compreensível o fundamento fáctico do presente procedimento, ou seja, em que radica, afinal, a pretensão formulada pelos requerentes [cfr., neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/09/2020 (processo n.º 17500/18.9T8LSB.L1-2, relator Nélson Borges Carneiro)].
*
A ineptidão da petição inicial, por ininteligibilidade da causa de pedir [art.º 186º, n.ºs 1 e 2, al. a)], é de conhecimento oficioso e, sendo uma exceção dilatória [art.º 577.º, al. b) do CPC], gera a absolvição da instância (art. 278º, nº 1, al. b)] ou o indeferimento liminar (art.º 590.º, n.º 1 do CPC).
***
Pelo exposto, mostrando-se verificada a exceção dilatória insuprível de ineptidão da petição inicial, indeferido liminarmente o presente procedimento cautelar de arresto.
Custas pelas requerentes, fixando-se à causa o valor de 199.024,38€ (art.º 306.º, n.º 2 e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Registe e notifique.”

Inconformados, os requerentes apelaram a que esta Relação considere “nula” tal decisão e a substitua por outra que mande prosseguir os autos, tendo terminado as suas alegações com a formulação das seguintes conclusões:

1. Com o presente Recurso visa, o Recorrente, questionar a apreciação de facto e de direito realizada, do que resultará ser posta em crise a douta decisão, visando, ainda, a reapreciação quando à aparência e/ou efetiva existência de um direito de crédito, assim como, o perigo da insatisfação desse direito.
2. Constitui inequívoco o Recorrente AA transferiu a quantia de 199.024,38€ (cento e noventa e nove mil e vinte e quatro euros e trinta e oito cêntimos) para a empresa Recorrida W..., Lda.
3. Tal valor era um investimento na empresa W..., Lda.
4. Nunca tais valores foram destinados à compra de veículos automóveis.
5. No seguimento do investimento realizado, o Recorrido BB “comprometeu-se” a providenciar ao Recorrente AA, uma cessão e transmissão de quotas da empresa W..., Lda., aqui Recorrida.
6. Foram realizadas diversas tentativas para a formalização da cessão e transmissão de quotas, todavia, foram sendo criados impedimentos pelo Recorrido BB.
7. Após as mencionadas tentativas, o Recorrente AA tentou prosseguir pela elaboração de um Contrato de Prestação de Serviços, com vista a salvaguardar dos montantes por ele investidos.
8. Mas, mais uma vez, os Recorridos nunca subscreveram tal contrato.
9. Assim, os Recorridos optaram por ignorar as tentativas de conciliação e formalização do negócio, apresentando constantes impedimentos, atuando, assim, de má fé, e deliberadamente, enganaram os Recorrentes.
10. Os aqui Recorridos apoderam-se dos valores transferidos pelo Recorrente AA.
11. Considera-se tal comportamento como doloso e provocador de danos nos direitos dos Recorrentes.
12. Sendo colocado em causa o direito de crédito dos Recorrentes, e assim, o receio de perda desse crédito.
13. Por tal, prosseguiu-se por uma Providência Cautelar de Arresto.
14. Todavia, esta foi indeferida com base na ininteligibilidade da Petição Inicial por não serem compreensíveis os fundamentos fácticos.
15. Neste sentido, deveria ter o Tribunal a quo prosseguido pelo despacho de aperfeiçoamento nos termos do artigo 590º, n.º 4 do CPC.
16. Contudo, o M.º Juiz a quo omitiu a prática de tal ato.
17. Constituindo, assim, fundamento para arguir a nulidade com base na omissão de um ato que a lei prescreve, nos termos do artigo 195º do CPC.
18. Há Jurisprudência nesse sentido.
19. Consequentemente, deverá seguir-se com Procedimento Cautelar de Arresto, por existir um direito de crédito, e bem assim, em prol dos comportamentos dos Recorridos, e perda de confiança, o justificado receio de perda desse mesmo crédito.
20. Considerando-se numa a douta decisão nula por omissão de um ato que era exida a sua prática.
Pelo exposto deve a sentença de que ora se recorre do Tribunal a quo ser considera nula no que diz respeito ao indeferimento liminar e substituída por outra sentença que determine o prosseguimento dos autos.
Termos em que V. Exas. concedendo provimento ao recurso e alterando a douta decisão recorrida nos termos pugnados nas presentes alegações, farão uma vez mais serena, sã e objetiva JUSTIÇA!!

Não há resposta [[3]].

O recurso foi admitido como de apelação, a subir de imediato, nos autos, com efeito suspensivo.

Corridos os Vistos legais e submetido o caso à apreciação e julgamento colectivo, cumpre proferir a decisão, uma vez que nada a tal obsta.

II. QUESTÕES A RESOLVER

Pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal, se fixa o thema decidendum e se definem os respectivos limites cognitivos.

Assim é por lei – artºs 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 4, 637º, nº 2, e 639º, nºs 1 e 2, do CPC.

Também assim o entende pacificamente a jurisprudência: “o objecto do recurso é composto apenas pela matéria constante das conclusões do recorrente na alegação de recurso, das conclusões do recorrido na ampliação do recurso e das questões de conhecimento oficioso” [[4]].

O ponto de partida do recurso, por princípio, é sempre a própria decisão recorrida.

Com efeito, no nosso modelo (de reponderação e não de reexame da causa), por meio daquele reapreciam-se questões já julgadas na instância inferior e visa-se alterar o decidido, se e na medida em que afectado por invalidade ou por erro de julgamento.

As que, apesar de invocadas, aí não tenham sido apreciadas permanecerão fora do âmbito do conhecimento do tribunal ad quem [[5]]. Tal como as que sejam suscitadas como novidade. [[6]]

Ora, no caso, notando-se que, nas conclusões apresentadas, não se questiona, incisiva e directamente, como nelas deveria acontecer, a julgada ininteligibilidade da petição que fundamentou o seu indeferimento liminar mas que, de flanco, parece atacar-se esse juízo ao longo das alegações, importa decidir:

a) A petição é inteligível ou, pelo menos, corrigível?
b) A decisão é nula por ter sido omitido despacho de convite ao seu aperfeiçoamento?

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Relevam as circunstâncias factuais atrás relatadas, patentes nos autos.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Ainda que desnecessário fosse algo mais acrescentar-se ao despacho recorrido questionado e ora apreciado, à luz dos argumentos expendidos no recurso, para confirmarmos o seu acerto e justeza dos respectivos fundamentos, sempre neste sentido lhe acrescentaremos mais o que segue.

Nos termos do artº 392º, nº 1, do CPC, o requerente do arresto deduz os factos que tornam provável a existência do crédito e que justificam o receio de perder a garantia patrimonial dele.

Como, v.g., se sintetiza no Acórdão da Relação de Lisboa, de 08-01-2019 [[7]]:

“I – São requisitos do arresto preventivo, cumulativamente, a probabilidade da existência de um crédito do requerente, definido por um juízo sumário de verosimilhança e aparência do direito desse crédito e o justo receio ou perigo de insatisfação de tal crédito.
II – Assim, sempre que o requerente pretende a apreensão judicial de bens com vista a assegurar o “statu quo”, para que ele não se altere em condições tais que não seja susceptível a reintegração, formulará tal pretensão ao tribunal com a alegação dos factos que tornem provável a existência do crédito do requerente - crédito esse que deverá ser actual - e justifiquem o receio da perda de garantia patrimonial.
III - Quanto ao requisito da existência do direito, apenas se pede ao Tribunal uma apreciação ou um juízo de mera probabilidade ou verosimilhança, não sendo necessário que o direito esteja plenamente comprovado, mas apenas que dele exista um mero «fumus boni iuris», ou seja, que o direito se apresente como verosímil.
IV - Todavia, para o preenchimento do requisito atinente à probabilidade da existência do crédito, terá de estar em causa um crédito já constituído, actual, e não de crédito futuro, hipotético ou meramente eventual.
V - Relativamente ao justo receio de perda da garantia patrimonial exige-se um juízo, senão de certeza e segurança absoluta, ao menos de probabilidade muito forte, não bastando qualquer receio, que pode corresponder a um estado de espírito que derivou de uma apreciação ligeira da realidade, num exame precipitado das circunstâncias.
VI - O critério de avaliação deste requisito não pode assentar em simples conjecturas, devendo, ao invés, basear-se em factos ou em circunstâncias que, de acordo com as regras de experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata, como factor potenciador da eficácia da ação pendente ou a instaurar posteriormente. Trata-se, em todo o caso, de um juízo provisório que terá de assentar em critérios de mera verosimilhança.
VII - Assim, só existe justificado receio da perda da garantia patrimonial do crédito, quando as circunstâncias se apresentam de modo a convencer que está iminente a lesão do direito, a perspetivar, justificada e plausivelmente, o perigo de ser vir a tornar inviável, ou altamente precária, a realização da garantia patrimonial do crédito do requerente.
VIII - Mas, pese embora a maior simplicidade que se impõe pelas regras próprias e pelos objetivos específicos de qualquer procedimento cautelar, o juízo acerca do justificado receio de perda da garantia patrimonial não deve ser fruto de arbitrariedade, antes deve ser tomado a partir de factos.”.

A partir de factos, note-se. Seja qual for o requisito em causa e independentemente do nível de prova ou grau de convicção sobre eles exigível.

Com efeito, face ao disposto no artº 368º, nº 1, aplicável ex vi do artº 376º, nº 1, da existência do direito de crédito não precisa o requerente de fazer demonstração plena. Basta que mostre e convença dele haver probabilidade séria, ao nível factual e jurídico.

Do referido temor não se exige absoluta certeza. Basta uma justificação suficientemente fundada.

Dos factos não tem de fazer prova acabada na providência, como numa acção.  Para o decretamento contentar-se-á o Tribunal com a sua alegação e prova sumária, menos extensa e aprofundada, de modo a atingir-se uma convicção de grau bastante mas sem necessidade de se firmar o de uma elevada certeza e firme segurança.

Embora, portanto, a indispensável alegação fáctica não tenha de observar sumamente os cânones da perfeição, ela tem de ser minimamente escorreita no que diz respeito ao que se pede e ao fundamento por que se pede.

Tal significa – não se confunda! – que bastando a prova sumária (mera probabilidade ou verosimilhança de eles terem realmente acontecido), é necessária, porém, cabal alegação da factualidade essencial constitutiva da causa de pedir.

Necessidade esta que não se satisfaz com uma narrativa divagante e sugestiva de diversas hipóteses tendentes a responsabilizar aleatoriamente por alegados créditos uma pluralidade de uns sujeitos, pretensamente devedores, perante outros diversos, supostamente credores, num contexto relacional de contornos fluidos, tergiversantes, e sem inter-ligações definidas e perceptíveis

Não pode, pois, prescindir-se, nos moldes embora característicos da providência cautelar, da invocação – desde logo e sobretudo fáctica – da causa de pedir: da probabilidade séria de quem pede o arresto ser titular de um crédito sobre o devedor cujo património, sendo dele garante, se quer preservar e colocar a salvo de ser perdido no decurso da discussão e decisão do litígio por receio de que tal aconteça com a demora do processo.

Às partes cabe, pois, sempre, alegar ou expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e, para tal, independentemente do nível de prova exigido, deles traçar uma narrativa inteligível pelo Tribunal, de modo a poder este perspectivar e apreciar, segundo as regras legais e a técnica jurídica supostamente acessível aos sujeitos comuns do foro, maxime aos que corporizam o órgão, a viabilidade e a bondade da pretensão, e pela parte contrária, de modo a saber o que dela se pretende e a poder cabalmente defender-se. [[8]]

Para tal tem de se revelar apta (já nem dizemos modelar, como dizia Alberto dos Reis) a petição inicial, que não se cinge a uma qualquer narrativa ao alcance da generalidade dos cidadãos mas se subordina a padrões específicos decorrentes das exigências legais cuja observância e consequente eficácia se procura garantir através do necessário patrocínio forense.

Tal é o seu relevo que uma petição diz-se inepta – imprestável para viabilizar o prosseguimento da acção, inconsequente para alcançar a pretensão e até para proporcionar uma pronúncia cabal eficaz sobre esta e seus fundamentos no sentido da procedência ou improcedência – tanto quando, pura e simplesmente, faltar o pedido e a causa de pedir, como quando esta ou aquele forem ininteligíveis, impercetíveis, indecifráveis, inalcançáveis, o que obviamente sucederá perante alegações enevoadas e labirínticas onde não conseguem descortinar-se os termos claros, precisos e concretos e os sujeitos certos de uma relação jurídica definida.

A ininteligibilidade é, assim, feita corresponder à falta daqueles requisitos e a gravidade de tal vício conduz à inexorável nulidade de todo o processo, sem que do respectivo pedido chegue a haver conhecimento e absolvendo-se o réu da instância. O foro não se ocupa, pois, rejeita e arquiva, mesmo oficiosamente, petições ineptas – artºs 186º, nº 2, 278º, nº 1, b), 576º, nº 2, 577º, b, do CPC.

Como ensinava, há décadas, o já invocado Prof. Alberto dos Reis, de cuja mestria, apesar da mudança dos tempos, não deveria prescindir-se, antes cultivar-se [[9]], uma petição é ininteligível quando não pode saber-se (como se exprimia na letra bem assertiva do artº 193º, do velho Código de 39), nem depreender-se, qual o pedido ou a causa de pedir.

Designadamente quanto a esta, os factos essenciais devem ser apresentados com clareza e concisão, de modo a mostrarem, em termos certos e não dúbios, periclitantes, a relação que terá ocorrido e implicado os sujeitos relacionados e chamados ao caso e a permitir deles (factos) extrair razões jurídicas, posto que conexionáveis com o direito, e susceptíveis de sustentar a pretensão.

Os factos não podem ser incertos, duvidosos, insusceptíveis de permitir objectivamente dilucidar, com clareza, as circunstâncias que terão levado ao estabelecimento de uma dada relação material fonte do pretenso crédito, e de subjectivamente fazer uma imputação nítida a pessoas identificadas de responsabilidades enquanto sujeitos dela.

Traduzindo-se (ou devendo traduzir-se), na situação aqui em apreço, a causa de pedir nos factos alusivos ao crédito e ao justo receio, fundamentadores do direito a obter o decretamento da providência que ponha o credor a salvo do perigo de dissipação do património, conforme peticionado, eles não se coadunam com a vaguidade, confusão, dúvida, que, inelutavelmente, emergem da petição e ofuscam o que terá estado, afinal, na sua base real e, bem assim, quem é ou quem são o ou os protagonistas da mesma.

Da petição inepta deve distinguir-se a petição deficiente.

Ela sê-lo-á quando, apesar de se perceberem, com nitidez e coerência, o pedido e a causa de pedir, todavia se apresentar incompleta, eivada de incorrecções, traduzidas em imprecisões e insuficiências na exposição e concretização da matéria de facto, desajeitada ou mesmo difusa, prolixa ou com laivos de impertinência.

O ponto é que os elementos subjectivos da instância (os sujeitos) e os definidores nesta do objecto do processo (o pedido e a causa de pedir) se evidenciem ou se depreendem com nitidez suficiente, ainda que a petição careça de ser aprimorada de modo a não empecilhar a tramitação e a apreciação subsequentes.

A petição congenitamente inepta, nos termos referidos, não pode ser, nem faz sentido que seja, alvo de convite ao aperfeiçoamento. A nulidade por isso implicada é insuprível. Não se lhe aplicam as disposições dos artºs 6º, nº 2, 278º, nº 2, e 590º, nºs 2 a 4, CPC.

Se falta (não existe de todo) ou é mesmo ininteligível (não se consegue depreender) o pedido ou a causa de pedir, ainda que imperfeitamente alegados, não é possível, logicamente, aí fazer um aperfeiçoamento. Só é remediável aquilo que apenas se apresenta enfermo. Não, o que, à nascença, já não ostenta vitalidade alguma para singrar e porventura vingar no foro.

Só em uma nova petição pode sanar-se a ineptidão e consequente nulidade da anterior.

Ora, é isso que o legislador pretende: à petição inepta segue-se a absolvição a instância. O passo seguinte, para a parte interessada que falhou exercitar o seu direito de acção (artº 3º, nº 2), será o de propor uma outra acção ou providência, devidamente estruturada, sobre o objecto visado.        

É isto que resulta da Jurisprudência predominante e a que, sem reserva, pelo exposto e pelo que dela própria deflui, se adere.

Vejamos.

Acórdão da Relação de Coimbra, de 18-10-2016 [[10]]:

“I – Segundo o art. 186º, n.º 2, alínea a) do N.C.P.C., a petição será inepta quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir.
II - A ineptidão da petição inicial é uma excepção dilatória que conduz à abstenção do conhecimento do mérito da causa e à absolvição dos Réus da instância e que tal excepção é de conhecimento oficioso pelo tribunal, conforme os artigos 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), e 278.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Civil.
III – Nos termos dos arts. 5º, nº1, e 552º, nº1, al.d) do n. Código de Processo Civil, às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e as excepções, sendo pois na petição inicial que devem constar os concretos e reais factos que preenchem a previsão da norma jurídica na qual a parte funda o seu direito.
IV - Em ação em que o pedido é o pagamento de quantia referente ao incumprimento de um contrato de mútuo ou de aluguer de veículo sem condutor ou semelhante, a autora terá de alegar e provar os termos do contrato, nomeadamente o montante mutuado, o montante das prestações devidas e seu prazo de vencimento e bem assim, a data da mora e incumprimento definitivo e de onde decorre o valor que peticiona, se só de juros e capital se de outra origem, concretizando-a nesse caso;
V - Não é de convidar à correcção da petição inicial (nos termos do art. 590º, nºs 2, al.b), 3 e 4 do nCPC) quando a petição seja inepta nos termos do art. 186º do mesmo diploma, uma vez que só um articulado que não padeça dos vícios mencionados neste último preceito pode ser objecto desse convite à correcção e isto porque se a parte declinar tal convite tal comportamento de inércia não obsta a que a acção prossiga os seus termos, contrariamente à consequência para a ineptidão que é a de determinar a nulidade de todo o processo.
[…]
VII - O poder de mandar aperfeiçoar os articulados para serem supridas insuficiências ou imprecisões na exposição e concretização da matéria de facto alegada (art. 590º, nº4 do nCPC) tem de ser entendido em rigorosos limites, e isto porque este convite se realiza apenas quando existam as apontadas insuficiências ou imprecisões que possam ser resolvidas com esclarecimentos, aditamentos ou correcções. Ou seja, anomalias que não ponham em causa, em absoluto, o conhecimento da questão jurídica e a decisão do seu mérito mas que possam facilitar que este conhecimento e decisão sejam realizados de forma mais eficaz.”

Acórdão da Relação do Porto, de 14-11-2017 [[11]]:
                                                                                                                                                     
“1. A causa de pedir é o acto ou facto jurídico concreto donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer (legalmente idóneo para o condicionar ou produzir).
2. A petição inicial será inepta quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir (art.º 186º, n.º 2, alínea a) do CPC).
3. A figura da ineptidão da petição inicial (que implica que, por ausência absoluta de alegação dos factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir, o processo careça, em bom rigor, de um objecto inteligível) distingue-se e contrapõe-se à mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspecto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida.
4. Apenas nesta segunda situação a parte poderá/deverá ser convidada a completar o articulado, podendo ainda tal insuficiência ou incompletude vir a ser suprida em consequência da aquisição processual de tais factos concretizadores, se revelados no decurso da instrução - art.ºs 5º, n.º 2, alínea b) e 590º, n.º 4 do CPC.
[…].”.

Acórdão da Relação do Porto, de 10-09-2019 [[12]]:

“I – Perante a alegação deficiente ou incompleta dos factos que constituem a causa de pedir, o art. 590º, nº 4 do CPC estabelece um dever legal do juiz, sob a forma de um “despacho de aperfeiçoamento vinculado”, no sentido de identificar os aspectos merecedores de complementação ou correcção.
II -Tal dever não tende à recuperação de petições ineptas, mas impõe-se para o aproveitamento de articulados minimamente aptos, mau grado insuficientes, deficientes ou imprecisos, de forma a prevenir que o curso do processo venha, sem alteração do seu conteúdo fáctico, a inviabilizar ulteriormente a completa identificação da fattispecie do instituto jurídico previamente apontado em sede de causa de pedir.
III – A omissão daquele despacho de aperfeiçoamento vinculado constitui uma vício que se projecta na sentença, por nesta se deixarem por conhecer factos que seriam essenciais para a decisão da causa e que, a ter sido proferido oportunamente aquele despacho, para a mesma teriam sido importados, determinando a anulação da sentença e a devolução do processo ao tribunal recorrido para ampliação da matéria de facto, sem prejuízo da prévia prática dos actos processuais tidos por adequados para esse efeito.”.

Acórdão da Relação do Porto, de 07-12-2018 [[13]]:

“I - O convite ao aperfeiçoamento constitui um dos objetos possíveis do chamado despacho pré-saneador (art. 590.º, n.º 2 CPC).
II - Tratando-se de pressupostos sanáveis, impende sobre o tribunal o poder-dever ou poder funcional (poder vinculado) de gestão processual e de agilização do processo, removendo oficiosamente a exceção dilatória ou convidando a parte a fazê-lo. A omissão de tal dever implica nulidade (art. 195.º, n.º 1 CPC).
III - A nulidade processual decorrente da ineptidão da petição inicial não é um pressuposto processual suprível ou que caiba nos casos de aperfeiçoamento previstos na lei.
IV - Findos os articulados, vislumbrando-se imediatamente a ineptidão da petição inicial e/ou a improcedência dos pedidos formulados, não se justifica a prática de atos como o chamamento de terceiros à acção em incidente de intervenção provocada.”.

Acórdão da Relação de Lisboa, de 24-01-2019 [[14]]:

“I – O princípio da cooperação deve ser conjugado com os princípios do dispositivo e da auto-responsabilidade das partes, que não comporta o suprimento, por iniciativa do juiz, da omissão de indicação do pedido ou de alegação de factos estruturantes da causa de pedir.
II - O convite ao aperfeiçoamento de articulados previsto no artigo 590.º, n.ºs 2, alínea b), 3 e 4, do CPC, não compreende o suprimento da falta de indicação do pedido ou de omissões de alegação de um núcleo de factos essenciais e estruturantes da causa de pedir.
III - Tal convite, destina-se somente a suprir irregularidades dos articulados, designadamente quando careça de requisitos legais, imperfeições ou imprecisões na exposição da matéria de facto alegada.
IV - As deficiências passíveis de suprimento através do convite têm de ser estritamente formais ou de natureza secundária, sob pena de se reabrir a possibilidade de reformulação substancial da própria pretensão ou da impugnação e dos termos em que assentam (artigos 590.º, n.º 6 e 265.º, do CPC).”.

Acórdão da Relação do Porto, de 21-11-2019 [[15]]:

“I - A causa de pedir é a realidade concreta resultante do mundo empírico, simples ou complexa que subsumível às normas aplicáveis irá fundamentar a pretensão da parte.
II - A ineptidão da petição inicial existe quando ocorrer uma falta de exposição essencial da causa de pedir e não apenas mera deficiência ou lacuna de alegação.
III - Como critério auxiliar para determinar essa distinção pode-se utilizar a previsão do art. 5º, do CPC, por forma apurar se a causa de pedir omitida de forma parcial é ainda uma realidade/facto essencial, que não pode ser densificada ou complementada por outros factos.
IV. Quando isso ocorrer existe uma nulidade absoluta que não deve ser objecto de despacho de aperfeiçoamento nos termos do art. 590º, do CPC.”.

Acórdão da Relação de Lisboa, de 10-09-2020 [[16]]:

“I – Causa de pedir é o ato ou facto jurídico em que o autor se baseia para formular o seu pedido.
II – A causa de pedir é ininteligível quando há impossibilidade de compreensão da causa de pedir, isto é, dos fundamentos de facto da ação, leva a que não se perceba onde radica, afinal, a pretensão formulada.
III – A falta de formulação do pedido ou de indicação da causa de pedir, traduzindo-se na falta do objeto do processo, constitui nulidade de todo ele por ineptidão da petição inicial.                    
IV – O convite ao aperfeiçoamento procura completar o que é insuficiente ou corrigir o que é impreciso, na certeza de que a causa de pedir existe (na petição) e é percetível (inteligível).”.

Acórdão da Relação de Lisboa, de 27-04-2021 [[17]]:

“I– O nº 3 do art. 186º do Código de Processo Civil exige, para afastar a procedência da excepção de ineptidão da petição inicial, que, além da dedução da contestação, o réu tenha interpretado convenientemente a petição inicial, aqui entendida como pretensão processualizada integrada pelo pedido e causa de pedir.
II– A falta ou a ininteligibilidade do pedido e/ou da causa de pedir não são passíveis de suprimento, pelo que, não há lugar a aperfeiçoamento.”.

Acórdão da Relação de Lisboa, de 28-09-2021 [[18]]:

“I- A ineptidão da petição inicial não dá lugar ao aperfeiçoamento, constituindo, em regra, exceção dilatória insuprível;
II- A incompatibilidade substancial dos pedidos que implica a ineptidão da petição inicial (al. c) do nº 2 do art. 186 do C.P.C.) só releva no âmbito da cumulação real, pois tratando-se de pedidos subsidiários ou alternativos a cumulação é apenas aparente, na medida em que a apreciação de um excluirá o conhecimento do outro, não sendo considerados em conjunto;
III- Afigurando-se existir uma incompatibilidade substancial de pedidos, tal vício será sanável, designadamente através de um convite ao autor para que opte por um dos pedidos ou esclareça se os mesmos foram formulados em cumulação real, para serem todos eles atendidos em simultâneo (art. 555 do C.P.C.), ou, afinal, em cumulação alternativa (art. 553 do C.P.C.) ou subsidiária (art. 554 do C.P.C.);
IV- Tal convite dirigido ao autor poderá constituir uma forma de retificar, de forma expedita, um simples lapso ou uma mera deficiência na formulação dos pedidos, constituindo resposta adequada ao princípio da economia processual e ao da prevalência das decisões de mérito sobre as formais.”.

Acórdão da Relação de Guimarães, de 28-10-2021 [[19]]:

“I - A figura da ineptidão da petição inicial que implica ausência absoluta de alegação dos factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir, distingue-se e contrapõe-se à mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspecto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida.
II – Sendo irrefutável que a reforma processual operada pelos DL 329-A/95, de 12/12 e 180/96, de 25/09, consagrou um alargamento da possibilidade de salvar a acção inquinada por algum dos vícios impeditivos do conhecimento de mérito, o certo é que o alargamento de tal possibilidade de sanação ficou ainda reservada para aquelas situações resultantes de falhas menores que deixam intacta a estrutura fundamental da instância.”.

Acórdão da Relação do Porto, de 24-02-2022 [[20]]:

“I - O arresto é um meio de garantia patrimonial do credor, cuja regulamentação substantiva encontra acolhimento nos artigos 619.º e seguintes do Código Civil, sendo o seu tratamento adjectivo feito pelos artigos 391.º a 396.º do Código de Processo Civil.
II - A providência em causa depende da verificação cumulativa de dois requisitos: a probabilidade da existência do crédito do credor e a existência de justo receio de perda da garantia patrimonial do mesmo.
III - Para a configuração do “justo receio da perda da garantia patrimonial” não basta o mero receio subjectivo do credor, sustentado em simples conjecturas, antes devendo fundar-se em factos concretos que sumariamente o indiciem.
IV - O convite ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada passou a ser, no âmbito da aplicação do n.º 4 do artigo 590.º do actual Código de Processo Civil, uma incumbência do juiz, constituindo um dever seu.
V - A incumbência, agora vinculada, de formular convite ao aperfeiçoamento de articulado apenas se justifica como forma de suprimento de deficiente exposição ou concretização da matéria de facto alegada, por insuficiência ou imprecisão da mesma.”.

Acórdão da Relação de Lisboa, de 20-12-2022 [[21]]:

“I- A ineptidão da petição inicial não dá lugar ao aperfeiçoamento, constituindo, em regra, exceção dilatória insuprível;
II- Não há contradição entre o pedido e a causa de pedir se o Condomínio A. invoca, na petição inicial, que a Ré, construtora e promotora imobiliária do prédio dos autos, executou a obra com defeitos (vícios de construção ou má opção técnica) que enumera, pelo que, conclui, lhe cumpre eliminá-los de acordo com o previsto no art.º 1225 do C.C., o que pede a final;
III- Se existe deficiência ou imprecisão na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, designadamente em matéria dos concretos defeitos cuja reparação se requer, é questão inteiramente distinta a justificar, quando muito, o convite ao aperfeiçoamento (art.º 590 do C.P.C.), mas que nada tem que ver com a ineptidão da petição inicial.”.

Ora, na expressão dos próprios recorrentes, estamos perante um “enredo” (item 48 da petição) – situação que está precisamente nos antípodas do que se exige no processo judicial.

Na verdade, como emerge dos aspectos destacados no despacho recorrido mas não só, lendo-se a petição e mesmo agora as alegações, confirma-se que os próprios requerentes parecem não ter noção clara e precisa da teia em que todos se envolveram nem daquilo em que se comprometeram.

Logo, também o Tribunal não pode considerar, na história contada, nem depreender desta, se existe e qual é a causa de pedir do pretenso crédito a garantir e quem são os artífices – credores e devedores – de tal obrigação, mormente os responsáveis e a que título.

Com efeito, embora apontem transferências de valores e entregas monetárias, ora aludem, para sua justificação e correspondente responsabilização, a uma compra e venda (itens 8 a 10 e 14 da pi), de carros e de uma “logística”, ora a “negócios que se foram cruzando entre as partes” mas penumbrosos (item 18), ora a “corredores” e “apaixonados” e “sonhadores” sem posses (itens 4º, 15º e 56º) por automóveis e corridas, ora a “sócios” e negócios societários (itens 17, 2º e seguintes). Da “cessão de quotas” (item 23) passa-se, num ápice, a uma “prestação de serviços” (item 30) e a uma “prestação de contas” (item 43) que teriam sido acordadas, mas termina-se ora por sugeridos incumprimentos de acordos ora por prática de ilícitos extracontratuais que terão passado por apropriação e falsificação, mesmo de índole penal (itens 48, 52e 56).

Para cúmulo, em vez de, nas alegações, se evidenciar onde se encontra alegada ou de onde se pode depreender a causa de pedir, diz-se agora nelas que nunca se tratou de compra (nºs 18, 22 e 23, aliás contraditórios entre si) mas de “investimento” (nº 32 das alegações e inusitadas conclusões 3 e 4) e de “promessa de cessão de quotas” (conclusão 5)!

Ora, se os requerentes não sabem, não entendem, não têm noção, do que fizeram, combinaram, enfim do que ocorreu e com quem, como poderia tê-la ou depreendê-la o Tribunal?

A petição é inepta, por ininteligibilidade da causa de pedir e consequentemente da fonte e natureza do crédito e dos sujeitos credores e devedores, por isso falhando um requisito básico da providência requerida.

Não é remediável mediante convite ao aperfeiçoamento.

Não ocorre, enfim, a situação verificada no pelos recorrentes invocado Acórdão da Relação do Porto, de 30-04-2020, nem a solução deste pode analogamente ser transposta para aqui [[22]].

Atente-se no que, sumariamente, nele está dito:

“I – Diversamente do que acontecia na vigência do Código de Processo Civil de 1961, agora, face ao que se dispõe no artigo 590.º, n.os 2, al. b), e 4, do CPC, não há razão para controvérsia: o poder do juiz de convidar as partes a aperfeiçoar os seus articulados quando estes revelem insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada não é um poder discricionário, mas antes um podere-dever, um poder vinculado.
II - O convite ao aperfeiçoamento (como o próprio termo inculca) supõe que os articulados revelem um conteúdo fáctico mínimo, ainda que deficientemente expresso: a petição inicial, que individualize a causa de pedir; a contestação, que identifique a(s) excepção(ões) deduzida(s) densificando-a(s) com os pertinentes elementos de facto.
III – No caso sub juditio, embora esteja, minimamente, identificada a causa de pedir, a petição inicial é, manifestamente, deficiente, já porque não descreve suficientemente actos materiais concretizadores de uma posse boa para usucapião, já porque abundam as afirmações vagas e conclusivas, pelo que se impunha que o tribunal proferisse despacho de convite ao aperfeiçoamento daquele articulado.
IV - A falta desse despacho configura omissão de um acto que a lei prescreve e a situação é especialmente ostensiva porquanto a Sra. Juiz, além de omitir a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento, extraiu da deficiência da p.i. efeitos que se projectaram na improcedência da acção.
V - A omissão desse despacho, sendo uma nulidade processual, influiu no exame e decisão da causa, posto que esta julgou improcedente o pedido formulado pelo autor por insuficiência de factos que poderiam ter sido invocados em cumprimento do convite ao aperfeiçoamento, acabando por afectar com o vício da nulidade a própria sentença.”

Com efeito, neste se comunga da posição de que não é susceptível de convite ao aperfeiçoamento a petição que não contenha “conteúdo fáctico mínimo, ainda que deficientemente expresso”, que não “identifique a causa de pedir” e que, portanto, sendo ela inepta, como neste caso é, não se configura omissão daquele acto nem, consequentemente, o cometimento de qualquer nulidade.

Sucede é que, no caso sub judice, aquele mínimo individualizador não existe.

Julgar-se-á, assim, improcedente o recurso.

 V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida.
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Custas da apelação pelos recorrentes – (artºs 527º, nºs 1 e 2, e 529º, do novo CPC, e 1º, nºs 1 e 2, 3º, nº 1, 6º, nº 2, referido à Tabela anexa I-B, 7º, nº 2, 12º, nº 2, 13º, nº 1 e 16º, do RCP).
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Notifique.
Guimarães, 30 de Março de 2023

Este Acórdão vai assinado digitalmente no Citius, pelos Juízes-Desembargadores:

Relator: José Fernando Cardoso Amaral
                       
Adjuntos: Maria João Marques Pinto de Matos
José Alberto Martins Moreira Dias


[1]Por opção do relator, o texto próprio não segue as regras do novo acordo ortográfico.
[2] Transcreve-se o seu articulado, face ao que está em causa no recurso.
[3] Nem podia havê-la porque a parte contrária não foi chamada ao processo e ao recurso, nos termos dos artºs 393º, nº 1, e 641º, nº 1, in fine,do CPC.
[4]Acórdão do STJ, de 10-11-2022, processo nº 815/20.3T8BGC-B.G1.S1 (Maria da Graça Trigo).
[5] Caso não seja arguida a nulidade com base em tal omissão de pronúncia e se não trate de matéria de conhecimento oficioso.
[6] Isto mesmo foi lembrado no Acórdão desta Relação de 07-10-2021, proferido no processo nº 886/19.5T8BRG.G1 (Vera Sottomayor).
[7] Processo nº 12428/18.5T8LSB.L1-7 (José Capacete).
[8] Lembre-se também a importação da definição precisa do objecto do processo em ordem à do alcance do caso julgado que venha a formar-se (artº 621º, do CPC).
[9] Comentário ao Código de Processo Civil, volume 2º, Almedina, 1945, páginas 359 e sgs..
[10] Processo nº 203848/14.2yIPRT.C1 (Manuel Capelo).
[11] Processo nº 7034/15.9T8VIS.C1 (Fonte Ramos).
[12] Processo nº 11226/16.5T8PRT-A.P1 (Rui Moreira).
[13] Processo nº 17055/16.9T8PRT.P1 (Fernanda Almeida).
[14] Processo nº 573/18.1T8SXL.L1-6 (Manuel Rodrigues).
[15] Processo nº 20935/18.3T8PRT.P1 (Paulo Duarte Teixeira).
[16] Processo nº 17500/18.9T8LSB.L1-2 (Nelson Borges Carneiro).
[17] Processo nº 2725/17.2T8LRS.L1-7 (Cristina Silva Maximiano).
[18] Processo nº 4357/19.1T8LSB.L1-7 (Maria da Conceição Saavedra).
[19] Processo nº 315/20.1T8PTB.G1 (Maria dos Anjos Nogueira).
[20] Processo nº 7842/21.1T8VNG-A.P1 (Judite Pires).
[21] Processo nº 20802/21.3T8LSB.L1-7 (Maria da Conceição Saavedra).
[22] Processo nº 639/18.8T8PRD.P1 (Joaquim Moura).