Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
302/19.2PABCL.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ELEMENTOS TÍPICOS DO ILÍCITO
INDEMNIZAÇÃO
ARBITRAMENTO OFICIOSO
IN DUBIO PRO REO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. O princípio in dubio pro reo constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos: após a produção da prova, o tribunal terá de decidir a favor do arguido, perante a persistência de uma dúvida razoável sobre os factos decisivos para a solução da causa. Normalmente, a imputação de uma alegada violação desse princípio suscita a necessidade de ser demonstrado o erro na apreciação da prova produzida, com vista a evidenciar no recurso a carência de prova de que os factos imputados ao arguido foram por este protagonizados ou de que se verificou qualquer circunstância de que a lei faz depender a punibilidade do mesmo.
II. No que concerne ao crime de violência doméstica previsto no art. 152º, do C. Penal, o tipo de ilícito, integrado no título dedicado aos crimes contra as pessoas e, dentro deste, no capítulo relativo aos crimes contra a integridade física, visa tutelar, não a comunidade familiar e conjugal, mas sim a pessoa individual na sua dignidade humana, abarcando, por isso, os comportamentos que lesam esta dignidade, podendo o bem jurídico protegido complexo – a saúde física, psíquica e mental – ser atingido por todos os comportamentos que afectem a dignidade pessoal da vítima.
III. Embora, em certos casos, uma só conduta, pela sua excepcional violência e gravidade, baste para considerar preenchida a previsão legal, tal crime pode unificar, através do elemento da reiteração – ainda que este seja hoje um requisito não imprescindível – uma multiplicidade de condutas que, consideradas isoladamente, poderiam integrar vários tipos legais de crime, mas que, pela subsunção a uma única previsão legal, deixam de ter relevância jurídico-penal autónoma: a realização repetida do tipo ou a realização repetida de actos parciais – quer estes actos integrem, ou não, em si mesmos, outros tipos de crime – não exclui a unidade de acção típica, não há pluralidade de crimes, mas pluralidade no modo de execução do crime.
IV. Necessário é aferir se a conduta do agente caracteriza um quadro global de agressão que evidencie um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de um risco qualificado para a sua saúde psíquica e com a configuração global de desrespeito pela sua pessoa ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, o que ocorre «quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima».
V. O artigo 21º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, de 16/9, impõe o arbitramento oficioso de indemnização à vítima de crime de violência doméstica, excepto havendo oposição da sua parte, remetendo para a aplicação do art. 82º-A do CPP.
VI. Não se admite o conhecimento da pretensão recursiva de redução de um quantum indemnizatório arbitrado oficiosamente à vítima em € 5.000, por força do disposto nos arts. 400º, n.º 2, do CPP, e 44º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26/8 (Lei de Organização do Sistema Judiciário).
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1. No processo comum singular supra identificado, por sentença proferida e depositada a 20/04/2020, o arguido J. C. foi condenado, como autor material de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do C. Penal, na pena de 2 anos e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, e a pagar à ofendida M. F. a quantia de € 2.000,00 a título de indemnização para reparação dos danos por esta sofridos advenientes da sua conduta.

2. Inconformado com essa decisão, o arguido interpôs recurso cujo objecto delimitou com as conclusões que a seguir se transcrevem:
«1.º. Não concorda o aqui recorrente com a douta decisão proferida pelo Mmo. Juiz “a quo”, na qual condenou o aqui arguido pela prática como autor material de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º n.º 1 alínea a) e n.º 2 do Código penal, na pena de 2 anos e 4 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo; e na condenação ao abrigo do disposto no artigo 82.º A n.º 1 do Código Penal e no artigo 21 da Lei 112/2009 de 16 de Setembro, a pagar a M. F. a quantia de €2.000,00 a título de reparação dos danos por esta sofridos com a prática do crime de violência doméstica.
2.º - Decidindo como decidiu, o Tribunal recorrido fez errada interpretação dos factos e inadequada aplicação do direito aos mesmos. Razão pela qual, não concorda o aqui recorrente com a sua condenação, já que em virtude dos factos produzidos em audiência de julgamento só poderiam resultar na sua absolvição do recorrente do crime que lhe foi imputado, em último, na dúvida, em princípio in dúbio pro reo.
3.º - Na verdade, como se irá demonstrar, resulta inequivocamente da prova realizada em audiência de discussão e julgamento, por si só e conjugada com as regras da experiência comum, que não foi produzida prova suficiente para julgar como provada a acusação pública deduzida pelo Ministério Público.
4.º - Não foi produzida prova suficiente sobre a data da ocorrência dos factos dados como provados, nem sequer circunstancialmente pelo qual foi aqui arguido condenado, sendo claramente insuficiente e dúbia a prova que o tribunal a quo valorou para a condenação.
5.º - Tanto mais que o tribunal a quo sustenta a sua motivação apenas numa testemunha, que pouco coerente, que salvo devido respeito por opinião contrária é insuficiente para dar os factos como provados, tanto mais que a ofendida recusou-se a prestar algum depoimento. E face a tal contradição, este depoimento quanto muito, poderia ter deixado dúvidas, e salvo devido respeito, na dúvida sobre determinado facto o tribunal deveria ter dado como não provado em cumprimento do princípio do in dúbio pro reo.
6.º - Na modesta opinião do recorrente, existe incorrecta e inadequada valoração e apreciação da prova pelo que, de harmonia com o disposto nos artigos 410.º e 412.º do Código de Processo Penal, deverá ser alterada a decisão sobre a matéria de facto, e os pontos 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º e 11.º mereciam ser dados como não provados.
7.º - Os factos tidos como definitivamente assentes, e salvo o devido respeito, parece vislumbrar dos mesmos a existência, relativamente à arguida ora recorrente, de um vício de insuficiência da matéria de facto provada a que alude o artigo 410º n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal e tanto mais, que há uma violação do princípio basilar do In dúbio pro reo, bem como há uma violação do artigo 82.º A e 123.º do CPP pela condenação na reparação dos danos.
8.º - Ou seja, toda a prova que o tribunal valorou e apreciou incorrectamente, pelos motivos e fundamentos legais citados na sentença, deve ser apreciada do modo que se passará a descrever e, em consequência, ser alterada a decisão sobre a matéria de facto.
9.º - Na modesta opinião do recorrente, “a produção da prova em julgamento visa-se oferecer ao tribunal as condições necessárias para que este forme a sua convicção sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença” (in Dias, Jorge de Figueiredo, Direito Processual Penal, Lições do Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, coligidas por Maria João Antunes, imprimido pela Secção de Textos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1988-89, pág. 135).
10.º - Entende-se que os pontos de facto que de seguida se menciona foram incorrectamente julgados, havendo violação do princípio da livre apreciação da prova, tudo nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea a) do CPP: Pontos 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 9.º, 10.º e 11.º dos factos provados, que devem ser considerados como não provados, pelos motivos que infra se descrevem.
11.º- “Isto porque no tocante ao princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal “a quo” não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente essa discricionariedade os seus limites, que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» – de sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo.” – cf. Figueiredo Dias, ob. cit., págs. 202-203.
11.º - O Arguido vinha acusado, entre outros factos que não se deram como provados, que em data não concretamente apurada mas num domingo entre os meses Outubro/Dezembro de 2018, no interior da residência e na presença da testemunha J. S. o arguido teria desferido um murro na boca, provocando uma forte hemorragia; no dia 16.07.2019 pelas 17h40m, o arguido J. C., deslocou-se até à residência da testemunha J. S., onde estava a residir a ofendida e desferiu-lhe vários murros e pontapés.
12.º - Ora, como se irá demonstrar os factos relatados pela Testemunha são contraditórios com os factos constantes da acusação, sendo ainda negados perentoriamente pelo Arguido e insuficientes para a condenação do mesmo.
13.º - O Arguido em sede de declarações prestadas em audiência de discussão e julgamento negou veemente todos os factos dos quais é acusado, manteve um discurso coerente e tranquilo, demonstrando a realidade dos factos. Relatou com veemência os problemas que o casal tem, devido aos problemas de alcoolismo que a vítima/ofendida padece e que são suportados pelos registos clínicos juntos aos autos.
14.º - Atendendo às declarações do Arguido aqui recorrente, gravadas no processo 302/19.2PABCL do 2.º Juízo Local Criminal de Barcelos, datada de 26.02.2020 das 10:07:21 até às 10:22:19, verificamos que a mesma nega a prática dos factos de todos os factos do qual vem acusado, conforme se transcreve:
Minuto: 01:32
Juiz: Diz-se aqui, começa-se por dizer que desde 2009 o senhor e a dona M. F. vivem em união de facto na Rua ... em Barcelos. É verdade?
Arguido: É verdade sim.
J: Mas isto ainda acontece hoje?
A: Sim, porque ela não tem para onde ir. Ela até é dependente de álcool.
J: Não percebi.
A: Ela não tem para onde ir. Ela é dependente de álcool. Que eu não sabia. Entretanto quando ela bebe um bocadinho a mais fica agressiva e violenta. E dá-lhe para estas coisas. Já não é a primeira vez que acontece. Eu sugeria se houvesse maneira de a mandar internar. Porque em vez de estar a condenar salvava-a, é a única maneira de acabar com isto.
Minuto: 02:14
15.º - O Arguido de forma clara, coerente e transparente negou os factos dos quais vem acusado, sustentando que todas as acusações efetuadas pela Ofendida são consequência do seu problema com álcool, facto que é corroborado pela testemunha J. S..
16.º - A ofendida em sede de audiência de discussão e julgamento recusou-se a prestar quaisquer declarações, não tendo em momento algum prestado declarações complementares no decurso do inquérito, nem sequer comparecido para efetuar a perícia médico-legal.
17.º - Pelo que, compulsados os registos clínicos juntos aos autos a fls., resulta claramente que a ofendida tem um problema com sério relacionado com o consumo excessivo de álcool que como bem se sabe conduz a comportamentos mais agressivos e inconscientes por parte da ofendida, facto que é corroborado pela testemunha J. S..
18.º - Assim, em depoimento J. S. prestado em sede de audiência de discussão e julgamento em 26.02.2020 com início às 10:23:01 e término às 10:32:01, conforme se transcreve:
Tempo: 06:18
Defensora/Arguido: Senhora testemunha só uma questão. O senhor disse à pouco que era normal o senhor J. C. ralhar com ela? porque é que ele ralhava com ela?
Testemunha: Não sei senhora doutora.
D/A: Não sabe os motivos.
T: Ela fazia queixa, retirava a queixa, fazia queixa, retirava a queixa.
D/A: Sim, mas a senhora não tem um problema com álcool, nada? Não é por isso que ele ralha com ela? Por causa do álcool.
T: Não, não. Ela por acaso bebe um bocado de álcool bebe. Quando está bebida demais ela é ruim de aturar. E o J. C. zanga-se com ela.
D/A: E é por causa isso que o senhor J. C. zanga-se com ela?
T: É.
D/A: E ela bebe muitas vezes, é por isso que há estas confusões?
T: É. Ela precisava era de um tratamento.
Minuto: 07:03
19.º - Do depoimento prestado pela testemunha J. S. resulta claramente que o mesmo não consegue precisar o que poderá efetivamente ter acontecido, apenas quando com muita insistência do Ministério Público é que consegue “reavivar” a memória.
20.º - Note-se que em momento algum a testemunha menciona quando ocorreram os factos, não sabe precisar qualquer data, nem tão pouco refere ou menciona um ano, mês ou dias. Não poderia ter o douto tribunal ter dado como provado a ocorrência de factos que em datas que em momento algum resultam de qualquer meio de prova ou de depoimento testemunhal.
21.º - Ora, na fundamentação de direito o douto tribunal a quo sustenta que ocorreram dois episódios “em momentos temporais diversos”, sendo que um desses eventos ocorreu em data não concretamente apurada, mas situada num domingo nos meses de Outubro/Dezembro de 2018, e outro num episódio verificado no dia 16.07.2010, cercas das 17h40.
22.º - Sucede que, não resulta da prova produzida em sede de discussão e audiência de julgamento qualquer produção de prova ou indício sobre o período temporal em que tais factos poderiam ter ocorrido. Porquanto, o arguido sempre negou a prática de tais factos, apenas reconhecendo que houve uma altura que efetivamente “colocou” a ofendida fora de casa devido aos seus problemas com o álcool.
23.º - Não faz sentido a presente condenação, até por clara violação do princípio in dubio pro reo consagrado na Constituição da República (art. 32.º, n.º 2) e com transcrição na Lei processual Penal, na forma da presunção da inocência do arguido. Princípio que "impõe que o julgador valore sempre em favor dele um non liquet e ainda que em processo penal não seja admitida a inversão do ónus da prova em seu detrimento." (Anot. art. 126.°, fls. 320 CPP, Maia Gonçalves).
24.º - Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; contemplando, e impondo uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.
25.º - Perante as provas reproduzidas e indicadas, verificamos, que, mesmo que o tribunal “ a quo” numa análise crítica e de acordo com o livre princípio da apreciação da prova, não pode deixar de ter em consideração os depoimentos e as declarações da recorrente que negam a prática dos factos. E face à existência de outros meios que denotam a possibilidade da prática do crime do qual vem acusado, verificamos que o tribunal a quo possui uma dúvida razoável que não e nem deve escamotear.
26.º - Perante a posição assumida pelo arguido, que negou perentoriamente a ocorrência dos factos do qual vem acusado, face à incoerência do depoimento prestado pela testemunha J. S., e por último perante o problema conhecido e reconhecido da ofendida com o consumo de bebidas alcoólicas, na ausência de demais prova e de acordo com o princípio in dúbio pro reo, um non liquet na questão da prova deve ser sempre valorado a favor do recorrente.
27.º - Na verdade, a insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, etc – isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena.
28.º - De acordo com as regras da experiencia comum e o principio da livre apreciação das provas, previsto no art. 127º do C.P.P., não existe prova suficiente que coloquem o recorrente como autor material do crime de violência doméstica de que vem acusado e no qual foi condenado nos presentes autos. Perante as alegações supra expostas, constatamos que o tribunal “ a quo” valorou erradamente a prova produzida em audiência de julgamento, não tendo tomado a devida atenção a toda a prova produzida.
29.º - A valoração das declarações livres e espontâneas do arguido, impunha a utilização destes meios de prova é imposta pelos princípios da investigação e da verdade material.
30.º - Não faz sentido a presente condenação, até por clara violação do princípio in dubio pro reo consagrado na Constituição da República (art. 32.º, n.º 2) e com transcrição na Lei processual Penal, na forma da presunção da inocência do arguido. Princípio que "impõe que o julgador valore sempre em favor dele um non liquet e ainda que em processo penal não seja admitida a inversão do ónus da prova em seu detrimento." (Anot. art. 126.°, fls. 320 CPP, Maia Gonçalves).
31.º - Perante a falta de prova só “Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de um ónus de prova a seu cargo, baseado na prévia admissão da sua responsabilidade, ou seja, o princípio ao da presunção de inocência” (Silva, Germano Marques da, Curso de Processo penal, Vol. I. Editorial Verbo, 2000, pág. 84).
32.º Resulta do tudo o exposto, que da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento que o julgador só poderia ter ficado na dúvida sobre a ocorrência dos factos relevantes, e perante esta dúvida não poderia ter decido contra o arguido.
33.º - Conclui-se que o tribunal violou o princípio in dúbio pro reo, em virtude de ausência de prova e na incoerência da prova produzida pela acusação. Pelo que, se o tribunal não lograr obter a certeza dos factos, mas antes permanecer na dúvida, como acontece nos autos, este terá que decidir em desfavor da acusação, absolvendo o arguido.
34.º - O que “in casu” e perante a prova produzida em audiência de discussão e de julgamento, deve o aqui recorrente ser considerado absolvido por se ter violado o princípio in dubio pro reo, constitucionalmente fundado no principio da presunção da inocência até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, previsto no art. 32º n.º 2.
35.º - O tribunal a quo não assegurou, quanto à reparação oficiosa dos alegados prejuízos sofridos pela ofendida, o exercício do contraditório, tal como exigido no número 2 do artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, para além de, in casu, não se verificarem os pressupostos de que depende a aplicação daquele normativo.
36.º - Com efeito, o tribunal a quo vedou ao arguido a possibilidade de se pronunciar acerca da reparação oficiosa dos prejuízos que a ofendida terá (alegadamente) sofrido e, bem assim, acerca da determinação não tendo possibilitado que o arguido se pronunciasse pela aplicação do normativo em causa ou sequer pelo valor arbitrado.
37.º - Ainda, não foi dado como provado em momento algum em sede de discussão e julgamento que a ofendida com as condutas pelo qual o arguido foi condenado terá atingido a sua saúde física e psíquica, produzindo-lhe ferimentos, dores físicas e mal-estar, medo, nervosismo, ansiedade, limitando a sua autodeterminação pessoal, humilhando-a e vexando-a. Tão pouco pronunciou-se a ofendida sobre tais factos, nem tão pouco a testemunha em momento algum do seu depoimento relatou tal nervosismo ou ansiedade.
38.º - Assim sendo, na sentença sindicada o tribunal a quo também violou o disposto no artigo 82.º-A e no artigo 123.º, ambos do Código de Processo Penal, o que deve determinar a invalidade da sentença, que deverá ser revogada em conformidade.
39.º - Por outro lado, não se verificam preenchidos os requisitos de que depende o arbitramento oficioso de qualquer quantia a título de reparação por prejuízos, porquanto não resulta existirem especiais de protecção da vítima. Aliás, é manifesto não estarem verificadas, in casu, quaisquer "particulares exigências de protecção da vítima", de que a lei faz depender a aplicação do instituto da reparação oficiosa dos prejuízos.
40.º - Tanto assim é, que o douto tribunal dá como provado que a ofendida e o arguido continuam a viver juntos, não existindo qualquer condenação acessória, designadamente, proibição de contactos.
41.º - Assim, ao condenar oficiosamente o arguido - ao abrigo deste preceito legal - no pagamento da reparação à ofendida, a sentença recorrida violou também o disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que não emita qualquer juízo de condenação do arguido na reparação dos alegados prejuízos»
42.º - Contudo, caso assim não se entenda, sempre se dirá que sendo o arguido absolvido do crime que lhe é imputado, concretamente pelo crime de violência doméstica nos termos supra expostos, têm necessariamente o arguido ser absolvido do pagamento da quantia de €2.000,00 – dois mil euros a título de reparação os danos sofridos pela ofendida nos termos do artigo 82.ºA n.º 1 do Código Processo Penal e artigo 21.º da Lei 112/2009 de 16 de Setembro.
43.º - Assim, impõe-se uma decisão diversa da recorrida, nos termos do disposto na alínea a) e b) do art. 431º e 412º n.º 3, ambos do C.P.P., e por violação clara dos preceitos legais: art. 203.º do CP; art. 127.º; 412.º, n.º 3, alínea a) e b) todos do CPP, e 32.º da CRP e violou o disposto no artigo 82.º-A e no artigo 123.º, ambos do Código de Processo Penal, e porque as provas citadas e reproduzidas, impõe a seguinte decisão:
- Considerar como não provados os factos 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 9.º, 10.º e 11 da sentença recorrida, e consequentemente decidir-se pela absolvição do aqui Recorrente.
44.º - Foram violadas as disposições legais constantes dos artigos 127º do C.P.P. e o princípio “in dúbio pro reo”, constitucionalmente fundado no principio da presunção da inocência até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, previsto no art. 32º n.º 2 da C.R.P., o art. 143º n.º 1 do C.P.

TERMOS EM QUE,
Revogando-se a douta sentença recorrida, substituindo por outro que decida em conformidade com as conclusões supra expostas, V. Exas. farão, como sempre, a habitual JUSTIÇA.».

3. Admitido o recurso, o Ministério Público, em 1ª instância, respondeu ao mesmo, pugnando pela sua total improcedência, dizendo, em apertada síntese, ter sido correctamente fixada a matéria de facto, por se ter baseado em prova suficiente da sua prática, inexistir violação do princípio in dubio pro reo e ser o devido o enquadramento legal dos factos.
4. E, neste Tribunal, também o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, no fundamentado parecer que elaborou, pugnou pela improcedência total do recurso, sustentando que o recorrente, para além de, não concretizar nos termos legais o apontado vício de insuficiência da matéria de facto que aponta à decisão recorrida, não logrou demonstrar que tivesse existido qualquer falha ou erro na apreciação da matéria de facto, mormente que tivesse havido violação do princípio in dubio pro reo, devendo a mesma ser mantida nos seus exactos termos. Defendeu, igualmente, que a pretensão do recorrente deve improceder no capítulo do questionado enquadramento jurídico, tal como no da indemnização arbitrada à ofendida, mormente na parte respeitante à ausência de contraditório, cuja alegação, segundo invoca, se deve a mero lapso.

5. Foi cumprido o art. 417º, n.º 2, do CPP e efectuado exame preliminar e, colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, nos termos do art. 419º, n.º 3, al. c), do CPP.
*
II - Fundamentação

Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (art. 412º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo de questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, neste recurso suscitam-se as seguintes questões:

1ª - A matéria de facto: (i) a insuficiência da matéria de facto e (ii) o erro de julgamento e a violação do princípio in dubio pro reo;
2ª - O enquadramento jurídico dos factos;
3ª - A indemnização arbitrada.
*
Importa decidir, para o que deve considerar-se como pertinentes os factos considerados provados e não provados, bem como a motivação da respectiva decisão (sic):

«1.º- Desde o ano de 2009, o arguido J. C. e a M. F. vivem em união de facto, residindo ambos na habitação, sita na Rua ..., n.º .., em Barcelos.
2.º- Dessa união, nasceu um filho, P. H., em -.09.2012.
3.º- Em data não concretamente apurada, mas situada num domingo nos meses de Outubro/Dezembro de 2018, no interior da habitação supra referida em 1, durante o almoço com J. S., amigo do casal, o arguido J. C. iniciou uma discussão com M. F. e, no decurso da mesma, abeirou-se dela e desferiu-lhe dois murros na face, provocando-lhe uma hemorragia.
4.º- Em dia não concretamente apurado do início do mês de Julho de 2019, no interior da habitação referida em 1., o arguido J. C. iniciou uma discussão com M. F. e, no decurso da mesma, agarrou-a e colocou-a fora de casa, fechando de seguida a porta e impedindo-a de ali entrar, vindo a mesma a ser acolhida por J. S., a quem foi pedir abrigo.
5.º- No dia 16.07.2019, cerca das 17h40m, o arguido J. C., desagradado pelo facto de a ofendida estar a residir na casa de J. S., deslocou-se até à residência deste, sita na Rua …, em Barcelos, para a ir buscar e obrigá-la a regressar à habitação de ambos.
6.º- Chegado ao local, o arguido J. C. ordenou a M. F. que regressasse a casa com ele e, perante a recusa daquela, desferiu-lhe duas bofetadas, um pontapé e um empurrão, provocando a queda da ofendida no chão, onde embateu com o seu corpo.
7.º- Tais agressões apenas cessaram graças à intervenção de J. S. que conseguiu afastar o arguido J. C. de M. F..
8.º- Volvidos alguns dias, M. F. reconciliou-se com o arguido J. C. e regressou à habitação do casal.
9.º- Com as condutas supra descritas o arguido J. C. provocou em M. F., de forma directa e necessária, ferimentos, dores físicas, mal-estar, nervosismo e ansiedade.
10.º- O arguido J. C. agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito, conseguido e reiterado, de molestar a integridade física de M. F., bem como de a afectar no seu bem-estar psíquico, não obstante saber que o seu comportamento desencadeava medo na ofendida, limitava a sua auto-determinação pessoal e que a humilhava e vexava, afectando a sua dignidade pessoal.
11.º- Sabia, igualmente, ser o seu comportamento proibido e penalmente punível.
12.º O arguido já sofreu as seguintes condenações:
a) por sentença transitada em julgado em 26.09.2002, pela prática, em 27.11.2001, de um crime de desobediência e de um crime de injúria, na pena única de 200 dias de multa, à razão diária de € 3,00;
b) por sentença transitada em julgado em 13.10.2008, pela prática, em 26.04.2008, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 80 dias de multa, à razão diária de € 6,50, bem como na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por 4 meses;
c) por sentença transitada em julgado em 15.03.2011, pela prática, em 13.02.2011, de um crime de furto qualificado, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo;
d) por sentença transitada em julgado em 16.04.2018, pela prática, em 07.11.2016, de um crime de auxílio material, na pena de 200 dias de multa, à razão diária de € 5,00.
13.º- O arguido e M. F. continuam a residir juntos na Rua ..., n.º …, em Barcelos, partilhando cama, mesa e habitação.
14.º- A habitação onde o casal reside é arrendada pela quantia mensal de € 200,00.
15.º- O arguido trabalho como montador de elementos pré-fabricados, auferindo um vencimento mensal de cerca de € 800,00.
16.º- A ofendida M. F. apresenta dependência do consumo de bebidas alcoólicas, adicção que já motivou pelo menos um internamento para desintoxicação, ocorrido em Dezembro de 2018, altura em que ingeria 3 litros de vinho verde branco por dia.

Factos não provados:

1.º- Desde o início da vivência em comum, o arguido tivesse manifestado para com M. F. comportamentos dominados por uma forte agressividade e por ciúmes exacerbados que sentia por ela.
2.º- Desde o início da vivência em comum com M. F. o arguido consumisse regularmente estupefacientes e bebidas alcoólicas em excesso.
3.º- No dia 21.05.2018, à noite, no interior da residência referida no ponto 1 dos factos provados, o arguido J. C. tivesse desferido murros na cabeça M. F. ou que a empurrasse pelas escadas, provocando o seu desequilíbrio e queda no chão.
4.º. O arguido tivesse praticado a conduta descrita no ponto 3 dos factos provados enquanto M. F. estava a dar a comida ao filho de ambos.
5.º- A conduta do arguido descrita no ponto 3 dos factos provados tivesse provocado a queda no chão de M. F..
6.º- A conduta do arguido descrita no ponto 3 dos factos provados tivesse cessado apenas com a intervenção de J. S..
7.º- Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no ponto 6 dos factos provados o arguido tivesse apodado M. F. de “puta” e/ou “vaca”.
8.º- Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no ponto 6 dos factos provados, enquanto M. F. se encontrava prostrada no chão, o arguido J. C. continuasse a desferir-lhe pontapés, bofetadas e murros em várias zonas do seu corpo.
9.º- No dia 22.07.2019, cerca das 22h30m, no interior da residência referida em 1., durante o jantar, o arguido J. C. tivesse arremessado um prato na direcção de M. F., atingindo-a no braço direito.
10.º- Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas no ponto anterior o arguido tivesse desferido vários murros e pontapés no corpo de M. F..
11.º- Ainda nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar supra referidas, o arguido tivesse agarrado M. F. pelos braços, arrastando-a até à porta da habitação, empurrando-a para o exterior, projectando-a contra a parede.»

Motivação:
«(…) Os factos dados como provados no que concerne à relação entre arguido e ofendida assentam, desde logo, no teor das declarações prestadas pelo próprio J. C. que confirmou essa realidade, nos termos descritos no ponto 1 da matéria assente, servindo o assento de nascimento de fls. 187/188 para certificar a existência de um filho, fruto dessa união.
Da mesma forma, o arguido também reconhecia a efectiva ocorrência dos factos descritos nos pontos 4 e 5 da matéria dada por provada, esclarecendo que foram os problemas da sua companheira relacionados com o consumo desmedido de bebidas alcoólicas que o levaram a expulsá-la da residência comum e ressalvando que, depois, quando a procurou em casa de J. S. não foi para a obrigar a regressar à habitação mas sim para lhe pedir a chave de casa, que M. F. mantinha na sua posse.
Já no resto, o arguido rejeitava as condutas que lhe estavam imputadas, negando que alguma vez tivesse agredido fisicamente ou injuriado a sua companheira.
Contudo, nesta parte, as declarações do arguido eram frontalmente contrariadas pelo depoimento do já referido J. S., pessoa que, nas circunstâncias descritas no ponto 4 dos factos provados, acolheu M. F. na sua casa, asseverando que, posteriormente, quando J. C. aí se deslocou, o seu objectivo era levar a ofendida consigo, e confrontado com a recusa desta em regressar a casa, aquele desferiu-lhe “duas chapadas, um pontapé e um empurrão”, provocando a sua queda no chão e levando que tomasse a decisão de intervir, colocando-se à frente do arguido, ao mesmo tempo que lhe dizia “não batas na mulher”.
Ainda no que respeita ao período temporal em que ocorreu este incidente, adiantava a testemunha que volvidos alguns dias, M. F. reconciliou-se com J. C. e regressou à habitação do casal, confirmando, nesta parte, as declarações do arguido.
Da mesma forma, depois de reconhecer que esteve presente no almoço descrito no ponto 3 dos factos provados, a aludida testemunha confirmou que, nessa altura, o arguido, na sequência de uma discussão com a ofendida, desferiu-lhe dois murros que provocaram o imediato sangramento dos lábios desta, acrescentando que a situação lhe provocou um grande desconforto, decidindo vir-se embora, logo depois de ter acompanhada M. F. à casa de banho.
O depoimento desta testemunha, à qual não se descortinava qualquer circunstância que pudesse por em causa a sua isenção e imparcialidade, mereceu toda a credibilidade, sendo inclusivamente de realçar que, tendencialmente, o seu discurso foi sempre no sentido de tentar desculpabilizar o arguido pelas condutas praticadas, com comentários como “isso é natural”, “são sempre zangas”, ou “é natural um casal insultar-se”.
Veja-se ainda que a testemunha confirmava ainda que M. F. tinha um problema com o consumo de bebidas alcoólicas, manifestando a opinião de que precisava de tratamento adequado a essa dependência.
A adicção de que padece a ofendida encontrava-se devidamente explicitada e evidenciada na informação clínica do Hospital de Braga de fls. 194 documento que serviu para, em conjugação com o aludido depoimento, para dar como provada a matéria constante do ponto 16.
Naturalmente que as consequências físicas e psicológicas que as condutas praticadas pelo arguido produziram na ofendida, nos termos dados como provados em 9, assentam nas mais elementares regras da experiência comum, tendo em conta o tipo de agressões físicas por aquele perpetradas.
A mesma explicação serve para os elementos subjectivos da conduta do arguido dados por provados, que também se extraem com recurso a critérios de normalidade, face à natureza dos factos por si praticados.
A matéria dada por inverificada justifica-se face a absoluta ausência de prova produzida em audiência de julgamento quanto ao seu conteúdo, tendo em consideração que o arguido, como já se viu, rejeitava a prática desses factos, a testemunha J. S. não revelava qualquer conhecimento directo dos mesmos e que a própria M. F. optou por recusar o seu depoimento, ao abrigo do disposto no artigo 134.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, não contrariando assim aquilo que, a esse propósito era alegado pelo seu companheiro.
As declarações do arguido foram ainda consideradas para dar como assentes as suas actuais condições de vida.
Finalmente o tribunal valorou o Certificado do Registo Criminal junto aos autos.».
*
III - O Direito.

1. A matéria de facto.

Como vem sendo entendido, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: pelo âmbito, mais restrito, dos vícios formais previstos no art. 410º, n.º 2, do CPP; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que o art. 412º, n.ºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma se refere.

1.1. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

O arguido imputa à decisão recorrida tal vício formal, mas não só não o concretiza como as conclusões e a motivação do seu recurso logo denunciam que o seu real inconformismo se dirige, essencialmente, ao modo como o Tribunal de 1ª instância apreciou e valorou os meios de prova produzidos em audiência de julgamento, sustentando que os mesmos são insuficientes para dar como provada a factualidade assente.
Realmente, quanto ao vício a que alude o art. 410º, n.º 2, alínea a) do CPP, seria suposto que a impugnação deduzida incidisse no eventual erro na construção do silogismo judiciário, não no chamado erro de julgamento, a injustiça ou a desadequação da decisão proferida ou a sua não conformidade com o direito substantivo aplicável (1). Tratar-se-ia, nessa vertente, de saber se na decisão recorrida se reconhece o vício invocado, necessariamente resultante do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
O que significa que só assume tal natureza o erro constatável pela simples leitura do teor da própria decisão da matéria de facto, não sendo admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para os fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (2). Apenas será de admitir a conveniência ou a cautela de, ainda assim, sindicar a fundamentação que haja sido feita sobre os factos provados e não provados, para se fazer uma avaliação correcta e poder concluir se, afinal, para um facto em aparente contradição com a lógica mais elementar e as regras da experiência comum, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, não foi fornecida naquela fundamentação um qualquer esclarecimento que torne compreensível o julgamento efectuado: por exemplo, se um facto dado como provado (ou não provado) contraria o senso comum, ou seja, a normal e corrente compreensão e interpretação das situações da vida, só a clara explicitação do percurso trilhado para a formação da respectiva convicção e a razoabilidade desta poderão legitimar a sua aquisição processual.
Assim, o vício atinente à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada só ocorrerá quando da factualidade vertida na decisão se colher faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição. Trata-se da formulação incorrecta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada (3).
No fundo, este vício consiste numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito, sobre a mesma.
Porém, este vício também não deve ser confundido com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, enquanto questão do âmbito da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP) (4).
Como linearmente se extrai, no caso em apreço, não se constata pela simples leitura do teor da decisão recorrida o vício (formal) que o recorrente lhe assaca, pois os factos considerados provados só podem sustentar cabalmente a absolvição da arguida, também não se vislumbrando, apenas perante o teor literal da decisão recorrida, que a apreciação dos meios de prova tivesse afrontado qualquer princípio jurídico ou as regras da experiência comum.
Em suma, o que está verdadeira e unicamente em causa é que o recorrente, tendo negado peremptoriamente os factos e tendo-se a ofendida recusado a prestar depoimento, não se conforma com a circunstância de o Tribunal de 1ª instância ter acolhido uma versão dos factos parcialmente favorável à acusação pública, aí fazendo radicar o aludido vício que aponta à decisão e que expressamente apoda de insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito.
Destarte, é forçoso concluir, face à concreta argumentação expendida nas conclusões do recurso, complementadas com a respectiva motivação, que o recorrente invoca a existência deste vício fora das analisadas condições legais, pois que se limita a extrair as ilações que tem por pertinentes da prova produzida, que contrapõe às do julgador, sem que logre demonstrar, através da análise estribada apenas na leitura do próprio texto do acórdão recorrido, a existência de qualquer ilogismo de percurso ou conclusão contrária à lógica das coisas, ao alcance, pela sua evidência, do homem comum.
Por conseguinte e sem necessidade de maiores desenvolvimentos, improcede a deduzida invocação do vício formal.

1.2. O erro de julgamento e o princípio in dubio pro reo.

Como se disse, a verdadeira pretensão do recorrente dirige-se à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, defendendo que os meios de prova produzidos não suportam os factos que ficaram a constar da respectiva enunciação. Sobressai das extensas conclusões do recurso [3ª a 34ª] a imputação ao Tribunal de 1ª instância da indevida valoração de tais meios de prova, porque, a par de a ofendida se ter recusado a depor, sobrevalorizou o depoimento da única testemunha ouvida em audiência, apesar das várias contradições em que diz ter incorrido, desconsiderando as sua próprias declarações, mormente quanto aos problemas de que a ofendida sofre advindos do consumo de bebidas alcoólicas. Sustenta, ainda, que, no apontado contexto, foi violado o princípio in dubio pro reo.
Para correctamente se impugnar a decisão com fundamento em erro de julgamento, é preciso que se indiquem elementos de prova que não tenham sido tomados em conta pelo tribunal quando deveriam tê-lo sido; ou assinalar que não deveriam ter sido considerados certos meios de prova por haver alguma proibição a esse respeito; ou ainda que se ponha em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, mas assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência – pela qualidade, sobretudo – dos elementos considerados para as conclusões tiradas.
É certo que a possibilidade de a Relação modificar a decisão da 1ª instância, sem que se imponha qualquer limitação relacionada com a convicção que serviu de base à decisão impugnada – ainda que, quanto à prova gravada, com a consciência dos condicionamentos postos pela limitação da acção do princípio da imediação –, é inteiramente congruente com o objectivo de garantir um duplo grau de jurisdição em matéria de facto, claramente prosseguido pela lei de processo (5). Todavia, uma vez invocado o erro de julgamento, embora a sua apreciação se alargue à análise do que se contém e pode extrair da prova documentada e produzida em audiência, a mesma é balizada pelos concretos pontos impugnados e meios de prova indicados, ou seja pelos limites fornecidos pelo recorrente, a quem se impõe o estrito cumprimento dos ónus de especificação previstos no art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP (6). É esta a doutrina recomendada pelo STJ, p. ex., nos sumários dos seus Acs. de 10-01-2007 e 15-10-2008 (7).
O que se visa é, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto que o recorrente especifique como tendo sido incorrectamente julgados, na sua perspectiva, a fim de poder obviar a eventuais erros ou incorrecções na forma como foi apreciada a prova.
Daí que a delimitação desses pontos de facto seja determinante na definição do objecto do recurso, cabendo ao tribunal da relação confrontar o juízo que sobre eles foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção, determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova apontados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
Sendo certo que neste tipo de recurso sobre a matéria de facto (impugnação ampla), o tribunal da relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.
Precisamente por isso, o recorrente que pretenda impugnar amplamente a decisão sobre a matéria de facto deve cumprir o ónus de especificação previsto nas alíneas do n.º 3 do citado art. 412º. A referida especificação dos concretos pontos factuais traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados. E a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico dos meios de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual impõem decisão diversa da recorrida. Exige-se, pois, que o recorrente refira o que é que nesses meios de prova não sustenta o facto dado por provado ou como não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.
Note-se que o cumprimento ou incumprimento da impugnação especificada pelo recorrente afecta os direitos do recorrido. Este, para defesa dos seus direitos, tem de saber quais os pontos da matéria de facto de que o recorrente discorda, que provas exigem a pretendida modificação e onde elas estão documentadas, pois só assim pode, eficazmente, indicar que outras provas foram produzidas quanto a esses pontos controvertidos e onde estão, por sua vez, documentadas. É que aos princípios da investigação oficiosa e da descoberta da verdade material contrapõem-se os do exercício do contraditório e da igualdade de armas, para que o processo se desenrole de acordo com o due process of law.
Daí a necessidade e importância da impugnação especificada, por permitir a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, devendo tais especificações constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas (art. 417º, n.º 3). Face ao nosso regime processual quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pelo recorrido e pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que, actualmente, se alcança com a indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação, como consta do n.º 4 do citado art. 412º.
É também por isso que se reconhece não existir fundamento bastante para rejeitar a impugnação da decisão numa situação em que, nas conclusões delimitadoras do objecto do recurso, tenha sido devidamente cumprido o ónus primário ou fundamental, identificando os concretos pontos de facto impugnados e as propostas de decisão alternativa sobre os mesmos, bem como os concretos meios de prova que imponham tal alternativa, já podendo – e até devendo – o cumprimento do ónus secundário ser satisfeito na motivação (corpo das alegações), para aí sendo relegadas a valoração dos concretos meios de prova indicados nas conclusões e a determinação da sua relevância para a distinta decisão proposta, bem como a indicação concreta das passagens da gravação (8).
E, nessa senda, a análise da impugnação tem que ser feita por referência à matéria de facto efectivamente provada ou não provada e não àqueloutra que o recorrente, colocado numa perspectiva subjectiva, não equidistante, tem para si como sendo a boa solução de facto e entende que devia ser provada.
Como em geral sucede, esta tarefa é norteada pela ideia de que a apreciação da prova, segundo o grau de confirmação que os enunciados de facto obtêm a partir dos elementos disponíveis, está vinculada a um conceito ou a um critério de probabilidade lógica preponderante e, especificamente, face a uma eventual divergência inconciliável de depoimentos, produzidos por pessoas dotadas de uma razão de ciência sensivelmente homótropa, prevalecerão os contributos colhidos por essa via, que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum.
É ponto assente na doutrina e na jurisprudência que na fundamentação da matéria de facto se hão-de indicar as razões por que se atribui credibilidade a certos meios de prova, incluindo naturalmente os depoimentos prestados, e a explicação das razões por que se não confere essa credibilidade a outras provas que hajam sido produzidas e que apontem em sinal contrário. O que implica, claro está, que todos os meios de prova sejam escrutinados quanto ao seu interesse e ao seu valor. Sabendo-se que as provas são, em princípio, apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127º CPP) é necessário que o processo de formação dessa convicção seja explicado, esclarecendo-se nomeadamente porque se entende que ele se encontra em conformidade com as regras da experiência. Isto significa que não basta afirmar que certo depoimento, onde se abordaram determinados pontos está de acordo com as regras da experiência e, por isso, é credível; é preciso, dar o passo seguinte que consiste exactamente em esclarecer de forma raciocinada a compatibilidade do seu teor com as tais regras da experiência. Tanto mais detalhadamente quanto a decisão esteja em aparente desconformidade com essas regras.
Num sistema como o nosso em que a prova não é tarifada, não podemos olvidar que o tribunal, orientado pela descoberta da verdade material, aprecia livremente a prova, não estando inibido de socorrer-se da chamada prova indiciária ou indirecta, nem das declarações de uma única testemunha (9), desde que credíveis e coerentes, as quais, ainda que opostas, em maior ou menor medida, ao depoimento do arguido, podem fundamentar uma sentença condenatória, se depois de examinadas e valoradas as versões contraditórias apresentadas se considerar verdadeira a contida naquelas declarações, em função de todas as circunstâncias que concorrem no caso.
Como é evidente, tais princípios não comportam apreciação arbitrária nem meras impressões subjectivas incontroláveis, antes têm, sempre, de nos remeter, objectiva e fundadamente, ao exame em audiência, com critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica, das provas aí validamente produzidas, visando a descoberta da verdade prático-jurídica e não a verdade transcendente, inalcançável, fruto de especulação projectada para fora do domínio da racionalidade prática, sem suporte em concretos argumentos e elementos de prova objectivos (10).
O tribunal deve interpretar a prova de forma conjugada e retirar as ilações lógicas, coerentes e de acordo com as regras da experiência comum. Estas regras, segundo o Prof. Germano Marques da Silva (11), «são generalizações empíricas fundadas sobre aquilo que geralmente ocorre. Tem origem na observação de factos, que rotineiramente se repetem e que permite a formulação de uma outra máxima (regra) que se pretende aplicável nas situações em que as circunstâncias fáticas sejam idênticas. Esta máxima faz parte do conhecimento do homem comum, relacionado com a vida em sociedade
Contudo, no âmbito penal, o princípio in dubio pro reo – a que o recorrente também aludiu – estabelece a imposição de que, após a produção da prova, o tribunal terá de decidir a favor do arguido, perante a persistência de uma dúvida razoável: exige-se uma pronúncia favorável ao arguido quando o tribunal não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Neste conspecto, esse princípio constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos, mas, como resulta do exposto, a violação desse princípio só se pode verificar quando o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido, não obstante a carência de prova de que os factos a este imputados foram por ele protagonizados ou de que se verificou qualquer circunstância que a lei faz depender a punibilidade do mesmo.
Normalmente, a imputação de uma alegada violação desse princípio suscita a necessidade de ser demonstrado o erro na apreciação da prova produzida, com vista a evidenciar no recurso a carência de prova de que os factos imputados ao arguido foram por este protagonizados ou de que se verificou qualquer circunstância que a lei faz depender a punibilidade do mesmo.
É certo que se a prova não pressupõe uma certeza absoluta também não se pode quedar na mera probabilidade de verificação de um facto. Assenta no alto grau de probabilidade do facto suficiente para as necessidades práticas da vida (12). Trata-se de uma liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, ou no dizer de Castanheira Neves da «liberdade para a objectividade» (13).
É por isso que nos casos em que o julgador não logra decidir com segurança com base nas mesmas e permanecendo uma dúvida consistente e razoável não pode desfavorecer a posição do arguido, só lhe restando concluir pela absolvição do mesmo por apelo do princípio in dubio pro reo (14), pois convém não esquecer que «o arguido beneficia da presunção de inocência: a prova para condenação tem de ser plena (...). Desde que a prova suscite (…) a possibilidade de diferente hipótese que não pode ser afastada, prevalece, por força da lei, a presunção de inocência».
Assim é, porque «a condenação de um inocente afecta muito mais gravemente a justiça, e por isso também o próprio interesse social, do que a não punição de um culpado» (15).
E, como é evidente, é na audiência de discussão e julgamento que tais princípios assumem especial relevo, tendo, porém, que ser sempre motivada e fundamentada a forma como foi adquirida certa convicção, impondo-se ao julgador o dever de dar a conhecer o seu suporte racional, o que resulta do art. 374º, n.º 2, do CPP.
É segundo esta perspectiva que hão-de ser apreciados os factos provados e não provados e a fundamentação que o tribunal recorrido levou a efeito para sustentar a sua convicção acerca deles, i. é, o processo avaliativo que o tribunal levou a cabo de modo a que se possa dizer com segurança se houve ou não uma apreciação arbitrária, caprichosa ou discricionária da prova produzida.

Analisemos, então, o sentido dos elementos de prova invocados na decisão impugnada e nas conclusões de recurso sobre os pontos da impugnação deduzida.
À luz do que acima expendemos, dum ponto de vista formal, o recorrente cumpriu satisfatoriamente o apontado ónus de especificação legalmente exigido para o conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto que formulou, identificando os concretos pontos de facto impugnados e propostas de decisão alternativa sobre os mesmos, bem como os concretos meios de prova que imporiam tal alternativa, indicando as respectivas passagens concretas da gravação para sustentar a versão que apresentou sobre os factos e transcrevendo excertos desses depoimento e declarações.
Contudo, sendo de verificação, praticamente, impossível a produção de prova sem discrepâncias ou contradições, ou, mesmo, sem divergência inconciliável, a sua existência não pode impedir o tribunal de procurar formular a sua convicção acerca dos factos, de acordo, como se disse, com um critério de probabilidade lógica preponderante e da prevalência dos contributos que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum ou de extrair conclusões de um facto conhecido para determinar um ou mais factos desconhecidos.
E foi este exercício que procurámos fazer, ainda que dentro dos limites traçados pelo objecto do recurso, para além de não se olvidar que, em sede de avaliação da credibilidade dos depoimentos, o tribunal de 1ª instância tem a seu favor a relação de imediação que se traduz no contacto pessoal e directo entre o julgador e os diversos meios de prova.
Por essa razão e também pelos específicos fundamentos de discordância invocados na impugnação da matéria de facto, umbilicalmente ligados à credibilidade que o tribunal recorrido atribuiu aos diversos meios de prova, e procedemos à audição de toda a prova produzida e gravada em audiência, podendo desde já adiantar que acompanhamos a leitura feita pelo Tribunal a quo sobre tais meios de prova, no sentido de ter sido feito prova segura que aponta, inequivocamente e sem margem para qualquer dúvida, para que os factos tidos por provados foram praticados pelo arguido nas circunstâncias que dos mesmos ficaram a constar, ainda que com alguma indeterminação quanto à temporal relativamente a parte desses factos.
Com efeito, o tribunal deve interpretar a prova de forma conjugada e retirar as ilações lógicas, coerentes e de acordo com as regras da experiência comum.
Recorrendo aos ensinamentos do Prof. Germano Marques da Silva, regras da experiência comum, “são generalizações empíricas fundadas sobre aquilo que geralmente ocorre. Tem origem na observação de factos, que rotineiramente se repetem e que permite a formulação de uma outra máxima (regra) que se pretende aplicável nas situações em que as circunstâncias fáticas sejam idênticas. Esta máxima faz parte do conhecimento do homem comum, relacionado com a vida em sociedade.” (16).
O recorrente pretende pôr em causa, os factos constantes dos pontos 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 9.º, 10.º e 11, visando a sua absolvição pela prática do crime de violência doméstica em obediência ao princípio in dubio pro reo, defendendo que deveria o Tribunal a quo ter atendido especialmente às suas declarações e julgar como não provados todos esses factos.
Porém, após exame do resultado das declarações prestadas pelo arguido e pela testemunha J. S., conjugado com os elementos documentais juntos aos autos, reiteramos que esses meios de prova permitem, sem margem para qualquer dúvida, concluir como o fez o Tribunal recorrido.
Concretizando.
O recorrente sustenta a sua impugnação, basicamente, na apreciação que faz das suas próprias declarações – dizendo que manteve um discurso coerente e tranquilo, relatando com veemência os problemas que o casal tem, devido ao consumo de álcool por parte da ofendida e que são suportados pelos registos clínicos juntos aos autos – e do depoimento da testemunha J. S., que reputa de contraditório e sem conter a referência às datas em que os factos teriam ocorrido.
Efectivamente, nas suas declarações o arguido negou a prática de qualquer acto de violência física sobre o corpo da ofendida, embora tenha descrito como muito atribulada a relação que manteve com a mesma, na medida em que, segundo disse, a ofendida ingere em excesso bebidas alcoólicas. Apenas admitiu a existência da discussão descrita no ponto 3. dos factos provados e que colocou a ofendida fora da residência do casal na data que consta do ponto 4., assim como a deslocação que fez posteriormente e na data que consta do ponto 5. a casa da testemunha J. S., embora tenha dito que o seu intuito foi apenas o de recuperar as chaves de casa que se encontravam na posse da ofendida.
Ao invés, a testemunha J. S., amigo do casal, relatou de modo coerente as observações que foi colhendo do relacionamento havido entre o arguido e a ofendida, confirmando, consistente e convincentemente, que o arguido num domingo quando estavam a almoçar se envolveu numa discussão com a ofendida e nessa sequência lhe desferiu dois murros nos lábios. Igualmente descreveu que acolheu a ofendida na sua casa quando o arguido a colocou fora da residência comum do casal e, ainda, como o arguido a molestou fisicamente no dia em que se dirigiu a sua casa pretendendo que a ofendida regressasse e tendo-se esta recusado, deu-lhe duas chapadas e um pontapé, tendo a mesma caído ao chão.
Contrariamente ao que afirma o recorrente, não se vislumbra a existência de incoerências e contradições no depoimento prestado pela testemunha J. S., e apenas a esse nos devemos ater, sendo o resultado obtido de tais elementos de prova perfeitamente ajustável às regras da experiência comum e da normalidade da vida.
Por outro lado, nenhuma razão assiste ao recorrente, quando reitera que não ficaram demonstradas as datas em que ocorreram os factos, sustentando que a testemunha J. S. não as soube concretizar, transcrevendo excertos do depoimento omissos quanto a tais datas.
Realmente, não pode olvidar-se que se é certo que a testemunha em causa não concretizou as datas em que ocorreram os factos, foi o próprio recorrente que as enunciou ao admitir parte dos factos: a data da discussão mantida na primeira situação, a data em que colocou a ofendida fora da residência comum e a data em que se dirigiu a casa da testemunha J. S. supostamente apenas com o intuito de reaver as chaves.
É certo que a ofendida se recusou a prestar depoimento. Contudo, da concatenação do depoimento prestado pela testemunha J. S. com as declarações do próprio arguido e os elementos documentais juntos aos autos extrai-se, meridianamente, que nenhum reparo merece a decisão recorrida e, consequentemente, não pode proceder a pretensão recursiva.
A alusão que nessa pretensão é feita à adicção alcoólica da ofendida – que, aliás, consta do item 16º da factualidade – teria subentendido o desiderato do recorrente em tentar evidenciar ser esse factor perturbador a única causa da sua própria conduta, tanto ao colocar a ofendida fora da residência comum do casal como no âmbito das discussões ocorridas – a nada mais do que isso se cingiu a sua admissão dos factos que lhe eram imputados –, enquadrando-a naquela dependência, na sequência de cujos efeitos a ofendida teria chamado os militares da GNR.
Porém, não logrou convencer o Tribunal, e bem, que o consumo de bebidas alcoólicas por parte da ofendida fosse o único suposto quadro fáctico que contextualizaria a formação dos seus próprios comportamentos, sendo certo que, ainda que assim sucedesse, nunca se mostrariam justificadas as agressões físicas e psíquicas perpetradas na pessoa da ofendida.
Também sobre o elemento subjectivo da factualidade tida por provada, mais uma vez, se tem que fazer uso das regras da experiência comum: em face dos apurados condicionalismos pessoais do recorrente, os particulares contornos da sua conduta têm um significado evidente, mais do que probabilidade séria daquele elemento subjectivo, a certeza da sua verificação, posto que manifestamente preenchido o conhecimento da totalidade dos elementos típicos, com o que é evidente a vontade da prática dos factos, sem que se verifique qualquer erro na apreciação da prova e sem contradição da fundamentação na modalidade de se terem dado como provados factos. Na verdade, é lícito aos juízes, na formação da sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, utilizar a experiência da vida, inferindo de um facto conhecido outro ou outros factos desconhecidos, convencendo sobejamente as explicações vertidas na decisão recorrida.
Assim, pese embora a inexorável privação de imediação, aderimos ao exame do Sr. Juiz, para quem, como resulta expressamente da respectiva motivação, os referenciados elementos confluíram no essencial, não lhe tendo suscitado reservas quanto à sua credibilidade, foram lógicos e coerentes com a realidade e com as regras da experiência comum e deles se extrai a materialidade que ficou a constar do elenco dos factos provados.
O Sr. Juiz indica cabalmente os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção e as razões pelas quais relevaram os meios de prova de que se socorreu e obtiveram credibilidade no seu espírito. Para tanto, não se limitando a indicar os concretos meios de prova geradores do seu convencimento, revelou as razões pelas quais, apoiando-se nas regras de experiência comum, adquiriu, com apoio na imediação e na oralidade da produção de tais meios, a convicção sobre a realidade dos factos tidos por provados e a inveracidade dos demais.
Ao recorrente assistia, evidentemente, o direito de apresentar a versão que lhe aprouvesse e que tivesse por mais adequada à sua defesa. Porém, o mesmo limitou-se a alegar a credibilidade ou falta dela do depoimento que refere, sem apontar argumentos ou provas impositivas de uma decisão diversa da que foi tomada pelo tribunal nos segmentos aludidos. Assim sendo, não tem fundamento a sua discordância quanto à decisão sobre a matéria de facto, pois entendemos que a decisão impugnada não merece censura, pois procedeu a uma correcta e devida ponderação de todos os meios de prova produzidos.
Por fim, dir-se-á que é certo que, se existisse a possibilidade razoável de uma solução alternativa ou de uma explicação racional e plausível diferente, dever-se-ia assentar a decisão na que se mostrasse mais favorável ao arguido, de acordo com o aludido princípio in dubio pro reo. Contudo, o apelo a este princípio, fundamentalmente como corolário da apreciação que o recorrente fez da prova, não colhe no caso em apreço, porquanto não se demonstra que o Tribunal de 1ª instância se tivesse defrontado com qualquer dúvida na formação da convicção, contra ela resolvida.
Efectivamente, atentando na motivação da decisão de facto, logo se constata que o Sr. Juiz não ficou em estado de dúvida: fica-se a conhecer, cristalinamente, o processo de formação da sua convicção, através do enunciado sobre o exame crítico da prova, com a justificação das razões pelas quais foram valorados e tidos em consideração o depoimento da testemunha J. S., em conjugação com os demais meios de prova produzidos, como acima se deixou explicito em detrimento da defesa apresentada pelo arguido.
E, conforme já exposto, a este Tribunal de recurso também não restaram dúvidas da prática pelo arguido dos factos assentes e, consequentemente, concluímos que foi acertada a avaliação feita em 1ª instância da prova produzida em audiência. Assim, perante a prova produzida, não se detecta qualquer pontual e concreto erro de julgamento ou patente irrazoabilidade na convicção probatória formada pelo Julgador (com imediação (17)).

2. O enquadramento jurídico dos factos.

O recurso interposto pelo recorrente, para além de ter visado a decisão sobre a matéria de facto, tem ainda como escopo o reexame da matéria de direito.
Ao arguido era imputando a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, 152.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a), e ainda, a título acessório, com as penas previstas pelo n.º 4 e n.º 5 do referido artigo 152.º, todos do Código Penal.
No que concerne ao crime de violência doméstica previsto no art. 152º, do C. Penal, a reforma penal de 95 introduziu significativas alterações neste domínio, enfrentando a importância crescente de agressões, humilhações, vexames, insultos e outros actos que acontecem, designadamente, no âmbito familiar e conjugal. A necessidade de criminalização de tais condutas, apesar de encapotadas, adveio da progressiva consciencialização acerca da gravidade, por se tratar de um fenómeno social de proporções alarmantes e altamente lesivo pelas suas repercussões ao nível da formação individual e da integridade do próprio tecido social. Condutas de que são vítimas pessoas particularmente vulneráveis e indefesas em razão dos vínculos, nomeadamente de natureza familiar ou análoga, que as ligam às pessoas dos seus agressores e em resultado dos quais se estabelecem entre estes e as vítimas relações de subordinação ou de domínio de facto, que as colocam em situação de dependência económica e/ou emocional.
O tipo de ilícito em apreço, integrado no título dedicado aos crimes contra as pessoas e, dentro deste, no capítulo relativo aos crimes contra a integridade física, visa tutelar, não a comunidade familiar e conjugal, mas sim a pessoa individual na sua dignidade humana, abarcando, por isso, os comportamentos que lesam esta dignidade (18). Assim, o bem jurídico protegido por este tipo de crime – a saúde física, psíquica e mental – é complexo e pode ser atingido por todos os comportamentos que afectem a dignidade pessoal da vítima (19).
O preenchimento do tipo legal não se basta com qualquer ofensa à saúde física, psíquica e emocional ou moral da vítima: «O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus tratos» (20).
Por outro lado, tal crime pode unificar, através do elemento da reiteração – embora este seja hoje um requisito não imprescindível – uma multiplicidade de condutas que, consideradas isoladamente, poderiam integrar vários tipos legais de crime, mas que, pela subsunção a uma única previsão legal, deixam de ter relevância jurídico-penal autónoma.
A unidade de acção típica não é excluída pela realização repetida de actos parciais, quer estes actos integrem, ou não, em si mesmos, outros tipos de crime. O tipo legal inclui na descrição da acção uma pluralidade indeterminada de actos parciais. Trata-se do que, na doutrina, é designado por realização repetida do tipo (21). Há crimes que se consumam por actos sucessivos ou reiterados, como se expressa no artigo 19º, n.º 2 do CPP, mas que são um só crime; não há pluralidade de crimes, mas pluralidade no modo de execução do crime.
Este crime «persiste enquanto durarem os actos lesivos da saúde física (que podem ser simples ofensas corporais) e psíquica e mental da vítima (humilhando-a, por exemplo) e a relação de convivência que faz dele um crime de vinculação pessoal persistente» (22).
Muito embora, em princípio, o preenchimento do tipo não se baste com uma acção isolada do agente (tão-pouco com vários actos temporalmente muito distanciados entre si), já vinha sendo entendido pela jurisprudência que, em certos casos, uma só conduta, pela sua excepcional violência e gravidade, basta para considerar preenchida a previsão legal (23).
A entrada em vigor da Lei n.º 59/2007 de 4/9 introduziu algumas alterações a tal ilícito, mas, no essencial e para o que aqui interessa, continua a ser punível, e em termos idênticos, a conduta do agente que inflija maus tratos físicos ou psíquicos à pessoa do seu companheiro, esclarecendo-se, então expressamente, que tal actuação pode ser “de modo reiterado ou não” e que aqueles maus tratos incluem “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”.
Todavia, no que respeita ao segundo dos elementos mencionados e tendo presente apenas o conceito de “maus tratos físicos”, há que atentar em que não basta para o seu preenchimento que o agente pratique factos que se subsumam na previsão do art. 143º, n.º 1 (ofensas à integridade física simples). É, também, necessário, que a actuação atinja o bem jurídico tutelado com a incriminação em apreço, ou seja que lese a dignidade, enquanto pessoa, da vítima (24). E para tal, não basta a simples e/ou isolada agressão ao cônjuge.
Necessário é que a conduta do agente, nesse conspecto, seja ofensiva do bem-estar da vítima, considerado, quer numa perspectiva física, quer numa vertente psíquica e mental. Por outro lado, por regra, relevam as condutas que se traduzam na prática reiterada de agressões a tal bem jurídico (25). Em caso de agressão isolada, por regra, estar-se-á apenas diante da possibilidade de verificação de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelos arts. 143º e ss.
E, a partir da Lei 19/2013, de 21/2, o preceito passou a abranger as aludidas condutas quando sejam relativas, não apenas ao ex-cônjuge, mas também a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.
Importa, assim, analisar e caracterizar o quadro global da agressão de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de maus tratos, o que por si mesmo, constitui, nas palavras de Nuno Brandão (26), «um risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima», e impõe a condenação pelo crime de violência doméstica.
O que releva é saber se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma é susceptível de se classificar como “maus tratos”. Conforme se escreveu no Ac. da RE de 30-06-2015 (27), «essa conduta deverá revelar ainda um “plus” de danosidade, quando, face ao restante entorno factual se pode concluir pela sua adequação a afectar a dignidade pessoal do outro elemento do casal». Esta decisão foi sintetizada pelo seguinte modo: «A imagem global do facto e a apreensão/percepção de todo o episódio de vida em apreciação relevam na delimitação da fronteira entre condutas que têm dignidade punitiva à luz do tipo de crime de violência doméstica e aquelas que não devem relevar para o direito penal, aqui. Condição necessária para a intervenção penal é sempre a ofensa efectiva de um bem jurídico (digno de protecção penal). A ratio do tipo “violência doméstica” não reside, na protecção da família, mas na protecção da pessoa individual na família, na tutela da sua dignidade, protegendo-a de um abuso de poder na relação afectiva. Ocorrendo os factos provados num quadro de relacionamento conjugal deteriorado, mas em que, apesar dessa degradação, os cônjuges se foram mantendo livremente no casamento, sem posições de dominância de um sobre o outro, interagindo sempre em condições de paridade e igualdade conjugal, uma agressão isolada e pouco intensa, que atingiu a integridade física da assistente, e outras ofensas pontuais ao seu bom nome, embora merecedoras de censura penal, não encontram tutela à luz do art. 152º do CP, e sim dos arts 143º, nº 1 do CP e 181º, nº1 do CP.».
Ou, ainda, como se salientou, duma forma, porventura mais impressiva, no sumário do Ac. deste Tribunal de 15-10-2012 (28): «A delimitação dos casos de violência doméstica daqueles em que a ação apenas preenche a previsão de outros tipos de crime, como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça ou o sequestro, deve fazer-se com recurso ao conceito de “maus tratos”, sejam eles físicos ou psíquicos. Há “maus tratos”quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima».
Se da imagem global dos factos não resultar este quadro de maus tratos, nos moldes e com os referidos contornos, que justifiquem aquela especial tutela e punição agravada, a situação integrará a prática de um ou dos vários crimes em causa e que de outra forma seriam consumidos por aquele.

O recorrente, para sustentar a não verificação dos requisitos do crime, uma vez mais, transpôs o seu ponto de vista para o domínio dos factos ou para o juízo que faz sobre o que deveria ser tido por provado. Ora, não podendo confundir-se matéria de facto com matéria de direito, uma vez ultrapassada essa questão com o reconhecimento da improcedência total da impugnação da decisão sobre aquela, a subsunção jurídica é feita mediante a matéria de facto já tida por fixada. Essa é uma questão arrumada e decidida no momento próprio, uma vez que, num juízo sobre os factos que reputámos de acertado, o Tribunal concluiu estar provado que:
O arguido, para além de ter colocado a ofendida fora de casa, agrediu-a por duas vezes, nomeadamente com murros na face, provocando-lhe uma hemorragia, bofetadas, pontapé e um empurrão. Além disso, protagonizou essa conduta com a intenção concretizada, em suma, de maltratar física e psiquicamente a ofendida e provocar-lhe diminuição da sua autoestima e dignidade pessoal.
Portanto, analisados os factos dados como provados, agora, em sede de aferição da tipicidade, é incontornável a conclusão de que os respectivos elementos se preenchem integralmente.
Dessa factualidade retiram-se, sem margem para qualquer dúvida, elementos suficientemente expressivos para se poder afirmar que o arguido atingiu o bem jurídico tutelado com esta incriminação que, neste conspecto, lhe vinha assacada com os “maus tratos físicos” infligidos à ofendida. Ou seja, que, com tais “maus tratos físicos”, o arguido lesou dolosamente a dignidade da vítima, enquanto pessoa, como, genericamente, já o dissemos.
Atento o contexto relacional em que foram praticadas, as condutas do arguido revelam um sentimento de hegemonia ou de domínio sobre a ofendida, com o intuito de atingir a sua personalidade, provocando-lhe diminuição da sua autoestima e dignidade pessoal.

3. A indemnização civil oficiosamente atribuída.

3.1. A nulidade processual decorrente da omissão do exercício do contraditório

Por fim, sustenta o arguido que o tribunal recorrido não assegurou o exercício do contraditório, tal como exigido no número 2 do artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, no arbitramento da indemnização cível, vedando-lhe a possibilidade de se pronunciar acerca da reparação a dos prejuízos que a ofendida terá (alegadamente) sofrido.
Vejamos.
O artigo 21º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, impõe o arbitramento oficioso de indemnização à vítima de crime de violência doméstica, excepto havendo oposição da sua parte, remetendo para a aplicação do art. 82º-A do Código de Processo Penal.
Existe entendimento uniforme da jurisprudência que em caso de condenação por crime de crime de violência doméstica, a lei impõe o arbitramento de indemnização à vítima, presumindo a existência de particulares exigências da sua protecção, só assim não sendo quando a ele se oponha a vítima expressamente.
No caso em apreço, tendo presente esse regime legal, o Tribunal a quo, concluindo estarem preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, fixou na quantia de € 2.000,00 a indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela ofendida em consequência da conduta do arguido, por se lhe afigurar equilibrada e adequada ao tipo de danos (violação da saúde física e psíquica), mas previamente, e ao contrário do afirmado pelo recorrente, foi este notificado expressamente, para, querendo, se pronunciar, bem como a sua ilustre defensora oficiosa, como se infere do despacho proferido aquando do recebimento da acusação. (cfr. Ref.ª 166724102, Ref. 166785020 e 166785239) ─, convite que declinaram pois não apresentaram contestação.
Assim, esta alegação, segundo pensamos, é fruto de mero lapso ou descuido, não se verificando a nulidade invocada.

3.2. Os pressupostos para o arbitramento da indemnização.

Insurge-se ainda o recorrente contra o arbitramento da indemnização, sustentando que não se mostram preenchidos os requisitos para esse efeito, porquanto é manifesto não estarem verificadas, quaisquer “particulares exigências de protecção da vítima”.
Todavia, é de rejeitar o conhecimento desta questão, por identidade de razão, face à não cognoscibilidade, em recurso, da quantificação da indemnização arbitrada no âmbito de um pedido de indemnização civil, quando o valor do pedido não exceda a alçada do tribunal de primeira instância ou não se verifique o requisito da sucumbência.
Com efeito, nos termos do disposto no art. 400º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
O art. 44º, n.º 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto), fixou a alçada dos tribunais de primeira instância em € 5.000,00 mantendo inalterado o valor fixado pelo art. 24º, n.º 1, da anterior Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro).
É certo que, sendo a indemnização atribuída oficiosamente, não existe um valor peticionado pelo lesado, no âmbito de um pedido cível por si deduzido.
Porém, não seria congruente na ordem jurídica admitir o conhecimento, em recurso, da pretensão de redução de um quantum indemnizatório arbitrado oficiosamente à vítima em € 5.000,00 ao abrigo do disposto no art. 82º-A do Código de Processo Penal, quando não é susceptível de recurso igual pretensão relativamente a um pedido de indemnização civil deduzido pela vítima no valor de € 5.000,00 e julgado totalmente procedente.
E o valor que o arguido foi condenado a pagar à ofendida (€ 2.000,00) também não excede metade da alçada do tribunal de primeira instância, pelo que nunca estaria verificado o requisito da sucumbência.
Impõe-se, pois, a rejeição do recurso na parte relativa à questão em apreço, por a mesma ser irrecorrível, não se conhecendo dela.
*
Decisão:

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em:
a) - Rejeitar o recurso na parte relativa à questão do valor da indemnização civil arbitrada à ofendida, não se conhecendo dela.
b)- No mais, negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a três unidades de conta (arts. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).
Guimarães, 14/09/2020

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado


1 Também aqui, nada tem a ver com qualquer destes vícios a adequação da fundamentação utilizada para julgar o objecto em apreço aos princípios jurídicos aplicáveis. Poder-se-á discordar da decisão, como, aliás, o recorrente demonstra ser o caso, mas não são razões de fundo as que subjazem ao vício imputado. A arguição de tais vícios não procede quando fundada em divergências com o decidido, sendo distintos do erro de julgamento.
2 Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2.ª ed., p. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 8ª Edição, pp. 73 e ss.
3 Como assinalam os já mencionados autores Simas Santos e Leal Henriques, (ob. cit., p. 74) este vício existe quando a factualidade dada como provada na sentença é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final ou, por outras palavras, quando a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito (cf. também Germano Marques da Silva, ob. cit., p. 340).
Também o Supremo Tribunal de Justiça vem considerando que o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena e circunstâncias relevantes para a determinação desta -, e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão (entre outros, cfr. Acs sumariados em Sumários de Acórdãos do STJ - Secções Criminais de: 4/10/2006, Proc. n.º 06P2678, em www.dgsi.pt; de 5/9/2007, Proc. n.º 2078/07; e de 14/11/2007, Proc. n.º3249/07).
4 Cfr. Acs. do STJ de 7/1/2004, P. n.º 3213/03, e de 29/4/1992, P. n.º 42535.
5 O legislador pretendeu um grau de recurso que atentasse e procedesse – dentro dos limites que uma gravação, despida dos factores possibilitados pela imediação consentisse – uma verdadeira e conscienciosa reapreciação da decisão de facto.
6 Como se expendeu no acórdão do Tribunal Constitucional nº 312/2012, relatado pelo Conselheiro Cura Mariano «…o direito ao recurso constitucionalmente garantido não exige que o controlo efetuado pelo tribunal superior se traduza num julgamento ex-novo da matéria de facto, face às provas produzidas, podendo esse controlo limitar-se a aferir se a instância recorrida não cometeu um error in judicando conforme já se decidiu no Acórdão n.º 59/2006 deste Tribunal (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), onde se escreveu: “Na verdade, seria manifestamente improcedente sustentar que o recurso para o Tribunal da Relação da parte da decisão relativa à matéria de facto devia implicar necessariamente a realização de um novo julgamento, que ignorasse o julgamento realizado em 1ª instância. Essa solução traduzir-se-ia num sistema de “duplo julgamento”. A Constituição em nenhum dos seus preceitos impõe tal solução…».
7 Processos nºs 06P3518 e 08P2894, respectivamente, ambos relatados pelo Conselheiro Henriques Gaspar.
8 É, aliás, no cumprimento deste último requisito que, segundo parece ser consensual, se deve estabelecer alguma maleabilidade, em função das especificidades do caso, da maior ou menor dificuldade que ofereça, com relevo, designadamente, para a extensão dos depoimentos e das matérias em discussão, uma vez que se considere que a insuficiência de tal indicação não dificulta de forma substancial e relevante o exercício do contraditório, nem o exame pelo Tribunal.
9 O provérbio “testis unus testis nullus” não tem, pois, definitiva relevância, apesar de muito ancestral. É hoje consensual que um único testemunho, pode ser suficiente para desvirtuar a presunção de inocência desde que ocorram: a) ausência de incredibilidade subjectiva derivada das relações arguido/vítima ou denunciante que possam conduzir à dedução da existência de um móbil de ressentimento, ou inimizade; b) verosimilhança – o testemunho há-de estar rodeado de certas corroborações periféricas de carácter objectivo que o dotem de aptidão probatória; c) persistência na incriminação, prolongada no tempo e reiteradamente expressa e exposta sem ambiguidades ou contradições (Nesse sentido, cfr., entre outros, António Pablo Rives Seva, La Prueba en el Processo Penal-Doctrina de la Sala Segunda del Tribunal Supremo, Pamplona, 1996, pp.181-187).
10 A óbvia vinculação dessa liberdade às regras fundamentais de um estado-de-direito democrático, sobretudo as vertidas na lei fundamental e na do processo penal, não obsta à busca da verdade material. Por ser condição da realização da justiça e da sua própria subsistência, não pode a concretização dessa tarefa, embora exercida com exigência e rigor, tropeçar em exagero ou comodismos, travestidos de juízos matematicamente infalíveis ou de argumentos especulativos e transcendentes, sob pena de essencialmente deixar de o ser e de o julgamento passar à margem da verdadeira, fundamental e íntima convicção dos juízes, com o risco indesejável de, assim, o tribunal abdicar da sua soberana função de julgar em nome da comunidade (cfr. Ac. STJ de 15/6/2000, in CJ(S), 2º/228, sobre a questão da livre convicção).
Mas, ainda a propósito da livre apreciação da prova, convém lembrar o que refere o Prof. F. Dias: «(…) o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida». E acrescenta que tal discricionaridade tem limites inultrapassáveis: «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» – , de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo». E continua: «a «livre» ou «íntima» convicção do juiz ... não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável». Embora não se busque o conhecimento ou apreensão absolutos de um acontecimento, nem por isso o caminho há-de ser o da pura convicção subjectiva. E «Se a verdade que se procura é...uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais – mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impôr-se aos outros». E conclui: «Uma tal convicção existirá quando e só quando ... o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável», isto é, «quando o tribunal ... tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse» - Direito Proc. Penal, 1º. Vol., pp. 203/205.
11 Curso de Processo Penal", Verbo, 2011, Vol. II, pág.188.
12 Como dizia Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, p. 191.
13 Rev. Min. Pub. 19º, 40.
14 Com efeito, como ensina Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. I, Verbo, 1993, pág. 41, «a dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado». Neste sentido se pronuncia, também, a generalidade da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, como o atestam, v.g., o Ac. da RP, de 21/04/2004, in www.dgsi.pt, no qual se refere: «O princípio “in dubio pro reo” é uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Ou seja, e dito de outro modo, quando o juiz não consiga ultrapassar a dúvida razoável de modo a considerar o facto como provado, com a certeza que se exige para tal, e porque não pode haver um “non liquet”, tem de valorar o facto a favor do arguido. a favor do arguido é consequente do princípio da presunção de inocência».
15 Cfr. Manuel Cavaleiro de Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, vol. 2º, 1986, Editora Danúbio, pág. 259.
16 Curso de Processo Penal", Verbo, 2011, Vol. II, pág.188.
17 Devendo anotar-se que a falta dessa imediação, sempre impõe a este Tribunal de recurso alguma cautela na afirmação de tal irrazoabilidade. Como se sabe, apesar de as palavras serem importantes, só uma percentagem da nossa comunicação é feita verbalmente. Ora o simples registo audiofónico da prova não permite interpretar, na sua plenitude, as emoções reflectidas nos sinais não-verbais (movimentos corporais ou expressões faciais), designadamente os involuntários e inconscientes, dos depoentes e demais intervenientes. Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, in “Princípios Gerais do Processo Penal”, p. 160, só a oralidade e a imediação permitem o indispensável contacto vivo com o arguido e a recolha deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por um lado, avaliar o mais contritamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Tal relação estabelece-se com o tribunal de 1ª instância, e daí que a alteração da matéria de facto fixada deverá ter como pressuposto a existência de elemento que pela sua irrefutabilidade, não possa ser afectado pelo princípio da imediação.
18 Como refere Taipa de Carvalho in Comentário Conimbricense, I, pp. 329 a 339.
19 V. Ac. da RP de 31/1/2001, p. 0041056-in dgsi.pt.
20 Plácido Conde Fernandes, “Violência Doméstica – novo quadro penal e processual penal”, Revista do CEJ, nº 8, p. 305.
21 Cfr., designadamente, Hans-Heinrich, Tratado de Derecho Penal, Parte Geral, Volume II, Bosch, Casa Editorial, S.A., pp. 998-999, e Manuel Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral, I, Editorial Verbo, 1992, pp. 546-547.
22 J. M. Tamarit Sumalla, in Comentários a la Parte Especial del Derecho Penal, 1996, p. 100.
23 V., entre outros, os Acs. do STJ 14/11/97, CJ 3º/235, de 5/4/06 (p. 06P468) e de 6/4/06 (p. 06P1167) e da RE de 29/11/05 (p. nº 1653/05-1).
24 Cfr. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense, p. 332.
25 Cfr., neste sentido, o Ac. da RC de 3/11/1999, CJ, 5º/123.
26 In “Tutela penal especial reforçada da violência doméstica”, Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010.
27 P. 1340/14.7TAPTM.E1, relatora Ana Brito.
28 P. 639/08.6GBFLG.G1, relator Fernando Monterroso