Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1468/22.0T8BGC-A.G1
Relator: JORGE SANTOS
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO PARTICULAR
RECONHECIMENTO DA DÍVIDA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
CAUSA DE PEDIR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/01/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO DO EMBARGANTE IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
- Decorre do artigo 458º, nº 1, do Cód. Civil, que a promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida geram apenas a presunção de existência duma relação causal (do concreto negócio subjacente), relação essa que constitui a verdadeira fonte da obrigação, não dispensando o credor, no entanto, do ónus de alegar tal relação.
– Alegando-se no requerimento executivo que tal relação fundamental ou causal foram dívidas contraídas pelo primeiro outorgante (aqui embargante) e pelas sociedades comerciais aí identificadas, é de considerar cumprido aquele ónus de alegação.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

AA, citado para o efeito no âmbito dos autos de execução em que é Exequente BB, veio deduzir oposição à execução mediante embargos de executado, alegando, além do mais, que o requerimento executivo é inepto por falta de causa de pedir, em síntese, por não constar do mesmo a causa de pedir, designadamente, a natureza, a origem ou causa da dívida de que o Embargante/Executado alegadamente se confessa devedor no documento dado à execução.

O Embargado/Exequente contestou, pronunciando-se no sentido da total improcedência dos embargos.

Foi dispensada a audiência previa e proferido saneador sentença, no qual se decidiu julgar não verificada a excepção de ineptidão invocada pelo Embargante/Executado.

Inconformado com a sentença, dela veio recorrer o Embargante formulando as seguintes conclusões:

A) O Tribunal a quo classificou o documento que serviu de base à acção executiva como contrato bilateral ou sinalagmático;

B) Apresentando-se como detentor de uma declaração, o Executado nunca invocou prejuízo, dano, perda pela não realização de qualquer contraprestação por parte do Executado/Embargante.

C) No caso concreto apenas uma das partes assume deveres em relação à outra.

D) Em momento algum se pode concluir que existe uma proporção direta e igualitária quanto aos deveres e direitos por parte dos intervenientes que assinaram a declaração.

E) Em momento algum se pode concluir que houve proporcionalidade das prestações, na produção de direitos e deveres, entre as partes.

F) Em momento algum se pode afirmar ter existido uma relação recíproca entre os intervenientes.

G) O requerimento executivo com base no título confissão de divida exige a alegação factual da causa jurídica que lhe terá dado origem, o título confissão de dívida não dispensa o Exequente de tal alegação.

H) Ao Exequente cabe narrar quais os factos constitutivos do direito que invoca, alegar qual o negócio que seria a fonte da obrigação, não está, dispensado da exposição da relação material subjacente que deve comportar a exposição dos factos.

I) O requerimento executivo sem alegação, sem narração dos factos constitutivos do direito que invoca o Exequente impede a cabal defesa do Executado.

J) O total desprezo quanto ao dever de conter a alegação sobre negócio que seria fonte de obrigação não tem outra consequência senão a ineptidão do requerimento inicial, nos termos do artº. 186º., nº. 2 a) do C.P.C..
Termos em que, revogando sentença e declarando totalmente procedente a oposição deduzida pelo Embargante/Executado AA V/ Exªs. farão JUSTIÇA.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II – OBJECTO DO RECURSO

A – Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente, bem como das que forem do conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando notar que, em todo o caso, o tribunal não está vinculado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, atenta a liberdade do julgador na interpretação e aplicação do direito – arts. 635º, nº3, e 639º, nº1 e 2 do C.P.Civil.

B – Deste modo, considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, cumpre apreciar:

- Se existe fundamento legal para ser revogada a decisão recorrida, julgando-se verificada a alegada excepção da ineptidão do Requerimento Inicial da execução.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com relevância para a questão a decidir, há a considerar a seguinte factualidade alegada no Requerimento Executivo:

- “1- O exequente é legitimo possuidor de uma "Declaração de dívida e acordo de pagamento" emitida pelos executados com data de 18 de fevereiro de 2003, pela qual estes se confessaram "solidariamente devedores ao segundo da quantia de 44.000,00 € ( quarenta e quatro mil euros ), acrescida de juros compensatórios à taxa de 10% até efectivo e integral pagamento" e onde declararam ainda que "Para todos os legais e devidos efeitos assumem que esta dívida é da sua total responsabilidade e que é correspondente a dívidas contraídas pelo primeiro outorgante AA e pelas sociedades comerciais “EMP01..., Lda“, titular do n.i.p.c. ...09, matriculada na Conservatória do Registo Comercial ... ...94 e pela sociedade “EMP02..., Lda“, titular do n.i.p.c. ...67, matriculada na Conservatória do Registo Comercial ... sob o nº ...66, ambas com sede na Zona Industrial ..., em ...." - cfr. doc. ..., que se junta.

2. Também para titular tal dívida o executado CC aceitou na mesma data de 18 de fevereiro de 2003 uma letra de câmbio no mesmo valor de 44.000,00 € (quarenta e quatro mil euros), sacada a favor da sociedade comercial "EMP03..., Lda", NIPC ...60, com sede na Rua ..., em ..., de que o exequente era e é sócio e gerente - cfr. doc. ... que se junta.
[…]”.

- Há ainda a considerar o teor do referido Doc. nº ..., nomeadamente o seguinte, denominado “Declaração de dívida e acordo de pagamento”, nomeadamente constando expressamente nas suas Clausulas Primeira e Segunda que:
“Primeira
Um - Nesta data, os primeiros outorgantes confessam-se solidariamente devedores ao segundo da quantia de 44.000,00 € (quarenta e quatro mil euros), acrescida de juros compensatórios à taxa de 10% até efectivo e integral pagamento.
Dois - Para todos os legais e devidos efeitos assumem que esta dívida é da sua total responsabilidade e que é correspondente a dívidas contraídas pelo primeiro outorgante AA e pelas sociedades comerciais "EMP01..., Lda ", titular do n.i.p.c. ...09, matriculada na Conservatória do Registo Comercial ... ...94 e pela sociedade " EMP02..., Lda ", titular do n.i.p.c. ...67, matriculada na Conservatória do Registo Comercial ... sob o n° ...66, ambas com sede na Zona Industrial ..., em ....

Segundo
Um - Para pagamento desta dívida, os primeiros outorgantes emitem e entregam ao segundo nesta data uma letra de câmbio, no valor de 44.000,00 6 (quarenta e quatro mil euros), sem que este acto constitua novação da dívida referenciada.
Dois - Tal letra será sacada pelo segundo outorgante, será aceite pelo primeiro outorgante CC e avalizada pelos outros dois primeiros outorgantes, seus pais, AA e DD.”
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IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Na sentença recorrida o Tribunal a quo entendeu que o Embargado/Exequente expôs sucintamente os factos que fundamentam o pedido nos termos previstos no artigo 724.º, n.º 1, alínea e), do C.P.C., pelo que decidiu julgar não verificada a excepção de ineptidão invocada pelo Embargante/Executado.
Insurge-se o Recorrente quanto ao assim decidido, alegando que requerimento executivo com base no título confissão de divida exige a alegação factual da causa jurídica que lhe terá dado origem, o título confissão de dívida não dispensa o Exequente de tal alegação; que ao Exequente cabe narrar quais os factos constitutivos do direito que invoca, alegar qual o negócio que seria a fonte da obrigação, não está, dispensado da exposição da relação material subjacente que deve comportar a exposição dos factos; e que o total desprezo quanto ao dever de conter a alegação sobre negócio que seria fonte de obrigação não tem outra consequência senão a ineptidão do requerimento inicial, nos termos do artº. 186º., nº. 2 a) do C.P.C..
Vejamos.
A acção executiva visa a realização efectiva, por meios coercivos, do direito violado e tem por suporte um título que constitui a matriz ou limite quantitativo e qualitativo da prestação a que se reporta (cfr. artigos 2º e 10º nºs1, 4 e 5, do Código de Processo Civil).
Diz-nos o art. 10º, nº 5, do Código de Processo Civil que toda a execução tem por base um título pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva.
Esse título é um documento, enquanto forma de representação de um facto jurídico.
Essa representação de um facto jurídico advém de “condições formais predeterminadas na lei, e nas quais a força probatória do título não intervém qua tale, condições essas que para o legislador constituem a base da aparência ou da probabilidade do direito” – Anselmo de Castro, Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 45-46.
Os títulos executivos são documentos de actos constitutivos ou certificativos de obrigações, a que a lei reconhece a eficácia de servirem de base ao processo executivo (cfr, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 58).
Assim, o título determina porquê, contra quem e para quê o credor requer a execução, nos termos do citado art. 10º, nº 5, do CPC. Ele tem, portanto, uma função delimitadora, no sentido em que o âmbito objectivo e subjectivo da acção executiva é delimitado pelo título executivo (cfr Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, 65).
O legislador fixa de modo imperativo os documentos que podem desempenhar a função de título executivo. Existe, aqui, uma regra de tipicidade.
Além da característica da tipicidade, o título executivo tem também a característica da suficiência a autonomia. A suficiência significa que o título cumpre as suas funções de representação, delimitação e constitutiva, sem necessidade de elementos complementares (Rui Pinto, A Acção Executiva, pág. 145). A autonomia significa que a exequibilidade do título é independente da exequibilidade da pretensão (Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, 70).
Deste modo, a enumeração dos títulos executivos é taxativa, conforme resulta da previsão do art. 703.º, C.P.C..
No caso vertente, resulta dos autos executivos que o título apresentado à execução é um documento particular emitido em .../.../2003.
Assim, tem aqui aplicação o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 408/2015 - Diário da República n.º 201/2015, Série I de 2015-10-14, que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703.º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, constante dos artigos 703.º do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.
Esse documento particular consiste num reconhecimento de dívida a que alude o artigo 458º do Cód. Civil.
Estamos, pois, no domínio dos negócios unilaterais, como é o caso de uma confissão/reconhecimento de dívida.
A este respeito, dispõe o artigo 458º, nº 1, do Cód. Civil, que “Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.
Decorre deste preceito que no âmbito de uma confissão ou reconhecimento de dívida, o credor está dispensado (do ónus) de provar a relação jurídica causal dessa confissão, beneficiando da presunção quanto à existência daquela. Porém, o credor não está dispensado de a alegar nos autos.
Conforme se escreveu sobre esta matéria no Ac. da RC de 26.03.2019, proc. 1534/18.6T8ACB.C1, citado pelo Apelante e que, por concordarmos com as considerações jurídicas aí  tecidas, aqui seguiremos de perto,  o regime do artigo 458º do CC “não apaga a regra/princípio de, quem se dirige ao tribunal, invocando um direito de crédito (e exigindo o cumprimento da correlativa obrigação), ter que expor a fonte de tal crédito/obrigação; não podendo limitar-se a dizer, em termos abstractos, genéricos e indefinidos, que é credor do R./requerido num concreto montante e pedir que o R./requerido seja condenado a pagar-lhe tal concreto montante ou, como é o caso, que seja declarado insolvente.
(…)
Expliquemo-nos:
O que se alega tem que encerrar a exposição/alegação factual de algo que permita afirmar, aplicando-se o direito (qualificando-se juridicamente a fonte da obrigação, via de regra, o contrato), ser o A./requerente titular dum direito de crédito sobre o R./requerido no montante que invoca/peticiona.

Estamos, repete-se, no domínio do princípio/regra, supra referido, segundo o qual, quem se dirige ao tribunal, a invocar/exigir o cumprimento dum direito de crédito, tem que expor a fonte/causa de tal crédito, ou seja, a confissão de dívida não dispensava o requerente/apelante de tal alegação na PI.
De acordo com o disposto no artigo 458º/1 do Código Civil, se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.
Mas não constando a causa de pedir (relação jurídica subjacente à declaração de dívida) da declaração/confissão de dívida, esta – a causa de pedir – tem que ser alegada na PI[12].
Já se sustentou que o artigo 458.º do Código Civil consagra a presunção de que a relação fundamental que subjaz à declaração unilateral de dívida existe e é válida, pelo que o credor se encontraria dispensado de alegar tanto na PI da acção como no requerimento executivo a causa de pedir ou a causa da obrigação (neste sentido, da dispensa de alegação da relação causal, vide, entre outros, o Acórdão da RP de 12/11/2019).
Mas hoje não é esta a posição dominante.
Considera-se hoje que o art. 458.º do C. Civil consagra apenas uma regra de inversão do ónus da prova (competindo ao devedor ilidir a presunção que o mesmo consagra), mas que não exime o credor do ónus de alegação da causa debendi. (sublinhado nosso)
Entendemos que não pode deixar de ser assim.
Não consagrando o artigo 458º do C. Civil “um desvio ao princípio do contrato, nenhum dos actos a que nele se alude (promessa de uma prestação ou reconhecimento de uma dívida) constitui, com efeito, fonte autónoma de uma obrigação; criam apenas a presunção da existência de uma relação negocial ou extranegocial (a relação fundamental a que aquele preceito se refere), sendo esta a verdadeira fonte da obrigação”[13],[14].
Por outro lado, cabendo o ónus da prova da inexistência ou da invalidade da relação jurídica subjacente ao devedor e competindo à causa de pedir a individualização da obrigação, não se mostrando esta alegada, “impossível” se torna ao devedor cumprir tal ónus (da inexistência ou da invalidade) adequadamente[15].
A não se entender assim, impondo-se ao devedor (ou ao executado) o ónus de alegação e prova da inexistência de uma qualquer causa geradora de obrigações e da ocorrência de quaisquer vícios que a afectassem, prejudicado ficaria até o exercício cabal do seu direito ao contraditório.
Efectivamente, repete-se, o art. 458.º C. Civil apenas estabelece um regime de “abstracção processual”, ou seja, dispensava o requerente/apelante da prova da relação fundamental, mas não o dispensava de alegar os factos constitutivos da relação fundamental e que constitui a verdadeira causa de pedir (não o dispensava, no caso, de alegar a causa/fonte da obrigação de entrega do montante de € 480.000,00).
Como já se referiu, quem se dirige ao tribunal (a exigir o cumprimento dum direito de crédito) tem que expor a fonte/causa de tal crédito e os negócios unilaterais – que é o que a referida declaração é – não valem como fonte autónoma de obrigações, ou melhor, a declaração/negócio unilateral só é reconhecida como fonte autónoma de obrigações nos casos especialmente previstos na lei, como é o caso do testamento, dos títulos de crédito, da procuração e da promessa pública do art. 459.º do C. Civil[16].

Como regra, para que haja o dever de prestar e o correlativo poder de exigir a prestação, fora dos casos em que a obrigação nasce directamente da lei (gestão de negócios, enriquecimento sem causa, responsabilidade civil, etc.), é necessário o acordo (contrato) entre o devedor e o credor; é o chamado “princípio do contrato”, que significa que só a convenção bilateral, no domínio das obrigações assentes sobre a vontade das pessoas, pode (em regra e fora das situações excepcionais referidas) criar o vínculo obrigacional.
Princípio/regra este de que o art. 458.º não se desvia, isto é, a promessa de cumprimento e o reconhecimento de dívida previstos no art. 458.º não constituem a fonte autónoma duma obrigação.”
Em anotação ao citado art.458º, escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil, Anotado, vol.I, 2ª ed., pág.385:
«Não se consagra neste artigo o princípio do negócio abstracto. O que se estabelece é apenas a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental (…). Se A, por ex., declara dever a B 10 contos, sem invocação da causa (empréstimo, venda, etc.), presume-se que esta obrigação tem uma causa, podendo, porém, o devedor fazer a prova do contrário. Neste sentido se deve entender o disposto na al.c) do art.46º do Código de processo Civil, ao admitir como título exequível o escrito particular, assinado pelo devedor, do qual conste a obrigação de pagamento de quantia determinada ou de entrega de coisa fungível
(…).
Sublinhe-se que o nº1 deste artigo não consagra um desvio ao princípio do contrato (…). Nenhum dos actos a que nele se alude (promessa de uma prestação ou reconhecimento de uma dívida) constitui, com efeito, fonte autónoma de uma obrigação (…). Criam apenas a presunção da existência de uma relação negocial ou extranegocial (a relação fundamental a que aquele preceito se refere), sendo esta a verdadeira fonte da obrigação. Se o declarante ou seus sucessores alegarem e provarem que semelhante relação não existe (…), a obrigação cai, não lhe servindo de suporte bastante nem a promessa de cumprimento nem o reconhecimento da dívida».”
Também no sentido de que o art. 458º do C. Civil apenas dispensa o credor do ónus de provar a relação fundamental subjacente ao negócio aí previsto mas já não o ónus de alegar tal relação pronuncia-se Lebre de Freitas ( Cfr. “A Confissão no Direito Probatório”, pág. 390), nos seguintes termos: “Sendo que a inversão do ónus da prova não dispensa do ónus de alegação e que o autor tem de alegar, na petição inicial, a causa de pedir, o credor que, tendo embora em seu poder um documento em que o devedor reconhece uma dívida ou promete cumpri-la sem indicar o facto que a constituiu, contra ele propuser uma acção, deverá alegar o facto constitutivo do direito de crédito – o que é confirmado pela exigência de forma do art. 458º, n.º 2, do CC, que pressupõe o conhecimento da relação fundamental – e daí que a prova da inexistência de relação causal válida, a cargo o devedor/demandado se tenha de fazer apenas relativamente à causa que tiver sido invocada pelo credor, e não a qualquer possível causa constitutiva do direito unilateralmente reconhecido pelo devedor”.
Decorre, pois, do citado artigo que a promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida geram apenas a presunção de existência duma relação causal (do concreto negócio subjacente), relação essa que constitui a verdadeira fonte da obrigação, não dispensando o credor, no entanto, do ónus de alegar tal relação.
No caso dos autos, esse ónus de alegação tem de estar espelhado no Requerimento executivo. Ou seja, o Exequente/apelado ao demandar quem lhe prometeu unilateralmente uma prestação, além de juntar aos autos o documento que corporiza a promessa de cumprimento, tem de identificar a causa, alegando os seus factos concretos constitutivos do seu direito. Do lado do demandado, cumpre-lhe, por sua vez, provar que essa concreta causa constitutiva, invocada pelo credor, afinal não existe em termos juridicamente válidos.
O Embargante/Executado alega que o requerimento executivo é inepto por falta de causa de pedir, em síntese, por não constar do mesmo a causa de pedir, designadamente, a natureza, a origem ou causa da dívida de que o Embargante/Executado alegadamente se confessa devedor no documento dado à execução.
Dispõe o artigo 186.º, n.º 2, do C.P.C. que a petição é inepta “[q]uando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir”, “[q]uando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir” e “[q]uando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis”.
Acontece que, a nosso ver, e em contrário do que defende o recorrente, o ónus de alegação da relação fundamental foi cumprido pelo exequente: como claramente consta alegado nos artigos 1º e 2º do requerimento executivo, tal relação fundamental ou causal consiste nas dívidas aí referidas.

Com efeito, o Embargado/Exequente alegou no requerimento executivo que:
“1- O exequente é legitimo possuidor de uma "Declaração de dívida e acordo de pagamento" emitida pelos executados com data de 18 de fevereiro de 2003, pela qual estes se confessaram "solidariamente devedores ao segundo da quantia de 44.000,00 € ( quarenta e quatro mil euros ), acrescida de juros compensatórios à taxa de 10% até efectivo e integral pagamento" e onde declararam ainda que "Para todos os legais e devidos efeitos assumem que esta dívida é da sua total responsabilidade e que é correspondente a dívidas contraídas pelo primeiro outorgante AA e pelas sociedades comerciais “EMP01..., Lda“, titular do n.i.p.c. ...09, matriculada na Conservatória do Registo Comercial ... ...94 e a pela sociedade “EMP02..., Lda“, titular do n.i.p.c. ...67, matriculada na Conservatória do Registo Comercial ... sob o nº ...66, ambas com sede na Zona Industrial ..., em ...." - cfr. doc. ..., que se junta.
2. Também para titular tal dívida o executado CC aceitou na mesma data de 18 de fevereiro de 2003 uma letra de câmbio no mesmo valor de 44.000,00 € (quarenta e quatro mil euros), sacada a favor da sociedade comercial "EMP03..., Lda", NIPC ...60, com sede na Rua ..., em ..., de que o exequente era e é sócio e gerente - cfr. doc. ... que se junta.
[…]”.

Tal é o que resulta também do teor das cláusulas constantes do referido contrato, nomeadamente a referência ao facto de a dívida assumida ser correspondente a dívidas contraídas pelo ora Embargante/Executado AA e pelas sociedades EMP01..., L.da, e EMP02..., L.da.
Assim sendo, partilhamos com a sentença recorrida a conclusão de que a causa de pedir se encontra, in casu, suficientemente alegada, por forma a permitir ao embargante demonstrar que aquelas mencionadas dívidas não existiam ou já não existem. Está, pois, cumprida a exigência legal prevista no artigo 724.º, n.º 1, alínea e), do C.P.C.
Deste modo, não se verifica a alegada ineptidão do requerimento executivo por falta de causa de pedir, pelo que improcedem as conclusões do recurso, devendo ser confirmada a sentença recorrida.
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Sumário:

- Decorre do artigo 458º, nº 1, do Cód. Civil, que a promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida geram apenas a presunção de existência duma relação causal (do concreto negócio subjacente), relação essa que constitui a verdadeira fonte da obrigação, não dispensando o credor, no entanto, do ónus de alegar tal relação.

– Alegando-se no requerimento executivo que tal relação fundamental ou causal foram dívidas contraídas pelo primeiro outorgante (aqui embargante) e pelas sociedades comerciais aí identificadas, é de considerar cumprido aquele ónus de alegação.

DECISÃO

Nestes termos, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Guimarães, 1.02.2024

Relator: Jorge Santos
Adjuntos: Sandra Melo
Paula Ribas