Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2823/18.5T8BCL.G1
Relator: VERA SOTTOMAYOR
Descritores: ADMISSÃO DE DOCUMENTOS
ACIDENTE IN ITINERE
TRAJETO PROTEGIDO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/03/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I – Só excepcionalmente se justifica a admissão de documentos na fase de recurso e tal resume-se às situações em que os documentos não puderam ser apresentados até ao encerramento da audiência de julgamento ou no caso em que a sua junção se tornou necessária em virtude do julgamento.
Não é admissível a junção com a alegação de recurso, de documento potencialmente útil à causa, mas relacionado com factos que já antes da decisão a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado.
II - O acidente in itinere é um acidente de trabalho que apesar de ter lugar fora do local e do tempo de trabalho tem de ter uma conexão com o trabalho, pois é a necessidade que o trabalhador tem de se deslocar por motivos laborais que o expõe ao risco do acidente.
III - O prolongamento de um trajecto não é nem um desvio, nem uma interrupção, pois o desvio é o afastamento do caminho mais directo ou trajecto normal e a interrupção é uma paragem, reatando posteriormente o mesmo trajecto. Nestas duas situações as extremidades do percurso permanecem as mesmas continuando a verificar-se a conexão com o trabalho, pois é a necessidade que o trabalhador tem de se deslocar por motivos laborais que o expõe ao risco do acidente. O mesmo não podemos afirmar relativamente ao prolongamento de um trajecto, pois ultrapassada uma das extremidades do trajecto, este deixa de ser considerado de trajecto tutelado, pois deixa de ter qualquer conexão com o trabalho.
IV – O trajecto iniciado pela autora depois de ter alcançado a sua residência, no decurso do qual ocorreu o acidente, apenas pode ser considerado um prolongamento do trajecto e não um desvio, que por não manter qualquer conexão com a relação laboral e nem ter sido determinado por um qualquer motivo de força ou por caso fortuito ou por necessidade atendível, não pode ser considerado de acidente in itinere.

Vera Sottomayor
Decisão Texto Integral:
APELANTE: M. C.
APELADAS: CASA DE SAÚDE ... e X – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

No Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo do Trabalho de Barcelos, M. C., instaurou ação especial emergente de acidente de trabalho contra CASA DE SAÚDE ... e X – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. alegando em resumo que sofreu um acidente de trabalho quando se deslocava, a pé, do seu local de trabalho para a sua residência. O acidente consistiu numa queda no passeio. Em consequência do acidente sofreu lesões que o impossibilitaram de forma absoluta de trabalhar até à data da consolidação médico-legal, ficando depois dessa data (21/07/2017) a padecer de uma incapacidade parcial permanente para o trabalho de 37,50% com IPATH. Não aceita nem a data da alta nem o grau de IPP que lhe foi atribuído pelo Gabinete Médico Legal, razão pela qual requerer a realização de junta médica. A sua entidade empregadora havia transferido parcialmente a responsabilidade pela ocorrência de acidentes de trabalho para a Ré Seguradora.

Termina peticionando a condenação das Rés, na proporção da respectiva responsabilidade, nos seguintes pagamentos:

a) a pensão anual e vitalícia de 7.530,11€ (sete mil, quinhentos e trinta euros e onze cêntimos), com início em 22/07/2017, sem prejuízo da que resulte da incapacidade que se apure em sede de junta médica;
b) 5.561,42€ (cinco mil, quinhentos e sessenta e um euros e quarenta e dois cêntimos) a título de subsídio de elevada incapacidade;
c) 4.545,87€ (quatro mil, quinhentos e quarenta e cinco euros e oitenta e sete cêntimos) a título de indemnizações por incapacidades temporárias;
d) 144,40€ (cento e quarenta e quatro euros e quarenta cêntimos) a título de reembolso de despesas médicas;
e) 25,00€ (vinte e cinco euros) de despesas de transporte;
tudo acrescido de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento.

O INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I.P., veio deduzir pedido de reembolso da quantia de 18.114,15€ (dezoito mil, cento e catorze euros e quinze cêntimos) paga à sinistrada a título de subsídio de doença, no período entre 03/03/2017 e 03/05/2019, bem como das quantias que ainda venha a pagar a tal título na sequência do acidente.

A Ré Empregadora contestou alegando em resumo ter transferido para a Ré Seguradora a totalidade da retribuição paga à Autora, nada tendo, por isso, que pagar a esta, concluindo pela sua absolvição do pedido.

A Ré Seguradora contestou alegando em resumo o reconhecimento da existência e validade do contrato de seguro, contudo impugna a ocorrência do sinistro, dizendo que nunca este poderá ser considerado acidente de trabalho por não ter ocorrido no trajeto entre o local de trabalho e a residência da autora. Mais alega estar a sua responsabilidade limitada à retribuição comunicada pela ré empregadora. Por fim, impugna o resultado do exame médico realizado na fase conciliatória e conclui pedindo a improcedência da ação e a sua absolvição do pedido ou o julgamento da ação de acordo com a prova que venha a ser produzida.
Findos os articulados, foi elaborado o despacho saneador, foram fixados os factos assentes e organizada a base instrutória.

Procedeu-se ao desdobramento do processo, mediante o apenso para fixação da incapacidade e após a realização de perícia médica colegial, foi proferida decisão, na qual se considerou que a autora:

- esteve afetada de incapacidade temporária absoluta entre 21/01/2017 e 21/07/2017, tendo tido alta nesta última data;
- é portadora de uma incapacidade permanente parcial de 22,5% (0,225);
- está afetada de incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual.

O Instituto da Segurança Social, I.P. veio reduzir o pedido para a quantia de 2.978,03€, redução essa admitida pelo tribunal a quo.
Os autos prosseguiram a sua normal tramitação e por fim foi proferida sentença que julgou a ação e da qual consta o seguinte dispositivo:

“Assim, e nos termos expostos, julgo a ação totalmente improcedente por não provada e, consequentemente, absolvo as rés X – Companhia de Seguros, S.A. e Casa de Saúde ..., dos pedidos contra si deduzidos pela autora M. C. e pelo Instituto da Segurança Social, I.P.
*
Custas integralmente pela autora e pelo Instituto da Segurança Social, I.P., na proporção dos respetivos pedidos (sendo esta última para além das custas em que já foi condenada aquando da homologação da redução de pedido, a fls. 208), sem prejuízo da isenção de que goza a autora.
*
Valor da ação – 118.872,64€ (100.758,49€ + 18.114,15€) - art.º 120.º do Código de Processo do Trabalho.”
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A Autora inconformada interpôs recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões:

QUANTO À MATÉRIA DE FACTO:
1. Na alínea G) dos “Factos Provados” ocorreu lapso de escrita na identificação da residência da Autora, uma vez que a mesma reside no “Edifício ...” e não no “Edifício ...”, lapso cuja correcção desde já se requer, passando a constar que:
G) Nesse momento, iniciou o trajeto de regresso para a sua residência, sita na Praceta ..., Edifício ..., Bloco …, em ..., Barcelos, a cerca de 350 metros do seu local de trabalho;
2. A Apelante impugna o julgamento da matéria de facto, por considera incorrectamente julgados os factos que constituem as alíneas H), I) e L) dos “Factos Provados” e o número 1) dos “Factos Não Provados”, constantes da douta sentença em mérito.
3. Tal impugnação tem como fundamento as provas testemunhal e documental produzidas, as regras de distribuição do ónus da prova, os princípios do dispositivo e do contraditório e o ónus da impugnação especificada, e com recurso às regras da experiência.
4. Tendo em conta a gravação da audiência, as alterações impõem-se ainda tendo em conta os seguintes meios probatórios:
- Depoimento e declarações de parte da Autora, em especial de 4:04 a 9:02 da gravação (primeiro depoimento que consta da gravação).
- Depoimento da testemunha A. J., nomeadamente de 1:05 a 9:02 da gravação da gravação (segundo depoimento da gravação);
- Depoimento da testemunha J. L., designadamente de 0:40 a 3:03 da gravação (terceiro depoimento da mesma).
3. e 4. (…)
5. É bom nunca esquecer que o percurso habitual da Autora do seu local de emprego para a sua residência sempre foi efectuado a pé.
6. Como tal, digamos que a escala a ter em conta é muito diferente daquela que teríamos caso se deslocasse de veículo automóvel ou outro meio de transporte.
7. Na verdade, nesta situação, ESSE TRAJECTO HABITUAL TEM DE SER CONSIDERADO E APRECIADO METRO A METRO, PASSO A PASSO, OU SEJA DE MODO ADEQUADO, NA MEDIDA E EM PROPORÇÃO À FORMA COMO É PERCORRIDO.
8. Do depoimento das testemunhas referidas e da demais prova dos autos, extrai-se de forma objectiva e rigorosa, o trajecto de regresso da Autora para a sua residência, que se inicia na Avenida ... nº ... e termina à porta do seu apartamento, que faz parte do prédio denominado Edifício ..., Bloco A, que por sua vez se situa na Praceta ....
9. e 10. (…)
11. E por se ter tornado necessário em virtude da decisão ora recorrida e para melhor percepção do que aqui se discute, a Apelante, ao abrigo do disposto no nº 1 do artº 651º e na 2ª parte do nº 2 do artº 425º do Código de Processo Civil, requer a junção aos autos como doc. nº 1 de um MAPA COM O PERCURSO HABITUALMENTE PERCORRIDO pela Autora no regresso do seu local de trabalho até à sua residência, assinalado a bolas azuis, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
12. e 13 (…)
14. Também por se ter tornado necessário em virtude da decisão ora recorrida e para melhor percepção do que aqui se discute, a Apelante, ao abrigo das já citadas disposições, requer a junção aos autos como doc. nº 2 de um mapa com O TRAJECTO PERCORRIDO PELA AUTORA NO DIA DO ACIDENTE, assinalado a bolas azuis, que aqui também se dá por integralmente reproduzido.
15. Resulta de forma clara e óbvia que, quando iniciou o desvio ao seu percurso para se dirigir ao multibanco, a Autora não tinha ainda finalizado o seu trajecto habitual do seu local de trabalho para a sua habitação!
16. Ora, distanciando o seu local de trabalho da sua residência cerca de 350 metros, cumpre ter presente que, desse total, cerca de 120 metros são percorridos desde que sai da Avenida ... até que chega à porta do seu apartamento, conforme se extrai do mapa que se junta como doc. nº 3.
17. A R. seguradora optou por fazer crer que no dia do acidente a A. terminou o seu trajecto até à sua residência, que o percorreu integralmente e que, só depois, é que decidiu deslocar-se ao multibanco para proceder ao levantamento de dinheiro, lançando contradições e confusões, nomeadamente através da sua testemunha que em julgamento declarou, falsa e insistentemente, que a A. já tinha passado a entrada de casa para ir ao multibanco.
18. Como tal, não poderá manter-se como assente a expressão “Findo tal trajeto” que consta da alínea H) dos Factos Provados.
19. E, por outro lado, conforme resultou da prova produzida, como supra se referiu, deverá esclarecer-se e concretizar-se que a Autora entendeu prosseguir a sua marcha “pela Avenida ...” em direcção ao Banco ....
20. Assim, deverá alterar-se o julgamento dos factos constantes da alínea H) do “Factos Provados”, passando a constar como provado que:
“H) A autora entendeu prosseguir a sua marcha pela Avenida ... em direção ao Banco ..., para aí proceder ao levantamento de valores monetários;”
21. Na alínea I) dos Factos Provados há um segmento que também não se poderá manter, não só por não ter recaído qualquer prova sobre o mesmo, mas também por não corresponder à verdade.
22. Ora, a forma como a resposta é dada na sequência do julgamento de facto, além de não ser precisa, não é esclarecedora, pois ao referir que a A. caiu no passeio da rotunda da Avenida ..., a cerca de 100 metros da sua residência e 50 metros da identificada agência bancária;”, resultam muitas justificadas dúvidas, designadamente:
- essas distância referem-se ao trajecto que se terá de percorrer a pé ou por meio de um meio de transporte?
- ou dizem respeito a uma medição em linha recta entre essas localizações?
- a “identificada agência bancária” é o Banco ... referido na anterior alínea H) (como parece ser a intenção) ou o Banco A referido na alínea L)?
23. Ora, como se referiu, não foi efectuada nos autos nenhuma diligência de medição rigorosa entre os diversos pontos ou localizações com interesse nos autos.
24. A única medição que terá menos dúvidas, em virtude de o trajecto pedonal corresponder praticamente a uma linha recta, será entre o local da queda e a agência do Banco ..., que nunca será superior a 20 metros, pois implica apenas o atravessar de uma via com a largura de 7/8 metros, um passeio e umas escadas.
25. A tal se referiu a testemunha A. J. no depoimento supra transcrito, o qual referiu precisamente a distância de 20/30 metros.
26. Pelo que, tanto por ausência de prova desse facto, como face à sua desadequação com a realidade, deverá assim alterar-se a referida alínea no sentido de se considerar apenas provado que:
I) Nesse momento caiu no passeio da rotunda da Avenida ..., a cerca de 20 metros da agência bancária do Banco ...;
27. Na alínea L) dos factos provados, considerou-se como assente que à data do acidente, existia um multibanco no Banco A sito na Avenida ..., “junto à residência da autora”, expressão esta que não poderá manter-se.
28. O uso do advérbio “junto a” é uma afirmação genérica, um juízo conclusivo, pois as distâncias entre dois pontos têm de se achar através de medições objectivas, por centímetros, metros, quilómetros, milhas, ou recorrendo a qualquer outro sistema de medição.
29. A conclusão de que determinado ponto fica “perto”, “longe”, “junto a” outro ponto, é uma conclusão que será sempre condicionada não só pela subjectividade de quem a faz (todos temos sensibilidades e percepções diferentes no que toca à determinação de distâncias), como também é condicionada por muitos e diversos factos, designadamente pelo meio que se utiliza para chegar de um a outro ponto: Porto fica perto de Lisboa se nos deslocarmos de avião, mas fica muito longe se percorrermos essa distância a pé!
30. Ora, na decisão sobre a matéria de facto apenas devem constar os factos provados e os factos não provados, com exclusão de afirmações genéricas, conclusivas e que comportem matéria de direito (cfr. art. 607.º, n.º 4, do CPC).
31. Por outro lado, atenta a escala a ter em conta em percursos pedonais, e verificando-se que a residência da Autora não se situa nem na mesma rua, nem no mesmo edifício onde se situava a dita caixa multibanco, nem foram medidos os metros de distância que separam a residência da Autora do local onde se encontrava a caixa multibanco.
32. Assim, por se tratar de matéria conclusiva e por não existirem nos autos provas que permitam tal conclusão, deverá tal expressão ser eliminada, passando a constar apenas que:
L) À data do acidente, existia um multibanco no Banco A sito na Avenida ...;”
33. Face à prova produzida, e como corolário lógico de tudo o que anteriormente se falou e em consequência das anteriores alterações da matéria de facto, óbvio se torna que o número 1) dos Facto Não Provados terá de passar ser considerada matéria assente e passar para o elenco dos “Factos Provados”.
33. O acidente ocorreu no trajeto de regresso do local de trabalho à residência da Autora, no final da jornada de trabalho, e no tempo habitualmente gasto em tal deslocação, sofrendo apenas um desvio para deslocação ao multibanco, ou seja, um desvio determinado pela satisfação de necessidades atendíveis.
34. Uma vez que não ocorreu quebra do encadeamento da ligação entre o local de trabalho e a residência, terá de se considerar que o acidente ocorreu quando a Autora se deslocava do seu local de trabalho para a sua residência, consubstanciando assim um acidente de trabalho in itinere.
35. Pelo que deverá acrescentar-se uma alínea nos Factos Provados, com esses factos, a saber:
1) A queda ocorreu quando a autora se deslocava do seu local de trabalho, sito na Casa de Saúde ..., para a sua residência sita na Praceta ..., Edifício ..., em ..., Barcelos;

QUANTO À MATÉRIA DE DIREITO
36. Com as alterações da matéria de facto supra referidas, resulta claro que, naquele dia 20/01/2017, por volta das 16h22, a Autora havia iniciado aquela viagem, provindo do local de trabalho nas instalações da empregadora (sitas na Avenida ..., nº ..., ..., Barcelos) com vista a dirigir-se à sua residência (sita na Praceta ..., edifício ..., Bloco A, ..., Barcelos) e utilizando o mesmo percurso e com a mesma duração temporal de todos os dias em que trabalhava - desde há vários anos que se deslocava, a pé, desde a sua residência até às instalações da empregadora e vice-versa, sempre percorrendo a Avenida ..., virando à sua esquerda por um arruamento que dá acesso à Praceta ..., onde acedia ao seu apartamento, que faz parte do dito Edifício ....
37. E que, em vez de virar à esquerda em direcção à Praceta ... após o Stand de Automóveis o Emigrante, a Autora decidiu continuar pela Avenida ... para proceder ao levantamento de dinheiro no multibanco do Banco ...
38. Na verdade, como resultou provado, nesse mesmo dia, pelas 17h30 minutos o seu filho tinha agendado uma consulta de psicologia, pelo que a Autora necessitava de proceder ao levantamento de dinheiro para entregar ao seu filho que se encontrava na sua residência para que este pagasse a dita consulta.
39. Contudo, cerca de 20 metros antes de alcançar o multibanco, a Autora sofreu uma queda que lhe provocou as lesões melhor descritas nos autos.
40. A Autora dirigia-se a casa quando o acidente teve lugar, sendo que efetuara um desvio para ir ao multibanco levantar dinheiro, desvio esse em virtude de uma necessidade atendível.
41. Não tendo a lei definido esse conceito, a doutrina e a jurisprudência, atendendo a um critério de adequação social, têm considerado como atendíveis as necessidades ligadas à vida pessoal e familiar do trabalhador, necessidades que o texto legal não exige que sejam urgentes ou inadiáveis – cfr. Cons. Júlio Gomes,”O Acidente de Trabalho- O acidente in itinere e a sua descaracterização”, 1.ª Edição, Outubro de 2013, Coimbra Editora, pgs. 187 e ss. –, não sendo as mesmas limitadas a meras necessidades de um qualquer tipo específico, ou seja, não sendo as mesmas meramente materiais ou de subsistência básica.
42. a 44 (…)
45. O desvio e a interrupção são, neste caso, razoáveis, surgindo no decurso da viagem de regresso e em termos que não fogem ao que qualquer trabalhador com bom senso poderia fazer.
46. Proceder ao levantamento de dinheiro para pagar uma consulta é insuscetível de censura: não é um capricho ou uma conduta disparatada mas sim algo que qualquer pessoa com bom senso poderia fazer.
47. De onde se conclui que o desvio e a interrupção em causa mantêm conexão, numa óptica de razoabilidade, com a situação laboral da Autora, enquadrando-se, pois, na satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador.
48. a 54 (…)
55. Acresce que, face à matéria provada, também se verificam os demais elementos constitutivos de um acidente de trabalho, a saber:
. A existência de uma relação laboral de dependência económica por parte do sinistrado em relação a uma outra pessoa (empregadora);
. A ocorrência de um facto, acontecimento ou evento naturalístico (alheio à vontade do sinistrado), súbito (imprevisto), violento e exterior ao sinistrado (atentando contra o seu corpo e alterando o seu estado de saúde);.
. Tal facto cause lesão corporal e/ou perturbação funcional ao sinistrado (mais ou menos grave, podendo até causar-lhe a morte);
. E daí advenha redução da capacidade de ganho para o sinistrado e/ou seus familiares.
56. Não tendo provada qualquer causa de descaracterização do acidente ou de exclusão da reparação, não abrangida pela previsão do nº 3 do art33. 9º ou prevista no art. 11º, nº 1, parte final, e nos arts. 14º a 16º da LAT – sendo certo que cabia à ré o respectivo ónus da prova nos termos dos arts. 341º e 342º, nº 2, do Código Civil.
57. Pelo que, temos de concluir que estarmos perante um acidente trabalho que carece e merece a tutela infortunística laboral.
58. A douta sentença recorrida violou, nomeadamente, o preceituado nos arts. 8º, nº 1 e nº 2, e 9º, nº 1, al. a), nº 2, al. b), e nº 3, da LAT.

POR TODO O EXPOSTO e pelo que doutamente for suprido por V. Exªs, deverá o presente recurso ser julgado provado e procedente, e, consequentemente, ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que julgue a acção, e condene as RR./Apeladas nos pagamentos da pensão, períodos de incapacidade, despesas e demais montantes decorrentes do acidente de trabalho e das lesões provadas nos autos; Assim se espera por ser de J U S T I Ç A!
A Ré Seguradora respondeu ao recurso, no qual pugna pela extemporaneidade dos documentos juntos pela Apelante com a alegação de recurso, defende a manutenção do julgado e conclui pela improcedência do recurso.
*
Admitido o recurso na espécie própria e com o adequado regime de subida, foram os autos remetidos a esta 2ª instância.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso.
As Apeladas responderam ao parecer, manifestando a sua discordância com o mesmo, pugnando pela manutenção da decisão recorrida com a consequente improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais cumpre decidir.

II OBJECTO DO RECURSO

Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões da Recorrente (artigos 635º, nº 4, 637.º n.º 2 e 639.º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 87.º n.º 1 do CPT), as questões trazidas à apreciação deste Tribunal da Relação são as seguintes:

1 – Da admissibilidade da junção de documentos com a alegação de recurso;
2 – Da modificação da decisão sobre a matéria de facto;
3 - Da ocorrência do acidente de trabalho in itinere e respectivas consequências.
Em sede de questão prévia passamos desde já a apreciar o pedido de retificação formulado pela Recorrente, para que se proceda à correcção da sentença no que respeita à morada da Apelante, bem como da alínea G) dos factos provados por se ter feito constar que a apelante reside no “Edificio ...”, quando efectivamente o edifício se chama de “...”.
Compulsados os autos e constatando-se que assiste inteira razão à Apelante e por que efectivamente estamos perante um manifesto lapso de escrita, ao abrigo do disposto no art.º 614.º do CPC. determina-se a correcção da sentença, passando a constar quer da morada da Apelante, quer da alínea G) dos factos provados “Edifício ...” onde anteriormente se lia “Edifício ...

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Estão provados os seguintes factos com relevo para a boa decisão da causa:

A) M. C. nasceu no dia -/07/1960 (assento de nascimento junto a fls. 5);
B) A autora foi assistida no Hospital de e posteriormente nos serviços clínicos da ré seguradora;
C) No dia 20/01/2017, a autora exercia as funções de “auxiliar”, por conta da ré Casa de Saúde ..., em Barcelos;
D) Nessa mesma data, a responsabilidade infortunística laboral da autora estava transferida para a ré seguradora através da apólice n.º ……58, pelo montante anual de 13.013,76€, assim decomposto:
a. 665,70€ de salário base mensal (x 14);
b. 52,36€ de subsídio de alimentação mensal (x 11);
c. 152,35€ de diuturnidade (x14);
d. 82,08€ de trabalho suplementar (x12);
E) As rés não pagaram à autora qualquer quantia a título de indemnização por incapacidades temporárias;
F) No dia 20/01/2017, a autora, em cumprimento de horário de trabalho previamente fixado, deu entrada nas instalações da ré empregadora, sitas na Avenida ..., n.º ..., em ..., Barcelos, pelas 07:03 e saiu pelas 16:22;
G) Nesse momento, iniciou o trajeto de regresso para a sua residência, sita na Praceta ..., Edifício ..., Bloco A, ..., em ..., Barcelos, a cerca de 350 metros do seu local de trabalho; (por nós retificado)
H) Alcançada a sua residência, a Autora, em vez de se dirigir e entrar no prédio, prosseguiu a sua marcha, pela Av. ..., em direcção ao Banco ..., situado a cerca de 150 metros da sua residência, para aí proceder ao levantamento de valores monetários; (alterado em conformidade com o decidido em IV.2.)
I) Nesse momento caiu no passeio da rotunda da Avenida ..., a cerca de 100 metros da sua residência e 50 metros da identificada agência bancária;
J) No dia 20/01/2017, o filho da autora tinha agendado uma consulta de psicologia às 17 horas e 30 minutos;
K) A autora decidiu levantar dinheiro para proceder ao pagamento de tal consulta médica;
L) À data do acidente, existia um multibando no Banco A sito na Avenida ..., junto à residência da autora;
M) Em consequência da queda, a autora sofreu lesões que lhe determinaram 181 dias de ITA, entre 21/01/2017 e 20/07/2017, tendo-se as lesões consolidado em 21/07/2017;
N) A autora apresenta rigidez do ombro, que não permite atingir a flexão e abdução de 90º, permitindo apenas 60º;
O) A autora apresenta sequelas ao nível do ombro direito, com cicatriz na face anterior do ombro, oblíqua, nacarada, linear, com 10 cm de comprimento e rigidez acentuada do ombro direito;
P) Tais sequelas determinam uma incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH), com uma incapacidade permanente parcial de 22,50%;
Q) Após a alta dada pela seguradora, a autora necessitou de acompanhamento e tratamentos de fisiatria, nos quais despendeu o montante global de 144,40€, assim discriminado:
a. 37,40€ a título de exames radiográficos;
b. 107,00€ a título de consultas;
R) A autora gastou 25,00€ em transportes com deslocações obrigatórias ao Gabinete Médico-Legal e a este tribunal;
S) O Instituto de Segurança Social, I.P. pagou à autora, a título de subsídio de doença, pelo período de 03/03/2017 a 21/07/2017, a quantia global de 2.566,53€;
T) Nos doze meses anteriores à data referida em C), a autora auferiu as seguintes quantias a título de retribuição:
a. 665,70€ de salário base mensal;
b. 52,36€ de subsídio de alimentação mensal;
c. 152,35€ de diuturnidade mensal;
d. um total de 984,94€ de trabalho suplementar.

Não resultaram não provados os seguintes factos:

1) Que a queda tenha ocorrido quando a autora se deslocava do seu local de trabalho, sito na Casa de Saúde ..., para a sua residência sita na Praceta ..., edifício ..., em ..., Barcelos;
2) Que a autora se tenha deslocado à agência do Banco ... após constatar que o multibando no Banco A sito na Avenida ..., junto à sua residência, estava fora de serviço;
3) Que a autora apresente as seguintes queixas:
a. a nível funcional:
i. quanto à manipulação e preensão, acentuada limitação da capacidade de manipulação do membro superior direito;
ii. quanto a fenómenos dolorosos, ocasionais no ombro direito, para esforços ainda que reduzidos;
b. a nível situacional:
i. quanto a atos da vida diária, dificuldades em lavar e secar a cabeça;
ii. da vida profissional e de formação, não sente capacidade para voltar a trabalhar;
4) Que a autora apresente anquilose;
5) Que as sequelas determinam uma incapacidade permanente parcial de 37,50%.

IV - APRECIAÇÃO DO RECURSO

1. Da admissibilidade da junção de documentos com a alegação de recurso

Com a impugnação da matéria de facto e tendo por fim clarificar os trajectos realizados pela autora do trabalho para casa e o trajecto efectuado no dia do acidente e denunciar a contradição entre a factualidade provada e a realidade dos factos ocorridos decorrente de uma imprecisa determinação do trajecto seguido pela Autora, veio a Recorrente juntar três documentos – mapas -, com o percurso efetuado pela autora habitualmente do local do trabalho para a sua residência; percurso efetuado no dia do acidente; e percurso efectuado desde que saí da Av. ... até que chega ao seu apartamento.
Cumpre assim apreciar da admissão de documentos com a alegação de recurso.
Prescreve o n.º 1 do art.º 651.º do CPC que “as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425º, do CPC., ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância”. Mais decorre do prescrito no art.º 425.º do CPC. que “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.”
Como refere António Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, 4ª edição, pág. 229, “em sede de recurso, é legítimo às partes juntar documentos com as alegações quando a sua apresentação não tenha sido possível até esse momento (superveniência objetiva e subjetiva).
Podem ainda ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, máxime quando este seja de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo.
A jurisprudência anterior sobre esta matéria não hesita em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado.”
A propósito da necessidade de junção de documento, pela surpresa do desfecho da acção referem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 2ª edição, págs. 533 e 534, que “a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da ação (ter perdido, quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1ª instância. O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida.”
Daí que defenda Antunes Varela em anotação ao Ac. STJ de 09.12.1980, RLJ, Ano 115º, pág. 89. que “o documento torna-se necessário só por virtude desse julgamento (e não desde a formulação do pedido ou da dedução da defesa) quando a decisão se tenha baseado em meio probatório inesperado junto por iniciativa do tribunal ou em preceito jurídico com cuja aplicação as partes justificadamente não tivessem contado”. No mesmo sentido, se pronunciaram Ac. STJ de 18.02.2003, CJASTJ, 2003, Tomo I, pág. 106; Ac. STJ de 27.06.2000, CJASTJ, 2000, Tomo II, pág. 130; Ac. STJ de 26.09.2012, proc. n.º 174/08.2TTVFX.L1.S1 relator Gonçalves Rocha; Ac. STJ de 21.01.2014, proc. n.º 9897/99.4TVLSB.L1.S1, relatora Maria Clara Sottomayor e Ac. STJ de 06.11.2019, proc. n.º 1130/18.8T8FNC.L1.S1, relator Chambel Mourisco (disponíveis em www.dgsi.pt.) este último com o seguinte sumário:
I - Os casos em que a junção de documentos se torna necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância são apenas aqueles em que, pela fundamentação da sentença, ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não poderia razoavelmente contar antes de a decisão ter sido proferida.”
De tudo isto resulta que só excepcionalmente se justifica a admissão de documentos na fase de recurso e tal resume-se às situações em que os documentos não puderam ser apresentados até ao encerramento da audiência de julgamento ou no caso em que a sua junção se tornou necessária em virtude do julgamento.
Assim, tem entendido a jurisprudência, e de modo uniforme, que não é admissível a junção com a alegação de recurso, de documento potencialmente útil à causa, mas relacionado com factos que já antes da decisão a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado.
No caso em apreço, a Recorrente, sem invocar qualquer facto que o justificasse, a não ser demonstrar a disparidade entre a factualidade dada como provado e o que alega ser a realidade dos factos ocorridos, veio juntar aos autos documentos, mais precisamente três mapas de percursos que há muito podia ter junto aos autos, já que tendo o presente litigio como objecto precisamente a ocorrência de um acidente de percurso (a pé), no qual teria ou não ocorrido um desvio do trajecto habitual que a apelante realizava diariamente de casa para o local de trabalho, qualquer documento que pudesse vir a esclarecer os trajectos do trabalho para casa efectuados pela autora seriam pertinentes para a boa decisão da causa.
Acresce dizer, que atenta a posição assumida pela Ré Seguradora relativamente ao acidente a Autora poderia e deveria ter junto os documentos que entendesse para lograr provar a sua versão dos factos ou contrariar a da Ré, mas tal não sucedeu, razão pela qual o facto da junção dos mapas não ter sido requerida no momento próprio só é imputável à Recorrente, não se verificando assim qualquer impossibilidade que justificasse não ter sido apresentado tempestivamente.
Por outro lado, os factos que com a junção dos documentos a Apelante pretendia provar, são factos que apesar de há muito serem do seu conhecimento, não foram sequer por si alegados, designadamente no que respeita ao concreto percurso por si efectuado diariamente, uma vez que ao que tudo indica a autora podia optar por mais do que um percurso para se dirigir do trabalho para casa.
Por fim, nada resulta da decisão final que nos permita concluir que a mesma se baseou em meio probatório ou em preceito jurídico inesperado, com o qual a Recorrente não podia justificadamente contar, sendo certo que também nada foi invocado nesse sentido.
Em suma, não vislumbramos qualquer razão para nos desviarmos do que tem sido defendido quer pela jurisprudência, quer pela doutrina no que respeita à recusa da junção de documentos que serviam para provar factos que a parte sabia estarem sujeitos a prova.
Em face do exposto, por não se verificarem os requisitos legais, não se admite a junção aos autos dos documentos ora junto pela Recorrente com as suas alegações de recurso.

2. Da impugnação da matéria de facto

A Recorrente/Apelante impugna a decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal recorrido, designadamente a parte da factualidade que consta das alíneas H), I) e L) dos factos provados, que deverá ser alterada/eliminada, pretendendo ainda que a factualidade dada como não provada sob o n.º 1 passa a constar dos factos provados.
Para tanto socorre-se dos documentos que pretendeu juntar aos autos, mas cuja junção foi indeferida, bem como das declarações por si prestadas e depoimentos das testemunhas A. J., e J. L..
Nos termos do artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto deve ser alterada pela Relação se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

Por seu turno, o art. 640.º, do C.P.C. que tem como epígrafe o “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, dispõe no seu n.º 1 o seguinte:
“Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

Importa salientar que o segundo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não implica a repetição do julgamento pelo tribunal de 2.ª instância, já que apenas se impõe verificar, mediante a análise da prova produzida, designadamente a que foi objecto de gravação, se a factualidade apurada pelo tribunal recorrido têm nas provas suporte razoável, ou se, pelo contrário, a convicção do tribunal de 1.ª instância assentou em erro tão flagrante que o mero exame das provas gravadas revela que a decisão não pode subsistir. Tal deverá ser feito com o cuidado e a ponderação necessárias, face aos princípios da oralidade, imediação e livre apreciação da prova.
Na verdade, existem diversos factores relevantes na apreciação e credibilidade do teor de um depoimento que só são apreensíveis pelo julgador mediante o contacto direto com os depoentes em audiência e isto sem prejuízo, no que respeita ao Tribunal da Relação, estar igualmente subordinado ao princípio da livre apreciação da prova e sem limitação (à excepção da prova vinculada) no processo de formação da sua convicção. A apreciação a realizar em 2ª instância não pode deixar de ter em atenção os mencionados princípios, pois deles decorrem aspectos de determinante relevância na valoração dos depoimentos, tais como as reacções do próprio depoente ou de outros, hesitações, pausas, gestos, expressões que apenas são perceptíveis pela 1ª instância.
Em suma, à Relação caberá analisar o processo de formação da convicção do julgador, apreciando, com base na prova gravada e demais elementos de prova constantes dos autos, se as respostas dadas apresentam erro evidenciável e/ou se têm suporte razoável nas provas e nas regras da lógica, experiência e conhecimento comuns, para que ponderando, e sem esquecer as mencionadas limitações, formar a sua convicção.

Observado pela Recorrente o ónus de impugnação, incumbe apreciar:
A Recorrente pretende que a factualidade provada nos pontos H), I) e L) dos pontos de facto provados seja alterada para dela passar a constar o seguinte:
“H) A autora entendeu prosseguir a sua marcha pela Avenida ... em direção ao Banco ..., para aí proceder ao levantamento de valores monetários;
I) Nesse momento caiu no passeio da rotunda da Avenida ..., a cerca de 20 metros da identificada agência bancária;
L) À data do acidente, existia um multibanco no Banco A sito na Avenida ...;”
Sustenta a sua pretensão nas declarações por si prestadas, no depoimento de A. J. e de J. L., concluindo ainda que em face de tal alteração na matéria de facto terá de se considerar provado o ponto 1 dos factos não provados tendo ainda em consideração os mesmos meios de prova.

Assim deverá passar a contar do ponto U dos factos provados o seguinte:
A queda ocorreu quando a autora se deslocava do seu local de trabalho, sito na Casa de Saúde ..., para a sua residência sita na Praceta ..., Edifício ..., em ..., Barcelos.”

O Tribunal a quo para dar tal factualidade como provada e não provada motivou a sua convicção da seguinte forma:
“A divergência essencial entre as partes prendia-se com ter a queda ocorrido num desvio realizado durante o trajeto entre o local de trabalho e a residência da autora ou já após a autora alcançar o local da sua residência. A testemunha A. J. (funcionário da agência bancária que socorreu a autora imediatamente após a queda) confirmou a efetiva ocorrência da queda naquele local (rotunda) e a testemunha J. L. (vizinha da autora há 27 anos), apesar de a nada ter assistido, confirmou que no dia em causa a autora lhe disse ter caído em tal local e pediu que a ajudasse a preparar o jantar para o filho. Da conjugação destes depoimentos ficou ainda claro que efetivamente a agência bancária para onde a autora se deslocava no momento da queda se situava já depois de a autora alcançar o local da sua casa, quando vinda do local de trabalho – ou seja, a autora, após chegar ao local onde reside, teve de continuar a sua marcha até ao local onde iria levantar dinheiro. Mais resultou claro destes depoimentos que, à data da queda, no prédio onde a autora reside havia uma agência do Banco A que estava dotada de caixa Multibanco (entretanto desativada, funcionando agora nesse local uma farmácia). Todos estes factos foram também confirmados pela autora nas declarações de parte que prestou, tendo ainda dito que precisava de levantar dinheiro para dar ao seu filho, que iria ter uma consulta às 17:30 desse dia, e que costumava ir ao Banco ... por ser o banco onde tinha domiciliada a sua conta. Todos estes depoimentos e declarações foram conjugados pelo tribunal com o depoimento de C. N. (perita averiguadora que elaborou o relatório de peritagem junto pela seguradora com a contestação, a fls. 142v. e ss.), que relatou ter apurado que efetivamente o filho da autora teria a mencionada consulta (com a médica a que se reportam as fotografias juntas a fls. 147v. e 148), mais tendo dito que a autora à data lhe terá referido que se teria deslocado ao Multibanco do Banco ... por ter verificado que o do Banco A estaria fora de serviço (conforme fez constar no aludido relatório de peritagem, a fls. 145v.). (…) Ora, não obstante da conjugação das declarações de parte da autora com o depoimento da referida C. N. (e com as fotografias por esta juntas) ter ficado claro que efetivamente o filho da autora teria a consulta médica e que a autora foi levantar dinheiro para a poder pagar, dos elementos recolhidos não ficou demonstrado que o Multibanco do Banco A tenha estado indisponível no período temporal alegado pela autora. Com efeito, tendo em conta a hora de saída da autora do trabalho (16:22 – conforme resulta do registo de entradas e saídas junto pela empregadora no requerimento de 27/04/2020), a distância entre o local de trabalho e a casa da autora (aproximadamente 350 metros) e a hora a que estava marcada a consulta do filho (17:30, conforme a autora confirmou em audiência), não se pode dar como provado que se tenha a autora deparado com o referido Multibanco fora de serviço, uma vez que a SIBS, na informação prestada a fls. 245, é muito clara ao dizer que entre as 16 e as 18 horas do dia em apreço, o Multibanco em causa apenas esteve indisponível entre as 17:51 e as 18:04, ou seja, já depois até da hora agendada para a consulta. Assim, deu o tribunal tal factualidade como não provada, por falta de elementos de prova que permitissem a sua confirmação. Do mesmo modo, e atenta a demonstração em juízo de que dispunha a autora de um Multibanco no local da sua residência, deu o tribunal como provada a versão alegada pela seguradora (quesitos 10.º a 13.º) – ou seja, de que a autora, já após alcançar a sua residência, decidiu prosseguir a sua marcha – e como não provada a versão da autora (quesito 1.º) – que a queda teria ocorrido durante um pequeno desvio, quando a autora se deslocava para a sua casa.”
Vejamos:
Após análise de toda a prova produzida, designadamente a documental, as declarações da Autora e os depoimentos das testemunhas teremos de dizer que a decisão recorrida se mostra alicerçada na análise critica e conjugada de toda a prova produzida, a qual foi devidamente valorada, nem se detetando qualquer meio de prova que imponha decisão diferente, e sem que se encontre qualquer desconformidade entre os elementos de probatórios oferecidos e a decisão proferida pelo tribunal recorrido sobre tais factos.
Com efeito, a factualidade provada espelha a prova produzida, tendo o juiz a quo feito a análise da mesma de forma suficientemente especificada e criteriosa, não deixando qualquer dúvida quanto ao processo lógico e racional por si desenvolvido para dar a factualidade apurada como provada, contudo importa proceder a um pequeno aperfeiçoamento.

Do ponto H) dos factos provados consta o seguinte:
Findo tal trajeto, a autora entendeu prosseguir a sua marcha em direção ao Banco ..., situado a cerca de 150 metros da sua residência, para aí proceder ao levantamento de valores monetários;”
Pretende a recorrente que se elimine de tal ponto de facto a expressão “Findo tal trajecto” defendendo que quando iniciou o desvio do seu percurso para se dirigir ao multibanco o percurso de regresso do local de trabalho para a sua habitação ainda não tinha finalizado.
Ora, não podemos deixar de concordar com a recorrente ao afirmar que o percurso percorrido pela autora após ter terminado o seu dia de trabalho é o elemento determinante para a boa decisão da causa, sendo certo que a prova produzida, traduz precisamente a factualidade provada a esse propósito designadamente das declarações prestadas pela autora, da qual resulta inequívoco quer o percurso que habitualmente utiliza para se deslocar do trabalho para casa, quer o percurso por si efectuado no dia do acidente, quer o facto do prédio onde habita se situar logo a seguir ao prédio onde à data dos factos, se situava a agência do Banco A.
Na verdade, é a autora que em sede de declarações de parte relata que depois de sair do trabalho deslocou-se na direcção de sua casa, sita na Praceta ..., caminhando pela Av. ... e chegada junto da agência do Banco A, actualmente farmácia F., ao invés de entrar em sua casa, sita no prédio por trás do prédio onde estava instalada a agência do Banco A, prosseguiu o seu caminho na direcção da agência do Banco ..., que se situa no seu entender a uma distância de 150 metros de sua casa, porque pretendia levantar dinheiro, naquele multibanco, já que é nesse banco que tem domiciliada a sua conta bancária.
Das declarações prestadas pela Recorrente/Autora resulta inequívoco, que aquela ao chegar junto da Praceta ..., onde reside, em vez de se dirigir ao prédio onde habita resolveu prosseguir a sua marcha, porque pretendia ir ao multibanco levantar dinheiro, multibanco este que situava “abaixo” de sua casa, sendo certo que mesmo junto da sua residência na altura existia um outro multibanco.
As declarações da Autora não foram contraditadas por qualquer outra prova, sendo certo que a única testemunha indicada pela autora que depôs sobre esta factualidade, prestou um depoimento coincidente com o seu, ou seja, a autora caminhou pela Av. ..., passou junto de sua casa e prosseguiu “pela estrada a baixo e que ia pra ir ao multibanco”.
Quanto a qualquer outro eventual percurso habitual que a autora realizasse do trabalho para casa nada foi alegado, ou dito pela autora em sede própria, revelando-se agora, em sede de alegação de recurso, tal alegação de manifestamente irrelevante.
Acresce que o depoimento da Perita Averiguadora C. N., que esteve no local e efectuou o percurso em causa, vem precisar e clarificar melhor esta factualidade ao afirmar que a autora “terá passado a entrada de casa para ir, o acesso à residência para ir ao outro multibanco”, no sentido de que passou junto de sua casa, pois não temos qualquer dúvida que a casa da Autora não fica na Av. ..., mas sim na Praceta ..., sendo certo que a Autora, naquele dia não chegou a entrar na praceta, mas como a sua casa se situa por de trás da agência do Banco A por aí passou prosseguindo a sua marcha, sem que entrasse no acesso ao seu prédio aí existente, não se vislumbra que o depoimento da perita averiguadora, possa ser apelidado de falso, já que corrobora a versão da Autora.
Em suma, a autora depois de ter chegado muito perto do prédio onde reside, em vez de entrar no prédio, prosseguiu caminho em direcção à agencia do Banco .... Como refere o juiz a quo na sua motivação “Da conjugação destes depoimentos ficou ainda claro que efetivamente a agência bancária para onde a autora se deslocava no momento da queda se situava já depois de a autora alcançar o local da sua casa, quando vinda do local de trabalho – ou seja, a autora, após chegar ao local onde reside, teve de continuar a sua marcha até ao local onde iria levantar dinheiro.”
De tudo isto resulta que a Autora encontrando-se a uma curta distância de sua casa, ao decidir nela não entrar e prosseguir o seu caminho, não desviou o seu percurso, mas sim prolongou-o, razão pela qual é de alterar a redacção da factualidade dada como assente sob a alínea H), apenas porque a expressão dada como provada “Findo tal trajecto” apesar de traduzir o que efectivamente decorre da conjugação da prova produzida em audiência de julgamento, é manifestamente conclusiva e envolve juízo jurídico integrador do thema decidendum.
Com efeito, decorre do n.º 4 do art.º 607.º do CPC que na fundamentação de facto apenas devem constar factos provados e não provados, por isso as conclusões e os juízos de valor devem ser ignorados, designadamente quando surgem como resposta sugestiva a uma questão essencial de direito, que constitui parte do objecto do litígio, ou seja saber se o acidente ocorreu no caminho do local de trabalho para a residência da autora. Não é assim de aceitar o uso de certas expressões com conteúdo simultaneamente de facto e conclusivo, quando elas integrem alguma das questões a decidir.
O artigo 646.º, n.º 4, do anterior Código do Processo Civil (CPC/1961) previa que a matéria de direito, incorrectamente inserida, fosse considerada não escrita, o que também se estendia às expressões vagas e/ou conclusivas respeitantes ao tema essencial a decidir. Atualmente não existe disposição equivalente, contudo temos continuado a entender da mesma forma, isto é estando em causa este tipo de matéria conclusiva, irrelevante ou de direito, o tribunal a ela não deverá atender.

Proceda assim parcialmente nesta parte a impugnação, passando a constar, no local próprio, do ponto de facto H) o seguinte:
“Alcançada a sua residência, a Autora, em vez de se dirigir e entrar no prédio, prosseguiu a sua marcha, pela Av. ..., em direcção ao Banco ..., situado a cerca de 150 metros da sua residência, para aí proceder ao levantamento de valores monetários;
Quanto a alteração reclamada para a alínea I) dos factos assentes referente às precisas distâncias entre a residência da autora e o local da queda e entre este e a agência do Banco ..., diremos que não se impõe ao tribunal proceder a qualquer alteração, pois para além de se revelar de irrelevante para a boa decisão da causa as precisas distâncias entre aqueles locais e sendo certo que não foram feita medições, que aliás seriam desnecessárias, já que para o efeito, apenas se revela de relevante a distância aproximada, para tal bastando a percepção minimamente razoável de tais distâncias. Por outro lado, o juiz a quo revelou conhecer os locais em questão e tendo fundamentado a sua convicção para dar estes factos como provados, quer nas regras da experiência, quer na conjugação de toda a prova produzida e resultando, quer das declarações prestadas pela autora, quer da sua própria alegação em sede de petição inicial a distância de sua casa ao local do acidente, não vislumbramos qualquer razão que imponha alteração/eliminação de tal distância, que como nos parece óbvio se refere a distância de trajecto efetuado a pé, por ser esse que está em causa. Acresce dizer que a distância avançada pelo funcionário do banco como sendo 20 ou 30 metros a distância entre o local do acidente e à agência bancária também não se alvitra de muito precisa, estando mais ou menos em consonância com o que consta da factualidade provada, não se impondo assim qualquer alteração na matéria de facto provada atenta a irrelevância que tal alteração.
Nesta parte improcede a impugnação.
Quanto à factualidade que consta da alínea L) dos pontos de factos provados, pretende a recorrente que se elimine do referido ponto de facto a expressão “junto à residência da autora“ por se tratar de uma afirmação genérica integradora de um juízo conclusivo.
Como já acima defendemos e bem refere a recorrente “as afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar se integrarem o thema decidendum, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que fazem parte do objeto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão”.
Contudo, a factualidade que pretende que seja eliminada da alínea L) dos pontos de facto provados ainda que possa ser considerada de conclusiva, não integra qualquer facto que se insira na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, mas sim traduz a prova produzida em audiência de julgamento.
Na verdade, a Recorrente, contrariando as declarações por si prestadas em audiência de julgamento vem agora colocar em causa que a agência do Banco A se situava a uma curta distância, na proximidade, junto, ou mesmo por trás do prédio onde reside.
Quanto a esta factualidade podemos dizer que a prova é exuberante no sentido de que a agência do Banco A se situava na Av. ... junto ao acesso à Praceta ..., situando-se o prédio onde a Autora reside, precisamente nessa Praceta, a seguir à agência do Banco A (actual farmácia F.), logo o prédio da Autora situa-se na proximidade, ou por trás, ou junto da agência do Banco A.
Assim sendo, não vemos como se possa omitir/eliminar tal factualidade, sem deturpar a factualidade que resultou da prova produzida, sendo certo que o deferimento da pretensão da recorrente tornaria os factos mais obscuros e menos precisos, contrariando a prova produzida bem como as suas próprias declarações das quais resulta que a agência do Banco A ficava junto do prédio onde reside tendo na altura optado por se dirigir à agencia do Banco ..., por ser cliente desta instituição bancária.
É de manter inalterada a redacção da alínea L) dos pontos de factos provados.
Por último, no que respeita ao ponto 1 dos factos não provados passar a constar dos factos provados apenas nos apraz dizer que para além de tal factualidade ser contraditória com outra que foi dada como provada, o certo é que não foi produzida qualquer prova que nos permita dar como provado que a autora caiu quando se deslocava do seu local de trabalho para a sua residência. Acresce ainda dizer que tal factualidade é manifestamente conclusiva e integra factualidade que se insere na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta à questão suscitada.
Em face do exposto podemos concluir que o ponto 1 dos pontos de facto não provado de forma alguma poderia vir a integrar a factualidade provada.
Resumindo, procede parcialmente a impugnação da matéria de facto.

3 - Da ocorrência do acidente de trabalho in itinere e respectivas consequências

Como resulta quer das alegações, quer das conclusões de recurso a Recorrente vem por em crise a subsunção jurídica que foi efectuada na sentença recorrida dos factos dados como provados, tendo como pressuposto a procedência da impugnação da matéria de facto com a alteração substancial e nuclear do quadro factual apurado pelo tribunal recorrido.
Ora, revelando-se de praticamente intocada a factualidade fixada pelo tribunal a quo, resultando da mesma a inexistência da ocorrência de um típico acidente de trabalho in itinere, teremos de concluir pela improcedência do recurso nesta vertente da impugnação da decisão de direito, salientando que na sentença recorrida foi feita a correcta subsunção dos factos provados ao direito, impondo-se contudo fazer umas pequenas considerações, para que não restem dúvidas quanto à bondade da decisão recorrida.
A recorrente alega que o desvio por si efectuado no regresso à sua residência – ir ao multibanco levantar dinheiro para pagar consulta do filho -, para além de se enquadrar num interesse atendível do trabalhador é de considerar que ocorreu no caminho de regresso do seu local de trabalho, uma vez que não tinha finalizado o trajecto
A questão que se coloca respeita no essencial ao apuramento da extensão do conceito de acidente de trajecto ou acidente in itinere nele se incluindo ou não o prolongamento do trajecto ainda que para satisfação de necessidade atendíveis do trabalhador, ou seja necessidades da vida pessoal e familiar do trabalhador.
Como por todos é consabido, é considerado acidente de trabalho o acidente que ocorre no trajeto de ida e para o local de trabalho ou de regresso deste nos termos definidos pelas alíneas a) a f) do n.º 2.º do art.º 9.º da Lei n.º 98/2009, de 04-09 (doravante NLAT). Trata-se de um acidente que assume, em regra, todas as características de um acidente que pode envolver qualquer meio de transporte ou pura e simplesmente uma deslocação a pé, como sucede no caso em apreço.
Como refere o Conselheiro Júlio Gomes, em “O acidente de trabalho - o acidente in itinere e a sua descaracterização”, pp. 162 e 163), “na génese do acidente de trajeto estava, ou a noção de que durante o trajeto se mantém o risco de autoridade por subsistir mesmo que atenuada, a subordinação ou dependência do trabalhador, ou a ideia de que o acidente de trajeto é, ainda, o resultado de um risco a que o trabalhador se expunha por força do trabalho e se expunha, pelo menos, na maior medida do que a generalidade das pessoas que também participam na circulação rodoviária.
Por seu turno refere Carlos Alegre, em Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2.ª edição, pág. 55, a tendência das teorias mais modernas é a de considerar que o risco é inerente ao cumprimento do dever de comparecer no lugar do trabalho, para nele executar a sua prestação, resultante do contrato de trabalho (ou equiparado) como uma das suas obrigações, instrumentais ou acessórias, eventualmente, a primeira delas, quotidianamente.
Nesta ordem de ideias, o trabalhador é obrigado a fazer o percurso necessário para poder comparecer no lugar pré-determinado, usando as vias de acesso e os meios de transportes disponíveis, a fim de que possam contar com a sua prestação.
Daqui resulta que o acidente in itinere é um acidente de trabalho que apesar de ter lugar fora do local e do tempo de trabalho tem de ter uma conexão com o trabalho, pois é a necessidade que o trabalhador tem de se deslocar por motivos laborais que o expõe ao risco do acidente.
As diversas alíneas do n.º 2 do art.º 9 da NLAT enumeram os diversos percursos protegidos na ida e no regresso do trabalho, desde que o acidente se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador. Salientamos, por ser o que aqui nos interessa, a al. b) do n.º 2 a qual se prevê como sendo acidente de trabalho o que se verifique entre a residência habitual ou ocasional do trabalhador e as instalações que constituem o seu local de trabalho.
Cabe ainda dizer que o requisito referente à habitualidade do trajecto deve ser interpretado de acordo com o previsto no n.º 3 do art.º 9 da NLAT no qual se estabelece o seguinte: “não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajeto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.
Ora, não se duvida que a lei quis proteger o trajeto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, no percurso normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador desde que inexistam interrupções. Contudo, se estas ocorrerem, não deixa de se considerar acidente de trabalho se as interrupções ou desvios tiverem sido determinados para satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.
A propósito do trajecto tutelado escreve o Conselheiro Júlio Gomes, na obra citada, pág. 177 que, “é, em princípio, aquele que o trabalhador empreende ao sair da sua residência habitual ou ocasional com a intenção de se deslocar para o seu local de trabalho e aqueloutro, de regresso a essa mesma residência habitual ou ocasional, a partir do seu local de trabalho, uma vez terminada a sua prestação.”
E a propósito de interrupções e desvios escreve o citado autor, na pág. 186, da obra citada que “a Lei permite em todo o caso interrupções ou desvios. As interrupções parecem ser, simplesmente, paragens, momentos em que o trabalhador deixa de se deslocar para o trabalho, reatando posteriormente essa deslocação, enquanto o desvio supõe um abandono parcial do itinerário ou trajeto normal.” E mais à frente refere ainda (págs. 188 e 189) a propósito das necessidades atendíveis do trabalhador, caso fortuito ou de força maior que, “parece-nos claro que serão, desde logo, necessidades da vida pessoal e familiar do trabalhador em que a nossa Lei, não exige sequer que sejam urgentes ou de satisfação imprescindível. Podem tratar-se de necessidades fisiológicas, de tomar um café ou um pequeno-almoço no caminho para o trabalho ou de almoçar findo o trabalho e antes de regressar a casa, de comprar medicamentos numa farmácia ou enviar uma carta registada, de levar ou ir buscar os filhos à escola ou ao jardim infância.”
Por fim, cabe agora debruçar sobre a questão que nos cumpre resolver a propósito de saber se podemos falar de desvio e da sua justificação quando o trabalhador partindo de um dos seus pontos de partida, neste caso do seu local de trabalho ultrapassa o destino legalmente previsto, no caso a sua residência habitual. Ou seja, importa apurar se o prolongamento de um trajecto/viagem pode ser considerado um desvio.
A esta questão respondemos de forma negativa, já que o prolongamento de um trajecto não é nem um desvio, nem uma interrupção, pois o desvio é o afastamento do caminho mais directo ou trajecto normal e a interrupção é uma paragem, reatando posteriormente o mesmo trajecto. Nestas duas situações as extremidades do percurso permanecem as mesmas continuando a verificar-se a conexão com o trabalho, pois é a necessidade que o trabalhador tem de se deslocar por motivos laborais que o expõe ao risco do acidente. O mesmo não podemos afirmar relativamente ao prolongamento de um trajecto, pois ultrapassada uma das extremidades do trajecto, este deixa de ser considerado de trajecto tutelado, pois deixa de ter qualquer conexão com o trabalho.
Retornando ao caso dos autos temos por certo que a ré Seguradora recusou responsabilizar-se pela reparação do acidente quer por o mesmo ter ocorrido findo o trajecto habitual realizado pela autora do local de trabalho para a sua residência, quer pelo facto de não se poder considerar que o desvio foi determinado por necessidades atendíveis da autora, importa agora analisar a factualidade provada

A este propósito provaram-se os seguintes factos:
- No dia 20/01/2017, a autora, em cumprimento de horário de trabalho previamente fixado, deu entrada nas instalações da ré empregadora, sitas na Avenida ..., n.º ..., em ..., Barcelos, pelas 07:03 e saiu pelas 16:22;
- Nesse momento, iniciou o trajeto de regresso para a sua residência, sita na Praceta ..., Edifício ..., Bloco A, ..., em ..., Barcelos, a cerca de 350 metros do seu local de trabalho;
- Alcançada a sua residência, a Autora, em vez de se dirigir e entrar no prédio, prosseguiu a sua marcha, pela Av. ..., em direcção ao Banco ..., situado a cerca de 150 metros da sua residência, para aí proceder ao levantamento de valores monetários;
- Nesse momento caiu no passeio da rotunda da Avenida ..., a cerca de 100 metros da sua residência e 50 metros da identificada agência bancária;
- No dia 20/01/2017, o filho da autora tinha agendado uma consulta de psicologia às 17 horas e 30 minutos;
-A autora decidiu levantar dinheiro para proceder ao pagamento de tal consulta médica;
- À data do acidente, existia um multibando no Banco A sito na Avenida ..., junto à residência da autora;

Da factualidade provada ressalta desde logo que o acidente ocorreu finda a jornada de trabalho da Autora e já depois do regresso do seu local de trabalho, uma vez que já havia ultrapassado o prédio onde reside, quando ocorreu o acidente, tendo assim este ocorrido num local (avenida) que não integra o trajecto direto entre a sua local de trabalho e a sua residência.
Na verdade, no caso dos autos não estamos perante um desvio do trajecto habitual, que é aquele que ocorre quando se verifique um abandono parcial do itinerário ou trajecto normal, mas sim perante uma situação de prolongamento desse trajecto, uma vez que chegado junto da sua residência, sem que tivesse entrado no acesso ao prédio, a autora decidiu prosseguir o seu caminho, em vez de entrar em casa, para levantar dinheiro para satisfazer o pagamento de uma consulta de psicologia que o seu filho tinha nesse mesmo dia.
Voltamos a referir que tal situação não configura um desvio do trajecto, porque este praticamente tinha terminado, podendo até afirmar-se que tinha finalizado, tendo então a autora iniciado um novo trajecto em direcção oposta à do seu domicílio. Neste caso são indiferentes as razões do trajecto empreendido pelo trabalhador, uma vez que o trata de um trajecto distinto no qual não se integra o desvio do trajecto (neste sentido cfr. Ac. RL de 18/06/2014, consultável, in www.dgsi.pt).
Caso assim não se entendesse também pelo facto de a sinistrada poder satisfazer a sua necessidade da vida pessoal e familiar que na altura surgiu – levantar dinheiro para pagar consulta do filho – no multibanco que existia junto de sua casa, sempre seria de considerar desnecessária e não atendível a deslocação a um outro multibanco que se situava a cerca de 150 metros da sua residência.
Em suma, o trajecto iniciado pela autora depois de ter alcançado a sua residência, no decurso do qual ocorreu o acidente, apenas pode ser considerado um prolongamento do trajecto e não um desvio, que por não manter qualquer conexão com a relação laboral e nem ter sido determinado por um qualquer motivo de força ou por caso fortuito ou por necessidade atendível, não pode ser considerado de acidente in itinere.
Assim sendo o acidente dos autos não é tutelado, já que se situa na esfera de risco própria da autora, para satisfação das suas próprias necessidades cujo perigo estava exposta mesmo sem o trabalho.
Improcede o recurso é de manter a decisão recorrida

V- DECISÃO

Pelo exposto, e ao abrigo do disposto nos artigos 87.º do C.P.T. e 663.º do C.P.C., acorda-se, neste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso de apelação interposto por M. C., confirmando-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas do desentranhamento e do recurso a cargo da Recorrente/Apelante, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.
Desentranhe entregue à recorrente os documentos junto com a alegação de recurso.
3 de Março de 2022

Vera Maria Sottomayor (relatora)
Maria Leonor Barroso
Antero Dinis Ramos Veiga