Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2460/18.4T8VRL.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: INTERDIÇÃO POR ANOMALIA PSÍQUICA
COLIGAÇÃO PASSIVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 - Em ação de interdição por anomalia psíquica, não deve ser admitida a coligação de réus (designadamente irmãos), pois a procedência dos pedidos formulados depende da apreciação de factos pessoais de cada um dos requeridos que conduzam à específica incapacidade de cada um deles.

2 – De igual modo, a tramitação processual do processo especial de interdição, tem um cariz eminentemente pessoal - como seja a realização de exame pericial ao interditando, o seu interrogatório, o conteúdo da sentença (com fixação do grau de incapacidade e data do começo desta), o registo da sentença, o relacionamento no próprio processo dos bens do interdito, após trânsito em julgado, a anulação de actos do interdito e o levantamento da interdição, por apenso – que conflitua com a referida coligação passiva.
Decisão Texto Integral:
Relatora: Ana Cristina Duarte (R. n.º 726)
Adjuntos: Fernando Fernandes Freitas
Alexandra Rolim Mendes
***
Sumário:

1 - Em ação de interdição por anomalia psíquica, não deve ser admitida a coligação de réus (designadamente irmãos), pois a procedência dos pedidos formulados depende da apreciação de factos pessoais de cada um dos requeridos que conduzam à específica incapacidade de cada um deles.
2 – De igual modo, a tramitação processual do processo especial de interdição, tem um cariz eminentemente pessoal - como seja a realização de exame pericial ao interditando, o seu interrogatório, o conteúdo da sentença (com fixação do grau de incapacidade e data do começo desta), o registo da sentença, o relacionamento no próprio processo dos bens do interdito, após trânsito em julgado, a anulação de actos do interdito e o levantamento da interdição, por apenso – que conflitua com a referida coligação passiva.
***
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

O Ministério Público intentou ação especial de interdição por anomalia psíquica contra E. S. e J. P., irmãos entre si, pedindo que seja decretada a interdição de ambos, por anomalia psíquica.

Considerando a existência de uma situação de coligação ilegal, foi ordenada a notificação do requerente para indicar qual o pedido que pretende ver apreciado, sob pena de absolvição da instância quanto a todos eles.

O MP nada disse.

Foi proferida sentença que julgou procedente a exceção dilatória de coligação ilegal, absolvendo os requeridos da instância.

O Ministério Público interpôs recurso, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes

Conclusões:

1 – O MP interpôs recurso da douta decisão proferida a 11 de janeiro de 2019 que, considerando a coligação de réus uma coligação ilegal e, portanto, consubstanciadora de uma exceção dilatória que julgou procedente, absolveu os réus da instância.
2 – A opção pela coligação de requeridos nesta ação especial de interdição/inabilitação não afeta a competência do tribunal que continua a ser absolutamente competente para a apreciação de ambos os pedidos.
3 – A forma de processo é idêntica para todos os pedidos formulados, sendo certo que ainda que assim não fosse ou caso assim não viesse a ser, a sua tramitação nunca seria absolutamente incompatível.
4 – Há interesse relevante na apreciação conjunta dos pedidos cumulados por assim se permitir uma visão global de uma mesma realidade familiar e de duas situações clínicas com géneses comuns, aquilatando-se da pertinência da nomeação daquele mesmo Conselho de Família indicado para ambos os irmãos.
5 – O legislador previu no artigo 132.º do Código Civil que, sempre que possível, a tutela de dois irmãos deve pertencer a um só tutor.
6 – A apreciação conjunta de ambos os pedidos corresponde ao primado da substância sobre a forma que perpassa o nosso ordenamento processual civil.
7 – As normas jurídicas a aplicar são precisamente as mesmas e o legislador não limitou este critério apenas às situações em que estão em causa normas jurídicas de grande complexidade ou especificidade.
8 – A natureza pessoal dos factos e a circunstância de estarmos no âmbito de uma ação sobre o estado das pessoas não implica necessariamente que a sentença tenha de dizer respeito a uma só pessoa.
9 – A prova a produzir, seja ela pericial e/ou testemunhal, pode aproveitar a ambos os requeridos.
10 – A coligação dos requeridos J. P. e E. S., não é uma coligação ilegal, inexistindo, por isso, em nosso entender, qualquer exceção dilatória que possa eventualmente conduzir à absolvição da instância.

Nestes termos e nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e, por via disso, revogar-se a decisão recorrida e determinar o prosseguimento dos autos relativamente a ambos os pedidos, fazendo-se a costumada JUSTIÇA.

Não há contra alegações.

O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Foram colhidos os vistos legais.

A questão a resolver traduz-se em saber se é admissível a coligação de réus em ação de interdição.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Os factos a considerar são os constantes do relatório supra, estando assente que os réus são irmãos – cfr. assentos de nascimento de ambos, juntos a fls. 5 verso a 7 dos autos.

Nos termos do disposto no artigo 36.º do Código de Processo Civil:

“1 – É permitida a coligação de autores contra um ou vários réus e é permitido a um autor demandar conjuntamente vários réus, por pedidos diferentes, quando a causa de pedir seja a mesma e única ou quando os pedidos estejam entre si numa relação de prejudicialidade ou de dependência.
2 – É igualmente lícita a coligação quando, sendo embora diferente a causa de pedir, a procedência dos pedidos principais dependa essencialmente da apreciação dos mesmos factos ou da interpretação e aplicação das mesmas regras de direito ou de cláusulas de contratos perfeitamente análogas.
3 – É admitida a coligação quando os pedidos deduzidos contra os vários réus se baseiam na invocação da obrigação cartular, quanto a uns, e da respectiva relação subjacente, quanto a outros”.

É sabido que na coligação, tal como prevista neste artigo, há pluralidade de partes e pluralidade de relações materiais controvertidas, ao contrário do litisconsórcio, em que há pluralidade de partes, mas unicidade da relação controvertida.

Na coligação existe uma cumulação de ações, mas ela só se justifica quando a causa de pedir é a mesma ou quando entre os pedidos formulados se verifica uma relação de prejudicialidade ou de dependência. Pode, ainda, haver coligação quando, apesar da diversidade de causas de pedir, a procedência das diversas ações dependa essencialmente dos mesmos factos, da interpretação ou aplicação das mesmas regras de direito ou da aplicação de cláusulas de contratos perfeitamente análogas. Existe ainda a possibilidade de coligação, nos termos do n.º 3, relativamente a relação cartular.

No caso dos autos, não há relações de prejudicialidade ou dependência, nem a causa de pedir é a mesma.

O que vem requerido é a interdição de cada um dos irmãos, com base em factos concretos, distintos para cada um deles, se bem que ambos reveladores de anomalia psíquica. A causa de pedir é a anomalia psíquica de cada um dos irmãos, revelada pelos concretos factos pessoais que a cada um se aplicam.

Não se pode, também, portanto, falar de “apreciação dos mesmos factos”, pois tal requisito só se verifica quando os factos forem comuns a todos os réus, de forma a que a prova dos factos alegados, confira suporte à procedência ou improcedência de todos os pedidos – ver, neste sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, in CPC Anotado, vol. I, Almedina, pág. 68.

No caso em apreciação não pode considerar-se lícita a coligação, pura e simplesmente, porque seriam de aplicar as mesmas regras de direito. Tal “comunhão”, como bem se refere na sentença recorrida, estende-se a todo e qualquer processo de interdição, ainda que os requeridos não tenham qualquer ligação entre si, o que, pensamos, ninguém se atreveria a sustentar.

Como refere o Prof. Alberto dos Reis, in CPC Anotado, vol. I, 3ª ed., pág. 102 “A palavra «essencialmente» está ali posta para significar o seguinte: quando a questão a resolver seja substancialmente de facto, é necessário que os factos sejam os mesmos; quando seja substancialmente de direito, é indispensável que a solução dependa da interpretação e aplicação da mesma regra de direito; quando dependa, na essência, da interpretação e aplicação das cláusulas contratuais, estas hão-de ser análogas”.

Ora, no caso em análise, estamos perante acção de interdição por anomalia psíquica, cuja questão a resolver é substancialmente de facto (e não de direito) e os factos em que se fundam os pedidos não são idênticos, como já salientámos.

Logo, a identidade de regras de direito, que é secundária, não conduz à admissibilidade da invocada coligação passiva – neste sentido e em caso em tudo semelhante, se pronunciou já este Tribunal da Relação de Guimarães, em Acórdão datado de 10/01/2019, proferido no processo n.º 1928/18VRL.G1 (o número estará incorretamente identificado), disponível em www.dgsi.pt.

Defende o recorrente o interesse relevante na apreciação conjunta dos pedidos cumulados (uma mesma situação de vida e um mesmo contexto familiar), fazendo apelo a uma apreciação casuística da bondade da coligação.

Ora, precisamente, de um ponto de vista casuístico, não vemos que haja vantagens na apreciação conjunta destes dois pedidos.

Conforme decorre do disposto no artigo 891.º do CPC, é necessário mencionar na petição inicial de uma ação de interdição, os factos reveladores dos fundamentos invocados e do grau de incapacidade do interditando – factos pessoais e individualizados, cuja prova determinará a específica incapacidade da pessoa a sujeitar a este regime.

O mesmo se dirá quanto à prova – exame pericial, interrogatório – que, mesmo partindo da alegação de factos semelhantes, pode conduzir a resultados muito diversos, o que acontece, claro está, devido ao caráter eminentemente pessoal deste tipo de ação.

Resultados diversos, não só quanto à possibilidade extrema de ser decretada a interdição para um dos requeridos e não o ser para outro (ou apenas a inabilitação), como quanto à possibilidade de decretamento de medidas provisórias (artigo 142.º do Código Civil), grau de incapacidade e data do começo desta, bem como actos que devem ser autorizados ou praticados pelo curador.

Acresce que a sentença deve ser personalizada, dirigida apenas a um requerido, também, face à necessidade de registo individualizado e de se proceder, no próprio processo, ao relacionamento posterior dos bens do interdito.

A possibilidade de anulação de actos do interdito e o levantamento da interdição, por apenso, conflituam, de igual modo, com a referida coligação passiva.

Do que fica dito resulta a improcedência da apelação, sendo de confirmar a sentença recorrida.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Sem custas, face à isenção de que goza o MP.
***
Guimarães, 28 de fevereiro de 2019

Ana Cristina Duarte
Fernando Fernandes Freitas
Alexandra Rolim Mendes