Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
125/16.0PBBGC-A.G1
Relator: ANTÓNIO TEIXEIRA
Descritores: LICENÇA DE USO E PORTE DE ARMA
RECONHECIMENTO DE IDONEIDADE
ARTºS. 14º E 15º DA LEI Nº 5/2006
DE 23 DE FEVEREIRO (RJAM)
EFEITOS DAS PENAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - É ilidível a presunção a que alude o Artº 14º, nº 2, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, devendo ser apreciada casuisticamente a susceptibilidade de se mostrar indiciada a falta de idoneidade pela condenação do requerente pela prática de um crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão.
II - A remissão para o Artº 30º da Constituição da República Portuguesa a que alude o citado Artº 14º, nº 2, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, está conexionada com os chamados “efeitos das penas”, enquanto efeitos legalmente determinados derivados de uma condenação, e que se traduz na proibição de que à condenação em certas penas se acrescente, de forma automática, mecânica, e independentemente de decisão judicial, apenas por força da lei, a perda de quaisquer direitos civis, profissionais e políticos.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

1. Por apenso ao Processo Comum Singular nº 125/16.0PBBGC, do Juízo Local Criminal de Bragança, do Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, em 27/11/2020 veio o arguido J. C. pedir o reconhecimento de idoneidade para efeitos de obtenção da licença de uso e porte de arma das Categorias C e D, nos termos do disposto nos Artºs. 15º, nº 1, al. c) e nº 2, e 14º nºs 2, 3 e 4, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro (RJAM) (1).
*
2. Tendo sido designada data para o efeito, procedeu-se à audição do arguido, conforme determina o Artº 14º, nº 5, e, após parecer favorável do Ministério Público [que preconizou “dever ser reconhecida a idoneidade do arguido para obter licença de uso de porte de arma”], em 25/01/2021 a Mmª Juíza proferiu a seguinte decisão (transcrição (2)):

“i.
Nos presentes autos de “Reconhecimento de idoneidade”, veio o requerente J. C. (arguido nos autos principais) requerer concessão de licença de uso e porte de arma, nos termos e para os efeitos estabelecidos no art. 14º, nº 3, da Lei nº 5/2006, de 23.02.
Foi ouvido o arguido (A imediação perante o Juiz e o contraditório inerente, apresenta-se para o legislador como factor relevante na apreciação da pretensão do arguido/requerente, por poder contribuir certamente para um melhor conhecimento da personalidade deste e dos reais fins para que pretende a licença.).
O Ministério Público apresentou parecer no sentido de deferimento do requerido.
*
ii.
Com relevo para a decisão a proferir importa considerar os seguintes factos:

1. Nos autos principais de que o presente incidente é apenso, por sentença de 26-04-2017, transitada em julgado em 09-10-2017, foi o arguido condenado, pela prática de um crime de violência doméstica (pp. art. 152º, nº 1, al. a), 2 e 4 do Cód Penal) e um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada (pp. art. 190º, nº 1, do Cód. Penal):
- em cúmulo jurídico na pena única de 2 anos e seis meses de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo, sujeita a regime de prova (a elaborar pela DGRSP, assente num plano de reinserção social) e 120 dias de multa, à taxa diária de € 6,50 (seis euros e cinquenta euros), à taxa diária de € 6,00 (seis) euros;
- proibição de contactos pessoais, por qualquer forma, com a ofendida, nomeadamente na residência e local de trabalho desta, pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, devendo a medida ser fiscalizada por meios de controlo à distância;
- obrigação de frequência do programa para agressores de violência doméstica (PAVD).
- na pena acessória de proibição de uso e porte de arma, nos termos do disposto no artigo 152º, nº 4 do C. Penal pelo período de 2 anos e 6 meses.
- pagamento de uma indemnização à ofendida nos valores de € 222,45 (duzentos e vinte e dois euros e quarenta e cinco cêntimos), a título de danos patrimoniais e € 600,00 (seiscentos euros), a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros legais, à taxa legal, contados desde a data da prolação da presente sentença até integral pagamento;

2. Do C.R.C. do arguido consta ainda averbada a(s) seguinte(s) condenação(ões):
- no processo nº 253/15.0T9BGC, por sentença de 11-02-2016, transitada em julgado em 14-03-2016, pela prática em 12-02-2015, de um crime de desobediência (pp. art. 348º, nº1, al. b), do Cód. Penal em conjugação com o art. 11º, nº 1, als. c) e d) do D.L. .º 102/2000 de 02 de Junho), na pena de 110 dias de multa;
3. O arguido pratica desportivamente tiro aos pratos e nunca teve quaisquer problemas ou incidentes relacionados com armas.
iii.
O nosso sistema legal proíbe, por princípio, a detenção, uso e porte de armas de caça. O uso, detenção ou porte de armas de fogo, pelo acréscimo de perigosidade que traz à comunidade, está sujeito a licenciamento excludente da ilicitude de um ato genericamente proibido.
Na verdade, inexiste um direito constitucional à detenção, uso e porte de armas. Aliás, essa detenção, uso e porte de armas é, por princípio, proibida por lei, só não sendo tal situação ilegal se o agente tiver sido para tal autorizado, de harmonia com as exigências legais contidas no regime jurídico das armas e munições. Significa, pois, que a autorização de detenção, uso e porte de arma é excepcional e depende da verificação das condições enumeradas no já supra elencado artigo 15º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 50/2013 de 24 de julho.
Essa detenção, uso e porte não são, assim, ilegais se o agente tiver sido autorizado para o efeito.
Tal procedimento de autorização está previsto nos artigos 7º e 8º da Lei nº 5/2006, de 23/02 (que estabelece o regime jurídico das armas e munições).

A especificação das condições de cuja verificação depende a concessão da licença de uso e porte de armas de caça consta do artigo 15º da referida Lei nº 5/2006, que dispõe, no seu nº 1, que a concessão de licença de uso e porte de armas de caça pode ser atribuída a maiores de 18 anos, desde que preencham, cumulativamente, os seguintes requisitos:

- Se encontrem em pleno uso de todos os direitos civis;
- Demonstrem carecer de licença de uso e porte de arma dos tipos C ou D para a prática de atos venatórios;
- Se encontrem habilitados com carta de caçador com arma de fogo ou demonstrem fundamentadamente carecer da licença por motivos profissionais;
- Sejam idóneos;
- Sejam portadores de certificado médico, nos termos do artigo 23º;
- Obtenham aprovação em curso de formação técnica e cívica para o uso e porte de armas de fogo.

Importa, pois, caracterizar e definir o conceito de “idoneidade”, não esquecendo, nesta tarefa, o que estatui o artigo 14º, da Lei nº 5/2006:

2 - Sem prejuízo do disposto no artigo 30º da Constituição e do número seguinte, para efeito de apreciação do requisito constante da alínea c) do número anterior é suscetível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outras razões devidamente fundamentadas, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão.
3 - No decurso do período anterior à verificação do cancelamento definitivo da inscrição no registo criminal das decisões judiciais em que o requerente foi condenado, pode este requerer que lhe seja reconhecida a idoneidade para os fins pretendidos, pelo tribunal da última condenação.
4 - A intervenção judicial referida no número anterior não tem efeitos suspensivos sobre o procedimento administrativo de concessão ou renovação da licença em curso”.

Em síntese: a autorização de uso e porte de armas de caça é excepcional e depende da verificação das condições acima elencadas, nomeadamente da “idoneidade” para usar tais armas, sendo suscetível de indiciar falta de “idoneidade” a circunstância de o requerente ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão.
A remissão para o artigo 30º da Constituição da República Portuguesa está relacionada com os chamados “efeitos da condenação”, que se traduzem, em suma, na proibição de que à condenação em certas penas se acrescente, de forma automática, mecânica, e independentemente de decisão judicial (apenas por força da lei), a perda de quaisquer direitos civis, profissionais e políticos (artigo 30º, nº 4, da nossa Lei Fundamental).
A referida proibição decorre, assim, do princípio jurídico-constitucional subjacente à ideia político-criminal de retirar às penas qualquer efeito infamante ou estigmatizante e do dever do Estado de favorecer a socialização do condenado.
A remissão para o artigo 30º da Constituição da República Portuguesa está ainda relacionada com a proibição de penas (ou de medidas de segurança restritivas da liberdade) com caráter perpétuo ou de duração ilimitada (artigo 30º, nº 1, da mesma Lei Fundamental).
Contudo, na proibição do uso de armas para o exercício da atividade da caça (em determinadas circunstâncias, obviamente), não estamos em presença de uma qualquer pena, nem existe um direito constitucional ao uso e porte de armas de caça, nem a restrição do uso de armas de caça é meramente decorrente (de forma automática) da lei, dependendo sempre, em última instância, de verificação jurisdicional, operada caso a caso.
Nada há, portanto, de ilegal, de inconstitucional ou de ilegítimo no estabelecimento de restrições e condicionamentos à posse e ao uso de armas de caça.
Numa outra ordem de ideias, a “idoneidade” agora em apreciação traduz, numa formulação genérica, a capacidade ou a qualidade de alguém para ser titular de licença de uso e porte de arma, alguém de quem se espera que, em caso de concessão de tal licença, faça um uso da arma em causa correspondente aos fins legais. Terá de entender-se que idoneidade significará a aptidão de alguém para o uso e porte ou detenção de arma de acordo com as normas imperantes (a propósito, vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16 de setembro de 2015, disponível in www.dgsi.pt «I - A idoneidade exigida para a concessão de autorização de uso de arma de fogo traduz a capacidade técnica de o titular usar a arma, por um lado, e de a usar de forma avisada, prudente e de acordo com as leis em vigor, por outro. II - Não existe uma presunção de idoneidade geral e abstrata e reportada a qualquer eventual interessado, subjacente ao concreto juízo prévio da idoneidade para ser titular de licença de uso e porte de arma. Face à letra da lei a idoneidade tem que ficar provada, tem que ser demonstrada por factos».).
A esta luz, o requerente do uso da arma será idóneo quando apresente um comportamento social denotador de ser merecedor da especial confiança que o Estado nele vai depositar.
Pelo contrário, o requerente do uso da arma será inidóneo quando, por exemplo através de crime por si praticado e pelo qual foi condenado, demonstrou grande desprezo pelas regras da sociedade em que se encontra inserido.
Por outras palavras: o requerente do uso da arma deverá ser considerado inidóneo quando se demonstrar que não está preparado para assumir a responsabilidade de deter uma arma, designadamente por ter sido condenado pela prática de crime doloso, violento, praticado com uso de arma, e punido com pena de prisão superior a um ano.
*
No caso sub judice, verifica-se que o ora requerente foi condenado por sentença de 26-04-2017, transitada em julgado em 09-10-2017, pela prática de um crime de violência doméstica (pp. art. 152º, nº 1, al. a), 2 e 4 do Cód Penal) e um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada (pp. art. 190º, nº1, do Cód. Penal) em cúmulo jurídico na pena única de 2 anos e seis meses de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo, sujeita a regime de prova (a elaborar pela DGRSP, assente num plano de reinserção social) e 120 dias de multa, à taxa diária de € 6,50 (seis euros e cinquenta euros), à taxa diária de € 6,00 (seis) euros, na proibição de contactos pessoais, por qualquer forma, com a ofendida, nomeadamente na residência e local de trabalho desta, pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, devendo a medida ser fiscalizada por meios de controlo à distância, na obrigação de frequência do programa para agressores de violência doméstica (PAVD), na pena acessória de proibição de uso e porte de arma, nos termos do disposto no artigo 152º, nº 4 do C. Penal pelo período de 2 anos e 6 meses, e no pagamento de uma indemnização à ofendida nos valores de € 222,45 (duzentos e vinte e dois euros e quarenta e cinco cêntimos), a título de danos patrimoniais e € 600,00 (seiscentos euros), a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros legais, à taxa legal, contados desde a data da prolação da presente sentença até integral pagamento. Mais resulta do C.R.C. do arguido averbada a(s) seguinte(s) condenação(ões): no processo nº 253/15.0T9BGC, por sentença de 11-02-2016, transitada em julgado em 14-03-2016, pela prática em 12-02-2015, de um crime de desobediência (pp. art. 348.º, n.º1, al. b), do Cód. Penal em conjugação com o art. 11º, nº1, als. c) e d) do D.L. .º 102/2000 de 02 de Junho), na pena de 110 dias de multa.
Em nosso entender, todo o descrito percurso delitivo do requerente, em especial o cometimento de um crime de violência doméstica (pp. art. 152º, nº1, al. a), 2 e 4 do Cód Penal) e um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada (pp. art. 190.º, n.º1, do Cód. Penal) é revelador de uma personalidade desconforme aos valores que o Direito Penal tutela, sendo ainda manifestação, inequívoca, de que o recorrente não possui “idoneidade” para deter e usar quaisquer armas de fogo.
A este nosso entendimento não obsta a circunstância de o requerente se encontrar social e familiarmente integrado, e de ter, noutros aspetos da sua vida, um comportamento conforme às regras de convivência social.
É que, ao ter praticado os referidos crimes, o requerente demonstrou profundo menosprezo pelas regras da sociedade em que se encontra inserido, e revelou ainda manifesto desprezo pelo valor da dignidade humana (da ofendida), não sendo, nessa medida, pessoa idónea para ser detentor de uma arma de fogo.
Não poderá este Tribunal formular um juízo de prognose no sentido de que o requerente, presumivelmente, irá fazer um uso das armas em conformidade com a lei, ou seja, utilizando-a apenas para a actividade venatória, face às suas anteriores condenações criminais.
Assim, não obstante o arguido nunca ter tido quaisquer problemas ou incidentes relacionados com armas, o crime pelo mesmo cometido nas circunstâncias e termos em que foi perpetrado, é revelador de uma personalidade incompatível com um juízo de idoneidade para que lhe seja deferida a sua pretensão de renovação de licença de uso e porte das armas de caça.
Assim, pese embora dos elementos constantes dos autos resultar apurado que o requerente possui capacidade técnica para usar as armas de fogo, o certo é que não se demonstra, face à revelada personalidade do arguido já aludida, que seja merecedor de um juízo de confiança que essa utilização será prudente e de harmonia com as normas legais.
Em sentido idêntico vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08-05-2018, Processo: 194/04.6GBGDL-C.E1, Relator João Amaro: “Não é de reconhecer “idoneidade” a requerentes de licença de uso e porte de arma que possuam condenações criminais anteriores, pela prática de crimes graves, violentos e dolosos - sem que isso viole quaisquer preceitos ou princípios - quer legais, quer constitucionais.” (vide decisões do Tribunal da Relação de Évora em casos semelhantes ao colocado nos presentes autos, que não é de reconhecer “idoneidade” a requerentes de licença de uso e porte de arma que possuam condenações criminais anteriores, pela prática de crimes graves, violentos e dolosos, sem que isso viole quaisquer preceitos ou princípios - quer legais, quer constitucionais -: cfr. o Ac. de 19-02-2013, sendo relatora Ana Brito, o Ac. de 16-06-2015, sendo relator Alberto Borges, e o Ac. de 20-12-2016, do qual foi relator António Condesso; o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10-07-2019, Processo nº 69/13.8GFPRT-B.G1, Relator Mário Silva: “A condenação reiterada por crimes de condução sob o efeito do álcool é suscetível de revelar inidoneidade para a utilização de armas de fogo.” - todos disponíveis in www.dgsi.pt e cuja jurisprudência se subscreve).
Assim e em conclusão, o requerente não reúne condições pessoais (qualidades e aptidões) para obter licença de uso e porte de arma de caça, pelo que não possui “idoneidade” para esse efeito.

iv.
Nestes termos, o Tribunal decide:
Não reconhecer idoneidade ao requerente para que lhe seja concedida licença de uso e porte de arma, nos termos e para os efeitos estabelecidos no art. 14º, nº 3, da Lei nº 5/2006, de 23.02.
Notifique.”.
*
3. Inconformado com essa decisão judicial, dela veio o arguido J. C. interpor o presente recurso, nos termos da peça processual que consta de fls. 42/61, cuja motivação é rematada pelas seguintes conclusões e petitório (transcrição):

“1. O presente recurso pretende impugnar a decisão proferida nos autos do Processo nº 125/16.0PBBGC-A do Juízo Local Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Bragança.
2. Que decidiu não reconhecer a idoneidade ao requerente J. C. aqui recorrente para que lhe seja concedida licença de uso e porte de arma, nos termos e para os efeitos estabelecidos no art.º 14º, nº 3, da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro.
3. E que constitui decisão judicial com a qual o aqui recorrente não pode conformar-se.
4. Pois resulta de ponderação inadequada de circunstâncias exógenas, sem a relevância jurídico-penal que o Tribunal lhes atribuí e que resultam numa decisão que prejudica desproporcionadamente o aqui recorrente.
5. A convicção do tribunal assenta num viés acerca do tipo de crime de violência doméstica da qual se não pode concluir ter, per se, o aqui recorrente perdido a idoneidade para o resto dos seus dias.
6. Foi violado o princípio in dubio pro reo.
7. Pois o Tribunal recorrido valorou prova meramente indiciária, geral e abstracta sem que da mesma resulte evidência de se poder concluir pela perda de direitos (resultantes da “perda” de idoneidade) do aqui recorrente.
8. O Tribunal, para sustentar a sua decisão relativamente ao J. C., socorre-se de um quadro geral relacionado com o tipo de crime de violência doméstica do qual não se pode concluir, sem ofender os princípios relacionados com a valoração da prova e da presunção de inocência, sobre a personalidade do recorrente.
9. O Tribunal acaba por fazer uma leitura demasiado ampla e em conexão com o contexto circundante ao aqui recorrente e relacionado com o processo principal.
10. Desatendendo ao facto concreto e à situação em causa – relativa às suas condições de vida em 2021.
11. Concreta situação que o Tribunal valora de forma errada e insuficiente pois não confronta a interpretação que faz do crime de violência doméstica cometido em 2016 com mais nenhum outro elemento de prova.
12. O que permite concluir que o Tribunal decide desta forma em concreto por “arrastão”, por vaga similitude e eventual verosimilhança com o caso de outros arguidos que tenham sido condenados pelo crime de violência doméstica.
13. Dando total irrelevância e desconsiderando elementos carreados aos autos relacionados com a aptidão do aqui recorrente ao uso e porte de armas.
14. Amplamente referenciados e relacionados com um longo percurso de uso e porte de armas quer no contexto venatório quer fundamentalmente com âmbito desportivo.
15. Sem qualquer espécie de problema. Ao longo de décadas.
16. Factos e elementos probatórios que o tribunal ostensivamente ignora.
17. E que assim, não contribuem para formar a convicção do tribunal a este respeito. E a respeito do aqui recorrente.
18. O que resulta em insuficiência de prova, dado que não são considerados, como deviam, factores essenciais para a formação da convicção do julgador relativamente à personalidade do arguido.
19. Que assim se vê injustiçado. Pois vê-se inibido de praticar uma modalidade desportiva de que é atleta - desportista federado desde 2002.
20. E que se julga no direito de poder retomar.
21. Retomando assim a sua vida em toda a plenitude possível, após cumprimento escrupuloso da pena e pena acessória em que foi condenado nos autos do processo 125/16.0PBBGC.
22. O que é inviabilizado por esta decisão.
23. Que faz uma interpretação errada dos factos relacionados com o processo principal.
24. Interpretação contaminada pelo contexto processual e legal do crime em causa.
25. Ao invés de atender ao concreto circunstancialismo referente à pessoa do aqui recorrente.
26. E ao invés de atender às declarações do aqui recorrente em sede de audição.
27. Cujo teor e alcance o tribunal a quo parece votar ao mais completo ostracismo. Pois não lhes faz qualquer referência.
28. No sentido de avaliar o seu conteúdo estrito e tentar perscrutar e deslindar o seu alcance.
29. E para que se soubesse ou avaliasse em que medida contribuíram para a formação da convicção do tribunal.
30. O que não sucede.
31. Donde a conclusão (Decisão final) enferma de falta de fundamentação.
32. Não há, relativamente ao iter logico que o tribunal percorreu ao desenvolver o raciocínio e convicção relativamente à idoneidade do J. C., qualquer outro elemento probatório minimamente relevante ou atendível. Ou digno de qualquer significado.
33. Neste caso, o aqui recorrente está a ser vítima involuntária do contexto hostil relacionado e associado, genérica e abstractamente, ao crime de violência doméstica.
34. Contexto que condiciona e contamina a interpretação que o Tribunal a quo faz da personalidade do aqui recorrente.
35. Uma interpretação e convicção exclusivamente assente no passado e num dado tipo de crime é muito propensa a gerar interpretações enviesadas e, por isso, de resultado e consequências injustas.
36. Não é possível concluir que o J. C. não é, em 2021, idóneo.
37. Coisa que o Tribunal faz com base num juízo exclusivamente assente no passado do aqui recorrente.
38. E relacionado com um único crime que consta do CRC da vida de um homem com 54 anos de idade.
39. Como que um anátema. Uma “condenação” perpétua. Com repercussões para a vida.
40. Ora, o juízo de prognose deve ser feito relativamente ao FUTURO do requerente aqui recorrente.
41. Devemos perguntar-nos, uma vez que o passado já conhecemos, se o FUTURO do recorrente apresenta perspectivas de pode ser vivido com “normalidade” e em socialização.
42. O Tribunal, a este respeito, ignorou ou fez tábua rasa dos relatórios e conclusões acerca do cumprimento da pena junto aos autos.
43. Dos quais resulta que o aqui recorrente correspondeu de forma claramente positiva às exigências das obrigações que lhe foram impostas.
44. Bem como a avaliação social do aqui recorrente da qual se constata que a avaliação feita é positiva, está bem inserido na comunidade local e nada consta em seu desabono no que concerne à sua formação moral e cívica.
45. Tudo isto, o Tribunal a quo desconsiderou.
46. MAL.
47. Pois as condições de vida do aqui recorrente claramente apontam para uma possibilidade muito razoável e de grande plausibilidade de este se poder determinar com uma vida conforme ao Direito.
48. Assim o Tribunal a quo quisesse ver.
49. O aqui recorrente deve poder FINALMENTE prosseguir sem anátemas a pender sobre a sua cabeça a sua vida em normalidade.
50. Deve ter, finalmente, a oportunidade de buscar a sua felicidade.
51. Que é um direito inalienável como se sabe.
52. E que não se compadece com circunstâncias de facto que no fundo são penas que o condenam a ter de abdicar de uma actividade lúdica que tanto o preenche enquanto pessoa.
53. Assim o reclama uma decisão judicial conforme aos valores perenes do Estado de Direito que atende à dignidade da pessoa humana e busca a ressocialização do agente.
54. Atendendo aos fins das penas e ao quadro vigente relativo a uma política criminal de um Estado de Direito Democrático desenvolvido.
55. Deve, em suma e, portanto, ser reconhecida ao aqui recorrente a idoneidade requerida.
56. Por não haver nos autos prova capaz de sustentar decisão que não lhe reconhece a referida idoneidade.
57. Circunstância que não se aceita.
58. Por constituir erro notório na apreciação da prova.
59. Pois fundou a sua convicção e em factos e circunstâncias que não a poderia (a decisão) ter determinado.
60. Acabando por determinar uma decisão desproporcionada e injusta.
61. Em violação também do disposto no artigo 127º do CPP.
62. Por ser insuficiente para a decisão da matéria de facto provada.
63. Pois o aqui recorrente tem todas as condições de “andar para frente” com a sua vida.
64. E porque isso, em concreto e muito objectivamente, implica e pressupõe poder usar a arma quando bem lhe aprouver.
65. Dir-se-ia que até é uma questão interligada com o módico de ressocialização que o sistema pretende, em todo o caso, promover incentivar e estimular.
66. E é isso que reclamam os valores de um Estado de Direito: permitir, estimular e incentivar, de facto, a ressocialização.
67. Em pleno!
68. Os crimes pelos quais o recorrente foi condenado foram praticados há mais de 5 (cinco anos)
69. Não houve qualquer uso de qualquer arma de fogo.
70. A pena aplicada já decorreu e foi escrupulosamente cumprida e observada.
71. Durante o período de suspensão da pena o recorrente não praticou qualquer acto que pudesse conduzir à sua revogação. Nem depois.
72. A pena aplicada encontra-se extinta.
73. Militam a favor do recorrente os factores já mencionados e designadamente:
• Ter 54 anos de idade
• Ser atirador Federado junto da Federação Portuguesa de Tiro com armas de caça desde 2002.
• Ser caçador e possuir a carta de caçador desde 1995.
• Ser proprietário de armas de caça desde 1995.
• Não constarem do CRC quaisquer outras condenações.
74. A idoneidade cujo reconhecimento pretende destina-se apenas ao uso de armas da classe C e D, exclusivamente para a prática de actos venatórios e para a prática desportiva de que é atleta federado.
75. Não se encontram pendentes contra o aqui recorrente quaisquer processos de natureza criminal.
76. Resulta das informações prestadas pela DGRSP que o recorrente cumpriu o PRS a que estava vinculado.
77. Entende assim que reúne as condições de idoneidade para que lhe seja concedida licença para detenção, uso e porte de arma, pelo que a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 14º, nº 1, al. c), 2 e 3 e 15º Da Lei 5/2006 de 23 de fevereiro e 57º do Código penal.

Termos em que
DEVE O PRESENTE RECURSO MERECER PROVIMENTO E EM CONSEQUÊNCIA DEVE A DECISÃO RECORRIDA SER REVOGADA, E SUBSTITUÌDA POR OUTRA QUE RECONHEÇA A IDONEIDADE AO AQUI RECORRENTE PARA QUE LHE SEJA CONCEDIDA LICENÇA DE USO E PORTE DE ARMA, NOS TERMOS E PARA OS EFEITOS ESTABELECIDOS NO ARTº 14º, Nº 3 DA LEI 5/2006, DE 23 DE FEVEREIRO

ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA
JUSTIÇA!”.
*
4. O Ministério Público junto da 1ª instância respondeu ao recurso, nos termos da peça processual que consta de fls. 67/71, pugnando o Digno Magistrado subscritor pela sua procedência e pela revogação da decisão recorrida.
*
5. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto deste tribunal da Relação emitiu o douto parecer que consta de fls. 79/80, pronunciando-se, também, pela procedência do recurso.
5.1. Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, do C.P.Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
*
6. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois conhecer e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

Como se sabe, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal.
Ora, no caso vertente, da conjugação da decisão recorrida com a conclusões deduzidas pelo recorrente, a questão que basicamente importa decidir é a de saber se deverá ser reconhecida ao recorrente idoneidade para ser titular de licença de uso e porte de arma, nos termos requeridos.
Para tal, atentemos, antes de mais, nas pertinentes normais legais aplicáveis ao caso.

Desde logo, no Artº 14º, que sob a epígrafe “Licença B1” estatui:

“1 - A licença B1 pode ser concedida a maiores de 18 anos que reúnam, cumulativamente, as seguintes condições:
a) Se encontrem em pleno uso de todos os direitos civis;
b) Demonstrem carecer da licença por razões profissionais ou por circunstâncias de defesa pessoal ou de propriedade;
c) Sejam idóneos;
d) Sejam portadores de certificado médico, nos termos do artigo 23.º;
e) Obtenham aprovação em curso de formação técnica e cívica para o uso e porte de armas de fogo.
2 - Sem prejuízo do disposto no artigo 30º da Constituição e do número seguinte, para efeito de apreciação do requisito constante da alínea c) do número anterior é suscetível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outras razões devidamente fundamentadas, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão.
3 - No decurso do período anterior à verificação do cancelamento definitivo da inscrição no registo criminal das decisões judiciais em que o requerente foi condenado, pode este requerer que lhe seja reconhecida a idoneidade para os fins pretendidos, pelo tribunal da última condenação.
4 - A intervenção judicial referida no número anterior não tem efeitos suspensivos sobre o procedimento administrativo de concessão ou renovação da licença em curso.
5 - O incidente corre por apenso ao processo principal, sendo instruído com requerimento fundamentado do requerente, que é obrigatoriamente ouvido pelo juiz do processo, que decide, produzida a necessária prova e após parecer do Ministério Público.
6 - Os pedidos de concessão de licenças de uso e porte de arma da classe B1 são formulados através de requerimento do qual conste nome completo do requerente, número e validade do documento de identificação, data de nascimento, profissão, estado civil, naturalidade, nacionalidade e domicílio, bem como a justificação da pretensão.
7 - O requerimento referido no número anterior deve ser acompanhado do certificado de aprovação para o uso e porte de armas de fogo da classe B1.”.

Depois, no Artº 15º, que sob a epígrafe “Licenças C e D”, estatui:

“1 - As licenças C e D podem ser concedidas a maiores de 18 anos que reúnam, cumulativamente, as seguintes condições:
a) Se encontrem em pleno uso de todos os direitos civis;
b) Demonstrem carecer de licença de uso e porte de arma dos tipos C ou D para a prática de atos venatórios, e se encontrem habilitados com carta de caçador ou demonstrem fundamentadamente carecer da licença por motivos profissionais;
c) Sejam idóneos;
d) Sejam portadores de certificado médico, nos termos do artigo 23.º;
e) Obtenham aprovação em curso de formação técnica e cívica para o uso e porte de armas de fogo.
2 - A apreciação da idoneidade do requerente é feita nos termos do disposto nos nºs. 2, 3 e 4 do artigo 14.º
3 - Os pedidos de concessão de licenças de uso e porte de arma das classes C e D são formulados através de requerimento do qual conste nome completo do requerente, número e validade do documento de identificação, data de nascimento, profissão, estado civil, naturalidade, nacionalidade e domicílio.
4 - O requerimento deve ser acompanhado do certificado de aprovação para o uso e porte de armas de fogo da classe C ou D.”.

E, finalmente, no Artº 30º da Constituição da República Portuguesa, expressamente mencionado no nº 2 do Artº 14º, que sob a epígrafe “Limites das penas e das medidas de segurança”, estatui:

“1. Não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida.
2. Em caso de perigosidade baseada em grave anomalia psíquica, e na impossibilidade de terapêutica em meio aberto, poderão as medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade ser prorrogadas sucessivamente enquanto tal estado se mantiver, mas sempre mediante decisão judicial.
3. A responsabilidade penal é insusceptível de transmissão.
4. Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.
5. Os condenados a quem sejam aplicadas pena ou medida de segurança privativas da liberdade mantêm a titularidade dos direitos fundamentais, salvas as limitações inerentes ao sentido da condenação e às exigências próprias da respectiva execução.”.

Isto posto, há que referir que a remissão para o Artº 30º da nossa lei fundamental a que alude o transcrito Artº 14º, nº 2, está conexionada com os chamados “efeitos das penas”, enquanto efeitos legalmente determinados derivados de uma condenação e que se traduz na proibição de que à condenação em certas penas se acrescente, de forma automática, mecânica, e independentemente de decisão judicial, apenas por força da lei, a perda de quaisquer direitos civis, profissionais e políticos (Artº 30º, nº 4, da CRP).
Decorrendo a referida proibição, como assinala o Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, 3ª Reimpressão, Coimbra Editora, 2011, págs. 157 e sgts., do princípio político-criminal de luta contra o efeito estigmatizante, dessocializador e criminógeno das penas e do indeclinável dever do Estado de não prejudicar, mas pelo contrário favorecer, a socialização do condenado.
Porém, como se decidiu no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 243/2007, de 30/03/2007, in Diário da República, II Série, nº 98, de 22 de Maio de 2007, no qual se analisou o regime legal em causa, “estamos em presença de uma actividade cujo exercício está genericamente dependente de licença, o que significa (...) que não existe um direito constitucional ao uso e porte de armas, incluindo as de defesa, independentemente dos condicionamentos ditados designadamente pelo interesse público em evitar os inerentes perigos, interesse que é acautelado através de autorizações de carácter administrativo condicionadas por ilações extraídas da verificação jurisdicional de comportamentos que a lei qualifica como censuráveis.
Com efeito, a lei rodeia com frequência a prática de certas actividades de precauções, traduzidas em licenciamentos, em razão da perigosidade que encerram, e da necessidade de conhecimentos técnicos específicos não comuns à generalidade dos cidadãos, como é o uso de armas de fogo, ou o exercício da condução de veículos automóveis. Nesses casos, é legítimo afirmar que a licença visa excluir a ilicitude de um acto que é genericamente proibido.
Na verdade, a necessidade do licenciamento pressupõe mesmo uma proibição geral do exercício destas actividades, como é indiscutivelmente o caso do uso e porte de armas.
Nada há, portanto, de ilegítimo no estabelecimento de restrições e condicionamentos diversos à posse de armas por particulares.”.
Ora, como se viu, a questão em apreciação nos presentes autos consiste em aferir da idoneidade do requerente para obter licença de uso e porte de arma, das classes C e D, para exercer as actividades de caçador e de praticante federado de tiro.
Sucede que o tribunal a quo rejeitou a pretensão do arguido, ora recorrente, tendo em conta que, no âmbito dos autos principais, por sentença de 26/04/2017, transitada em julgado em 09/10/2017, o mesmo foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo Artº 152º, nº 1, al. a), 2 e 4 do Código Penal, e pela prática de um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, p. e p. pelo Artº 190º, nº 1, do Código Penal, na pena única de 2 anos e seis meses de prisão, cuja execução se suspendeu por igual período de tempo, sujeita a regime de prova (a elaborar pela DGRSP, assente num plano de reinserção social) e 120 dias de multa, à taxa diária de € 6,50 (seis euros e cinquenta euros), à taxa diária de € 6,00 (seis) euros, e ainda na proibição de contactos pessoais, por qualquer forma, com a ofendida, nomeadamente na residência e local de trabalho desta, pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, devendo a medida ser fiscalizada por meios de controlo à distância, na obrigação de frequência do programa para agressores de violência doméstica (PAVD), na pena acessória de proibição de uso e porte de arma, nos termos do disposto no artigo 152º, nº 4 do C. Penal pelo período de 2 anos e 6 meses, e no pagamento de uma indemnização à ofendida nos valores de € 222,45 (duzentos e vinte e dois euros e quarenta e cinco cêntimos), a título de danos patrimoniais e € 600,00 (seiscentos euros), a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros legais, à taxa legal, contados desde a data da prolação da presente sentença até integral pagamento. E que no âmbito do Proc. nº 253/15.0T9BGC, por sentença de 11/02/2016, transitada em julgado em 14/03/2016, fora o arguido condenado pela prática, em 12/02/2015, de um crime de desobediência, p. e p. pelo Artº 348º, nº 1, al. b), do Código Penal, em conjugação com o Artº 11º, nº 1, als. c) e d), do Dec.-Lei nº 102/2000, de 2 de Junho, na pena de 110 dias de multa.
Concluindo, de seguida, que “todo o descrito percurso delitivo do requerente, em especial o cometimento de um crime de violência doméstica (...) e de um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada (...) é revelador de uma personalidade desconforme aos valores que o Direito Penal tutela, sendo ainda manifestação, inequívoca, de que o recorrente não possui “idoneidade” para deter e usar quaisquer armas de fogo”, e sublinhando que, “ao ter praticado os referidos crimes, o requerente demonstrou profundo menosprezo pelas regras da sociedade em que se encontra inserido, e revelou ainda manifesto desprezo pelo valor da dignidade humana (da ofendida), não sendo, nessa medida, pessoa idónea para ser detentor de uma arma de fogo.”.
Ou seja, perante aquelas condenações penais, com especial relevo para a condenação ocorrida nos autos principais, pela prática, pelo arguido, de um crime de violência doméstica e de um crime de violação de domicílio ou perturbação da vida privada, o tribunal a quo, basicamente, lançou mão da presunção de falta de idoneidade prevista no Artº 14º, nº 2, indeferindo a pretensão do arguido.
Porém, salvo o devido respeito, não podemos concordar com este entendimento demasiado restritivo do tribunal a quo, que não atentou devidamente em todos os elementos que os autos evidenciam para resolver a questão, sendo certo que tal presunção é ilidível, como claramente se extrai da redacção da norma em causa - "(...) é susceptível de indiciar falta de idoneidade (…)".
Trata-se, inclusivamente, como assertivamente se refere no recente acórdão da Relação do Porto, de 08/09/2021, proferido no âmbito do Proc. nº 405/07.6GBAND-A.P1, relatado pelo Exmo. Desembargador Jorge Langweg, disponível in www.dgsi.pt, “de uma inovação legislativa em face do regime legal anterior (Lei nº 22/97 de 27 de Junho), que previa no número 3 do seu artigo 1º que "Constituem crimes que, nos termos da alínea c) do número anterior, implicam a não concessão de licença: homicídio, homicídio qualificado, homicídio privilegiado, homicídio a pedido da vítima, incitamento ou ajuda ao suicídio, infanticídio, homicídio por negligência com uso de arma, ofensa à integridade física grave, ofensa à integridade física qualificada, maus tratos ou sobrecarga de menores, de incapazes ou do cônjuge, participação em rixa ou em motim, ameaça com arma de fogo, sequestro, escravidão, rapto, tomada de reféns, coacção sexual, violação, abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, abuso sexual de pessoa internada, tráfico de pessoas, lenocínio, abuso sexual de crianças, abuso sexual de adolescentes e dependentes, actos homossexuais com menores, lenocínio de menor, roubo, violência depois da subtracção, genocídio, discriminação racial, crimes de guerra contra civis, incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas, tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, substâncias explosivas ou análogas e armas, captura ou desvio de aeronave, navio ou comboio, atentado à segurança de transporte por ar, água ou caminho de ferro, associação criminosa, organizações terroristas e terrorismo.".
Tendo o legislador recuado “assim nessa opção legislativa, deixando de constituir efeito necessário de certas condenações penais a impossibilidade de concessão e renovação de licença de uso e porte de arma, correspondendo, aliás, à garantia constitucional prevista no artigo 30º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa, que se traduz na proibição de que à condenação em certas penas se acrescente, de forma automática, mecânica, e independentemente de decisão judicial, apenas por força da lei, a perda de quaisquer direitos civis, profissionais e políticos.”.
Resultando “do quadro legal acima exposto que a suscetibilidade de se mostrar indiciada a falta de idoneidade para a renovação da licença de uso e porte de arma requerida pela condenação do requerente pela prática de um crime terá, assim, de ser apreciada casuisticamente.”.
Devendo “tal idoneidade (...) traduzir-se na capacidade ou qualidade de alguém para ser titular de licença de uso e porte de arma e de quem se espera que, em caso de concessão, dela faça um uso correspondente aos fins legais.”.
Ora, no caso sub-judice, os únicos factos susceptíveis de poderem inviabilizar a pretensão do arguido, aos quais o tribunal a quo se ateve, são as duas condenações penais, supra mencionadas.
Porém, convém não olvidar que a condenação ocorrida âmbito do Proc. nº 253/15.0T9BGC, pela prática de um crime de desobediência, diz respeito a factos perpetrados há mais de seis anos, mais concretamente em 12/02/2015, tendo sido aplicada ao arguido uma pena de 110 dias de multa, a qual já se encontra extinta, como se alcança do CRC de fls. 4/6.
E que a condenação ocorrida no âmbito dos autos principais, pela prática de um crime de violência doméstica e de violação de domicílio, diz respeito a factos perpetrados há mais de cinco anos, mais concretamente em 19/03/2016, sendo certo que a pena de dois anos e 6 meses de prisão que foi aplicada ao arguido pelo primeiro desses crimes foi suspensa na sua execução, pelo mesmo período, o que significa que, já em 26/04/2017, data da prolação da respectiva sentença, o tribunal concluiu, certamente, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizavam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pressuposto ínsito no Artº 50º, nº 1, do Código Penal, para aplicação de tal instituto.
Ora, tendo já decorrido o período de suspensão fixado na aludida sentença condenatória sem que haja notícia da prática de novos crimes por banda do arguido, não existem elementos que permitam concluir que aquele juízo de prognose favorável se alterou, e que, para além do mais, o recorrente não reúne actualmente condições de idoneidade para que lhe possa ser concedida a pretendida licença de uso e porte de arma.
Acresce que, mau grado o arguido ter sido condenado, ainda no âmbito desse processo, na pena acessória de proibição de uso e porte de arma, nos termos do disposto no Artº 152º, nº 4, do Código Penal, pelo período de 2 anos e 6 meses, o certo é que, como se provou, o arguido “nunca teve quaisquer problemas ou incidentes relacionados com armas”.
Outrossim, há que salientar que, como se refere na decisão recorrida, o arguido se encontra “social e familiarmente integrado”, tendo, “noutros aspectos da sua vida, um comportamento conforme às regras de convivência social”, e que “possui capacidade técnica para usar armas de fogo”, sendo certo que, como também se provou, pratica desportivamente tiro aos pratos.
Nestas circunstâncias, entendemos que o tribunal a quo, na apreciação da vexata quaestio, relevando unicamente os antecedentes criminais do arguido, não atendeu devidamente à redacção das normas supra transcritas na sua globalidade, e bem assim às circunstâncias acabadas de expor, as quais, devidamente concatenadas, claramente apontam no sentido de se lhe reconhecer a idoneidade para a obtenção da licença de uso e porte de arma, nos termos requeridos.
Assim, sem necessidade de mais considerações, por despiciendas, impõe-se a procedência do recurso.

III. DISPOSITIVO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso interposto e, em consequência, revogam a decisão recorrida, reconhecendo ao recorrente J. C. condições de idoneidade em consonância com o disposto nos Artºs. 14º, nºs. 1, al. c), e 3, e 15º, nºs. 1, al. c), e 2, da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro.

Sem custas.

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos, contendo as assinaturas electrónicas certificadas dos signatários - Artº 94º, nº 2, do C.P.Penal)
*
Guimarães, 27 de Setembro de 2021

António Teixeira (Juiz Desembargador Relator)
Paulo Correia Serafim (Juiz Desembargador Adjunto)


1. Diploma ao qual pertencem todas as disposições legais a seguir citadas, sem menção da respectiva origem.
2. Todas as transcrições a seguir efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator.