Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
16/15.2GEVCT.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: GRAVAÇÃO ILÍCITA
FOTOGRAFIA ILÍCITA
DIREITO À IMAGEM
FOTOGRAFIAS PUBLICITADAS NO FACEBOOK
FALTA DE VONTADE DA PESSOA RETRATADA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: I – O direito à imagem, enquanto direito fundamental e autónomo, tem consagração constitucional, como decorre do estatuído no art. 26º, nº 1, da CRP, sendo imprescindível o recurso ao art. 79º, do C.C. para delimitação do seu respectivo âmbito, e o art. 199º, nº 2, do Cód. Penal, protege esse direito, na vertente do direito de uma pessoa recusar a exibição/exposição da sua imagem em público, sem o seu consentimento, por ser reflexo da sua identidade pessoal, como bem jurídico pessoal, correspondente a uma expressão directa da personalidade.
II - Atenta a abrangência deste direito, deve perfilhar-se o entendimento de que o tipo objectivo do tipo de crime em presença consiste no registo fotográfico ou audiovisual da imagem de qualquer parte do corpo de outra pessoa ou na sua utilização ou permissão de utilização dessas imagens por terceiro.
III - Assim, é subsumível à norma em apreciação [art. 199º, nº 2 b)] e, por isso, punível o comportamento do arguido que, em “perfis” falsos que criou no “facebook”, abertos ao público, com o nome “D…P… Nua”, ali postou duas fotos, em que se vêem, numa, as pernas e, noutra, parte do corpo da assistente captada numa altura em que esta estava a tomar banho, estando a identificabilidade da mesma assegurada pela indicação do respectivo nome, não obstante não constar nelas a sua cara, por se traduzir no uso de fotografias de outra pessoa (publicitadas no “facebook”), contra a vontade da pessoa retratada.
IV - À semelhança de outros bens jurídicos correspondentes a liberdades fundamentais e de estrutura axiológico-normativa idêntica, também o direito à imagem se analisa numa dimensão positiva e numa dimensão negativa ou exclusiva: a total liberdade e legitimidade do concreto titular para, sem restrições, tanto autorizar como recusar o registo e o uso da sua própria imagem, assistindo-lhe, na expressão plena desse direito, o poder de decidir quem pode, não apenas registar, mas também utilizar ou divulgar a sua imagem.
V – Por isso, deve conferir-se completa autonomia entre os dois actos susceptíveis de ofender o direito à imagem: o de a registar, que até pode ser lícito, nomeadamente por ter o consentimento da pessoa retratada; outro, bem diferente, o da sua posterior utilização/divulgação contra a vontade do retratado. Ora, diferentemente do que sucedia na vigência da versão originária do C. Penal de 1982 [art. 179º (que visava a conduta do agente que, «sem justa causa e sem consentimento de quem de direito», utilizasse fotografias, «indevidamente obtidas»)], é punível o uso de fotografias, contra a vontade do retratado, ainda que licitamente obtidas, designadamente por terem sido colhidas pelo próprio retratado. Reconhece-se, hoje, a necessidade da especial protecção jurídico-penal a esta faceta do direito à imagem, que, aliás, cada vez mais se acentua perante a enorme danosidade gerada pela potencial utilização das novas tecnologias na sua afronta, como no caso concreto sucedeu.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

No processo comum singular nº 16/15.2GEVCT da Instância Local, Secção Criminal, da Comarca de Viana do Castelo, o arguido (…) foi julgado e condenado por decisão proferida e depositada em 18/02/2016, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de 5 euros, pela prática, em autoria material, de um crime de gravações e fotografias ilícitas, p. e p. pelo art. 199º, nº 2, alínea b), do C. Penal.
*
Inconformado com a referida decisão, o arguido interpôs recurso, formulando na sua motivação as seguintes conclusões:
«I - Os factos dados como provados não permitem sustentar a imputação ao arguido do crime previsto e punido no artigo 199º, nº 2, alínea b), do Cód. Penal.
II - As fotografias aludidas no item 3º dos factos provados não permitem identificar a pessoa retratada: na primeira fotografia, apenas se consegue visualizar as pernas da pessoa fotografada; na segunda fotografia apenas é possível vislumbrar um braço.
III - O direito à imagem, enquanto representação que a pessoa transmite para o exterior, é-nos dado primacialmente pelo rosto ou semblante da pessoa, pois que é isso que a identifica, que permite distingui-la dos demais e que outros também o façam.
IV - O direito à imagem inclui também as partes destacadas do corpo da pessoa, para além do rosto (o cabelo, as mãos, os dentes), desde que, naturalmente, por essas partes destacadas se possa reconhecer a pessoa objeto da imagem.
V – As fotografias em causa nos autos não permitem identificar quem é a pessoa nelas retratada, nem, sequer, se essas fotografias dizem respeito à mesma pessoa.
VI - A publicação dessas fotografias não pode ser considerado como ofensa ao bem jurídico “direito à imagem” da assistente, que nenhum dano ou lesão sofreu por não ser possível identificá-la como a pessoa nelas visada.
VII - Fica assim excluída a tipicidade da conduta imputada a arguido, o que impõe, consequentemente, a absolvição do arguido pela prática do crime.
VIII – Acresce que, a alínea b), do nº 2, do artigo 199º do Cód. Penal reporta-se às fotografias “(referidas) na alínea anterior”, ou seja, às fotografias de “outra pessoa”, exigindo-se, em qualquer dos casos, que a captação da fotografia e / ou a sua utilização tenha ocorrido contra a vontade do visado.
IX - A letra e o espírito da norma incriminadora dizem-nos que a utilização da fotografia pré-existente apenas tem relevância criminal caso essa fotografia tenha sido captada ou tirada contra a vontade do visado.
X - Isso mesmo nos é inculcado pela remissão da alínea b) para a alínea a), que se reporta às fotografias de “outra pessoa”, estando assim excluídos da factualidade típica os casos em que alguém se fotografa a si próprio (por não se tratar de fotografia de “outra pessoa”), não sendo também típica a utilização dessa fotografia, ainda que contra a vontade do retratado.
XI - No caso dos autos, não se apurou quem tirou as fotografias (a assistente, o arguido ou qualquer outra pessoa) e / ou se essas fotografias foram tiradas com ou sem o consentimento da assistente, pelo que não se pode considerar a sua posterior utilização como tipicamente relevante, à luz da letra e do espírito contido na norma incriminadora.
XII - Pelo exposto, os factos provados não permitem subsumir a conduta imputada ao arguido à factualidade típica do crime de gravações e fotografias ilícitas, previsto e punido no artigo 199º, nº 2, alínea b), do Cód. Penal, pelo que o arguido deve ser absolvido da prática desse crime.
Conclui que «deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, revogando-se, na sequência, a douta sentença recorrida e substituindo-a por uma outra decisão que absolva o arguido do crime pelo qual vem condenado, com as legais consequências.».


O Ministério Público apresentou resposta à motivação, pugnando pela improcedência do recurso, alegando em suma, que a decisão proferida está devidamente fundamentada, não padece de qualquer contradição entre si, nem mesmo com a solução jurídica acolhida, limitando-se o recorrente a contrapor a sua convicção à convicção formada pelo tribunal a quo sem que lhe assista, todavia, qualquer razão em qualquer das situações elencadas.
Neste Tribunal, a Exma. Sra. Procuradora-Geral adjunta emitiu douto parecer sustentando que o recurso deve ser julgado improcedente, por se encontrarem verificados todos os elementos que integram a tipicidade do ilícito.
Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP.
*
Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (arts. 403º e 412º, nº 1, do CPP), sem prejuízo das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, no recurso suscita-se a questão de saber se a factualidade provada não contêm todos os elementos integrantes do ilícito por cuja autoria o arguido foi condenado.
Importa apreciar tal questão e decidir. Para tanto, deve considerar-se como pertinentes ao conhecimento do objecto do recurso os factos considerados provados na decisão recorrida e respectivo enquadramento jurídico (transcrição):
«1- O arguido teve uma relação de namoro com a assistente, (…), entre Novembro de 2013 e Novembro de 2014, relação que decorreu normalmente;
2- Após o termo da relação, arguido e assistente trocaram mensagens entre si, através dos respectivos telemóveis;
3- O arguido criou perfis no facebook, com o nome “(…) Nua”, ali postando duas fotos, uma em que se vêem as pernas da assistente e outra parcialmente o corpo desta (cfr.fls.93 e 94, aqui dadas por reproduzidas), numa altura em que estava a tomar banho;
4- Estes perfis estavam abertos ao público, podendo ser vistos por um número indeterminado de visitantes;
5- O arguido detinha as fotos pertencentes à assistente e referidas em 3.;
6- Numa publicação do Facebook do próprio arguido, o mesmo enviou para a assistente, em 8-1-2015, a foto do chuveiro e comenta a mesma: «é para tu veres que não sou mentiroso, pois o meu nome é (…) xd, isto é um cheirinho» (cfr. fls.93 e 94 (55/56), que aqui se dão por reproduzidas);
7- O arguido publicou as fotos do modo supra descrito, bem sabendo que não estava autorizado pela assistente a fazê-lo e que agia contra a sua vontade, querendo colocar publicamente em causa o seu bom nome, honra e reputação pessoal;
8- Bem como criou do modo referido vários perfis como se fosse a ofendida a autora, sendo na realidade criados pelo arguido com o nome daquela e com a palavra “nua”, de forma a criar mais curiosidade nas redes sociais, onde postou as fotos supra referidas;
9- Agiu o arguido de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por lei;
10- A assistente postou no seu próprio perfil do facebook a fotografia que consta de fls.192, que aqui se dá por reproduzida;
11- O arguido não tem antecedentes criminais;
12- É considerado pelas pessoas das suas relações como bem comportado, educado, pacato e respeitador;
13- É o mais novo de dois irmãos e o único que ainda integra o agregado familiar de origem, constituído pelo pai, de cinquenta e cinco anos de idade, que é pensionista, e pela mãe, de quarenta e dois anos de idade, que está inactiva/doméstica; o agregado tem uma dinâmica relacional coesa, afectuosa e vinculativa, sobressaindo os laços de entreajuda e o espirito de grupo;
14- Neste momento, e após dois namoros posteriores à relação com a assistente, ambos terminados no ano de 2015, o arguido não assumiu qualquer relacionamento afectivo;
15- Vive com os pais, num apartamento de habitação social, com condições de habitabilidade;
16- O arguido completou o 12º ano de escolaridade na ETAP de Viana do Castelo, com a frequência de um curso profissional de multimédia e estágio profissional numa Rádio local; aguarda a sua integração num novo curso de formação para o qual foi encaminhado pela Equipa do Protocolo do RSI de Darque, com o objectivo de o qualificar para outras áreas de trabalho e diversificar as perspectivas de integração laboral futura;
17- Completou a sua formação profissional em 2014 e, desde então, tem realizado acções de procura activa de emprego, sem sucesso;
18- O arguido não tem rendimentos pessoais e o agregado conta com 274,13 euros mensais (referentes à pensão do pai no valor de €219,95 e RSI do agregado no valor de €54,37); as despesas do arguido são assumidas pelos seus pais;
19- A família vive em situação de pobreza, mesmo estando a beneficiar apoio complementar não regular atribuído em géneros alimentares;
20- O arguido está integrado numa família de condição socioeconómica bastante carenciada, que sobrevive em condições limite e com recurso a apoios sociais, com uma dinâmica relacional coesa e vinculativa.
*
Factos não provados:
- Não provado que tenha sido a assistente a pôr termo à relação referida em 1. e que o arguido não o tenha aceite;
- Não provado que a partir de Janeiro de 2015, através do número de telemóvel …, o arguido tenha começado a mandar mensagens para a ofendida (…), dizendo que tinha imagens dela nua, dando a entender que as tornaria públicas;
- Não provado que a ofendida tenha ido respondendo às mensagens, com intuito de verificar a veracidade da alegação e na tentativa de o demover;
- Não provado que o não tenha conseguido, que o arguido quisesse reatar o namoro, e que aquela a tal não tenha acedido;
- Não provado que em 11-1-2015 o arguido tenha mandado a seguinte mensagem, entre outras, à ofendida: «só pensas em sair e tal. Dps dizes qu és mulher, Mulher de merda só se for. Hey d acabar com atua reputação carago e tu sabes bem como. Tenho como fazê-lo»;
- Não provado que no dia seguinte o arguido tenha insistido para a ofendida estar com ele e que aquela não tenha acedido;
- Não provado que o arguido, aquando dos factos referidos em 3., tenha postado outras fotos falsas, com recurso a montagens;
- Não provado que só o arguido detivesse as fotos referidas em 3.».
*
Fundamentação de direito:
(…)« Atentas tais considerações e apreciando os factos apurados temos que a conduta do arguido preenche a tipicidade objectiva e subjectiva do tipo de crime do art.199º, nº.2 do C.P., por referência à sua al.b) e não já à al.a).
É que desde logo e quanto a este último normativo (al.a)) temos que se não apurou que o arguido tenha fotografado ou filmado a assistente contra a sua vontade.
Mas, por outro lado, da matéria de facto provada decorre que o arguido utilizou as fotografias da assistente aludidas em 3., postando-as nos perfis falsos que criou no facebook, o que fez contra a vontade e sem o consentimento da assistente (e ainda que possam ter-se tais fotografias como licitamente obtidas). E fê-lo de forma deliberada, livre e consciente, ciente da censurabilidade destas suas condutas.
Assim e quanto ao crime do art.199º, nº.2, al.b) do C.P., concluímos pela sua imputação ao arguido, em autoria material e com dolo directo (cfr.arts.26º e 14º, nº.1 do C.P.).».
*
A tipicidade do crime de gravações e fotografias ilícitas.
Defende o recorrente que não se encontram preenchidos os elementos objectivos, do tipo legal de crime pelo qual foi condenado, pois, se por um lado, as fotografias em causa não permitem identificar a pessoa retratada por outro lado, não se apurou que a sua utilização tenha ocorrido contra a vontade do visado.
Averiguemos, então, se se mostra, ou não, correctamente efectuada a subsunção jurídica levada a cabo pelo tribunal de 1ª instância.
O arguido/ recorrente foi condenado pela prática de um crime de gravações e fotografias ilícitas, contemplado no art. 199º, do Cód. Penal, que dispõe:
«1- Quem, sem consentimento:
a) Gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou
b) Utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas na alínea anterior mesmo que licitamente produzidas;
é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.
2- Na mesma pena, incorre quem, contra a vontade:
a) Fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou
b) Utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtido».
Cuidando o nº 1, do direito à palavra falada e no nº 2, do direito à imagem.
No caso, tendo em conta a factualidade provada, encontramo-nos perante uma situação susceptível de ser enquadrada no âmbito do nº 2, cujo bem jurídico protegido é o direito à imagem, na vertente do direito a não ver o seu retrato exposto em público.
O direito à imagem, enquanto direito fundamental e autónomo, tem consagração constitucional, como decorre do estatuído no art.º 26º, nº 1, da CRP, sendo imprescindível o recurso ao art. 79º, do C.C. para delimitação do seu respectivo âmbito.
Este último preceito estabelece:
«1. O retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela; (…).
2. Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente.
3. O retrato não pode, porém, ser reproduzido, exposto ou lançado no comércio, se do facto resultar prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro da pessoa retratada.».
Jorge Miranda e Rui Medeiros ( In “Constituição Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 2005, p. 289/290.) defendem que os direitos fundamentais em causa consistem num direito à «reserva e à transitoriedade». No mesmo sentido, Costa Andrade ( In “Liberdade de imprensa e inviolabilidade pessoal, uma perspectiva jurídico-criminal”, Coimbra Editora, 1996, p. 131/132.), sustenta que «(…) a imagem configura um bem jurídico eminentemente pessoal, com a estrutura de uma liberdade fundamental, que reserva à pessoa uma posição de domínio. É à pessoa que assiste, e em exclusivo, o direito de determinar quem pode gravar, registar, utilizar ou divulgar a sua imagem. O direito à imagem emerge nesta linha como expressão concretizada da autonomia pessoal»
O Prof. Costa Andrade ( In Comentário Conimbricense do Código Penal.) anota que o art. 199º do C. Penal protege o direito à imagem como bem jurídico pessoal, correspondente a uma expressão directa da personalidade.
E referiu-se no acórdão da RE 29/05/2012 ( P. 253/07.3 JASTB.E1 - Martinho Cardoso.): «Trata-se de um bem jurídico eminentemente pessoal com a estrutura de uma liberdade fundamental e que reconhece à pessoa o domínio exclusivo sobre a sua própria imagem
Penalizam-se, assim, condutas cuja ilicitude resulta da sua concretização contra a vontade da pessoa a quem respeita a fotografia ou a filmagem ou a utilização ou permissão de utilização das mesmas, atentando contra o direito de qualquer pessoa a não ser fotografada nem ver o seu retrato exposto em público, contra a sua vontade, ainda o direito de não se ver apresentado em forma gráfica ou montagem ofensiva e malevolamente distorcida ou infiel.
Na verdade, toda a pessoa tem a faculdade de recusar a exibição/exposição da sua imagem por ser reflexo da sua identidade pessoal, ninguém pode ser exposto sem o seu consentimento. No caso de ser permitido o uso de uma fotografia ou de uma gravação, elas têm de ser empregues com todo o rigor e a autenticidade que merecem, não podendo ser descontextualizadas nem alteradas. Esta solução vale também, para os casos em que não sejam admitidas as suas utilizações ( Cfr. Vanessa Vicente Bexiga in «O direito à imagem e o direito à palavra no âmbito do processo penal» (in VV Bexiga - 2013 - repositorio.ucp.pt.), que acentua neste estudo: «o ritmo acelerado das descobertas das novas tecnologias tem feito com que a população assista a uma tremenda e nunca vista evolução, mas não sem repercussões... O ser humano está cada vez mais desprotegido e ameaçado pela ciência desde os microfones ocultos às escutas telefónicas e aos novos sistemas de videovigilância. É, neste ambiente, que a palavra e a imagem começam por ser banalizadas, de seguida, desprezadas e, hoje em dia, quase que esquecidas por muitos pela chamada “era facebook”».).
Neste contexto, e atenta a abrangência deste direito, perfilhamos o entendimento de que o tipo objectivo do tipo de crime em presença consiste no registo fotográfico ou audiovisual da imagem de qualquer parte do corpo de outra pessoa ou na sua utilização ou permissão de utilização dessas imagens por terceiro.
Igual entendimento foi acolhido no acórdão anteriormente citado da RE ao afirmar que «(…) É, com efeito, à pessoa que assiste o poder soberano de decidir quem pode gravar, registar, utilizar ou divulgar a sua imagem. Isto em consonância com o disposto no art.º 79.º, n.º 1, do Código Civil (direito à imagem): E sendo o objecto da protecção legal a imagem física da pessoa, embora nesta imagem prevaleça, naturalmente, o rosto, ela abrange todo o corpo».
M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio ( “Código Penal, Parte Geral e Especial”, Almedina, Março 2014, p. 812.) e Paulo Pinto de Albuquerque ( In “Comentário ao Código Penal”) defendem essa extensão da protecção visada pela norma em questão.
Admite-se, ao nível do elemento subjectivo, qualquer modalidade do dolo.
No caso, contrariamente ao alegado no recurso, mostra-se provado que o arguido, em “perfis” falsos que criou no “facebook”, abertos ao público, com o nome “(…) Nua”, ali postou duas fotos, em que se vêem, numa, as pernas e, noutra, parte do corpo da assistente (fls.93 e 94), esta última captada numa altura em que a mesma estava a tomar banho. Assim sendo, não obstante não constar a cara da assistente em tais fotografias, pensamos que tal comportamento se traduz no uso pelo arguido de fotografias de outra pessoa, divulgando-as (no “facebook”), contra a vontade da pessoa retratada, que, consequentemente, é punível por ser subsumível à norma em apreciação [art. 199º, nº 2 b)].
Com efeito, o direito à imagem abrange, como dissemos, qualquer parte do corpo. Ora, no caso, sabe-se, não só que as imagens pelo arguido divulgadas são do corpo da assistente, como, também, que o mesmo se encarregou de ampliar os efeitos da publicitação de tal identificabilidade, colocando no “perfil” o nome da assistente, acrescido, inclusivamente, da menção «Nua», com o que, à luz da normal experiência, potenciou o apelo ao visionamento de tais imagens.
Defende, ainda, o arguido que apenas têm relevância criminal os casos em que as fotografias tenham sido captadas ou tiradas contra a vontade do visado, uma vez que, a alínea b), do nº 2, do artigo 199º, do C. Penal, «se reporta às fotografias de “outra pessoa”, estando assim excluídos da factualidade típica os casos em que alguém se fotografa a si próprio (por não se tratar de fotografia de “outra pessoa”), não sendo também típica a utilização dessa fotografia, ainda que contra a vontade do retratado».
Aparentemente, a tese defendida pelo arguido ancora-se na redacção originária do C. Penal de 1982 (art. 179º), que visava a conduta do agente que, «sem justa causa e sem consentimento de quem de direito», utilizasse fotografias, «indevidamente obtidas», de «aspectos da vida particular de outrem». Porém, também aqui, estamos em crer que essa tese não tem qualquer acolhimento na actual redacção da alínea b) do art. 199º.
Com efeito, como parece resultar, imediatamente, do simples teor deste normativo, é punível o comportamento de quem utilizar fotografias, contra a vontade do retratado, ainda que licitamente obtidas, designadamente por terem sido colhidas pelo próprio retratado. Nem parece que poderia ser de outra maneira: uma coisa é a obtenção das imagens, que pode ser lícita, nomeadamente por ter o consentimento da pessoa retratada, outra, bem diferente, é a sua posterior utilização contra a vontade do retratado. Apesar de estar em causa o mesmo bem jurídico, há completa autonomia entre os dois actos susceptíveis de ofender o direito à imagem, o de a registar e o de a usar/divulgar. E, na expressão plena desse direito, é à própria pessoa visada que assiste o poder de decidir quem pode, não apenas registar ( Fotografar é fixar imagens de modo a poderem ser vistas em ocasião posterior, sendo a razão porque se fotografa irrelevante, mas, no art. 199º nº 2 CP, protege-se o direito à imagem independentemente da sua valência directa do ponto de vista da privacidade e inclusivamente do seu conteúdo – cfr. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, ob cit. p. 809.), mas também utilizar ou divulgar a sua imagem ( Cfr., neste sentido, o acórdão da RP de 5/6/2015 (p. 101/13.5TAMCN.P1 - José Carreto): «O direito à imagem constitui um bem jurídico-penal autónomo tutelado em si e independentemente do ponto de vista da privacidade ou intimidade retratada. O direito à imagem abrange dois direitos autónomos: o direito a não ser fotografado e o direito a não ver divulgada a fotografia. O visado pode autorizar ou consentir que lhe seja tirada uma fotografia e pode não autorizar que essa fotografia seja usada ou divulgada. Contra vontade do visado não pode ser fotografado nem ser usada uma sua fotografia. É suscetível de preencher o tipo legal de crime de Gravações e fotografias ilícitas, do art. 199.º nº 2, do Cód. Penal, a arguida que, contra a vontade do fotografado, utiliza uma fotografia deste, ainda que licitamente obtida e a publicita no Facebook.».).
Igualmente esta segunda faceta do direito à imagem exige a especial protecção jurídico-penal, cuja necessidade, aliás, cada vez mais se acentua perante a enorme danosidade gerada pela potencial utilização das novas tecnologias na sua afronta, como no caso concreto sucedeu.
À semelhança de outros bens jurídicos correspondentes a liberdades fundamentais e de estrutura axiológico-normativa idêntica, também o direito à imagem se analisa numa dimensão positiva e numa dimensão negativa ou exclusiva: a total liberdade e legitimidade do concreto titular para, sem restrições, tanto autorizar como recusar o registo e o uso da sua própria imagem. «E também aqui esta estrutura intersubjectiva e relacional do bem jurídico prejudica o estatuto dogmático e o regime jurídico-penal da manifestação de concordância do portador concreto: trata-se, com efeito, de um acordo que exclui a tipicidade. O exposto vale, no essencial, para o direito à imagem como autónomo bem jurídico-penal. Também aqui estamos perante um bem jurídico eminentemente pessoal com a estrutura de uma liberdade fundamental e que reconhece à pessoa o domínio exclusivo sobre a sua própria imagem. É, um efeito, à pessoa que assiste o poder soberano de decidir quem pode gravar, registar, utilizar ou divulgar a sua imagem. Isto em consonância com o disposto no art. 79°, n° 1, do CC (Direito à imagem)» ( Acórdão do STJ de 28-09-2011 (p. 22/09.6YGLSB.S2 - Santos Cabral).).
Em suma, à semelhança do que foi expendido pelo tribunal de 1ª instância, pode concluir-se que da matéria de facto provada decorre que o arguido utilizou as aludidas fotografias da assistente, postando-as nos “perfis” falsos que criou no “facebook”, o que fez contra a vontade e sem o consentimento da mesma, ainda que tais fotografias pudessem ter sido licitamente obtidas. E fê-lo de forma deliberada, livre e consciente, ciente da censurabilidade destas suas condutas.
Assim, sendo o seu comportamento correctamente enquadrado na previsão a que alude o art. 199º, nº 2, al. b) do C.P., nenhuma censura merece a decisão recorrida
*
Por não ter sido suscitada qualquer outra questão, nada mais há a conhecer.
*

Decisão:
Pelo exposto, julgando-se o recurso improcedente, decide-se manter integralmente a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três UC´s.
Guimarães, 21/11/2016

Ausenda Gonçalves

Fátima Furtado