Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6194/15.8T8BRG.G1
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
FUNDO DE RESOLUÇÃO
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: Os tribunais judiciais são materialmente incompetentes para apreciação de um litígio em que o autor pede a condenação solidária de duas instituições de crédito e do Fundo de Resolução a pagarem-lhe todos os valores que investiu na instituição de crédito intervencionada, bem como a indemniza-lo por todos os danos não patrimoniais que sofreu com a atuação dos demandados.
Decisão Texto Integral:
Sumário:
Os tribunais judiciais são materialmente incompetentes para apreciação de um litígio em que o autor pede a condenação solidária de duas instituições de crédito e do Fundo de Resolução a pagarem-lhe todos os valores que investiu na instituição de crédito intervencionada, bem como a indemniza-lo por todos os danos não patrimoniais que sofreu com a atuação dos demandados.
*

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I- Relatório
1- B instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra o BE, (...), A, (...) e o F, alegando, em breve resumo, que é emigrante na Suíça desde o ano de 2010, mas, ainda assim, teve a preocupação de constituir algum aforro em Portugal.
Para o efeito, no dia 03/02/2014, abriu uma conta de depósito irregular, que ficou sedeada numa agência do BE, em Braga.
Nessa sequência, no dia 24/02/2014, após um pequeno interrogatório e avaliação, foi-lhe atribuído, no BE, um perfil de “investidor não qualificado” e, uns dias mais tarde, a 27/02/2014, foi aconselhado, pela gestora responsável pelos clientes do BES residentes no estrangeiro, a investir em alegados depósitos a prazo denominados “Euro Aforro”.
Este produto foi-lhe apresentado como sendo um depósito a prazo, gozando das inerentes garantias e da isenção de risco assegurada pelo referido Banco. Além disso, foi-lhe também dito por funcionário da mesma instituição de crédito que as contas poupança especiais para emigrantes não residentes tinham a particularidade de estar abrangidas por um acordo com a administração tributária Suíça e Portuguesa, de modo a não se sujeitarem a dupla tributação, assim se logrando taxas de juros mais elevadas.
Pese embora tenha formação superior, não dispõe, todavia, de conhecimentos adequados a perceber este tipo de produtos financeiros, pelo que nunca pôs em causa as ditas informações.
Assim, em 24/02/2014, investiu 10.000,00€ num produto financeiro denominado “E” com o ISIN nº ..., pelo período de 12 meses, à taxa de 2,9%, tendo-lhe a sua gestora de conta assegurado que, tal como os outros, era um depósito a prazo, com capital garantido e sem qualquer risco.
Por não pretender aplicar todas as suas poupanças num único “depósito”, no mesmo dia constituiu um outro depósito “especial para emigrante” denominado por “E”, com o ISI nº ..., no valor de 5.000,00€, pelo período de 18 meses, à taxa de 3,25%, bem como constituiu um PPR “...” no valor de 5.000,00€, que depois aumentou para 8.000,00€.
Sucede que por força da medida de resolução que foi aplicada pelo BP (“...”) ao BE em 3 de Agosto de 2014, a sua conta nesta última instituição passou para o N, de que é único acionista o F.
Desde o primeiro momento que lhe foi garantido que o dinheiro que tinha depositado no BES não corriam qualquer risco, porque todas as responsabilidades tinham passado para o N. Este último, de resto, desenvolveu, inclusivamente, uma campanha propondo um acordo para ressarcir os clientes (“emigrantes”) de molde a recuperarem os montantes investidos nos supostos depósitos a prazo denominados Poupança Plus, Euro Aforro, Top Renda e EG Premium. Todavia, essa solução do N para os emigrantes consistia em transformar 60% destes depósitos em obrigações seniores e noutros depósitos, com vencimento em prazo que não concretizou, ficando 40% bloqueados por 5 anos. Não aceitou, por isso, esta proposta.
Acontece que se tivesse sido informado de que os seus investimentos e produtos financeiros comportavam um sério risco associado, por se tratarem, afinal, de ações preferenciais, jamais aplicaria um cêntimo nestes produtos.
Ora, com o anúncio da medida de resolução, passou a acompanhar a situação, mantendo contatos telefónicos com a sua gestora de conta, que, dias depois, o informou de que os seus investimentos estavam protegidos e tinham “passado” para o N, pelo que não havia razões para estar preocupado.
Ainda assim, quando a questionou sobre a possibilidade de resgatar os montantes investidos, foi-lhe dito que só o PPR estava disponível.
Quando, em Outubro de 2014, dirigiu uma mensagem, via net, ao N, no sentido de resgatar os depósitos que efetuara, abdicando dos rendimentos de juros, foi-lhe dito que através de deliberação de 14/08/2014 o BP recomendou ao N a não execução de qualquer operação de compra de ações preferenciais ou unidades de participação em veículos cujos ativos sejam constituídos por obrigações emitidas pelo BE, razão pela qual não poderia assegurar o resgate pretendido.
Sentiu-se, assim, e continua a sentir-se, de resto, enganado, triste e extremamente preocupado, pois tem receio de ter perdido todas as suas poupanças, fruto de vários anos árduos de trabalho, até porque quando o BE lhe prestou aquela errada informação que o levou à subscrição de ações preferenciais, bem sabia que não estava a propor depósitos a prazo com garantia de capital, bem como, acima de tudo, sabia que o BE e o G estavam já em grandes dificuldades financeiras.
Acresce que o N confessou a dívida quando lhe propôs a compensação através de depósitos, numerário e “transformação” de ações preferenciais em obrigações emitidas pelo próprio N.
Ainda assim, entende ter celebrado com o BE um contrato de depósito bancário e não qualquer contrato de intermediação financeira, que só seria válido se tivesse forma escrita.
Deste modo, e em suma, pede a condenação solidária dos RR. no pagamento da quantia de 10.000,00€, investida em “Euro Aforro 8”, acrescida de juros contratuais à taxa de 2,9 %; da quantia de 5.000,00€ investida em “Euro Aforro 8”, acrescida de juros contratuais à taxa de 3,25%, juros de mora vencidos entre 20/02/2015 e 28/08/2015 e vincendos até efetivo e integral pagamento, bem como no valor de 3.500,00€, a título de danos não patrimoniais.
2- Contestaram os RR., arguindo o F a incompetência absoluta, em razão da matéria, dos tribunais judiciais para conhecer do presente litígio. Isto, quer se encare a pretensão do A. sob o fundamento da responsabilidade contratual ou extracontratual.
Por isso, pede a sua absolvição da instância.
3- Contra esta pretensão manifestou-se o A., alegando, em suma, que o F atuou numa esfera de direito privado e como entidade pública empresarial.
Daí que não reconheça aquela exceção.
4- Terminados os articulados, foi proferida sentença que declarou o tribunal materialmente incompetente para conhecer do pedido formulado pelo A. e absolveu os RR. da instância.
5- Discordando desta decisão, dela interpôs recurso o A., terminando as suas alegações recursivas concluindo o seguinte:
“A- Em 28 de dezembro de 2015, o recorrente intentou contra “BE”, “Agência do NB, ” e “F” ação declarativa comum em que peticionou a condenação dos réus no pagamento da quantia de € 10.000,00 investido em “Euro Aforro 8”, acrescida de juros contratuais à taxa de 2,9 %; da quantia de € 5.000,00 investida em “Euro Aforro 8”, acrescida de juros contratuais à taxa de 3,25%, juros de mora vencidos entre 20/02/2015 e 28/08/2015 e vincendos até efectivo e integral pagamento, bem como no valor de € 3.500,00 a título de danos não patrimoniais.
B- Por força daquela medida de resolução decretada por deliberação do BP, em 3 de agosto de 2014, a relação jurídica contratual entre o recorrente e o BE foi transferida para o N, a par de um conjunto de ativos, passivos e elementos extra patrimoniais, operando uma verdadeira sucessão de direitos e obrigações.
C- O R. F é o único accionista do R. N.
D- Vem o presente recurso de apelação interposto da decisão proferida pelo tribunal a quo que declarou verificada a exceção de incompetência material deste tribunal e a consequente absolvição dos réus da instância, nos termos do n.º 1 do art. 99.°; al. a) do n.º 1 do art. 278.°; nºs 1 e 2 do art. 576.°; al. a) do art. 577 e 578.°, todos do Código de Processo Civil.
E- Á exceção da incompetência material encontra-se subjacente a tese da incompetência material do tribunal a quo para conhecer do mérito da causa, porquanto o R. F (doravante “F”) é pessoa colectiva de direito público e que, por esse motivo, estaria sujeito à jurisdição administrativa.
F- Pese embora a natureza do Réu na ação, enquanto pessoa coletiva de direito público, tal não impede que a mesma pratique ou desenvolva relações jurídicas no âmbito do direito privado.
G- Alegou, em sede de p.i., o A. que o F, enquanto único acionista do R. N e responsável máximo pelas relações jurídicas e pelos prejuízos da sub-reptícia cessão de créditos, deve ser condenado, a título subsidiário, no pagamento dos depósitos que aquele tinha junto do BE.
H- Sendo o F o seu único acionista e não podendo aquele (N) assumir a responsabilidade pelo ressarcimento dos valores reclamados pelo recorrente, em virtude da deliberação do BP datada de 29/12/2015, em última ratia seria o seu único acionista (F) a assumir essa responsabilidade, à luz do que sucede no Código das Sociedades Comerciais.
1- A causa de pedir, consubstanciada em factos suscetíveis de produzirem o efeito jurídico que este pretende, i.e. que sejam admitidos e considerados como depósitos dinheiro que tinha junto do BES, não se mostra afetada pelo teor das deliberações, enquanto limitação na transmissibilidade de responsabilidades do BE para o N, pelo que a responsabilidade do BE transmitiu-se, por esta via, para o 2.º Réu, N, nada obstando, portanto, à legitimidade passiva tanto do BE como do N.
J- O Tribunal a quo assenta, outrossim, a sua decisão de se julgar materialmente incompetente no facto de o pedido dirigido ao F (doravante “F”) não estar autonomizado dos demais.
K- A este propósito afirma o aresto que “(. . .), caso o autor tivesse optado por dirigir um pedido autónomo ao Fundo de Resolução, coligado com o BE e o N, sempre haveria de ter-se por ilegal a coligação - n° 1 do art. 37° do CPC - , cabendo-lhe optar pelo(s) pedido(s) que pretendesse ver apreciado(s) nestes autos, sob pena de absolvição da instância de todos os réus - n° 1 do art. 38° do CPC.
Tendo, contudo, formulado um pedido apenas contra todos os réus, em regime de solidariedade, incontornável se torna a contaminação da incompetência deste tribunal quanto ao pedido dirigido ao BE e ao N, já que nos termos do n° 2 do referido art. 4° do ETAF «[p]ertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos».
Ora, sendo embora muito questionável esta solidariedade (já que o Fundo apenas responderá pelo maior prejuízo causado), o certo é que o autor configurou a acção desse modo, não deixando grandes opções ao tribunal na apreciação da competência material.”
L- A competência tem de se aferir pelos termos da relação jurídico- processual tal como foi apresentada em juízo, havendo que atender ao pedido e especialmente à causa de pedir, tal como o autor (aqui recorrente) o formula.
M- O fundamento dessa responsabilidade advém do facto de o F, enquanto entidade de direito público, ser a detentora do capital social de um banco, pelo que atua no âmbito das suas atribuições como acionista e não enquanto atribuição de direito público, que lhe estão legalmente cometidas.
N- Com efeito, o recorrente, ao invés do que o Tribunal a quo defende não foi afectado nos seus direitos pelo F, mas sim por decisões ou atas do BP.
0- Não estamos no âmbito de um litígio emergente de relações jurídico-administrativas (art. 1° do ETAF) e decorrentes das mesmas, pelo que não tem aplicação o critério disposto no art.° 4 do mesmo corpo de normas (ETAF).
P- O recorrente não assaca responsabilidade ao R. F, em primeira linha, pelas deliberações de 3 de agosto de 2014 e de 29 de dezembro de 2015, nem lhe imputa responsabilidade pela “cessão de créditos” operada por via da resolução do BE. Imputa-lhe sim responsabilidade por devolver os investimentos do A., aqui recorrente, enquanto parte do acervo patrimonial, decorrente da cessão de créditos, do qual pode, subsidiariamente ser responsável (quando o R. N não o for) pelo simples facto de ser seu único acionista.
Q- O aqui recorrente apresentou, juntamente com outros credores, uma ação administrativa comum pedindo a declaração de nulidade da deliberação do BP proferida em 29/12/2015, processo que corre termos na 3ª Unidade Orgânica, do Tribunal Administrativo de Círculo, sob o nº ...
R- Concluiu, erradamente no nosso entendimento, que a decisão aqui em análise estando a natureza da presente causa atribuída, por disposição legal, a tribunal de outra ordem jurisdicional, designadamente aos tribunais administrativos, o Tribunal a quo é materialmente incompetente para conhecer a presente ação.
S- O tribunal a quo poderia, sem qualquer desrespeito pelo regime da solidariedade, julgar procedente a exceção de incompetência material do tribunal, o que implicaria, nos termos do art. 99°, n.º 1 do CPC - somente - a absolvição do réu FdR da instância (no mesmo sentido, vide o art. 577°, al. a) e 576°, n.º 2 do CPC) .
T- A responsabilização do F pelas dívidas do banco diretamente perante os credores só poderia ocorrer dentro de pressupostos muito precisos (que salvo melhor entendimento não estão sequer alegados - vide pontos 1.28 e 1.29 da petição.
U- A responsabilização de acionistas ou de administradores (não sendo o FdR administrador pelos atas das sociedades de que são acionistas ou administradores estão sujeitas a pressupostos legais não alegados (vide, no âmbito do Código das Sociedades Comerciais, o disposto no art. 78° - responsabilização direta dos administradores perante os credores sociais).
V- Ainda que se demonstrasse a factualidade alegada a respeito do F, a mesma não permite a condenação do aqui recorrido em causa.
W- A causa de pedir tem natureza fundamental no âmbito de uma ação declarativa, na medida em que a mesma delimita o objecto da causa - por referência ao pedido formulado -, a iniciativa processual e a própria conformação do processo.
X- Para se estar perante ineptidão por falta de causa de pedir é necessário uma total ausência dos factos que servem de base, de fundamento à pretensão ou uma total omissão de factos susceptíveis de preencherem a previsão do facto jurídico de que procede a pretensão do autor. In casu, e salvo devido respeito por opinião contrária, existe essa ausência de factos.
Y- Apesar da contestação do réu F, não estamos perante um caso que seja integrável no art. 186°, n.º 3 do CPC porque entendemos que a ausência de factos principais é tal que não é suprível.
Z- Assim, não tendo sido invocados factos que fundamentem o pedido tal como foi formulado, temos de concluir que a petição é, nesta parte, inepta. Ineptidão que constitui excepção dilatória que impede, nesta parte, o conhecimento do mérito da causa, conduzindo à absolvição da instância do réu em causa (arts. 1°, n.º I, al. a), 576°, n.º 2 e 577°, al. b), todos do CPC).
AA- O Tribunal a quo considerou que da factualidade que supra se expôs e que resulta tão só dos artigos 1.28 e 1.29 da petição inicial - para efeitos de responsabilização do F -, “Seria este o enquadramento possível para a pretensão do ora autor quanto ao Fundo de Resolução: a entender-se que o seu crédito não estava transferido para o N, teria o mesmo, sobre o F, uma pretensão indemnizatória pelo maior prejuízo criado com a medida de resolução (sendo que, não sabendo da existência desse maior prejuízo, sempre teria que pedi-lo condicionalmente).”
BB- O A., aqui recorrente, - mau grado aqui ter de o reconhecer - não alegou ou aduziu factualidade suficiente e idónea a produzir os efeitos jurídicos pretendidos, i.e. que o F fosse, em última análise, responsabilizado pela “cessão de créditos” operada por via das deliberações de uma entidade terceira, ou seja, o Banco de Portugal, que pudesse levar o tribunal a considerar que o F pudesse ser condenado (na parte que lhe competia) pelos maiores prejuízos decorrentes da resolução face àqueles em que o A. e todos os credores poderiam ter de suportar perante um cenário de liquidação.
CC- Salvo melhor entendimento, esta conclusão que o Tribunal a quo extraiu e na qual, outrossim, fundamentou o seu juízo para determinar a incompetência material do Tribunal, por referência quer à causa de pedir quer ao pedido, é claramente violadora do princípio do dispositivo, enquanto princípio basilar relativo à prossecução processual que faz recair sobre as partes o dever de formularem o pedido e de alegarem os factos que lhe servem de fundamento – artº 5° do CPC.
DD- Deve, por conseguinte, considerar-se que o Tribunal a quo violou, com a sua decisão, o princípio do inquisitório, consagrado no art. 5° do CPC o que aqui se invoca para os devidos e legais efeitos”.
Termina, assim, pedindo que se conceda provimento ao presente recurso e se revogue a sentença recorrida, reconhecendo os tribunais judiciais como materialmente incompetentes para apreciação da sua pretensão.
6- Responderam os RR., N e o F, pugnando pela confirmação do julgado.
7- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la:
*
II- Mérito do recurso
1- Definição do respectivo objecto
Este objecto, como é sabido, é, em regra e ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (artigos 608.º, n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º1, do Código de Processo Civil).
Assim, observando este critério no caso presente, o objecto do recurso em apreço reconduz-se apenas à questão de saber se os tribunais judiciais são materialmente competentes para conhecer e dirimir o presente litígio.
*
2- Baseando-nos nos factos descritos no relatório supra exarado - que são os únicos relevantes para o efeito -, vejamos, então, como solucionar esta questão:
Importa começar por ter presente que a mesma só surge porque a função jurisdicional está, entre nós, repartida por diferentes tribunais. Além do Tribunal Constitucional, existem outras categorias de tribunais que atuam em função da competência que a lei lhes atribui. Mas, na distribuição dessa competência, vigora este princípio: “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” – artigo 211.º, n.º 1, da CRP, e artigo 40.º da Lei da Organização Judiciária (LOJ), aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto.
A competência dos tribunais judiciais é, assim, residual Como se refere no sumário do Ac. RC de 03/11/2009, Processo n.º 250/07.9TBPNH-B.C1, “A competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual”..
De modo que, neste contexto, a primeira questão a averiguar é a de saber se não é outra a ordem jurisdicional competente para apreciar este litígio; ou, mais especificamente, a jurisdição administrativa, como se decidiu na sentença recorrida.
Pois bem, para a resolução desta questão é indispensável o confronto entre duas realidades diversas: por um lado, o objeto deste processo e as partes nele envolvidas; e, por outro, as normas legais que delimitam da competência dos tribunais administrativos.
Quanto ao primeiro aspeto, é sabido que “[a]o propor a ação, o autor formula o pedido, determinado formalmente pela providência requerida e materialmente pela afirmação duma situação jurídica, dum efeito querido ou dum facto jurídico e fundado, de acordo com a imposição da substanciação, assim conformando o objeto do processo” José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais, 2ª edição Reimpressão, Coimbra Editora, pág. 142.. E é, justamente, essa conformação, acompanhada da identidade das partes, que serve de primeira referência ao estabelecimento do nexo de competência material. Este nexo, na verdade, como é jurisprudência pacífica, “deve ser aferido em função da pretensão deduzida, tanto na vertente objetiva, conglobando o pedido e a causa de pedir, como na vertente subjetiva, respeitante às partes, tomando-se, pois, por base a relação material controvertida tal como vem configurada pelo autor” Ac. STJ de 13/10/2016, Processo n.º 30249/14.2YIPRT.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
Ora, no caso presente, o A., imputando uma responsabilidade solidária aos RR., por virtude do incumprimento contratual e extracontratual dos mesmos, ainda que diferenciadamente e nem sempre de modo cumulativo, deles pretende reaver as quantias que investiu em produtos financeiros que subscreveu junto do BE, bem como ser indemnizado pelos danos não patrimoniais que lhe causaram a indisponibilidade daqueles primeiros montantes e os referidos incumprimentos.
Sucede que, como decorre do disposto no artigo 4.º, n.º 1, al. f), do ETAF, compete, por regra, à jurisdição administrativa a apreciação dos litígios que tenham por objeto questões relativas a “[r]esponsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional…” – artigo 4.º, n.º 1, al. f), do ETAF Dissemos, por regra, porque o preceito transcrito ressalva as hipóteses previstas no seu n.º 4, al. a)..
E, nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 2, do mesmo diploma, pertence também “à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade”.
Ora, no caso presente, é inequívoco, por um lado, que o A., como vimos, assaca aos RR. uma responsabilidade solidária - e não subsidiária como agora, nas suas alegações de recurso, pretende fazer crer – e, por outro, que o Fundo de Resolução é, claramente, uma entidade pública. O artigo 153.º-B, n.º 1, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras [RGICSF], na redação que lhe foi dada pelo Decreto- Lei n.º 31-A/2012, de 10 de fevereiro, e artigo 2.º do Anexo à Portaria n.º 420/2012, de 21 de dezembro [Regulamento do Fundo de Resolução], textualmente o referem, quando estabelecem que aquele Fundo é “ pessoa coletiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira”.
Além disso, em relação ao Fundo de Resolução, é ainda inequívoco que o A. com ele não estabeleceu, na sua própria versão, qualquer relação contratual. O que implica, necessariamente, a vontade de responsabilizar aquele R. com base na responsabilidade extracontratual. Aliás, o A. reconhece-o ao afirmar que o único acionista do N, S.A., ou seja, o F, é, devido à medida de resolução tomada pelo Banco de Portugal, “o responsável máximo pelas relações jurídicas confiscadas e pelos prejuízos derivados dessa sub-reptícia “cessão de créditos”” (ponto 1.29, da petição inicial). O fundamento dessa responsabilidade, pois, como sustenta, agora o Apelante (clª. M), “advém do facto de o F, enquanto entidade de direito pública, ser a detentora do capital social de um banco…”.
Mas, essa posição, ao contrário do sustentado pelo Apelante, não o transforma, só por isso, “em acionista sujeito às regras do direito civil ou comercial, mas sim, enquanto pessoa coletiva de direito público, com base em atos de direito administrativo – cfr. normas citadas na sentença recorrida (…), quanto à sua criação e normas que o regem, designadamente os artigos 153.º e 154.º do RGICSF, bem como as deliberações do BP que o sustentam, todas elas tipicamente de direito administrativo, estabelecendo-se nelas a disciplina de relações jurídicas administrativas, das quais são sujeitos obrigatórios o F e o BP” Acórdão deste Tribunal da Relação, de 26/01/2016, Processo n.º 1358/16.5T8BRG.G1, do qual dois dos membros deste coletivo foram subscritores.
.
De resto, o Fundo de Resolução disponibiliza os recursos determinados pelo BP, para efeitos da aplicação de medidas de resolução, mas fica como credor da instituição participante, que seja objeto da medida de resolução, no montante correspondente a esses recursos e beneficiando de privilégios creditórios que a lei lhe reconhece (artigo 153.º-M, n.ºs 1 e 2 do RGICSF).
Mais: após a devolução dos montantes determinados pelo BP, se houver remanescente do produto da alienação, é o mesmo devolvido à instituição de crédito originária ou à sua massa insolvente, caso aquela tenha entrado em liquidação, e nunca ao F (artigo 145.º -I, n.º 4, do RGICSF).
Bem se vê, assim, quanto o F está afastado da categoria de acionista que vigora no direito comercial. O seu papel limita-se a prestar apoio financeiro à aplicação de medidas de resolução adotadas pelo BP e desempenhar todas as demais funções que lhe sejam conferidas pela lei no âmbito da execução de tais medidas, e não propriamente a colher dividendos das instituições intervencionadas (artigo 153.º-C do RGICSF).
De modo que, por todas as razões já apontadas, não há como sustentar que os tribunais judiciais são materialmente competentes para a apreciação do presente litígio.
O Apelante, de resto, parece, nalguma medida, reconhecê-lo, ao pretender fazer vingar a tese de que o tribunal recorrido devia ter excluído o F desta demanda. Seja através da consideração de que o pedido contra este R. é subsidiário, seja mesmo pelo reconhecimento de que a petição inicial por ele próprio apresentada é inepta, por ausência de fundamentos que permitam a responsabilização desse mesmo R.
Mas, como é bom de ver, e resulta do já exposto, nenhuma destas razões pode ser acolhida.
A primeira, porque, como já vimos, se traduz numa completa distorção da pretensão apresentada pelo A., que peticionou a condenação solidária (e não subsidiária) de todos os RR.
E, a segunda, porque, como também já vimos, é o próprio A. que, além de indicar na petição inicial as razões para a demanda do F, continua a insistir neste recurso que a responsabilização deste R. “advém do facto de o F, enquanto entidade de direito pública, ser a detentora do capital social” do NB.
Além de contraditória, pois, esta argumentação recursiva é, de todo, improcedente.
Daí que a sentença recorrida seja de manter em vigor na ordem jurídica.
*
III- DECISÃO
Pelas razões expostas, acorda-se em negar provimento ao recurso em apreço e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida.
*
- Porque decaiu na sua pretensão, as custas de ambas as instâncias serão suportadas pelo Apelante - artigo 527º nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.