Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
73/14.9T8BRG.G1
Relator: MIGUEL BALDAIA MORAIS
Descritores: ABALROAÇÃO
FALSAS DECLARAÇÕES
ANULABILIDADE
INTERPRETAÇÃO
DIREITO COMUNITÁRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I- No contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, as falsas declarações prestadas pelo (candidato a) tomador do seguro sobre a propriedade do veículo não implica a nulidade do contrato por falta de interesse segurável mas antes a sua anulabilidade nos termos do nº 1 do artigo 25º do DL nº 72/2008, de 16.04.

II- O citado preceito legal configura a anulabilidade nele cominada como uma verdadeira sanção jurídica pelo incumprimento do ónus de informação pré-contratual que impende sobre o tomador do seguro, associada ao especial desvalor da sua conduta, irrelevando, por isso, se as declarações inexatas ou reticências importaram ou não qualquer prejuízo para o segurador, mormente na determinação do quantum do prémio do seguro.

III- O artigo 22º do DL nº 291/2007, de 21.08 não foi revogado (sequer tacitamente) pelo DL nº 72/2008, de 16.04, mantendo-se em vigor enquanto lex specialis relativamente ao regime que presentemente se mostra plasmado no art. 147º do último diploma citado.

IV- Sendo a invalidade cominada no art. 25º do DL nº 72/2008, de 16.04 uma anulabilidade, que, qua tale, não se mostra tipicamente prevista no DL nº 291/2007, de 21.08, não pode tal vício, por mor do disposto no artigo 22º deste diploma, ser oposto aos lesados, e reflexamente, ao Fundo de Garantia Automóvel.

V- Numa interpretação conforme ao direito da União Europeia, deve outrossim entender-se que a invalidade do contrato de seguro resultante de falsas declarações não pode ser oposta aos lesados de boa-fé ou ao Fundo de Garantia Automóvel quando sub-rogado nos direitos destes.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

O Fundo de Garantia Automóvel, integrado no Instituto de Seguros de Portugal, com sede na Avenida da República, n.º 59, em Lisboa, intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra “B. Companhia de Seguros, S.A.”, com sede …, e C., residente…, pedindo que estes sejam condenados, a primeira a título principal e o segundo a título subsidiário, a reembolsarem-no, por via da sub-rogação legal nos direitos dos lesados, dos montantes pagos em consequência de um acidente de viação ocorrido por culpa exclusiva do último, que totalizam €46.863,67, acrescidos de juros de mora, vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento, importando os vencidos na quantia de €3.738,82.
Regularmente citados, os RR contestaram, aceitando o C. a descrição do sinistro apresentada pelo A. e impugnando-a a B.. Esta exceciona ainda a invalidade do contrato de seguro celebrado relativamente ao veículo alegadamente causador do sinistro, que considera oponível aos lesados e ao Fundo de Garantia Automóvel, este por via da sub-rogação nos direitos daqueles, desiderato que o C., por sua vez, repudia.
Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, seguido de despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova, contra o qual não foi apresentada qualquer reclamação.
Procedeu-se a audiência de julgamento com observância de todo o formalismo legal, no decurso da qual as partes acordaram em considerar como provados todos os factos controvertidos, com exceção de um deles, o vertido no artigo 10º da contestação do Réu Hélder, sobre o qual foi inquirida uma única testemunha.
Foi proferida sentença na qual se decidiu julgar parcialmente procedente a ação, em consequência do que se condenou a ré a pagar ao autor Fundo de Garantia Automóvel a quantia de €46.863,67 (quarenta e seis mil, oitocentos e sessenta e três euros e sessenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora, contados à taxa legal, agravada de 25%, desde 20 de Maio de 2014 até efetivo e integral pagamento.

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Não se conformando com o assim decidido veio a ré B. – Companhia de Seguros, S.A. interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes

CONCLUSÕES:

1. Com todo o respeito que lhe merece a douta decisão recorrida, entende a Recorrente que houve uma deficiente interpretação do depoimento da testemunha que depôs na audiência de discussão e julgamento, relativamente à matéria do art. 10º da contestação do co-Réu.
2. Com razão de ciência devidamente controlada, de forma determinada, isenta e credível, a aludida testemunha declarou que aceitou celebrar o contrato de seguro na sequência das declarações da tomadora, a qual acompanhada pelos seus pais, que já eram seus clientes, declarou que era proprietária do veículo e o seu condutor habitual e que possuía carta de condução da qual indicou o respectivo número, tendo apresentado o documento do stand respeitante à venda do veículo e ficado de apresentar posteriormente a carta de condução.
3. Após isso e antes de assinar a proposta de seguro declarou “ter sido informada pelo Segurador do dever de lhe comunicar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco, bem como das consequências do incumprimento de tal dever”.
4. Esta prova conjugada com os factos considerados provados, por acordo das partes, constantes dos arts. 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 16º, 17º e 32º da contestação da Recorrente – que não estão integralmente reproduzidos no probatório da douta sentença recorrida -, permite concluir sem margem para qualquer dúvida de que a tomadora prestou dolosamente falsas declarações em relação à propriedade do veículo, ao condutor habitual e à própria carta de condução, para a qual indicou um número quando na realidade nem sequer possuía habilitação legal para conduzir.
5. Em face dos factos provados a única conclusão possível é a de que a mediadora agiu de boa-fé e de que foi enganada por quem pensava ser de confiança.
6. Ora, face às exigências e tutela do princípio da confiança e da aparência, a cujas linhas gerais se aludem na pág. 17 deste recurso, esta boa-fé e confiança têm que ser valoradas, e não menosprezadas e até censuradas como estranhamente o foram pelo douto Tribunal a quo.
7. Da previsão dos actuais arts. 24º e 25º da LCS decorre que a seguradora poderá ser induzida a celebrar negócios menos correctos, para o que a lei determina a seu favor a anulabilidade dos mesmos.
8. Contrariamente ao que sucedia com o revogado art. 429º do Cód. Comercial, só o comportamento doloso do segurado conduz à anulabilidade do contrato, como decorre do art. 25º da LCS.
9. Ora, como decorre dos factos provados, nunca é demais recordar que a D. não só mentiu acerca da propriedade do veículo, identidade do condutor habitual e escondeu da Ré a inexistência de carta de condução, como o fez deliberadamente e com perfeita consciência do que estava a declarar e das suas consequências.
10. Face ao novo regime jurídico do contrato de seguro, o que a lei exige, desde
logo, é que “o tomador do seguro declare com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador” (art. 24º, nº1). Caso tal seja dolosamente incumprido – como foi o caso – então o contrato de seguro é anulável (art. 25º nº1).
11. O art. 429º do C. Comercial, por sua vez, dispunha o seguinte: “toda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecida pelo segurado ou por quem fez o seguro e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo”.
12. Hoje o que se exige é diferente do que se exigia antes de 1 de Janeiro de 2009.
13. A identidade do proprietário do veículo, a identidade do condutor habitual e o número da carta condução são obviamente informações que se incluem no nº1 do art. 24º, ou seja, informações que o tomador do seguro deve comunicar à seguradora com exactidão. Nem é necessário analisar se aquelas informações são significativas ou não para a apreciação do risco tal é a evidência e clareza da resposta!
14. No caso concreto a conduta da tomadora de seguro não podia ter sido mais grave: declarou que tinha carta de condução quando na realidade nem sequer possuía habilitação legal para conduzir, o que não a impediu de indicar o número da mesma.
15. De acordo com as regras da experiência e de acordo com os princípios básicos da psicologia, é óbvio que a tomadora sabia que não podia celebrar qualquer contrato de seguro automóvel, como tomadora, porque não possuía sequer carta de condução.
16. Ao enganar astuciosamente a seguradora o contrato é anulável.
17. É este o raciocínio seguido pelos arts. 24º e 25º da nova Lei-Quadro do Contrato de Seguro.
18. Não se deve onerar quem foi enganado.
19. “Mas é também uma exigência ética que leva o Direito a defender a boa-fé contra a má-fé, a proteger a honestidade e a seriedade de processos e antagonizar a chicana, os aproveitamentos abusivos contrários à confiança e às coordenadas axiológicas fundantes da Ordem Jurídica”.
20. Mesmo que fosse de aplicar ao caso o art. 429º do Cód. Comercial - que não é, mas assim o parece fazer o douto Tribunal a quo -, a posição a sufragar sempre deveria ser diferente da consagrada na douta sentença.
21. As declarações prestadas pela tomadora do seguro mais do que inexactas e reticentes, são acima de tudo falsas. A tomadora conscientemente mentiu à mediadora aquando do preenchimento da proposta de seguro, sabendo de antemão que não podia celebrar qualquer contrato de seguro automóvel desde logo porque não tinha carta de condução.
22. Mais do que uma omissão ou inexactidão, há intenção de enganar, há dolo, há aliás a prática do tipo legal de crime de fraude.
23. Mas a tomadora do seguro também não tinha qualquer interesse na coisa segura, razão pela qual o contrato é nulo, nos termos do art. 43º da LCS.
24. O interesse no seguro é sempre de natureza patrimonial, não relevando o interesse moral ou afectivo.
25. A D. celebrou o contrato de seguro sub judice em seu nome sem ter habilitação legal para conduzir, sem ser a proprietária do veículo e a sua condutora habitual.
26. Sendo o contrato de seguro celebrado por quem não tem interesse não é transferido para a seguradora qualquer risco, uma vez que nenhuma responsabilidade pode ser imputada à tomadora decorrente da circulação do veículo seguro. Neste caso, o contrato não tem objecto, sendo, portanto, nulo.
27. Na linha, aliás, do princípio de Ordem Geral consagrado no art. 280º do Cód. Civil, segundo o qual “é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível…”.
28. Por isso é que a norma do art. 43º da LCS é qualificada como norma imperativa pelo art. 12º da mesma Lei-Quadro.
29. A douta decisão recorrida acolheu errada interpretação e aplicação, entre outros dos arts. 24º, 25º e 43º da LCS, bem como dos arts. 405º e 280º do Cód. Civil e do art. 6º do DL nº 72/2008.
30. Bem assim como consubstancia contradição de julgados relativamente ao processo nº 372/11.1TBACB.C1, Acórdão TRC de 03.12.2013.

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O autor apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso, requerendo outrossim a ampliação do objeto do recurso, ao abrigo do disposto no nº 1 do art. 636º do Cód. Processo Civil, de molde a que, em caso de procedência do recurso da ré, seja apreciada a questão da inoponibilidade ao Fundo de Garantia Automóvel da invalidade do contrato de seguro.
A ré apelante pronunciou-se no sentido de ser negado provimento à requerida ampliação, confirmando-se nesta matéria a sentença recorrida.

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Após os vistos legais cumpre decidir.

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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Cód. Processo Civil.
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, são as seguintes as questões solvendas:
. determinar se o tribunal a quo incorreu num error in iudicando, por deficiente avaliação ou apreciação das provas relativamente à materialidade constante do artigo 10º da contestação do réu C..
. determinar se o ajuizado contrato de seguro enferma de vício de nulidade por falta de interesse na sua celebração por parte da tomadora do seguro.
. determinar se o ajuizado contrato de seguro enferma de vício de anulabilidade por prestação de falsas declarações.
. determinar se a (eventual) invalidade do ajuizado contrato de seguro é oponível ao autor Fundo de Garantia Automóvel.

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III- FUNDAMENTOS DE FACTO

O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte factualidade:
1 - No dia 30 de Outubro de 2011, pelas 20 horas, no cruzamento entre…, ocorreu um embate em que intervieram o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula ..-PM. um BMW conduzido pelo Réu C. e a este pertencente, e o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula ..-DO-.., conduzido por E., seu dono, e onde seguia como passageira F.;
2 - Na concordância entre… existia, para o trânsito que se processava naquela artéria, um sinal vertical de STOP;
3 - Momentos antes do sinistro, o PM circulava pela Rua … no sentido nascente-poente, a uma velocidade não excedente a 40 Kms por hora;
4 - Por sua vez, o DO circulava pela Rua… no sentido Alvelos-Barcelos, a uma velocidade não excedente a 40 Kms por hora;
5 - Ao chegar à confluência da Rua… com a Rua…, o Réu C. não parou junto do sinal de STOP ali existente, antes avançou em direção ao centro da intersecção, com o propósito de ingressar na Rua … em sentido inverso ao prosseguido pelo DO, cortando a trajectória deste;
6 - Dada a súbita invasão da sua hemi-faixa de rodagem, o condutor do DO nada pôde fazer para evitar embater com a parte da frente desse veículo na parte lateral esquerda do PM;
7 - Em consequência do embate, o DO sofreu danos cuja reparação foi considerada economicamente inviável, tendo o A. pago ao respectivo proprietário a quantia de €7.579,00, a título de indemnização por perda total;
8 - O A. pagou ainda ao Hospital de…e ao Hospital… a quantia global de €7.141,07, correspondente ao custo da assistência prestada aos sinistrados;
9 - Ainda em consequência do embate, o condutor do DO sofreu lesões de que resultaram sequelas que lhe determinaram uma incapacidade permanente parcial de 5 pontos, acrescida de 3 pontos a título de dano futuro, compatível com o desempenho da actividade profissional que então exercia, embora com esforços acrescidos;
10 - A consolidação médico-legal de tais lesões ocorreu em 3 de Setembro de 2012;
11 - No período que mediou entre o acidente e aquela data, o sinistrado esteve com incapacidade temporária geral total durante 10 dias, com incapacidade temporária geral parcial durante 30 dias e com incapacidade temporária profissional total durante 300 dias;
12 - Sentiu dores fixáveis no grau 5 numa escala de 7 graus de gravidade crescente e apresenta um dano estético fixável no grau 2 numa escala idêntica;
13 - Na altura trabalhava por conta de outrem como funileiro, auferindo um salário mensal de €529,69;
14 - Tinha 25 anos de idade;
15 - Por sua vez, a passageira do DO sofreu lesões de que resultaram sequelas que lhe determinaram uma incapacidade permanente parcial de 5 pontos, compatível com o desempenho da actividade profissional que então exercia, embora com esforços acrescidos;
16 - A consolidação médico-legal de tais lesões ocorreu em 17 de Dezembro de 2011;
17 - No período que mediou entre o acidente e aquela data, a sinistrada esteve com incapacidade temporária geral total durante 5 dias, com incapacidade temporária geral parcial durante 44 dias e com incapacidade temporária profissional total durante 49 dias;
18 - Sentiu dores fixáveis no grau 4 numa escala de 7 graus de gravidade crescente;
19 - Na altura exercia a profissão de comerciante, auferindo um rendimento mensal de €475,00;
20 - Tinha 24 anos de idade;
21 - O A. pagou-lhes as quantias de €32.741,70 e €6.750,00, respectivamente, a título de indemnização pelos danos corporais por ambos correspondentemente sofridos e pelos danos deles resultantes;
22 - O A. suportou ainda despesas com a instrução e liquidação do sinistro no montante global de €230,70;
23 - No dia 2 de Maio de 2011, D., que era então companheira do Réu C., vivendo ambos em união de facto, celebrou com a Ré “B.– Companhia de Seguros, S.A.” um contrato de seguro, titulado pela apólice n.º …., mediante o qual transferiu para esta a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo automóvel com a matrícula …PM;
24 - Na proposta de seguro, a D. declarou falsamente ser a proprietária e condutora habitual do PM;
25 - Muito embora não dispusesse de habilitação legal para conduzir, indicou, como se fosse a respectiva titular, o número da carta de condução de que é titular o Réu C.;
26 - Este era, de facto, o proprietário do PM, por tê-lo adquirido a G., e o seu condutor habitual;
27 - O Réu C. pediu à D. para celebrar o contrato de seguro em seu nome em virtude dele ter problemas com as autoridades;
28 - Antes de assinar a proposta de seguro, a D. declarou ter sido “informada pelo Segurador do dever de lhe comunicar com exactidão todas as circunstâncias (…)” que conhecesse e razoavelmente devesse “ter por significativas para a apreciação do risco, bem como das consequências do incumprimento de tal dever”;
29 - No dia 29 de Outubro de 2011 o PM foi apreendido ao Réu C., motivo pelo qual o agente da autoridade que, no dia imediato, foi chamado a tomar conta do sinistro a que se reportam os autos, levantou um auto de notícia contra aquele pela prática de um crime de desobediência;
30 - A Ré “B. – Companhia de Seguros, S.A.” não fez cessar, por qualquer meio, o contrato de seguro acima identificado em data anterior à do sinistro e recebeu o prémio correspondente;
31 – O último pagamento efectuado pelo Fundo de Garantia Automóvel aos lesados ocorreu em 20 de Maio de 2014.

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O tribunal de 1ª instância considerou ainda não provado que a Ré “B.”, através da sua mediadora, tenha aceitado celebrar o contrato de seguro consciente de que o PM não pertencia à D. e que esta não era a condutora habitual do veículo, por nem sequer ser titular de habilitação legal para conduzir, e bem assim que aquela tivesse ficado na posse de todos os documentos necessários para conferir essa situação, mormente de cópia da carta de condução cujo número foi indicado e que, na verdade, pertence ao Réu C..

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IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO
IV.1 – Erro na apreciação e valoração da prova

Conforme resulta das alegações apresentadas pela apelante, o presente recurso tem por objeto, para além do mais, a reapreciação da matéria de facto relativamente à afirmação de facto vertida no artigo 10º da contestação do réu C., que o tribunal a quo considerou não provada.
Vejamos.
No mencionado artigo do articulado de defesa do referido demandado foi alegado que “a ré Fidelidade, através do seu mediador, aceitou contratar seguro dessa forma, e ficou na sua posse com todos os documentos necessários para sua confirmação e conferência”.
Na decisão recorrida, relativamente a tal afirmação de facto, consignou-se que “não se provou que a ré B., através da sua mediadora, tenha aceitado celebrar o contrato de seguro consciente de que o PM não pertencia à D. e que esta não era a condutora habitual do veículo, por nem sequer ser titular de habilitação legal para conduzir, e bem assim que aquela tivesse ficado na posse de todos os documentos necessários para conferir essa situação, mormente de cópia da carta de condução cujo número foi indicado e que, na verdade, pertence ao réu C.”.
Pretende a apelante que deve ser alterada a resposta dada pelo tribunal a quo, de molde que se considere provado que “a ré B. aceitou, através da mediadora, celebrar o contrato de seguro na sequência das declarações da D., a qual acompanhada pelos seus pais, que já eram clientes da mediadora, declarou que era a proprietária do veículo e o seu condutor habitual e que possuía carta de condução da qual indicou o respetivo número, tendo apresentado o documento do stand respeitante à venda do veículo e ficado de apresentar posteriormente a carta de condução”.
Como deflui do exposto, a facticidade em causa corresponde a afirmação de facto cujo onus probandi, de acordo com o critério normativo vertido no art. 342º do Cód. Civil (que consagra o pensamento fundamental da teoria das normas), competiria ao réu C., por se estar em presença de materialidade que, na economia da respetiva alegação, se destinaria a mitigar a sua (eventual) responsabilidade no pagamento da quantia pecuniária peticionada pelo demandante.
A tónica da referida afirmação de facto radicava, com efeito, no propósito de demonstrar que a mediadora que celebrou o ajuizado contrato de seguro tinha conhecimento de que a proponente D. não era a proprietária do veículo com a matrícula PM nem a sua condutora habitual e bem assim que lhe foram disponibilizados todos os documentos necessários para confirmação e conferência dessa realidade (o que poderia legitimar a aplicação do disposto no art. 24º, nº 3, al. d) do DL nº 72/2008, de 16.04).
Ora, foi precisamente com esse sentido que o tribunal a quo entendeu a referida alegação, a qual considerou não provada “porque a testemunha Maria, mediadora que celebrou o contrato de seguro, sustentou que não lhe foi facultada qualquer cópia da carta de condução cujo número foi indicado na proposta e que inferiu que essa carta seria aquela de que era titular a D., desconhecendo que esta nem sequer dispunha de habilitação legal para conduzir”, sendo que o sentido decisório assim trilhado se mostra consonante com os elementos probatórios produzidos no âmbito do presente processo.
Porque assim, inexiste válido fundamento processual para a impetrada alteração da matéria de facto nos termos preconizados pela ora apelante, sendo certo que a materialidade que pretendia que fosse dada como demonstrada resultou, na sua essência, provada (cfr. factos nºs 24, 25 e 26).

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IV.2. Da nulidade do ajuizado contrato de seguro por falta de interesse da respetiva tomadora de seguro

Como emerge do quadro factual apurado, entre D. (como tomadora do seguro) e a ré B. – Companhia de Seguros, S.A. (como seguradora) foi celebrado, em 2 de maio de 2011, um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice nº …, mediante o qual aquela transferiu para esta a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo automóvel com a matrícula PM.
Porque assim, o regime jurídico a convocar para apreciação do invocado vício será o que se mostra plasmado no DL nº 72/2008, de 16.04 (que aprovou o regime jurídico do contrato de seguro, doravante LCS), posto que, de acordo com a norma de direito transitório vertida no seu art. 2º, o mesmo é o aplicável aos contratos de seguro celebrados após a sua entrada em vigor (que ocorreu em 1.01.2009 – cfr. art. 7º).
Pese embora a LCS não contenha uma definição deste tipo contratual (1), o mesmo pressupõe determinados elementos essenciais, entre os quais se conta, no que ao caso releva, a existência de um interesse(2), ou seja, uma relação económica entre o sujeito do risco e os bens ou pessoas que beneficiam da cobertura do seguro (3).
Dada a essencialidade de tal elemento, a sua ausência originária ou superveniente acarreta, respetivamente, a nulidade ou caducidade do contrato (cfr. arts. 43º, nº 1 e 110º, nº 1 da LCS), sendo certo que, como tem sido sublinhado pela doutrina (4), a assinalada relação entre o sujeito e objeto do interesse deverá ser específica (já que, sobre um mesmo bem, podem incidir diferentes interesses), legítima (ou seja, na expressão do nº 1 do citado art. 43º, “digno de proteção legal,” excluindo-se assim os casos em que o interesse seguro seja contrário à lei, ordem pública ou bons costumes) e de natureza económica (destinada a satisfazer necessidades de caráter patrimonial ou económica, excluindo-se os seguros de danos morais ou afetivos).
Como se notou, a apelante, recuperando nesta sede recursória a argumentação que adrede expendera no seu articulado de defesa, advoga que o contrato em questão enferma de vício de nulidade porquanto a tomadora do seguro, aquando da sua celebração, não tinha qualquer interesse digno de proteção legal relativamente ao veículo seguro, já que não era nem a proprietária nem a condutora habitual do mesmo, tendo outorgado o contrato apenas para fazer um favor ao verdadeiro dono e condutor desse veículo.
O tribunal a quo afastou a ocorrência do apontado vício genético do contrato, afirmando que “muito embora não fosse a proprietária do veículo seguro, a D. era companheira do proprietário e, nessa medida, tinha, obviamente, interesse em que este dispusesse de um seguro de responsabilidade civil emergente da circulação de tal veículo, no qual, por certo, foi transportada em múltiplas ocasiões como passageiras”.
Apelando ao tecido fáctico apurado, no que à resolução da enunciada questão releva, resultou demonstrado que:
. na ocasião em que o ajuizado contrato foi celebrado a tomadora do seguro era companheira do réu C., vivendo ambos em união de facto (facto nº 23);
. na proposta de seguro, D. declarou falsamente ser a proprietária e condutora habitual do veículo com a matrícula PM (facto nº 24);
. nessa ocasião o proprietário do PM e o seu condutor habitual era o réu C. (facto nº 26);
. O réu C. pediu a D. para celebrar o contrato de seguro em seu nome em virtude dele ter problemas com as autoridades (facto nº 27).
Perante a descrita materialidade, torna-se, pois, mister dilucidar se se pode afirmar a existência da assinalada relação de conteúdo económico que, como se referiu, carateriza o conceito de interesse segurável.
In casu, resulta patente que a tomadora do seguro prestou falsas declarações não só sobre a propriedade do veículo como também sobre o seu condutor habitual.
Tal constatação coloca-nos um problema, qual seja o de saber se nos encontramos estritamente perante uma situação enquadrável no regime das falsas declarações quanto ao risco (que poderá - como infra se desenvolverá - determinar a anulabilidade do contrato por mor do disposto no art. 25º da LCS) ou, então, se estaremos verdadeiramente em presença de falta de interesse da tomadora do seguro, a motivar, como se notou, a nulidade do contrato nos termos do nº 1 do art. 43º do mesmo diploma.
A problemática enunciada tem sido alvo de diversos pronunciamentos jurisdicionais, não se registando, contudo, uma resposta unívoca na casuística, mormente do STJ (5).
Nesta controvérsia afigura-se-nos ser de acolher o entendimento que vem sendo sustentado por MOITINHO DE ALMEIDA (6), que adrede convoca um relevante argumento de texto extraído do nº 2 do art. 6º do DL nº 291/2007, de 21.08 (7) (que aprovou o regime jurídico do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel) no sentido de que para o legislador “qualquer pessoa” diferente daquelas sobre as quais recai a obrigação de efetuar o seguro pode celebrá-lo, caso em que a obrigação de segurar fica suprida. Significa isto, portanto, que, à luz do citado normativo, se permite que qualquer pessoa (não exigindo a lei qualquer específica ligação ao sujeito da obrigação de segurar ou ao veículo abrangido pelo contrato de seguro) possa celebrar contrato de seguro, o qual, na economia do preceito, constituirá forma eficaz, enquanto produzir efeitos, de suprir a obrigação de segurar que primariamente impenderia sobre os sujeitos indicados no seu nº 1.
Como assim, no caso vertente, não enferma o ajuizado contrato do apontado vício de nulidade por falta de interesse segurável, relevando as falsas declarações sobre a propriedade do veículo apenas para o efeito de despoletar a aplicação do disposto nos arts. 24º a 26º da LCS (8).

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IV.3. Da anulabilidade do ajuizado contrato de seguro por prestação de falsas declarações

Com vista a neutralizar a concreta pretensão de tutela jurisdicional que contra ela foi aduzida no âmbito do presente processo, na contestação que apresentou, a ré apelante advogou (argumentação que igualmente recupera nesta sede) que o contrato em causa enferma de vício de anulabilidade, porquanto a tomadora do seguro prestou falsas declarações seja quanto à propriedade do veículo seja quanto à identidade do seu condutor habitual.
Já se deu nota que, malgrado as referidas afirmações de facto tenham logrado demonstração, o tribunal de 1ª instância considerou que, ainda assim, não existiria fundamento para declarar a invalidade do contrato, por ausência de alegação e prova de que as referidas circunstâncias teriam podido influir, e influiriam, sobre a existência ou condições do mesmo.
Como é consabido, um aspeto primordial da formação do contrato de seguro são os amplos deveres (rectius, ónus (9)) de informação pré-contratual que recaem sobre o (candidato) a tomador de seguro, consubstanciados na denominada declaração inicial de risco (art. 24º da LCS).
Por força do aludido ónus, o subscritor de uma proposta de seguro deve prestar à seguradora um conjunto de informações cujo desiderato se traduz em possibilitar que esta, mediante uma correta avaliação do risco a cobrir, do cálculo do prémio correspondente e dos termos contratuais em geral, aceite ou recuse a proposta que lhe é dirigida.
Por via disso, tendo o contrato de seguro por objeto um determinado risco e sendo ele um contrato enformado pela máxima boa-fé, o nº 1 do citado normativo estabelece que “o tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador”.
Assim, no âmbito deste dever informativo pré-contratual, abrangem-se quer as declarações inexatas – consistentes na comunicação de elementos falsos, erróneos ou incompletos -, quer as declarações omissas (ou na locução tradicional “reticências”) – traduzidas na omissão de elementos relevantes para a determinação do risco.
O incumprimento deste dever informativo, cujo onus probandi compete ao segurador, pode importar a anulabilidade do contrato no caso de inexatidões ou omissões dolosas (art. 25º da LCS) ou de um mero direito potestativo do segurador propor a alteração do contrato ou provocar a sua cessação em caso de inexatidões ou omissões negligentes (art. 26º da LCS).
No caso sub judice, perante a materialidade provada, resulta vítreo que D. aquando do preenchimento da proposta de seguro, prestou declarações inexatas, que assumem caráter doloso, posto que falsamente referiu ser a proprietária do veículo automóvel com a matrícula PM e bem assim a condutora habitual do mesmo, para além de ter indicado, apesar de não dispor de habilitação legal para conduzir, o número da carta de condução de que é titular o réu C., como se fosse a respetiva titular (cfr. factos nºs 24, 25 e 26).
Primo conspectu, o aludido substrato factual é passível de preencher a fattspecie normativa do nº 1 do citado art. 25º da LCS, fazendo, assim, despoletar a consequência anulatória nele estabelecida. Não foi essa, no entanto, a solução acolhida na sentença recorrida, por se ter considerado que para operar esse efeito se tornaria mister a alegação e subsequente demonstração de que a ré seguradora “não teria celebrado o contrato ou que o teria celebrado em condições diversas se soubesse que o proprietário e o condutor habitual do PM era o réu C. (…)”.
É primordialmente em relação ao sentido decisório assim sufragado que se reporta, em termos úteis, a divergência recursiva, porquanto a apelante advoga antes que o referido preceito legal não está condicionado, na sua aplicação, à alegação e prova de que as informações em causa podiam ter influência nas condições do seguro contratado.
Tal problemática tem sido, de facto, objeto de discussão na doutrina, girando a controvérsia em torno do efetivo fundamento do vício de anulabilidade cominado para as omissões ou inexatidões dolosas (10) por banda do candidato a tomador do seguro.
Ora, a este respeito, o posicionamento que vem recebendo acolhimento por parte da doutrina majoritária (11) (e que igualmente sufragamos) é o de que a lei configura a consequência de anulabilidade estabelecida na referida dimensão normativa como uma verdadeira sanção jurídica pelo incumprimento de um dever legal, associada ao especial desvalor da conduta do proponente, irrelevando, por isso, se as declarações inexatas ou reticências importaram ou não qualquer prejuízo para o segurador, mormente na determinação do quantum do prémio do seguro.
Consequentemente, no caso vertente, o ajuizado contrato de seguro, em resultado das falsas declarações prestadas por D., enferma, pois, de vício de anulabilidade.


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IV.4. Da oponibilidade ao autor Fundo de Garantia Automóvel da anulabilidade de que enferma o ajuizado contrato de seguro por prestação de falsas declarações pela tomadora do mesmo

Perante a afirmada invalidade do ajuizado contrato de seguro, em consonância com o que se dispõe no nº 1 do art. 636º do Cód. Processo Civil, haverá, pois, que apreciar se esse vício é oponível ao demandante.
Como se viu, a questão foi objeto de apreciação no ato decisório recorrido, aí se afirmando, ainda que em obter dictum, que a anulabilidade do contrato de seguro por violação do dever contido no art. 24º, nº 1 da LCS é oponível ao Fundo de Garantia Automóvel.
Sobre esta matéria rege o art. 22º do DL nº 291/2007, de 21.08, no qual se preceitua que “para além das exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas no presente decreto-lei, a empresa de seguros apenas pode opor aos lesados a cessação do contrato nos termos do nº 1 do artigo anterior [que se reporta à caducidade do contrato por alienação do veículo], ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do acidente”.
Desde logo, questão que urge solucionar é a de saber se o transcrito normativo foi objeto de (tácita) revogação com a entrada em vigor da LCS, já que este diploma, no nº 2 do seu art. 147º (inserido sistematicamente nas disposições especiais de seguro obrigatório), veio estabelecer a possibilidade de oponibilidade ao lesado, como meios de defesa do segurador, da invalidade (lato sensu) do contrato de seguro.
Ora, para além de o referido art. 22º não constar expressamente da norma revogatória do art. 6º do DL nº 72/2008, afigura-se-nos outrossim que não ocorreu a sua revogação tácita, tanto mais que o próprio preâmbulo deste último diploma faz referência aqueloutro normativo como servindo de inspiração ao regime que plasmou no citado art. 147º (12). Daí que o art. 22º se mantêm em vigor enquanto lex specialis relativamente ao regime que presentemente se mostra consagrado no art. 147º da LCS (13).
Isto posto, resta, assim, dirimir se a anulabilidade resultante da prestação de declarações inexatas ou omissas na declaração inicial do risco pode, sob o enfoque da regra normativa vertida no art. 22º, legitimar que o segurador não proceda ao pagamento da indemnização devida a terceiros lesados de boa-fé ou, no que ao caso releva, ao ora autor Fundo de Garantia Automóvel no exercício do seu direito de sub-rogação (já que satisfez provisoriamente a indemnização devida aos lesados em consequência do ajuizado acidente de trânsito).
Trata-se de matéria que não tem merecido uma resposta unívoca na doutrina e jurisprudência pátrias, ora se registando um posicionamento favorável (14) à tese da inoponibilidade, quer uma posição que se vem assumindo contra essa inoponibilidade (15).
Malgrado se admita que a solução da questão não se revele líquida, afigura-se-nos assumir maior consistência o argumentário que tem sido apresentado pelos sequazes da tese favorável à inoponibilidade do mencionado vício (seja aos lesados de boa-fé, seja ao Fundo de Garantia Automóvel quando exerce a sub-rogação decorrente de ter assumido, perante esses lesados, a responsabilidade indemnizatória emergente de acidente de trânsito), porquanto sendo a invalidade cominada no art. 25º da LCS uma anulabilidade, o previsto no citado art. 22º - que, quanto a nós, consagra um princípio de tipicidade dos meios de defesa oponíveis pelo segurador - obsta à sua oponibilidade aos lesados (e reflexamente ao Fundo de Garantia Automóvel (16) ), dado que no seu âmbito de previsão material somente admite que sejam opostas as anulabilidades previstas no DL nº 291/2007 (entre as quais não se conta a anulabilidade contemplada no mencionado art. 25º) e não as que, como tal, estejam estabelecidas na lei geral (17).
No sentido da sustentação desse posicionamento não será, aliás, despiciendo convocar os contributos que nesta matéria têm sido aportados pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (18), que tem particularmente enfatizado que o seguro de responsabilidade civil automóvel só pode cabalmente desempenhar a função social para que foi criado se à vítima forem inoponíveis quaisquer exceções resultantes do contrato, posto que somente neste caso a garantia do ressarcimento é assegurada.
Destarte, numa interpretação conforme ao direito da União Europeia (19), deve outrossim entender-se que a invalidade do contrato de seguro resultante de falsas declarações não pode ser oposta aos lesados de boa-fé ou ao Fundo de Garantia Automóvel quando sub-rogado nos direitos destes.
A presente apelação terá, pois, de improceder.

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SÍNTESE CONCLUSIVA

I- No contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, as falsas declarações prestadas pelo (candidato a) tomador do seguro sobre a propriedade do veículo não implica a nulidade do contrato por falta de interesse segurável mas antes a sua anulabilidade nos termos do nº 1 do artigo 25º do DL nº 72/2008, de 16.04.

II- O citado preceito legal configura a anulabilidade nele cominada como uma verdadeira sanção jurídica pelo incumprimento do ónus de informação pré-contratual que impende sobre o tomador do seguro, associada ao especial desvalor da sua conduta, irrelevando, por isso, se as declarações inexatas ou reticências importaram ou não qualquer prejuízo para o segurador, mormente na determinação do quantum do prémio do seguro.

III- O artigo 22º do DL nº 291/2007, de 21.08 não foi revogado (sequer tacitamente) pelo DL nº 72/2008, de 16.04, mantendo-se em vigor enquanto lex specialis relativamente ao regime que presentemente se mostra plasmado no art. 147º do último diploma citado.

IV- Sendo a invalidade cominada no art. 25º do DL nº 72/2008, de 16.04 uma anulabilidade, que, qua tale, não se mostra tipicamente prevista no DL nº 291/2007, de 21.08, não pode tal vício, por mor do disposto no artigo 22º deste diploma, ser oposto aos lesados, e reflexamente, ao Fundo de Garantia Automóvel.

V- Numa interpretação conforme ao direito da União Europeia, deve outrossim entender-se que a invalidade do contrato de seguro resultante de falsas declarações não pode ser oposta aos lesados de boa-fé ou ao Fundo de Garantia Automóvel quando sub-rogado nos direitos destes.

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V- DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se, ainda que com fundamentação não inteiramente coincidente, a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais.
Guimarães, 7.04.2016
Dr. Miguel Baldaia Morais
Dr. Jorge Martins Teixeira
Dr. Jorge Miguel Seabra
(1) Como deflui do seu art. 1º, o legislador optou por não dar uma definição de contrato de seguro, limitando-se, na essência, a indicar as obrigações principais e características que decorrem para as partes deste contrato.
(2) Para além deste elemento a LCS, erige outrossim como elemento essencial do seguro a existência de um risco, ou seja, a possibilidade de ocorrência de evento futuro gerador de perdas no património próprio ou alheio, sendo que a inexistência desse elemento, no momento da conclusão do contrato, acarreta a sua nulidade, ou conduz à sua caducidade em caso de desaparecimento durante a vigência do mesmo (cfr. arts. 44º, nºs 1 e 3 e 110º).
(3) Cfr., sobre o conceito de interesse para efeitos jusseguradores enquanto conceito jurídico complexo, MARGARIDA LIMA REGO, Contrato de Seguro e Terceiros, págs. 172 e seguintes, que ressalta que o princípio tradicional do interesse – segundo o qual sem interesse não há seguro – tem a si subjacente duas primordiais finalidades: ao cominar a essencialidade de uma necessidade económica do interessado no seguro, visou-se evitar a transformação destes contratos em puros negócios de jogo ou aposta (que a lei reputa inválidos – cfr. art. 1245º do Cód. Civil) e prevenir o fomento de sinistros negligentes ou intencionais com objetivo de lucro.
(4) Cfr., inter alia, AAVV, Lei do Contrato de Seguro Anotada, pág. 187 e seguinte e MARGARIDA LIMA REGO, ob. citada, pág. 228.
(5) Cfr., por todos (ainda que os arestos citados tenham sido prolatados no domínio da lei pregressa), acórdãos do STJ de 14 e 21 de novembro de 2006 (processos nºs 3465/06 e 3600/06, respetivamente) – que se pronunciam no sentido de que a consequência é a anulabilidade do contrato por estar em causa um fenómeno enquadrável no regime das declarações inexatas ou omissas - e de 20 de abril de 2006 e 22 de março de 2007 (processos nºs 400/06 e 230/07, respetivamente) – que preconizam a solução da nulidade por falta de interesse do tomador do seguro.
(6) In Contrato de Seguro – Estudos, pág. 218.
(7) Depois de, no seu nº 1, dispor que “a obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo, excetuando-se os casos de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a obrigação recai, respetivamente, sobre o usufrutuário, adquirente ou locatário”, acrescenta o referido nº 2 que “se qualquer outra pessoa celebrar, relativamente ao veículo, contrato de seguro que satisfaça o disposto no presente decreto-lei, fica suprida, enquanto o contrato produzir efeitos, a obrigação das pessoas referidas no número anterior”.
(8) Igualmente neste sentido MOITINHO DE ALMEIDA, op. citada, pág. 218 e ARNALDO COSTA OLIVEIRA, Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, pág. 84, onde considera que o problema deve ser resolvido como sendo um caso de declarações inexatas, sujeitando-se, nessa medida, ao regime contemplado nos arts. 24º a 26º da LCS.
(9) Cfr., sobre a questão, JÚLIO GOMES, O dever de informação do (candidato a) tomador de seguro na fase pré-contratual, à luz do Decreto-lei nº 72/2008, de 16 de abril, in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, vol. II, pág. 388 e seguinte.
(10) Pode ver-se uma recensão das diversas teses que têm sido apresentadas, em LUÍS POÇAS, O dever de declaração inicial do risco no contrato de seguro, em especial págs. 486-489.
(11) Assim, MENEZES CORDEIRO, Direito dos Seguros, pág. 583, LUÍS POÇAS, ob. citada, pág. 487 e seguinte e JÚLIO GOMES, op. citada, pág. 398 e seguinte, sublinhando este último autor, de forma reforçativa, que a própria tentativa de fraude – caso em que se verifica o incumprimento doloso do tomador com o propósito de obter uma vantagem, relativamente a factos já do conhecimento do segurador e, portanto, insuscetíveis de o induzir em erro – é sancionada com a anulabilidade do contrato, como resulta do nº 3 do art. 24º da LCS, o que acentua o caráter punitivo da solução.
(12) Neste sentido se pronunciam igualmente ARNALDO COSTA OLIVEIRA, ob. citada, pág. 83 e RIBEIRO ALVES, Direito dos Seguros, pág. 141, que ressalta que o art. 22º, “atendendo ao propósito de proteger terceiros no âmbito de um seguro obrigatório, que merece superior tutela devido ao interesse público que lhe subjaz, tem uma aplicação que é mais restritiva do que aquela que resulta da [LCS] e por essa via tende a ser mais abrangente na sua proteção”.
(13) Registe-se, a este respeito, a interpretação preconizada por MOITINHO DE ALMEIDA, O novo regime jurídico do contrato de seguro, in Contrato de Seguro – Estudos, pág. 29, que, numa interpretação conforme ao direito comunitário, defende que o art. 147º da LCS não abrange o contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
(14) Tese que tem sido defendida, na doutrina, por ARNALDO COSTA OLIVEIRA, ob. citada, págs. 82 e seguintes e FILIPE MATOS, Alterações legislativas no binómio danos corporais/danos materiais, in Cadernos de Direito Privado, número especial 02/dezembro de 2012, págs. 135 e, do mesmo autor, As declarações reticentes e inexatas no contrato de seguro, in Estudos de homenagem ao Professor Doutor António Castanheira Neves, vol. II, pág. 460; na jurisprudência, podem ver-se, inter alia, os acórdãos do STJ de 31.05.2011 (processo nº 2693/07.9TBMTS.P1.S1) e de 5.03.2015 (processo nº 2007/09.3TVPRT.P1.S1), acórdão da Relação de Lisboa de 22.12.2012 (processo nº 118/11.4TVLSB.L1-6) e os acórdãos desta Relação de 10.03.2004 (processo nº 818/03-2) e de 10.11.2011 (processo nº 3389/09.2TBB-CL-B.G1), todos disponíveis em www.dgsi.pt. Os sequazes desta tese argumentam essencialmente que: i) de acordo com o enunciado linguístico do art. 22º, apenas são válidas as exceções que tenham sido exercidas antes do sinistro; ii) ainda de acordo com o mesmo enunciado linguístico apenas podem ser arguidas as exclusões ou anulabilidades previstas no DL nº 291/2007, sendo que o diploma apenas prevê o vício de anulabilidade no nº 4 do seu art. 54º e não contém previsões legais que sancionem com a anulabilidade determinado comportamento; iii) o legislador tem uma superior preocupação com a função social do seguro e a proteção das vítimas de sinistro automóvel, o que leva a um princípio de cobertura máxima dos lesados de boa-fé; iv) a intervenção do Fundo de Garantia Automóvel apenas existirá após abertura do processo de sinistro e a rejeição da responsabilidade apenas se dará após instrução e descoberta que o condutor habitual era outro, com natural demora e prejuízo para o lesado.
(15) Assim, na doutrina, JOSÉ ALBERTO VIEIRA, O dever de informação do tomador de seguro em contrato de seguro automóvel, in Estudos em memória do Professor Doutor António Marques dos Santos, vol. I, pág. 1018 e LUÍS POÇAS, ob. citada, págs. 688 e seguintes; na casuística podem ver-se os acórdãos da Relação do Porto de 12.12.2002 (processo nº 0232311) e de 7.10.2014 – no qual se ancora a decisão de 1ª instância – (processo nº 2007/09.3TVPRT.P1) e acórdão da Relação de Coimbra de 3.12.2013 (processo nº 372/11.1TBACB.C1), todos disponíveis em www.dgsi.pt. Em sustentação deste posicionamento, têm essencialmente sido alinhados os seguintes argumentos: i) o ato produtor de anulabilidade (as falsas declarações) é por natureza anterior ao sinistro, pelo que para o preceito ter conteúdo útil poderão sempre ser arguidas, mesmo após o sinistro; ii) o Fundo de Garantia Automóvel existe para dar cobertura a estas situações, pelo que o lesado não ficaria desprotegido e estaria cumprida a função social do seguro automóvel; iii) o art. 54º, nº 4 do DL nº 291/2007 fundamenta a intervenção do Fundo de Garantia Automóvel em caso de anulabilidade (argumento este que, como se viu, esteve na base da posição assumida na decisão recorrida para sustentar a oponibilidade de anulabilidade do seguro ao ora autor); iv) a expressão “anteriores ao acidente” usada no art. 22º in fine apenas se reporta à cessação e à resolução.
(16) Não se regista, na verdade, uma diversidade essencial entre a posição jurídica dos lesados e do Fundo de Garantia Automóvel; daí que o direito que ingressou na titularidade jurídica desta última entidade por mor da satisfação provisória (na qualidade de garante) da indemnização devida àqueles não pode ser afrontado com a possibilidade de lhe serem opostas exceções que seriam inoponíveis aos lesados, porquanto, de contrário, como certeiramente se sublinha no já citado acórdão do STJ de 5.03.2015 (processo nº2007/09.3TVPRT.P1.S1), seria posta em crise «a típica funcionalidade da figura da sub-rogação nos direitos do lesado que decorre expressamente do disposto no nº 1 do art. 54º da Lei do seguro obrigatório – e para que remete o nº 1 do art. 50º, ao regular os efeitos da satisfação provisória da indemnização, no caso de litígio com a seguradora, configurando esse direito ao reembolso da indemnização satisfeita em vez da própria seguradora, aí atribuído, no âmbito da figura da sub-rogação ao lesado, prevista no art. 54º, nº 1: na verdade, traduzindo-se tal sub-rogação essencialmente numa transmissão do crédito do lesado para o FGA, consequente ao cumprimento do dever de indemnizar por essa instituição, seria inconciliável com o fenómeno da sucessão ou transmissão numa relação jurídica que permanece objetivamente idêntica uma modificação substancial no âmbito dos meios de defesa oponíveis ao sub-rogado pela seguradora demandada em via de regresso”.
(17) Cfr., neste sentido, acórdãos do STJ de 5.03.2015 (processo nº 2007/09.3TVPRT.P1.S1), de 6.11.2007 (processo nº 07A3447), de 2.10.2007 (processo nº 07A2728), de 21.11.2006 (processo nº 06A3600), de 21.11.2006 (processo nº 06A3465), de 12.09.2006 (processo nº 06A2276) e de 15.05.2002 (processo nº 02B3891), todos disponíveis em www.dgsi.pt, sendo que neste último aresto expressamente se enfatiza que tal solução legal se justifica pela “finalidade do seguro obrigatório: um regime que faça depender a determinação do responsável de eventual nulidade resultante de falsas declarações sobre o risco seria fonte de incerteza para os lesados quanto à forma de jurisdicionalmente exercerem os respetivos direitos. Os atrasos que daí resultariam (…) afetariam de modo intolerável a proteção jurídica das vítimas de acidentes de circulação”.
(18) Cfr., inter alia, acórdãos de 28.03.1996 (processo C-129/94) e de 30.06.2005 (processo C-537/03), disponíveis em http://eur-lex.europa.eu/collection/eu-law/eu-case-law.html?locale=pt, nos quais se decidiu que, salvo no caso previsto no art. 2º, nº 1, da 2ª diretiva automóvel (isto é, pessoas que se encontrem no veículo causador do acidente de trânsito e que tenham conhecimento de que este fora roubado), são inadmissíveis disposições legais ou contratuais que excluam, em determinadas circunstâncias, a prestação do segurador.
(19) Sendo certo que, por mor do princípio do primado do Direito da União e bem assim em resultado do fenómeno de “internalização” desse direito que se verifica na decorrência da pronúncia jurisdicional do Tribunal de Justiça em sede de reenvio prejudicial (como ocorreu nos arestos citados na nota anterior), os juízes nacionais estão obrigados a cumprir não só o Direito emanado das instituições europeias como também as decisões prolatadas por aquele tribunal.