Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1040/18.98VCT-B.G1
Relator: MARIA LEONOR CHAVES DOS SANTOS BARROSO
Descritores: CADUCIDADE DO DIREITO DE ACÇÃO
PARTICIPAÇÃO DE SINISTRO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I - Verifica-se a caducidade do direito de acção às prestações devidas por acidente de trabalho (32º, 1, LAT), caso a autora apenas em 20-03-2018 venha a participar ao tribunal um alegado sinistro datado de 27-07-2001, ou seja, cerca de 16 anos 7 meses depois.
II - Não obstante a seguradora ter dado a conhecer à autora em 13-12-2002 que declinava a responsabilidade pelo reembolso por prestações em espécie que, na altura, esta se apresentou a reclamar (óculos) e sem que tenha havido lugar a assistência clínica pela seguradora.
III - A necessidade de certeza jurídica, princípio subjacente à caducidade, não se coaduna com as circunstâncias específicas do caso.

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

RECORRENTE/AUTORA/SINISTRADA: B. M..
RECORRIDA/RÉ/SEGURADORA – Companhia de Seguros X, SA.

ACÇÃO - especial emergente de acidente de trabalho.

Os autos iniciaram-se com a participação de alegado acidente de trabalho por parte da ora autora, que deu entrada em 20-03-2018.
Na participação a autora fez constar que: sofreu um acidente de trabalho em 27-07-2001, quando “carregava pastas de arquivo e ao descer as escadas cai e bati com a parte direita do rosto na estante, eram 17h25m fui assistida no hospital de …”; que lhe foi “dada alta em 18-12-2001” e que “recebeu tratamento em clinica de … em Braga”.
A empregadora M. D. Lda participou o acidente de trabalho à seguradora por carta enviada em 11-07-2002 (1), e por esta recepcionada pelo menos em 19-07-2002 (admitido pela própria seguradora), sob a alegação de “…só nesta data é participado pelo facto de o funcionário a quem compete este serviço não o ter feito por manifesta desatenção”.

A seguradora ora ré por carta datada de 13-12-2002 (2) informou a ora autora de que:

“Ex. Senhor, em devido tempo foi participado pela M. D. Lda o acidente de trabalho de que foi vitima, na data acima indicada. Acontece, porém, que a apólice de acidentes de trabalho não garante danos materiais. Assim sendo, embora lamentando, a seguradora não pode assumir qualquer responsabilidade. Para seu conhecimento junto enviamos cópia da carta enviada a v/entidade patronal”.

Esta missiva dirigida à autora foi acompanhada da cópia acima referida (comunicação à empregadora datada de 13-12-2002), que tinha o seguinte teor:
Em devido tempo participaram-nos V. Exªs o acidente de trabalho de que foi vítima o vosso funcionário em título, na data acima indicada. Acontece, porém, que ao procedermos à conferência do respectivo documento, verificámos que apenas refere como consequências do sinistro a quebra dos óculos do sinistrado.
Assim sendo, uma vez que a apólice de acidentes de trabalho apenas garante riscos traumatológicos, estando por isso excluídos os danos materiais, a seguradora não tem qualquer responsabilidade no aludido acidente. Sem outro assunto….”
A autora reclamou junto da seguradora, alegando uma recaída, por carta expedida em 1-09-2017, nela aludindo à anterior recusa da seguradora em assumir o acidente datada de 13-12-2002 e à anterior documentação que teria enviado, fazendo constar nessa missiva, no que ao ora releva, que:
“….Ora, como bem sabem toda essa documentação foi remetida tal como já dito anteriormente em 10-10-2002 e por vós recepcionada no dia 15-10-2002, tal como cópia de A/R que anexo.
Perante tais factos, tudo me leva a crer que houve manifesta mé fé da vossa parte ao declinar o acidente de que fui vítima no local de trabalho.
Assim, por este meio venho enviar participação de recaída, já que neste momento preciso de cuidados inadiáveis relacionados com a lesão, bem como pretendo ser ressarcida de todo as despesas que tive na altura e posteriormente ao acidente, bem como a IPP que resultou do sinistro…” (3)
A ora autora nunca recebeu tratamento clínico por parte da seguradora.
A autora recorreu em 31-07-2001, aos serviços de urgência do hospital de … (4) onde já era seguida anteriormente dado ser portadora de alta miopia, tendo-lhe sido diagnosticado um descolamento de retina do olho direito. Foi intervencionada ao olho direito em Agosto-2001. Posteriormente foi seguida em entidades alheias à seguradora na área de oftalmologia, designadamente no Dr. P. C. (clínica oftalmológica de Braga), no hospital da Misericórdia de Vila Verde (onde terá sido alvo de cirurgia à capsula ocular, em 2003), na Y - clinica oftalmológica de Braga, e no Instituto … Porto, tendo também consultado o Dr. T., em Coimbra. Resulta da documentação clínica que interrompeu a actividade laboral e esteve com certificado de incapacidade para o trabalho emitido pelo centro de saúde de Ponte de Lima entre Agosto-2001 e 17—12-2001 (5), neles constando a menção “doença natural”.
Os autos prosseguiram para a fase contenciosa, porquanto a ré seguradora, desde logo, não aceitou a caracterização do acidente como sendo de trabalho e invocou a caducidade do direito de acção.
Apresentada a petição inicial a ré contestou e arguiu a excepção de caducidade porque o acidente foi comunicado ao tribunal mais de 16 anos após a “suposta ocorrência” do mesmo.
No despacho saneador foi proferido o seguinte DESPACHO:
“Assim, procede a alegada excepção peremptória da caducidade, pelo que se absolve a R. dos pedidos formulados pela A. “
A autora interpôs recurso deste despacho que julgou procedente a excepção de caducidade.

FUNDAMENTOS DO RECURSO DA AUTORA- CONCLUSÕES:

a) A comunicação dirigida à Recorrente não é apta a produzir os efeitos que o Tribunal “a quo” lhe atribuiu, na medida em que, da mesma não resulta clara e inequivocamente que a Recorrida não se responsabiliza pelo reparação do Acidente de Trabalho que aquela foi vitima;
b) a Recorrida nunca comunicou a alta clínica, porque simplesmente os seus serviços clínicos nunca lhe prestaram qualquer assistência, não participou o acidente ao Tribunal do Trabalho, não obstante a Entidade Empregador o ter participado.
c) não pode a exceção de caducidade ser julgado procedente, uma vez que, até à presente data a Seguradora não comunicou formalmente a data da alta à Recorrente;
d) Não decorreu o prazo de caducidade previsto no artigo 32.º da Lei 100/97 de 13 de Setembro;
pelo que, deve a decisão proferida pelo Tribunal “a quo” ser revogada, ordenando-se a sua substituição por outra que julgue improcedente a exceção de caducidade…”

CONTRA-ALEGAÇÕES DA RÉ (SÍNTESE): propugna pela manutenção da decisão recorrida, dado que a autora participou o acidente de trabalho em 20-03-18 quando o mesmo, a ter ocorrido, terá sido em 27-07-2001. Ademais, o alegado acidente só foi participado à própria em 19-07-2002. Em virtude de tal facto, não existiu acompanhamento clínico por parte dos serviços da ré à autora. A Lei 100/97, no seu artigo 32º, n.º 1, estabelece que “O direito de ação respeitante às prestações fixadas nesta lei caduca no prazo de um ano, a contar da data da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado (…)”. Contudo, não tendo existido assistência clínica por parte dos serviços da Ré, nunca este preceito poderá aplicar-se tal qual ao caso dos autos. A Ré solicitou à Autora e sua entidade empregadora todos os documentos clínicos que pudessem existir derivados de assistência em consequência das lesões sofridas pelo acidente dos autos, não tendo obtido qualquer resposta. A Ré declinou assim a responsabilidade pelo acidente dos autos em 13/12/2002, por carta dirigida quer à sinistrada, quer à sua entidade empregadora, não lhe reconhecendo direitos. Embora a sinistrada não estivesse obrigada a efetuar a participação ao Tribunal de trabalho, o certo é que recaía primeiramente sobre ela o interesse, logo o ónus, de o fazer. Mormente quando existia missiva da seguradora indicando não assumir responsabilidade pela reparação do acidente.

PARECER DO MINSITÉRIO PÚBLICO

Emite parecer no sentido da improcedência do recurso. Concorda-se com a argumentação exposta na decisão recorrida e acrescenta-se que:

“….perante a realidade confirmada nos autos de que a sinistrada sabia que a seguradora teve conhecimento do acidente, não faz qualquer sentido e não é razoável nem legítimo da sua parte que tivesse ficado a aguardar a comunicação formal de atribuição da alta, quando é certo nunca ter recebido da seguradora qualquer tratamento clínico.
Pelo que, também por esse facto, de acordo com a diligência e cuidado que lhe eram exigidos, era obrigação da sinistrada participar o acidente ao tribunal.
Ora, se a sinistrada não exerceu atempadamente o direito de ação por omissão sua, até por uma questão de segurança jurídica não pode agora vir colmatar essa omissão e pedir a reparação de supostas incapacidades emergentes do acidente decorridos mais de dezasseis anos após a sua ocorrência e mais de quinze anos após a seguradora lhe ter comunicado que não assumia qualquer responsabilidade.”
Foram colhidos os vistos dos adjuntos e o recurso foi apreciado em conferência – art.s 657º, 2, 659º, do CPC.

QUESTÃO A DECIDIR (o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso (6)): apurar se se verifica a caducidade do direito de acção que a autora pretende exercer nos autos.

I.I. FUNDAMENTAÇÃO
A) FACTOS:

São os constantes do relatório, designadamente quanto à data do alegado acidente de trabalho (27-07-2001), data da sua participação ao tribunal pela autora (20-03-2018), participação do acidente de trabalho pela empregadora à seguradora (19-07-2002), inexistência de assistência clínica da autora por parte da ré seguradora e, consequentemente, inexistência de comunicação de alta clinica, comunicações da seguradora datadas de 13-12-2002 enviadas à autora e à empregadora declinando a responsabilidade pelos danos reclamados pela autora e, finalmente, carta da autora dirigida à seguradora expedida em 1-09-2017, alegando recaída.
Coloca-se a questão de saber se ocorreu a caducidade do direito de acção da autora relativamente às prestações conferidas pela lei dos acidentes de trabalho.

Segundo o artigo 32º,1, da Lei 100/97 de 13-09, aplicável aos autos tendo em conta a data do alegado sinistro (doravante LAT):

1-O direito de acção respeitante às prestações fixadas nesta lei caduca no prazo de um ano a contar da data da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado ou, se do evento resultar a morte, a contar desta” (7).

Ainda de acordo com o artigo 329º do CC:

“O prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido”.
Para que não ocorra a caducidade terá, em determinado prazo, de ser praticado o acto a que se atribui o efeito impeditivo. No caso será o início da instância que se dá com o recebimento em tribunal da participação do acidente de trabalho – 331º CC, 259º, 1 CPC, 26º, 4, 99º, 1, CPT.
A caducidade é uma forma de extinção de direitos potestativos que resulta da falta do seu exercício num determinado prazo. É um instituto que se funda em razões objectivas de segurança e certeza jurídica, prosseguindo o interesse público de definição dos litígios a que respeita – Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª ed., p. 961.
O seu fundamento específico é a necessidade de certeza jurídica, o que justifica que certos direitos devam ser exercidos durante certo prazo, findo o qual a situação das partes fica inalteravelmente definida – Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, 2ª reimpressão, p. 464.
Por regra os prazos de caducidade referem-se a prazos de propositura de acção. Assim, nos termos supra ditos, obsta-se à caducidade propondo a acção dentro do prazo estabelecido - Manuel de Andrade, ob. cit., p. 465.
No caso dos acidentes de trabalho, a LAT estipula que o prazo se inicia a partir da data da alta clínica comunicada ao sinistrado (8), excepto se do acidente de trabalho resultar em morte, caso em que se conta a partir desta última.
Estes serão os eventos “normais” que desencadeiam o início da contagem do prazo.
Na realidade:” Somente a partir de então fica o sinistrado habilitado a exercer os seus direitos se não concordar, quer com a situação de cura clínica, quer com o grau de incapacidade que lhe tenha sido atribuído” - Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2º ed, p. 152, em anotação ao artigo 32º da 100/97, de 13-09.
Só quando o sinistrado tem conhecimento da posição da seguradora está, portanto, apto a reagir.
Mas a lei, geral e abstracta, por vezes não contempla todas as hipóteses concretas da vida real.
A situação dos autos escapa a essa previsão. Não podendo deixar de começar por se assinalar o insólito do caso, em que um alegado sinistro somente é participado pelo sinistrado ao tribunal cerca de 16 anos, 7 meses e alguns dias após a sua suposta ocorrência.
Acrescendo o facto de a empregadora ter participado à seguradora o alegado sinistro cerca de um ano após a sua ocorrência, não obstante o prazo para tal ser de 24 horas – 15º da LAT e clª 5ª, nº 7, da apólice uniforme.
A lei de acidente de trabalho estabelece uma sequência de participações obrigatórias de sinistro. A primeira do sinistrado/beneficiários ao empregador, a efectuar em 48h (caso este dele não tenha conhecimento). A segunda, do empregador à seguradora (9), a efectuar em 24h a partir do conhecimento. Finalmente, a da seguradora ao tribunal, a qual só é obrigatória se do acidente resultar morte, incapacidade permanente ou incapacidade temporária superior a 12 meses, sendo os prazos, respectivamente, de imediato, de 8 dias a contar da cura clinica e de 8 dias da verificação da IT prolongada– 14º, 15º e 18º LAT.
Como se vê tratam-se de prazos curtos. Motivados na natureza urgente e no interesse público e social de que os acidentes de trabalho estão imbuídos, regime que almeja uma rápida reparação. Mas certamente também motivados na constatação natural de que o decurso do tempo dificulta o apuramento das lesões e a fixação dos nexos de causalidade, dos graus e da natureza de eventuais incapacidades, para não falar das dificuldades de reconstituição da verdade histórica do próprio acidente e do esbatimento da força de alguns meios probatórios.
Pressupõe-se, no caso, que a trabalhadora deu conhecimento do alegado acidente ao empregador já que este, embora extemporaneamente, avisou a seguradora cerca de um ano depois, sob a alegação de “desatenção” do seu funcionário. Assim sendo, alcança-se que a seguradora não prestou assistência clínica dado o tempo decorrido e porque a autora na altura terá solicitado apenas prestações em espécie (ortoses oculares-óculos) – 36º LAT, conforme teor da carta que a seguradora dirigiu à autora e cujo conteúdo - nesta parte – a autora não põe em causa.
Retiramos do exposto que, não tendo havido assistência clínica por parte da ré no contexto acima referido, não poderemos, cegamente e sem ter em conta outras considerações, lançar mão do critério legal da falta de comunicação da alta clinica por parte da seguradora e, assim, afirmar de um modo automático que o prazo de caducidade ainda nem sequer se iniciou, não obstante os anos que já decorreram.
O critério expresso na lei não abrange todas as situações suscetíveis de acontecerem. Tanto assim é que, designadamente, não abrange as situações em que o sinistrado não cumpre a sua obrigação de participar o sinistro à empregadora que dele não tenha conhecimento e que assim, por sua vez, não o pode participar à seguradora. Não havendo razão em tal situação para que o inicio do prazo de caducidade não se conte a partir da data do acidente, pois será o próprio sinistrado a inviabilizar que a lei se cumpra.
No caso específico dos autos entendemos que a contagem do prazo de caducidade terá de reportar-se à recusa da ré seguradora comunicada à autora, com data de 13-12-2002, desresponsabilizando-se pelos danos por esta reclamados, negando-se a assegurar as prestações previstas na LAT. Que, no caso específico, funcionará como situação equivalente em que a autora fica a saber que a seguradora não lhe reconhece direitos, estando assim apta a exercer o seu direito de acção.
A partir de então, a autora teria o prazo de um ano para participar o acidente ao tribunal, porquanto, pese embora não sendo obrigatório, tal lhe aproveitaria sendo a forma de cessar a contagem do prazo de caducidade, em face da aludida particularidade de nos acidentes de trabalho a acção se considerar proposta no momento do recebimento da participação – 26º, 4, CPT.
Levanta a autora a questão de a declaração da seguradora datada de 13-12-2002, não ser absolutamente clara e inequívoca no declinar da responsabilidade. Ora, tal não nos parece, concordando-se com o decidido na decisão recorrida.
Desde logo a declaração deve ser entendida no seu contexto. A autora reclamava na altura prestações em espécie (ortoses oculares), sendo normal que a ré a elas se referisse ao declinar a responsabilidade. O inicio da contagem do prazo de caducidade em tais situações reportar-se-á à recusa de uma qualquer prestação que se relacione com o acidente de trabalho, independentemente de a seguradora lhe chamar dano material. Importante é que a autora perceba que lhe está a ser reusado o que reclama como advindo do acidente.
A carta que a seguradora lhe comunicou, bem como o conhecimento que foi dado à autora da carta enviada também à empregadora, são explicitas no sentido de que “a seguradora não pode assumir qualquer responsabilidade”. Ademais, a autora nunca alegou que pediu assistência médica pelo que, também por isso, não poderia ter ficado na dúvida se a seguradora aceitava proporcionar outras prestações.
Finalmente, as próprias declarações da autora constantes da carta de 1-09-2017, quando muitos anos mais tarde se dirige novamente à seguradora referindo uma recaída, são inequívocas quanto ao facto de na altura ter entendido que a seguradora declinava a responsabilidade pelo acidente (“….Perante tais factos, tudo me leva a crer que houve manifesta mé fé da vossa parte ao declinar o acidente de que fui vítima no local de trabalho…”).
Colocando-nos agora numa perspectiva de tratamento jurisprudencial deste tipo de questões assinala-se uma tendência generalizada e manifesta dos tribunais em acentuar a necessidade de a seguradora comunicar ao sinistrado, de um modo formal e solene, a data da alta clinica. A alta clinica é situação em que lesão desapareceu totalmente ou se apresenta como insusceptível de modificação com terapêutica adequada. Sendo necessário a entrega ao sinistrado de cópia de boletim de alta clinica, onde o médico da seguradora que assiste o sinistrado declara a causa de cessação do tratamento e o grau de incapacidade permanente ou temporária e justifica as suas conclusões. A jurisprudência tem assinalado que somente a partir de então o sinistrado está apto e em condições de exercer os seus direitos. Considerando-se que o prazo de caducidade não se inicia enquanto tal não acontecer.
Nestas situações cabem os mais diversos casos, em especial aqueles em que é prestada assistência clinica ao sinistrado e não é fornecido o referido boletim de alta, mas tão só outro tipo de documento, ou mesmo nenhum.
Ora, efectivamente, estes casos cabem tipicamente na previsão do artigo 32º da LAT, da qual decorre que o termo de um processo de assistência clínica por parte da seguradora deve ser “fechado” com a entrega ao sinistrado de um boletim adequado e com cumprimento de certas formalidades, que a serem violadas, impedem que se inicie a contagem do prazo de caducidade. Tratam-se assim dos casos que se supõem “normais” em que o sinistrado foi encaminhado para tratamento e em que, portanto, teria de terminar-se a assistência clínica por via da comunicação formal da alta – Ex. dos Ac.s RP de 16-01-2017 e de RL 7-03-2018, www.dgsi.pt.
Encontramos, porém, casos jurisprudenciais menos lineares. Em que às seguradoras nunca foi participado o acidente de trabalho, ou foi participado muito tardiamente em relação aos prazos legais e em que nunca foi prestada assistência clinica. Nestas situações acabam por ser os sinistrados a participar ao tribunal o alegado acidente de trabalho decorridos que estão, em alguns casos, vários anos após o alegado sinistro. Este tipo de casos, por sua vez, pode apresentar cambiantes muitos diversos, desde sinistrados que se queixaram tempestivamente aos empregadores e que nunca conseguem obter assistência clínica, apesar das suas insistências e diligências, mormente junto dos empregadores, assistindo-se a situações verdadeiramente penosas, até outros quadros fácticos muitos omissos nas circunstâncias que subjazem a uma participação por parte do sinistrado vários anos após o alegado sinistro. Talvez sejam estas diferenças que motivam algumas decisões aparentemente dissonantes.
Há decisões judiciais que, não obstante terem decorrido anos sobre a data do suposto acidente, uma vez que nunca houve comunicação de alta clinica e sendo a participação do acidente de trabalho facultativa para o trabalhador, consideram que o decurso do prazo de caducidade não se inicia e, portanto, a participação é tempestiva.

É o caso do acórdão do STJ de 22-02-18 (participação pelo trabalhador ao tribunal em 19-05-2015, acidente de 3-07-09, nunca tendo a empregadora comunicado à seguradora o acidente, nem consequentemente sido prestada assistência médica). Considerou-se que o trabalhador participou ao empregador o alegado acidente e não poderia ser prejudicado pela omissão da empregadora, sendo a participação do trabalhador ao tribunal meramente facultativa. Entender-se o contrário seria premiar o infractor. No sumário afirmou-se:

“V- De acordo com o nº 1, do art. 32º, da LAT/97 (Lei nº 100/97, de 13 de Setembro), a caducidade do direito de acção ocorre se a acção não for intentada com observância da triplicidade cumulativa que daí decorre: não ter sido proposta no prazo de um ano; a contar da data da alta clínica; alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado.
…VII - A falta da alta clínica – mesmo em situações em que não haja incapacidade ou lesões – impede qualquer juízo jurídico valorativo sobre tal matéria, pelo que, não estando fixada a data da “alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado” não pode ter início a contagem do referido prazo legal de caducidade do direito de acção estatuído na primeira parte do nº 1, do art. 32º, da LAT/97.”

Trata-se de uma perspectiva que, se entendida de modo absoluto e ilimitado, nos casos em que não haja assistência clínica, o direito do trabalhador nunca estará sujeito a prazo de caducidade.

Encontramos outra jurisprudência que considera que, podendo o sinistrado/beneficiário participar em tribunal de modo a impedir a caducidade, sendo estes ele o principal interessado, e não o fazendo, desencadeia-se o inicio de contagem do prazo de caducidade.
Este principio deve, ao que julgamos, ser valorado de acordo com as circunstâncias do caso.
A jurisprudência tem salientado a atitude do trabalhador que se mantém estranhamente por tempo irrazoável sem participar o acidente, sem nunca ter recebido assistência clinica, durante anos consecutivos, e daí não retirando ilações. Recorre-se à data da alegada ocorrência de sinistro para iniciar a contagem do prazo, à falta de outra.
Neste sentido ac. RL 11-03-2015, sendo o alegado sinistro datado de 13-09-2005 e a participação ao tribunal de 29-11-2012.

Também ac. RP de 27-06-2011, caso de morte de trabalhador datada de 31-07-1998, com participação dos beneficiários ao tribunal em 7-07-2008, sem que a seguradora tenha cumprido o dever obrigatório de participação. Considerou-se que:

não parece que a inércia de quaisquer das pessoas a quem a lei impõe o dever de participação do acidente ao Tribunal signifique que essa “falta” neutraliza o prazo de caducidade a correr (no caso, desde a morte do sinistrado) ou até que seja causa de interrupção ou suspensão do mesmo, na medida em que tal não se mostra consagrado legalmente…. Por outro lado, a inércia dos recorrentes em fazer a participação a Tribunal conduz, necessariamente, à verificação da caducidade do direito de acção na medida em que eles são os primeiros e únicos interessados em operar a interrupção do prazo de caducidade.…Em suma: a falta de participação do acidente a Tribunal por parte da seguradora ou da empregadora é irrelevante para efeitos de se considerar/ou não, verificada a caducidade do direito de acção”).
Em sentido idêntico ac. STJ de 11-10-2005, um caso de morte de trabalhador ocorrida em 25-03-2001, com participação da viúva o tribunal em 5-04-2002, tendo havido omissão de participação por parte da seguradora. Afirmou-se no respectivo sumário:

“I- A caducidade do direito de acção respeitante às prestações indemnizatórias por acidente de trabalho, a que se refere a Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, interrompe-se com a participação do acidente ao tribunal, sendo irrelevante, para o efeito, que a entidade seguradora tenha incumprido o dever de comunicação que lhe é imposto pelo artigo 18º do Decreto-Lei nº 143/99, de 30 de Abril; II - É ao sinistrado ou aos beneficiários das pensões e indemnizações atribuídas por lei que incumbe o ónus de desencadear o efeito impeditivo da caducidade, visto que são eles os que directamente beneficiam dos efeitos indemnizatórios e têm interesse no exercício do direito de acção. III - Para o efeito de assegurarem o exercício tempestivo do direito de acção, o sinistrado e os beneficiários dispõem da faculdade de efectuarem, por sua própria iniciativa, a participação do acidente, que lhes é conferida pelo artigo 19º do Decreto-Lei nº 143/99”.

Alguma doutrina assinala também que, pese embora a participação do acidente ao tribunal pelo sinistrado seja facultativa, só existindo a obrigatoriedade de a fazer perante a empregadora, em certos casos acaba por adquirir relevância, mormente para impedir a caducidade. Sublinhando também que o incumprimento do ónus de participação a cargo da empregadora e da seguradora não releva, de per si, para impedir a caducidade (10).
Assim o diz João Monteiro para quem a faculdade legal conferida aos sinistrados e beneficiários legais de, por sua própria iniciativa, participarem os respectivos acidentes de trabalho ao tribunal pode mesmo impor-se quando haja incumprimento do dever de participação por parte das entidades ao mesmo legalmente adstritas, sob pena de caducidade do respectivo direito de acção - “Fase Conciliatória do Processo Para Efectivação de Direitos Resultantes de Acidente de Trabalho”, in Prontuário de Direito do Trabalho, CEJ, Coimbra Editora, nº 87, Setembro/Dezembro de 2010, p. 135 e ss.
Finalmente Carlos Alegre em anotação ao artigo 32º da LAT que versa sobre a caducidade, chama a atenção para a desproporção entre as consequências advindas para a seguradora e empregadora do incumprimento do dever de participação do sinistro (ex. coimas) e as advindas para o sinistrado/beneficiários que lhes custa a caducidade do direito de acção. Mais referindo que a faculdade de participação ao tribunal por parte do sinistrado/ beneficiários só deveria relevar para efeitos de caducidade quanto: (i) estes tivessem conhecimento de que o dever da ou das outras entidades não havia sido cumprido;(ii) quando não existe o dever de participação da outra parte (casos em não ocorre morte, IP, ou IT´s superiores a 12 meses) - Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais 2ªed., p. 153/4.
Feita a súmula, volvendo aos autos é agora pertinente introduzir mais uma nota que julgamos específica do caso e não escrutinámos em outros, que é o facto de a autora não ter sido clinicamente assistido pela seguradora e de esta lhe ter dado conhecimento de que declinava a responsabilidade dos danos. Não sendo um caso em ficou sem assistência e, simultaneamente, numa incógnita ou desconhecimento sobre a posição da seguradora – ver ac. RG de 20-03-2020 sobre a relevância deste conhecimento por parte do sinistrado (11).
O ac. da RL de 23-05-2018 mencionado pela recorrente nas alegações, pese embora relevasse a inexistência de alta clínica, não deixou de mencionar no sumário a recusa da seguradora em reconhecer lesões como alternativa idónea a desencadear a contagem do prazo (“…. – Se o sinistrado cumprir a sua obrigação de participar tempestivamente o acidente ao empregador, enquanto a seguradora não lhe comunicar a sua alta clínica (ou que não lhe reconhece quaisquer lesões incapacitantes), o prazo de caducidade de um ano não começa a correr, tenha o empregador participado o acidente à seguradora, ou não. ) (12) - sublinhado nosso.
Jogamos no caso com três circunstâncias associadas: (i) a seguradora não assistiu a autora no contexto referido onde se destaca a participação que lhe foi feita um ano após a suposta ocorrência do sinistro e em que a autora se apresenta a reclamar prestações em espécie (óculos); (ii) a seguradora comunicou à autora que recusava a responsabilidade pelos danos (iii) e entretanto decorreram 16 anos e sete meses até a autora participar o acidente ao tribunal, não se alcançando o porquê desta inação mantida por tal período de tempo, matéria na qual a autora é omissa.
Parece-nos que estamos perante um circunstancialismo que, nos termos dos argumentos supra enunciados, impunha à autora outra actuação. Cabendo-lhe ter praticado o único acto capaz de impedir a caducidade do seu direito de acção, cujo prazo, no caso, se contará a partir da recusa da seguradora em assumir a responsabilidade pelos danos reclamados.
Considerar-se a acção como tempestiva, passados que estão tantos anos, julgamos que seria menosprezar o principio subjacente à caducidade, a necessidade de segurança jurídica, não sendo no caso compreensível a falta de exercício do direito de acção por parte da autora, bem ciente que estava de que a seguradora havia declinado a responsabilidade.

I.I.I. DECISÃO

Pelo exposto, de acordo com o disposto nos artigos 87º do C.P.T. e 663. do C.P.C, acorda-se em negar provimento ao recurso confirmando-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente.
Notifique.
5-11-2020

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Antero Dinis Ramos Veiga
Alda Martins



1. Documento anexo ao requerimento Citius de 21-03-2019 e 4-06-20.
2. Consta do Citius com data de 12-04-2018.
3. Documento (carta e registo postal datado de 1-09-17) junto pela autora com a participação do sinistro ao tribunal.
4. Consta do Citius com data de 18-10-2018.
5. Citius, exame pericial singular de 29-01-2019 e também documentação junta pela autora com a participação.
6. Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC, o âmbito do recurso é balizado pelas conclusões do/s recorrente/s.
7. Este preceito tem equivalência no actual artigo 179º, 1, da NLAT Lei 98/2009, de 4-09.
8. A necessidade de comunicação ao sinistrado de um modo formal e garantístico está consolidada na jurisprudência.
9. No caso de empregadores com responsabilidade de acidentes de trabalho transferida para seguradoras.
10. Se o empregador não participar o acidente à seguradora, esta fixa exonerada das obrigações que possam advir do agravamento das lesões que da falta de participação atempada possam resultar – 1º, 2, apólice uniforme. Se a seguradora não participar ao tribunal o acidente nos casos em exista tal obrigatoriedade, a consequência é apenas de natureza contra-ordenacional- 18º LAT e 67º, 2, Lei 143/99 de 30-04.
11. Pese embora tal caso tenha contornos diferentes do presente, mormente quanto ao momento em que o sinistrado participou o acidente ao tribunal e porque se tratava de acidente de trabalho simultaneamente de viação em que o trabalhador começou por ser tratado no âmbito da seguradora civil colocando-se questões de responsabilização entre as seguradoras a que o sinistrado era alheio.
12. De resto tratou-se de caso não equiparável em que o acidente data de 24-01-12 com participação pelo sinistrado ao tribunal em 23-06-2014, onde se discute se o trabalhador participou tempestivamente ao empregador o sinistro tendo a decisão recorrido sido revogada para apuramento desta factualidade.