Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5769/20.3T8VNF.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: INSOLVÊNCIA
COLIGAÇÃO DOS DEVEDORES
UNIÃO DE FACTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/18/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

.1- Decorre do artigo 264º, nº1 do CIRE que só em casos excecionais é possível a coligação dos devedores, atento o carater pessoal da insolvência no âmbito das pessoas singulares: quando sejam casados entre si sob o regime de bens que não seja o da separação de facto e ambos incorram na situação de insolvência.
.2- A coligação, neste caso, tem fundamento na necessidade de proteger o casamento, mas só tem sentido quando as suas relações patrimoniais estão reguladas de forma a que exista uma comunhão de bens.
.3- Nos casos em que os cônjuges já se divorciaram, mas ainda não procederam à partilha, não se perspetiva para o futuro a existência de um património em mão comum (diferente da compropriedade) que justifique a defesa de um casamento dissolvido: existe, tão só, a necessidade de colocar termo ao património a que o seu casamento dissolvido deu lugar e que deixou de ter fundamento, por força do divórcio, pelo que neste caso não há fundamento para a coligação de devedores, não se justificando a interpretação extensiva desta norma.
.4- Porque a união de facto, no que toca ao regime patrimonial, no limite, se assemelharia aos casamentos celebrados no regime de separação de bens, visto que também aqui se não se consagra uma comunhão patrimonial e o artigo 264º do CIRE exclui a coligação também para os casamentos celebrados nesse regime, mesmo que se entendesse que a tutela da união de facto é tão vasta como a dada ao casamento (e não se entende), também não é possível a extensão da possibilidade da coligação à mesma.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

Requerentes e Apelantes:

1. M. C., com domicilio na Rua …, Edifício …, Freguesia de …, Concelho de Vila Nova de Famalicão. e
2. M. F., com domicilio na Rua …, Freguesia de …, Concelho de Vila Nova de Famalicão.
Autos de: Processo Especial para Acordo de Pagamento.

Os Requerentes, no seu articulado inicial, invocaram, em síntese, que se encontram divorciados desde julho de 2015 e que desde meados do ano de 2020, o seu então agregado familiar começou a ter falta de liquidez, em virtude da crise que se instalou; têm cumprido com sacrifício as suas obrigações, nomeadamente as prestações dos créditos e o seu rendimento líquido ronda os 1.300.00€ mensais, porque vivem em economia comum. Apresentaram a declaração emitida pela Repartição de Finanças competente para demonstração da liquidação dos seus rendimentos.
Obtida certidão de trânsito em julgado da decisão que recusou a homologação do Plano de Pagamentos de um anterior processo, veio a ser proferida decisão que indeferiu liminarmente o requerimento inicial, por julgar verificada a exceção dilatória da coligação ilegal dos Requerentes.

É deste despacho que recorrem os apelantes, com as seguintes
Conclusões

1. O Tribunal "a quo" responde “… julgo verificada a exceção dilatória da coligação ilegal dos requerentes e, consequentemente, indefiro liminarmente o presente requerimento”.
2. Este douto despacho interpreta que o facto dos aqui requerente / recorrentes se terem divorciado em 2015, estes não podiam interpor a presente ação coligados.
3. Ora, o Tribunal a quo, requereu certidão que se encontra junta aos autos, do processo n.º 5900/17.6T8VNF, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo do Comércio de Vila Nova de Famalicão – Juiz 1, onde se comprova a data da entrada da ação, 14/09/2017, bem como, a data do trânsito em julgado, 12/06/2018, isto é, tudo datas posteriores ao divórcio decretado aos requerentes, e sendo certo que, essa ação foi admitida e correu os seus termos.
4. Acresce que no pedido da presente ação, é explicado que o casal dissolveu o casamento, encontrando-se divorciados, mas, no entanto, nunca requereram a partilha de bens, porque reataram o seu relacionamento e vivem em união de facto desde 2016.
5. O casal vive em união de facto há mais de 4 anos, após o longo período de casamento.
6. Temos de considera-los marido e mulher, porque aguardam o nascimento do seu primeiro filho, previsto para janeiro de 2021, e sempre apresentaram o IRS com os rendimentos de ambos, em comum e conjuntamente.
7. O património apresentado por ambos é propriedade dos dois, e são ambos devedores perante os credores por si indicados, até porque, foram dividas assumidas em comum na constância do matrimónio.
8. Ora, salvo melhor opinião, o facto de viverem em união de facto há mais de 2 anos, faz com que beneficiem do regime jurídico da Lei n.º 7/2001 de 11 de maio, Lei de Proteção das Uniões de Facto.
9. No artigo 1º n.º 2 dessa Lei, com as sucessivas alterações, dispõe nos seguintes termos, “a união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas á dos cônjuges há mais de dois anos.”
10. Um dos efeitos desta proteção é o da aplicação do Regime do IRS, nas mesmas condições das aplicáveis aos sujeitos passivos casados.
11. Durante o casamento, o regime de bens dos requerentes foi sempre o regime de comunhão de adquiridos.
12. Os requisitos exigidos, para a coligação, quer no artigo 264º do CIRE, quer nos artigos 36º e 37º do CPC., respeitam e verifica-se os requisitos de coligação de devedores, uma vez que, existe conexão, de patrimónios comuns e de dívidas comuns.
13. Na hipótese académica do douto despacho ser considerado legal e manter-se, vejam o que poderá acontecer:
14. Cada um dos requerentes apresenta um plano de pagamentos distintos, a correr um em cada Juízo, a serem nomeados Administradores Judiciais Provisórios distintos, a termos dois Juízes de comércio distintos a apreciar a mesma matéria, os mesmos intervenientes, os mesmos credores, as mesmas dívidas e o mesmo património.
15. Isto irá criar uma incerteza jurídica e uma dificuldade de tramitação entre dois Juízes distintos, dois Administradores distintos, dois planos, etc.
16. Quando, e voltamos a reiterar, os requerentes vivem como marido e mulher em união de facto há mais de 4 anos, e possuem ambos o mesmo património, as mesmas dívidas o mesmo domicilio fiscal e o mesmo IRS.
17. Até por uma economia processual, não se deve separar os requerentes, conforme acórdão do TRL de 07/11/1977.
18. Salvo melhor opinião o acórdão do TRG, de 11/11/2010, não tem aplicabilidade ao caso concreto, uma vez que, no presente caso ao contrário do aí decidido, nestes autos verifica-se uma conexão e são respeitados os requisitos da coligação de devedores.
19. Conforme se refere nos itens da motivação inicial deste recurso, temos de equacionar a segurança jurídica e a proteção do caso julgado, ora se em 2017 foi apreciado um processo em tudo semelhante aos dos presentes autos e a justiça funcionou, não se vê o porquê de em 2020 ocorrer uma interpretação distinta e violadora do caso julgado.
20. A invocação de caso julgado tem por objetivo impedir, em nome da segurança e paz jurídicas, bem como por objetivos de imperativos de economia processual por forma a não ocorrerem sentenças sobre os mesmos factos e a mesma matéria distintas.
21. Invoca-se um acórdão que não versa diretamente sobre esta matéria, mas que, aprecia a questão de um casamento que após a sua dissolução passou a relacionamento de união de facto, acórdão do STA, de 09/07/2020, in www.dgsi.pt.
22. Com esta decisão, o Tribunal a quo, violou as seguintes disposições legais, nomeadamente a interpretação dada aos artigos 264º e 265º do CIRE e os artigos 36º e 37º do CPC, e o artigo 13º da CRP, e artigo 1º n.º 2 da Lei 7/2001 de 11 de Maio.”
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Admitido o recurso, foi proferida decisão singular, da qual foi apresentada reclamação, dando causa à prolação do presente Acórdão.
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I. Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).

--Da impossibilidade de fixar o objeto do recurso tal como indicado pelos Recorrentes, por se fundar em factos novos.

Este tribunal não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e no caso de os autos conterem os elementos necessários para o efeito ( artigo 665º nº 2 do mesmo Código de Processo Civil).
Os recursos são meios de impugnar decisões judiciais, pelo que o tribunal que os vai apreciar não pode conhecer questões que o não foram anteriormente, que não possam ter sido valoradas na decisão recorrida, por não lhe terem sido apresentadas pelas partes no momento devido. Por isso, permite apenas o artigo 665º nº 2 do Código de Processo Civil que o tribunal conheça questões não examinadas na decisão recorrida se estas o não foram, quando ficaram prejudicadas pela solução dada ao litígio.
Esta é uma das consequências do disposto no artigo 608º nº 2 do Código de Processo Civil, conjugado com o princípio da preclusão.
Se se não restringir o objeto dos recursos às questões que se apresentaram e apresentavam ao tribunal a quo, pôr-se-ia em causa a existência de diferentes graus de jurisdição, impedindo que as questões de determinada natureza ou valor a que a lei sujeita a mais que um escrutínio fossem objeto desse crivo.
Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas e não a analisar questões novas, salvo quando, nos termos já referidos, estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis” in António Santos Abrantes Geraldes, Recursos No Novo Código De Processo Civil, 4ª ed., pág. 111.
Ora, embora os Recorrentes afirmem nas alegações e conclusão de recurso que no requerimento inicial invocaram que “o casal vive em união de facto há mais de 4 anos, após o longo período de casamento”, certo é que não o fizeram, pelo menos quanto ao prazo e ao início da união de facto com mais de 4 que agora trazem aos autos.
Da mesma forma não invocaram naquele requerimento nada que se aproxime da necessidade de os considerar “marido e mulher, porque aguardam o nascimento do seu primeiro filho, previsto para Janeiro de 2021, e sempre apresentaram o IRS com os rendimentos de ambos, em comum e conjuntamente”, que “durante o casamento, o regime de bens dos requerentes foi sempre o regime de comunhão de adquiridos” e que “O património apresentado por ambos é propriedade dos dois, e são ambos devedores perante os credores por si indicados, até porque, foram dívidas assumidas em comum na constância do matrimónio”.
De todos estes factos apenas se encontram duas referências indiretas e insuficientes para os considerar alegados: que vivem em economia comum (situação que se funda apenas numa ligação económica, diferente de viver condições análogas às dos cônjuges, em comunhão de mesa, leito e habitação, por não contemplar, nem a parte afetiva, nem sexual, sendo certo que não invocam, nem o seu início, nem a ausência de partilhas); quanto ao IRS apresentado em comum, apenas o aduzem quanto ao ano de 2019.
Por via da obrigação imposta aos demandantes trazida pelo disposto no artigo 552º nº 1 alínea d) do Código de Processo Civil, ex vi artigo 549º nº 1 do mesmo diploma, correlativo do princípio do dispositivo, de que o artigo 5º nº 1 do Código de Processo Civil é afloramento (“Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir…”), essencial para o efetivo exercício do contraditório e da responsabilidade das partes, de “Expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação”, estariam os Requerentes inibidos de, nesta fase, trazer estas novas razões de facto e de direito que fundamentariam a sua pretensão, logrando que fosse conhecido facto que não invocaram (que vivem há mais de dois anos como se cônjuges fossem, não obstante o divórcio e nunca efetuaram as partilhas dos bens do casamento que haviam celebrado no regime de comunhão de adquiridos).
Com efeito, o nosso Código de Processo Civil, não admite que venham a ser conhecidas novas causas de pedir em sede de recurso (exceto se forem de conhecimento oficioso), que não haviam sido apresentadas em sede de articulados.
Destarte, no rigor, estes factos não podem ser atendidos para a apreciação do recurso (sem prejuízo de se poder fundamentar infra a sua irrelevância para a decisão, apenas para reforçar a conclusão que se operará).

Assim, as questões que aqui importa apurar são:

1-- se a decisão de indeferimento liminar viola o caso julgado;
2-- se é possível a coligação de Requerentes no processo especial para acordo de pagamentos, nos termos do artigo 264º nº 1 do CIRE, não obstante estarem divorciados entre si, com fundamento numa atual vivência em economia comum.

II. – Fundamentação de Facto

- Correu termos um processo especial para acordo de pagamentos iniciado pelos ora Requerentes, sob o nº 5900/17.6T8VNF, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo do Comércio de Vila Nova de Famalicão – Juiz 1, cujo plano de pagamento, por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24 de maio de 2018, não foi homologado.

III. Fundamentação de Direito

- Do caso julgado

Como decorre dos artigos 576º n.º 2, 577º alínea i), 578º, 580º, n.º 2 todos do Código de Processo Civil, quer a litispendência, quer o caso julgado, são exceções que pressupõem a repetição de uma causa estando a anterior ainda em curso. Têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.
Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico.
O caso julgado é exceção dilatória de conhecimento oficioso: impede que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância, como impõem os artigos 578.º e 576.º, nº 2, do Código de Processo Civil.
A invocação do caso julgado traduz-se pois, “na alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgado por decisão de mérito, que não admite recurso ordinário”, cf. Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 307.
Tem uma função positiva e uma função negativa, como escreveu Alberto dos Reis in Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, págs. 93 e 94.
Pela função positiva protege-se a imposição do decidido, traduzida na sua exequibilidade. Pela negativa, impede-se que a mesma causa seja apreciada novamente nos tribunais.
A atribuição da força de caso julgado às decisões vinculativas proferidas nos tribunais é uma exigência da segurança jurídica, elemento essencial a qualquer ordenamento num Estado de Direito, assim como da boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social.
Impede mais do que um julgamento para cada questão, que estas sejam intentadas várias vezes, que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e funda a composição definitiva dos litígios.
Ora, a questão da viabilidade de coligação de ex-cônjuges em economia comum (ou mesmo em união de facto, ou sem partilhas efetuadas) neste tipo de processos não só não foi o objeto do anterior processo, como nem sequer vem invocado que foi discutida no anterior processo, pelo que a sua decisão em nada pode influir com a que aqui seja apurada; veja-se que a matéria de mérito (não processual) ali decidida respeita a diferente período e diferentes pressupostos e por isso não tem relação com a aqui em discussão.
A discussão da possibilidade de coligação em determinado processo versa sobre um pressuposto processual. A impossibilidade da coligação consiste numa exceção dilatória, com efeitos unicamente dentro da relação processual, pelo que apenas terá força obrigatória dentro do processo. Assim, qualquer decisão que naquele processo fosse proferida sobre essa matéria (e que se não conhece) apenas poderia fazer caso julgado formal no âmbito daquele processo, não num outro.
Com efeito, o artigo 620.º do Código de Processo Civil específica que as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo e o artigo 625.º do mesmo diploma determina que havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar, sendo aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual.
Mas nada disso se passa neste processo, visto que apenas se pretende que o não conhecimento da eventual exceção dilatória noutro processo (embora coincidente quanto à especialidade) vincule uma decisão relativa à relação processual do presente processo, o que não tem substrato legal, como se viu.
Não se verifica a invocada exceção do caso julgado.

-Dos requisitos para a apresentação conjunta dos cônjuges a processo especial para acordo de pagamentos:

O artigo 264º, nº1 do CIRE dispõe que «incorrendo marido e mulher em situação de insolvência, e não sendo o regime de bens o da separação, é lícito aos cônjuges apresentarem-se conjuntamente à insolvência (…)».
“Nos termos do artigo 264º, nº1 do CIRE, são dois os requisitos de que depende a possibilidade de os cônjuges se apresentarem conjuntamente à insolvência: a) encontrarem-se ambos os cônjuges em situação de insolvência; b) não ser o regime de bens do casal o da separação.” como se escreveu no acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 11/11/2010, no processo 3777/09.4TBGMR-C.G1,disponível no portal dgsi.pt.
Atento o carater pessoal da insolvência no âmbito das pessoas singulares, o CIRE só em casos excecionais prevê a possibilidade da coligação dos devedores: quando os mesmos sejam casados sob o regime de bens que não seja o da separação de facto.
Esta coligação tem fundamento na necessidade de proteger o casamento, mas só tem sentido quando as suas relações patrimoniais estão reguladas de forma a que exista uma comunhão de bens.
Das alegações efetuadas no requerimento inicial apenas resulta que os Requerentes foram casados e que se divorciaram em 2015, vivendo atualmente em economia comum, tendo apresentado em 2019 declaração fiscal dos seus rendimentos conjuntamente.
É, assim, claro, que não invocaram qualquer situação que preencha os requisitos previstos para a coligação de devedores prevista no artigo 264º nº 1 do CIRE.
Não pode proceder o recurso face a tais factos. No entanto cumpre aprofundar a questão, face à invocada relação entre os Requerentes e ao estado dos seus bens.

-Da coligação de Requerentes no processo especial para acordo de pagamentos, com fundamento no facto de terem sido casados entre si, mas viverem atualmente em economia comum.

Cumpre agora averiguar a segunda questão trazida aos autos pelos Recorrentes, expurgada, no entanto, dos factos novos e nova causa de pedir (uma união de facto entre eles, face a uma comunhão de vida, casa, mesa e leito com mais de dois anos ou a ausência de partilhas na sequência do divórcio) que trouxeram aos auto apenas neste recurso e que, como se viu supra, não podem ser tidos em conta, por não poderem agora alterar a causa de pedir.
A união de facto consiste na “situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos” (artigo 1º nº 2 da Lei n.º 7/2001, de 11/05). Com efeito, “apesar de o modelo matrimonial continuar a ser o preferido pela sociedade e pelas suas leis, o Estado não pode hoje ignorar e desprezar os cidadãos que fazem escolhas diferentes, ou que geram situações de necessidade por virtude das escolhas que fizeram; ou que, simplesmente, inaptos para fazerem escolhas, se encontram em situação de carência importante” (cf. Tiago Nuno Pimentel Cavaleiro, in A União De Facto No Ordenamento Jurídico Português, Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, in https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/28646/1/A%20uniao%20de%20facto%20no%20ordenamento%20juridico%20portugues.pdf).
Porque a união de facto exige bem mais que uma vida em economia comum, visto que implica uma vivência em conjunto e em condições análogas às dos cônjuges, numa comunhão plena de vida que se traduz numa comunhão de mesa, leito e habitação, há mais de dois anos, e estes factos não foram invocados, como se viu, não pode aqui ser considerado o regime estipulado para tal união.
Assim, a vivência em economia comum invocada pelo Requerente e a apresentação da declaração fiscal conjunta em nada alteram a impossibilidade de se considerar preenchido o artigo 264º nº 1 do CIRE, mesmo que se lhe atribuísse âmbito mais lato do que resulta da interpretação da sua letra, por não haver que lhe atribuir a defesa que é concedida às famílias (constituídas por casais de diferente ou do mesmo género, com ou sem filhos) criadas com base exclusivamente numa situação de facto, não formalizadas.

--Da união de facto

Mas mesmo que se viesse a considerar que os Requerentes viviam em união de facto há mais de dois anos, tal não alteraria a decisão a tomar:

- Em primeiro lugar porque a tutela legal das uniões de facto não é tão vasta como a que se verifica em relação ao casamento. «(…) Não assumindo compromissos, os membros da união de facto não estão vinculados por qualquer dos deveres pessoais que o artigo 1672º CCiv impõe aos cônjuges. (…)», e não «…têm aplicação as regras que disciplinam os efeitos patrimoniais do casamento independentes do regime de bens, o chamado “regime primário” (arts 1678º-1697º CCiv)(…)», cf. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito Da Família, 2ª edição, vol. I, 100 e 102.2” apud Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/24/2017, no processo 3712/15.0T8GDM.P1.S1, disponível no portal dgsi.pt.
Porque a Lei n.º 7/2001Lei não preceitua a generalidade das relações patrimoniais que se venham a desenrolar entre os conviventes, há que recorrer para as regular ao regime geral das relações obrigacionais e reais, visto que as que regulam o casamento são especiais.
“As regras substantivas que regulam as relações entre os cônjuges, bem como entre estes e terceiros, são regras especiais que não compreendem aplicação analógica” (cf. o já citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/24/2017, no processo 3712/15.0T8GDM.P1.S1, disponível no portal dgsi.pt.)
--- Em segundo lugar, porque a união de facto, no que toca ao regime patrimonial, no limite, se assemelharia aos casamentos celebrados no regime de separação de bens, porque também aqui se não se consagra uma comunhão patrimonial e o artigo 264º do CIRE exclui a coligação também para os casamentos celebrados nesse regime.

- Da possibilidade de coligação de devedores divorciados que ainda não procederam à separação de patrimónios.

Resta apenas, o facto não alegado, de não ter tido lugar, ainda, a partilha de bens entre os ex-cônjuges.
Toda a Secção III, do Capítulo II, do Título XII, do CIRE, que versa sobre a insolvência de ambos os cônjuges, pressupõe, para a sua aplicação, que os mesmos ainda estão casados entre si; a especial regulação na lei pretende defender o casamento e a situação de cada um dos cônjuges face ao especial regime a que este se sujeita.

Ora, no presente caso, em que os cônjuges já se divorciaram, mas ainda não procederam à partilha, não se perspetiva para o futuro a existência de um património em mão comum (diferente da compropriedade) que justifique a defesa de um casamento dissolvido: existe, tão só, a necessidade de colocar termo ao património a que o seu casamento dissolvido deu lugar e que deixou de ter fundamento, por força do divórcio (que tem, entre outros, esse efeito).
Também por aqui, caso tivesse sido alegada a existência de um património comum e a omissão da consequente partilha, não haveria razão para permitir que os ex-cônjuges (casados num regime de bens diferente do da separação de bens) pudessem beneficiar deste regime específico desenhado para os (ainda) cônjuges.
(Não se deve permitir que um casal que se submeteu ao casamento, se divorcia, mas mantém a factualidade inerente com a união de facto, passe a gozar de mais direitos do que aqueles que estão sujeitos às obrigações que o casamento lhes impõe ou do que aqueles que, para manterem a informalidade da sua união e menores deveres que lhe são impostos, acabam por prescindir, dando-lhe a possibilidade de escolher, consoante as situações, o regime mais benéfico de cada uma).
Apesar de não competir a este tribunal resolver as dúvidas jurídicas e procedimentais que os Recorrentes levantam nos pontos 13, 14 e 15 das suas conclusões, sempre se diga que a lei prevê modos de superar problemas relativos à conexão de bens e dívidas, nomeadamente mediante eventual possibilidade de apensação dos processos em que haja sido declarada a insolvência de pessoas que legalmente respondam pelas dívidas do insolvente ou, tratando-se de pessoa singular casada, do seu cônjuge, se o regime de bens não for o da separação (artigo 86º do CIRE), o princípio da adequação processual, restando ainda a possibilidade de união de esforços entre os próprios executantes dos atos.

IV. Decisão:

Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação e mantém-se a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrentes.
Notifique.

Sandra Melo
Conceição Sampaio
Elisabete Coelho de Moura Alves