Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3190/11.3TBVCT.G1
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: DIVÓRCIO
CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
NECESSIDADE DE CASA PARA HABITAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/27/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: Na atribuição da casa de morada de família tem que se considerar, para além do mais, a necessidade que o cônjuge tem dela, necessidade essa que não existe se ele já optou por viver noutro local com uma companheira.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I
Ma… instaurou, na comarca de Viana do Castelo, processo de divórcio contra M…, no qual deduziu o incidente de atribuição provisória da casa de morada de família, pedindo que esta lhe seja atribuída.O réu opôs-se a essa pretensão alegando, em síntese, que o imóvel é composto por dois andares autónomos, pelo que as partes podem nele viver de forma autónoma, permitindo a separação física do prédio que ali vivam em separado ambos os membros do casal.
Entretanto, na conferência a que se refere o artigo 1420.º do anterior Código de Processo Civil, foi obtido acordo dos cônjuges para que o divórcio sem consentimento fosse convertido em divórcio por mútuo consentimento e fosse, desde logo decretado, tendo ambos acordado em que, não existem menores, prescindem reciprocamente de alimentos e que é bem comum a casa de morada de família, sita em Rua dos Eidos, n.º 8, Areosa – Viana do Castelo. "No mais, por ambas as partes foi dito que não chegam a acordo sobre a atribuição da casa de morada de família."
A Meritíssima Juiz homologou o acordo e decretou o divórcio do casal e, face à ausência de acordo em relação à casa de morada de família, proferiu despacho em que decidiu que "quanto à atribuição da casa de morada de família, os autos prosseguem".
Procedeu-se à produção da prova.
Após a Meritíssima Juiz proferiu despacho onde decidiu que:
"Em face do exposto, julga-se improcedente o pedido formulado pela Autora de atribuição provisória da casa de morada de família, ficando esta atribuída provisoriamente até à partilha dos bens comuns, a ambos os cônjuges em conformidade com a divisão física já existente, ficando o rés-do-chão atribuído ao Réu e o primeiro andar atribuído à Autora."
Inconformado com esta decisão, a autora dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
1. A Recorrente não concorda com a douta sentença que decidiu atribuir a morada de família a ambos os cônjuges, nos termos em que atribuiu a morada de família à A. no primeiro andar e o rés-do-chão ao Réu, apenas por entender que a casa de morada de família estava "fisicamente dividida em duas habitações, cada um delas ocupada por cada um dos cônjuges", não estavam reunidos os pressupostos legais da sua atribuição a apenas um dos cônjuges, não relevando, para este efeito a violência doméstica.
2. Na verdade, entende a Recorrente que estão reunidos todos os pressupostos para que a casa de morada de família lhe seja atribuída, nomeadamente o da necessidade e do interesse dos filhos, que não são postos sequer em causa pela douta sentença recorrida.
3. Para delimitação das circunstâncias que o Tribunal deve ter em consideração para a atribuição da morada de família a um dos cônjuges, há que ter em consideração o previsto no art.º 1793.º do CC.
4. Segundo Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, a circunstância de o citado art.º 1793.º ter especificado as "necessidades dos cônjuges" e o "interesse dos filhos do casal" só se justifica por esses factores serem os mais relevantes, não porque se tenha querido afastar a consideração dos demais factores a que se refere o art.º 84.º, n.º 2, do RAU (hoje 1105.º, n.º 2 do CC), pelo que devem ser também levados em conta nesta situação.
5. Destes critérios destacam-se "a situação patrimonial dos cônjuges" e "as circunstâncias de facto relativas à ocupação da casa", não sendo hoje de aplicar o critério da "culpa imputada ao arrendatário na separação ou divórcio" pelo facto de o regime do divórcio introduzido pela Lei 61/08, de 31.10, ter eliminado o conceito de "culpa" no divórcio.
6. No entanto, por expressa designação do legislador no n.º 1 do citado art.º 1793.º, os factores primordiais a atender são as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos.
7. Nos autos resultou provado que os filhos do extinto casal são maiores, sendo que o mais novo sofre de carcinoma maligno e a mulher e filho menor daquele, regressaram a casa dos pais, em virtude da doença de que padece, passando a residir com a mãe no primeiro andar da casa de morada de família, e resultou ainda provado, entre outros factos, que o casamento entre o casal foi pautado por conflitos frequentes e por situações de violência doméstica, que persistiram após a separação do casal e do divórcio.
8. Ainda com relevância, resultou provado que o rendimento do Recorrido é muito superior do da Recorrente, que apenas aufere um salário de € 287,00 mensais e que esta ainda cuida do filho mais novo, que padece de carcinoma maligno.
9. E resultou sobretudo provado que o Recorrido nem sequer reside no rés-do-chão da casa de morada de família, mas com a companheira, num outro local, sendo intenção de ambos assim continuar, conforme resulta da douta sentença recorrida.
10. Pelo que entende a Recorrente estarem preenchidos os pressupostos para que lhe seja atribuída a morada de família.
11. Na verdade, o legislador, ao conferir a protecção especial da casa de morada de família, quis acautelar o interesse do cônjuge menos favorecido, entendendo que a separação dos cônjuges provoca e potencia um mal-estar entre ambos os cônjuges, bem como potencia situações de conflito.
12. Foram exactamente estas situações de conflito, como as dos autos, que o legislador visou acautelar.
13. A questão da violência doméstica não só pode como deve, ser tomada em consideração para a atribuição da morada de família, em especial, no caso dos autos.
14. A verdade, é que o Recorrido apenas utiliza a casa de morada de família, onde já não reside, para continuar a exercer violência física e psicológica sobre a Recorrente, como resultou provado na alínea d) da douta sentença recorrida.
15. Ao atribuir uma parte da morada de família a ambos os cônjuges, está, pois, a permitir-se a manutenção da situação actual, pois a casa é uma unidade, não dividida em partes autónomas. E de forma alguma se pode impor à Recorrente que continue a sujeitar-se a viver por mais tempo na situação em que tem vivido, segundo os factos assentes indicam. É, pois, inadmissível obrigá-la a viver suportando as agressões físicas e verbais que o Recorrido continua a intentar contra ela – no mesmo sentido, acórdão do STJ, processo n.º 356/01, de 21-05-2001, in www.dgsi.pt.
16. Além do que, (sublinhe-se mais uma vez), se a Meritíssima Juíza a quo entendeu dar como provado que o Recorrido não habita sequer no rés-do-chão da referida morada de família, mas com a companheira, que, conforme consta da douta sentença recorrida – decai, assim, o critério da necessidade do próprio Recorrido – não poderia, no nosso entendimento, atribuir-lhe a morada de família no rés-do-chão.
17. Não pode, por si só, colher o argumento de que a morada de família "está fisicamente dividida em outras duas habitações, cada uma delas ocupada por cada um dos cônjuges", para justificar a atribuição da morada de família a ambos, pelos factos dados como provados e que vimos de expor e dado não ser sequer critério para a sua atribuição.
18. Ocupar não significa habitar, no sentido de residir.
19. A atribuição da morada de família a um dos cônjuges, apenas faz sentido para a habitação e residência de um deles e não já para a sua ocupação esporádica e ocasional.
20. Por isso, ao decidir como decidiu, a Meritíssima Juíza a quo fez uma errónea interpretação do disposto nos art.º 1793.º, n.º 1 do CC, bem como do art.º 65.º, n.º 1 da CRP.
21. A questão da divisão física da casa de morada de família em dois espaços, não é motivo suficiente para a sua atribuição a ambos os cônjuges, ao contrário do que entendeu a Meritíssima Juíza a quo, por uma segunda ordem de razão.
22. A casa de morada de família é o edifício destinado a habitação, é uma unidade, onde reside um conjunto de pessoas do mesmo sangue ou ligadas por algum vínculo familiar, e "residência da família" é o lugar onde esse conjunto de pessoas tem a sua morada habitual, a sua sede, não interessando a sua divisão ou organização física interna, é o centro onde a família organiza a sua vida é uma unidade, é uma só morada de família
23. Provado que está nos autos que a casa em questão era, no seu todo, a morada de família, não faz muito sentido, salvo o devido respeito por opinião diversa, transformá-la, dividi-la e atribuí-la a ambos os ex-cônjuges, como se existissem duas moradas de família.
24. A casa de morada de família, não obstante a sua divisão interna, continua a constituir um único artigo, inscrito na matriz como tal, bem como descrito na Conservatória do Registo Civil e, até ver, indivisível (nos termos do disposto no art.º 209.º do CC, a contrario), pelo que não poderia ser atribuída a ambos os cônjuges, nos termos da douta sentença proferida.
25. Bem como andou mal a Meritíssima Juíza a quo ao atribuir mais importância a tal facto do que às necessidades de cada um dos cônjuges.
26. Na verdade, ao decidir como decidiu, a Meritíssima Juíza a quo fez uma errónea interpretação do art.º 1793.º do CC, cindindo a casa de morada de família como e fossem duas realidades jurídicas autónomas.
27. Para além do exposto, entende também a Recorrente que a sentença padece de nulidade.
28. Primeiramente, por desconformidade, diga-se oposição, entre a matéria dada como provada e a decisão proferida, nos termos do disposto no art.º 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC, nomeadamente por ter sido dado como provado que com a Recorrente reside um filho que, embora maior, sofre de carcinoma maligno, a quem esta tem de prestar apoio, que aufere um salário muito inferior ao do Recorrido, que o Recorrido não reside na casa de morada de família, para depois se decidir atribuir também àquele morada de família (apenas do rés-do-chão).
29. Depois, porque condenou em objecto diverso do pedido, dado que a Recorrente peticionou a atribuição da morada de família, mas já não o Recorrido, que se defendeu por mera impugnação e não deduziu qualquer pedido reconvencional, nomeadamente que lhe fosse atribuída qualquer parte da morada de família para a sua habitação.
30. Por isso, a Meritíssima Juíza a quo, ao decidir atribuir o rés-do-chão da morada de família ao Réu, aqui Recorrido, acabou por condenar em objecto diverso do pedido, pelo que é nula nos termos do disposto do art.º 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC.
31. A Meritíssima Juíza a quo, ao decidir como decidiu, fez uma errónea interpretação do disposto no art.º 1793.º, n.º 1 do CPC, do art.º 65.º, n.º 1 da CRP, bem como do art.º 209.º, a contrario, do CC.
32. Pelo que não pode deixar de rever-se a douta sentença recorrida e proferir-se decisão que atribua a casa de morada de família apenas à Recorrente, quer por ser esta quem tem maior necessidade dela, bem como constitui salvaguarda do interesse do filho do extinto casal, quer por o Recorrido dela não necessitar para residir.
O réu não contra-alegou.
As conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir consiste em saber se a casa de morada de família deve ser atribuída exclusivamente à autora.II
1.º
Estão provados os seguintes factos:
a) Autora e Réu contraíram casamento canónico, sem convenção antenupcial, a 4 de Junho de 1972.
b) Desse casamento nasceram dois filhos que são maiores de idade.
c) Por sentença proferida nos presentes autos em 10 de Maio de 2012, transitada em julgado, foi decretado o divórcio por mútuo consentimento e dissolvido o casamento havido entre ambos.
d) O casamento entre ambos foi pautado por conflitos frequentes e marcado por situações de violência física e psicológica do Réu para com a Autora, conflitos que persistiram após a separação do casal e do divórcio.
e) Por escritura pública outorgada no dia 05 de Agosto de 1986, exarada a fls. 34 verso a fls. 36, do livro de notas para Escrituras Diversas n.º 134-C, do Segundo Cartório Notarial de Viana do Castelo, J… e mulher Z… declararam vender à aqui Autora Ma… casada com M…, pelo preço de Esc. 700.000$00 (setecentos mil escudos), uma casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar, situada no lugar de Povoença, freguesia de Areosa, deste concelho, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 1380.º, a desanexar do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Viana do Castelo sob o n.º 87559 a fls. 111 do livro B 222.
f) Na constância do casamento Autora e Réu viveram na habitação supra identificada que constituiu a casa de morada de família.
g) Após a separação do casal, ambos continuaram a residir na casa de morada de família, ocupando o Réu o R/C e ocupando a Autora o primeiro andar.
h) O filho mais novo do casal de seu nome V…, ficou doente padecendo de um carcinoma maligno.
i) O referido filho tem mulher e um filho menor, tendo regressado a casa dos pais, em virtude da doença de que padece e por necessitar de apoio, passando a residir com a mãe no primeiro andar da casa de morada de família.
j) A Autora ajuda a cuidar do filho.
k) A Autora aufere, em média, € 287,00 mensais pelos serviços de limpeza que presta no "E…", ao serviço da empresa L…, S.A..
l) O Réu está reformado, auferindo uma pensão de cerca de € 825,00 mensais (cfr. documento de fls. 166 e extractos bancários de fls. 288-347).
m) O Réu reside com a sua companheira T…, deslocando-se diariamente à casa de morada de família, a fim de tratar de um animal canídeo que lá deixou.
n) Por contrato escrito datado de Agosto de 2012, o filho de Autora e Réu V… arrendou, com destino à habitação, o rés-do-chão do prédio urbano sito na Rua de Monserrate, n.º 490, freguesia de Monserrate, concelho de Viana do Castelo, contrato com início no dia 01/08/2012.
o) A Autora desloca-se frequentemente à habitação arrendada pelo seu filho, nela pernoitando ocasionalmente.
p) A casa de morada de família é actualmente composta de rés do chão com 4 assoalhadas, cozinha, casa de banho e corredor, e 1.º andar de casa norte com 3 assoalhadas, sendo uma no rés-do-chão por onde parte uma escada de acesso, cozinha e casa de banho e primeiro andar do lado sul com 3 assoalhadas, cozinha, casa de banho e corredor.
q) O rés-do-chão e o primeiro andar são autónomos e independentes entre si, possuindo entradas autónomas através de acessos situados em ruas distintas, o rés-do-chão através da Rua dos Eidos, e o primeiro andar através da Rua da Povoença, e estão equipados com diferentes caixas de correio.
r) Em 24 de Outubro de 2011 (data da instauração da acção de divórcio), a Autora era titular da conta D.O. …, do Montepio Geral, data em que apresentava um saldo de € 708,79.
s) Em 24 de Outubro de 2011, a Autora era titular da conta D.P., no Montepio Geral n.º …, data em que apresentava um saldo de € 8.350,00, montante que foi transferido para a conta D.O. de que a Autora é titular n.º …, em 20/12/2011.
t) Em 24 de Outubro de 2011, a Autora era titular da conta D.P., no Montepio Geral n.º …, data em que apresentava um saldo de € 3.000,00, montante que foi transferido para a conta D.O. de que a Autora é titular n.º …, em 20/12/2011.
u) Em 24 de Outubro de 2011, a Autora era titular da conta D.P., no Montepio Geral n.º…, data em que apresentava um saldo de € 4.000,00, montante que foi transferido para a conta D.O. de que a Autora é titular n.º…, em 20/12/2011.
v) Em 24 de Outubro de 2011, a Autora era titular da conta D.P., na Caixa Geral de Depósitos n.º…, data em que apresentava um saldo de € 10.110,36, montante que foi liquidado em 10/01/2012.
w) Em 29 de Janeiro de 2013 a conta D.O. …, do Montepio Geral, titulada pela Autora, apresentava um saldo de € 271,27.
x) Em 24 de Outubro de 2011, o Réu era titular da conta n.º …, na Caixa Geral de Depósitos, data em que apresentava um saldo de € 229,91.
y) Em 08/03/2013, a conta n.º… possuía um saldo de 2.416,84 euros.
2.º
A Meritíssima Juiz fundou a sua decisão, essencialmente, na circunstância de "a casa de morada de família foi dividida em outras duas habitações, respectivamente, rés-do-chão e primeiro andar, as quais reúnem as condições necessárias para Autora e Réu residirem em cada uma delas, as quais estão perfeitamente autonomizadas e são independentes, possuindo, inclusive entradas próprias e autónomas cujo o acesso é efectuado por ruas distintas, sem necessidade, sequer, de Autora e Ré se cruzarem no seu dia-a-dia." Por isso, considerou "que no caso em apreço não estão reunidos os pressupostos legais para que a casa de morada de família seja atribuída única e exclusivamente à Autora em detrimento do Réu, uma vez que esta está fisicamente dividida em outras duas habitações, cada uma delas ocupada por cada um dos cônjuges."
É este entendimento que a autora censura, argumentando, em resumo, que o casamento "foi pautado por conflitos frequentes e marcado por situações de violência física e psicológica do Réu para com a Autora, conflitos que persistiram após a separação do casal e do divórcio", que "o filho mais novo do casal" está doente e necessita do seu apoio, que "o Réu reside com a sua companheira T…, deslocando-se diariamente à casa de morada de família, a fim de tratar de um animal canídeo que lá deixou", que "aufere em média, € 287,00 mensais" e que "o Réu está reformado, auferindo uma pensão de cerca de € 825,00 mensais". [1]
Nos termos do artigo 1775.º n.º 1 d) do Código Civil, o divórcio por mútuo consentimento pressupõe um "acordo sobre o destino da casa de morada de família". Contudo, se este inexistir, segundo o n.º 3 do artigo 1778.º-A do mesmo diploma, "o juiz fixa as consequências do divórcio nas questões referidas no n.º 1 do artigo 1775.º sobre que os cônjuges não tenham apresentado acordo, como se se tratasse de um divórcio sem consentimento de um dos cônjuges."
Importa, portanto, decidir do destino da casa de morada de família.
Esta questão foi suscitada pela autora, logo na sua petição inicial, a título de "atribuição provisória da morada de família – art.º 1407.º n.º 7 C.P.C."; [2] não se pediu então, nem depois, a atribuição da casa de morada de família no âmbito dos artigos 1413.º n.º 1 do anterior Código de Processo Civil [3] e 1793.º do Código Civil.
Assim, havendo que resolver esta questão "como se se tratasse de um divórcio sem consentimento de um dos cônjuges", ela será conhecida no contexto em que foi suscitada, isto é do n.º 7 do citado artigo 1407.º, cujo texto é igual ao do n.º 7 do artigo 931.º do novo Código de Processo Civil. Aliás, como se diz no Ac. STJ de 26-4-2012 no Proc. 33/08.9TMBRG.G1.S1, citado pelo tribunal a quo, a atribuição provisória da casa de morada de família é "um incidente, com processo especialíssimo, norteado por critérios de conveniência, que apenas tem em vista a fixação de um regime provisório (…), até à partilha dos bens comuns (…) que, em princípio, não tem a ver com o processo de constituição de arrendamento da casa de morada de família, regulado, como processo de jurisdição voluntária, no art. 1413.º do CPC [4], previsto, como efeito do divórcio, nos arts. 1793.º e 1105.º do CC".
Aquele n.º 7 estabelece que "o juiz (…) poderá fixar um regime provisório (…) quanto à utilização da casa de morada da família", sem que, no entanto, se consagre aí os critérios orientadores para essa decisão. Dado esse silêncio, afigura-se como adequado socorrermo-nos dos que se encontram plasmados no n.º 1 do artigo 1793.º, visto que a questão de fundo, em ambas as situações, tem como ponto comum a definição daquele que poderá utilizar a casa de morada de família. Significa isso que se terá em consideração, "nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal".
Quanto às "necessidades de cada um dos cônjuges" regista-se que se provou que o réu "reside com a sua companheira" e que se desloca "diariamente à casa de morada de família, a fim de tratar de um animal canídeo que lá deixou"[5] , o mesmo é dizer que o réu, por opção sua, não vive mais na casa de morada de família e que só aí vai diariamente para tratar de um cão "que lá deixou".
Por sua vez, a autora a habita o primeiro andar desse imóvel [6].
Assim, é certo que o réu não necessita daquela que foi a casa de morada de família para viver, visto que já tem residência noutro lugar, onde vive com uma companheira.
É, então, evidente que, à luz do critério da necessidade, a casa de morada de família não pode deixar de ser atribuída à autora.
Todavia, o réu argumenta que "a casa de morada de família está estruturada em dois andares, os quais possuem entradas autónomas, através de acessos situados em ruas distintas, estando ambos os espaços equipados com casa de banho e cozinha, pelo que A. e R. podem viver (…) de forma perfeitamente autónoma, sem sequer se cruzarem".[7]
A Meritíssima Juiz teve como boa esta argumentação e acolheu-a na sua decisão, atribuindo provisoriamente a casa de morada de família "a ambos os cônjuges em conformidade com a divisão física já existente, ficando o rés-do-chão atribuído ao Réu e o primeiro andar atribuído à Autora."
Salvo melhor juízo, essa não é, por várias razões, a solução adequada ao caso concreto que temos entre mãos.
Em primeiro, como já se viu, o réu não necessita da casa de morada de família.
Em segundo, a autonomia dos dois pisos do imóvel não é total, dado que há uma "escada de acesso" [8] entre o rés-do-chão e o 1.º andar.
Em terceiro, há que ter presente que o casamento "foi pautado por conflitos frequentes e marcado por situações de violência física e psicológica do Réu para com a Autora, conflitos que persistiram após a separação do casal e do divórcio." [9]
Neste contexto, não se encontra razão alguma que justifique a partilha dos pisos da casa de morada de família entre as partes; não há motivos, de facto e de direito, para que o réu também usufrua (parcialmente) desse prédio.
III
Com fundamento no atrás exposto, julga-se procedente o recurso pelo que se revoga a decisão recorrida e determina-se a atribuição provisória da casa de morada de família à autora.
27 de Fevereiro de 2014
António Beça Pereira
Manuela Fialho
Edgar Gouveia Valente
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[1] Cfr. conclusões d), h), m), k) e l).
[2] Cfr. artigo 76.º e seguintes da petição inicial.
[3] Actual artigo 990.º.
[4] A que corresponde o artigo 990.º do anterior Código de Processo Civil.
[5] Cfr. facto m) dos factos provados.
[6] Cfr. facto g) e i) dos factos provados.
[7] Artigos 21.º e 22.º da contestação.
[8] Cfr. p) dos factos provados.
[9] Cfr. d) dos factos provados. Neste ponto não se compreende, de todo, como pode a Meritíssima Juiz afirmar que "não colhe a argumentação da Autora no sentido que a vivência de ambos na mesma casa é impossível dados os conflitos que persistem entre ambos, designadamente a violência que o Réu exerce sobre a Autora, pois tal questão não releva para o caso em apreço". Como pode essa conflitualidade não relevar "para o caso em apreço" quando se opta por uma solução em que um e outro ficam a viver na mesma casa, em pisos diferentes, na qual há "escada de acesso" entre esses pisos.