Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
113/14.1T8BRG.G1
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/04/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: a) Para se apurar da competência material do tribunal para o conhecimento da ação, apenas há que entrar em linha de conta com a causa de pedir e o pedido tal como configurados na petição inicial.
b) Se a Autora invoca que outorgou num contrato com a Ré com vista a desenvolver e implementar um projeto imobiliário, obrigando-se a entrar no capital social da Ré (obrigação que cumpriu), sendo que a Ré não cumpriu com as suas obrigações pelo que o pretendido projeto imobiliário se tornou inviável, pretendendo a Autora ser indemnizada em conformidade com o previsto no contrato, estamos perante uma ação de responsabilidade civil contratual, da competência dos Tribunais comuns e não perante o exercício de “direitos sociais”, da competência dos Tribunais de comércio.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - HISTÓRICO DO PROCESSO
1. Transitado em julgado o despacho que julgou ilegal a coligação de autores e dado cumprimento ao disposto no art. 38º do CPC, prosseguiram os presentes autos apenas quanto aos seguintes pedidos formulados pela Autora B., L.dª contra C., S.A.; D., L.d.ª;¸ E., F. e contra G.:
A. A título principal
(i) Serem as 1ª e 2ª Rés condenadas a indemnizar a 1ª Autora no montante que a mesma deixou de auferir em consequência do incumprimento do contrato que celebraram - € 445.579,94 (contravalor em euros de R$ 1.294.000), acrescido da devolução do montante investido no valor de € 51.651,11 (contravalor em euros de R$ 150.000), o que perfaz € 497.231,05;
B. A título subsidiário
(i) Serem as 1ª e 2ª Rés condenadas a indemnizar a 1ª Autora no montante com que a mesma contribuiu nos termos do contrato que celebraram no valor de 51.905, acrescido dos custos que teve de suportar com a sua constituição e manutenção no valor de € 16.879,01, o que perfaz € 68.784,01;
(iii) Ser o 3º Réu condenado a devolver à 1ª Autora a quantia de € 31.000 (€26.500+€4500) que a 1ª Autora, por indicação deste, transferiu para a conta dos 4º e 5ª Réus e a cuja devolução se obrigou nos termos dos 1º e 2º contratos de mútuo celebrados.
(iv) Ser a 3º Réu condenado a devolver à 1ª Autora a quantia de € 5.000 que a 1ª Autora, por indicação deste, transferiu para a respectiva conta bancária nos termos do 3º contrato de mútuo celebrado.
(v) A não provarem que o integraram na 2ª Ré e a não o fazer o 3º Réu, serem os 4º e 5º Réus obrigados a devolver à 1ª Autora o montante de € 31.000 com que estes enriqueceram em virtude das transferências de € 26.500 e € 4.500 que esta realizou para conta bancária da sua titularidade;
C. Em qualquer caso
(i) Serem as 1ª e 2ª Rés condenadas a indemnizar as Autoras nos custos que esta haverá de ter de despender com o patrocínio forense que, não sendo possíveis de determinar senão em sede de execução de sentença, se fixam provisoriamente nos termos do disposto nos artigos 569º do Código Civil e do art. 556º, nº 1 al. b) do Código de Processo Civil em montante não inferior a € 40.000,00 acrescido de IVA à taxa legal;
(ii) Serem os Réus condenados nos juros até efectivo e integral pagamento das importâncias em que vierem a ser condenadas que, no caso das 1ª e 2ª Rés, são à taxa comercial;
[Dispensamo-nos de dar aqui nota dos fundamentos invocados pela Autora para suporte de tais pedidos, uma vez que os mesmos irão ser reproduzidos aquando do mérito do recurso]
Em despacho saneador, a M.mª Juíza julgou-se incompetente em razão da matéria, considerando competente para o conhecimento da ação o Tribunal do Comércio, pelo que absolveu os Réus da instância.

2. Inconformada, veio a Autora apelar para este Tribunal da Relação, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«A. A Douta Decisão em crise, com o devido respeito, equivoca-se decisivamente ao concluir que a presente acção se insere, nos termos do artigo 128º n.º 1 c) da Lei nº 62/2013, no âmbito da competência das secções de comércio, não estando incluída na competência em razão da matéria das secções cíveis da instância central, por considerar estarmos perante uma acção relativa ao exercício de direitos sociais;
B. É pelo pedido e pelos fundamentos alegados pelo autor na petição inicial que se afere da competência material do Tribunal [ ], o que equivale por dizer que é em face do pedido formulado pelo Autor e pelos fundamentos (“causa petendi”) em que o mesmo se apoia, e tal como a relação jurídica é delineada pelo Autor na petição (“quid disputatum” ou “quid dedidendum”), que cabe determinar a competência do Tribunal para poder/dever conhecer de determinada acção;
C. A causa de pedir e o pedido tal como ele é formulado pela Recorrente na sua petição inicial não se enquadra no exercício de direitos socias, mas antes num plano diverso, o da responsabilidade civil contratual (artigo 798º e ss do C.C.), uma vez que esta pretende apenas ser indemnizada pelo incumprimento contratual;
D. Os direitos que a Recorrente pretende fazer valer não são direitos sociais, que, por sua vez, são os direitos que os sócios têm enquanto sócios de uma sociedade (por força do contrato de sociedade), ligados à qualidade de sócios e tendentes exclusivamente à protecção dos seus interesses sociais e se contrapõem aos direitos creditórios dos sócios, estes resultantes de relações jurídicas alheias à relação social;
E. O que vai alegado pela Recorrente e que está na base do pedido formulado nos presentes autos – e que, dessa forma, constitui o conjunto de factos jurídicos que formam a causa de pedir - é a existência de uma relação contratual celebrada entre a Recorrente e a 1ª Ré, ora Recorrida, para, através da 2ª Recorrida, desenvolver de um projecto imobiliário no âmbito do programa “Minha Casa Minha Vida” da Caixa Económica Federal Brasileira, no terreno localizado na Rua ... no Rio de Janeiro, Brasil, e o incumprimento, pelos Recorridos, das obrigações decorrentes dessa mesma relação contratual, o que gera a responsabilidade contratual destes, nos termos do art. 798º e ss do C.C., e a sua consequente obrigação de indemnizar, nos termos conjugados dos artigos 562º, 564º n.º 1 e 566 n.º 2 do C.C.;
F. Já quanto ao pedido formulado na acção, a Recorrente peticiona que seja considerado o incumprimento definitivo do contrato celebrado pela Recorrente e 1ª e 2ª Recorridas e, em consequência, e a título principal (sem prejuízo dos demais pedidos subsidiários), que sejam as 1ª e 2ª Recorridas condenadas a indemnizar a Recorrente no montante que a mesma deixou de auferir em consequência do incumprimento do contrato celebrado – para desenvolvimento de um projecto imobiliário -, acrescido da devolução do montante investido nesse projecto;
G. Se é correcto afirmar-se que a indemnização peticionada corresponde aos montantes que a Recorrente teria a receber nos termos contratuais, já não corresponde à realidade que o mesmo será dizer a que teria direito a título de dividendos da 2ª Recorrida;
H. O que a Recorrente tem e alega é um direito creditório para com os Recorridos, peticionado nos termos gerais do direito, alheio à relação social da Recorrente com a 2ª Recorrida;
I. Direito esse que se funda no contrato celebrado entre a Recorrente e a 1ª Recorrida, cujo objecto consiste exclusivamente na realização de um projecto imobiliário, no qual a 2ª Recorrida é um veículo para a realização do mesmo e a entrada de capital da Recorrente na 2ª Recorrida um meio de realização desse mesmo projecto;
J. A entrada da Recorrente no capital social da 2ª Recorrida foi meramente instrumental para a partilha de ganhos do projecto/investimento imobiliário em causa, que é o objectivo do contrato - a realização de um concreto investimento -, e não a partilha dos lucros da 2ª Recorrida;
K. Aliás, paradigmático que assim foi, é o facto de a Recorrente alegar que as verbas aportadas ao projecto foram direcionadas para outros projectos da 2ª Recorrida, o que, se o que estivesse em causa fossem efectivamente direitos socias – quinhão nos lucros ou antecipação de dividendos – lhe seria de todo indiferente, pois tanto lhe faria que fosse desenvolvido este ou qualquer outro projecto, pois receberia sempre os lucros;
L. A Recorrente só participa naquele projecto imobiliário a que o contrato em causa se refere e só tem direito aos ganhos desse mesmo projecto;
M. Decisivo é ainda referir que a participação nos ganhos do projecto imobiliário não é feita por correspondência ao capital social da 2ª Recorrida – é totalmente desgarrado da participação social e é independente de a 2ª Recorrida ter ou não lucros, o que não seria o caso se estivéssemos a falar de dividendos;
N. Face à necessidade de o projecto ter de ser levado avante através de uma empresa de direito brasileiro e face à pré-existência da 2ª Recorrida, as partes acordaram que o investimento da Recorrente se faria através de um aumento de capital da 2ª Recorrida, a ser realizado pela Recorrente e 1ª Recorrida mas com fundos integralmente aportados pela Recorrente;
O. A entrada da Recorrente no capital social da 2ª Recorrida foi tão só um meio de realização do seu investimento no projecto imobiliário melhor identificado no contrato junto como doc. n.º 5 da p.i., na medida em a Recorrente apenas quis o conforto de ter uma participação minoritária, com direito a alguns poderes de veto e que em situações normais dariam alguma tranquilidade de acompanhamento do projecto e lhe conferiam alguma protecção e salvaguarda próprias de qualquer quadro negocial;
P. De qualquer das formas, a Recorrente não está nem quer exercer, nos presentes autos, nenhum direito social, como seja o de quinhoar os lucros, o de participar nas deliberações dos sócios, o de obter informação sobre a vida da sociedade, ser designada para os órgãos de administração e fiscalização da sociedade, ou quaisquer outros dirigidos à protecção dos seus interesses sociais;
Q. Não é a qualidade de sócia, enquanto tal, que está em causa na presente acção, uma vez que Recorrente não pleiteia como sócia da 2º Recorrida e enquanto titular dessa mesma qualidade jurídica, nem tende a protecção de quaisquer interesses sociais, e não detém sequer a qualidade de sócia da 1ª Recorrida;
R. A Recorrente age a título exclusivamente pessoal, peticionando dos Recorridos uma indemnização por incumprimento contratual que lhes é imputável – é só isto;
S. Ao contrário do que vai referido na Decisão de que se recorre, o direito indemnizatório peticionado pela Recorrente não está intimamente conexionado ou directamente ligado com a posição desta como sócia da 2ª Recorrida;
T. O contrato em que a Recorrente baseia o pedido formulado nos presentes autos podia ter sido perfeitamente celebrado sem a entrada da Recorrente no capital social da 2ª Recorrida, o que alteraria, “in totum”, o entendimento do Tribunal a quo relativo à alegada competência do Tribunal do Comércio, não deixando, no entanto, de ter por base a mesma figura jurídica (responsabilidade civil contratual pelo incumprimento de um contrato para desenvolvimento de um projecto imobiliário) e terminar com o mesmo pedido (indemnização pelos Recorridos, em virtude do incumprimento definitivo desse mesmo contrato);
U. A situação relatada na petição da Recorrente nada tem que ver com a gestão ou controle da actividade da 2ª Recorrida, enquanto tal, mas tão só com a sua diligência (ou falta dela) na prossecução do dito projecto, sendo que, em momento algum da sua petição a Recorrente requer que lhe sejam ora apresentados estes dados societários;
V. Quando na petição inicial a Recorrente alega que nunca lhe foram apresentados quaisquer dados da gestão societária e do estado financeiro da 2ª Recorrida, e que esta nunca foi chamada a qualquer assembleia geral ou sequer assinou contas de 2011, 2012 e 2013, fá-lo UNICAMENTE para demonstrar a ocultação da real situação da 2ª Recorrida, nomeadamente o uso dos fundos disponíveis e entregues pela Recorrente aos Recorridos para outros fins que não os contratados com a Recorrente, e assim demonstrar o incumprimento contratual dos Recorridos nos factos principais: (i) a falta de assinatura e registo do contrato com a W. e o facto de os Recorridos não terem acautelado os direitos da Recorrente neste contrato; (ii) a não celebração do contrato em conta de participação e do contrato de Sociedade de Propósito Especifico; (iii) a não aquisição do terreno; (iv) a não contratualização com a Caixa Económica Federal Brasileira; (v) a não realização do projecto imobiliário; (vi) o não recebimento das receitas desse mesmo projecto, etc;
W. O ente societário é, como tal, parte ausente no litígio em causa nos presentes autos [ ], pelo que, por isto e por tudo o exposto, não podem os fundamentos e pedido da Autora, ora Recorrente, ser configurados como “exercício de direitos sociais”;
X. A competência para a preparação e julgamento da acção “sub judice” cabe aos tribunais cíveis, in casu, à Instancia Central Cível do Tribunal da Comarca de Braga;
Y. A Decisão recorrida é, por isso, juridicamente censurável devendo, porque em desconformidade com as disposições legais aplicáveis, nomeadamente com o disposto no artigo 211°, n° 1 da Constituição da República Portuguesa, bem como nos artigos 117° n° 1 a) e 128º n.º 1 al. c) da LOFTJ e artigos 64° e 65° do Código de Processo Civil;
Termos em que dando provimento ao presente recurso, e ao revogar a decisão de que se recorre da ordem jurídica, alterando-a por outra que julgue o Tribunal a quo materialmente competente para os presentes autos, V. Exas., farão, como sempre, inteira JUSTIÇA!»

3. A Ré C., SA contra-alegou e CONCLUIU:
«1. O Tribunal de 1ª instância entendeu e, quanto a nós, bem, que o julgamento da presente ação compete às secções do comércio porquanto a mesma consubstancia uma ação relativa ao “exercício de direitos sociais”, nos termos e para os efeitos do artigo 128º, n.º1, c), da Lei n.º 62/2013 de 26 de agosto (Lei da Organização Judiciária).
2. A douta decisão recorrida deve ser mantida uma vez que nela se faz adequada interpretação dos factos e correta aplicação do direito. Com efeito,
3. A competência em razão da matéria deve ser apurada em função do pedido e da causa de pedir, sendo certo, porém, que os respetivos factos podem ser livremente enquadrados em termos jurídicos pelo Tribunal, conforme resulta do disposto no n.º3 do artigo 5º, do CPC.
4. Na presente demanda está, pois, em causa o alegado incumprimento de um acordo entre a sócia maioritária, a 1ª Ré, e a futura sócia, a Apelante, de uma sociedade comercial, a 2ª Ré, que incidiu sobre as relações entre Apelante e a 1ª Ré, aqui Apelada, enquanto sócia e futura sócia da 2ª Ré, e a própria gestão da respetiva sociedade, a 2ª Ré, pretendendo a Apelante, por via desta ação judicial, o exercício de direitos sociais.
Isto porque,
5. A Apelante detém 24,999% do capital social da 2ª Ré e, além disso, é titular de direitos especiais de voto que lhe foram atribuídos por estipulação no contrato social da 2ª Ré, sendo que o restante capital da 2ª Ré é detido pela 1ª Ré, aqui Apelada.
6. A relação jurídica controvertida configurada pela Apelante, na qual assenta o seu alegado direito à pretensão indemnizatória sobre a 1ª Ré, aqui Apelada, e a 2ª Ré, baseia-se ou fundamenta-se no contrato celebrado em 19 de Agosto de 2011, entre a Apelante e a 1ª Ré, aqui Apelada, cuja cópia aquela juntou, sob doc. n.º5, com a sua petição.
7. Tal contrato cuja cópia a Apelante juntou, sob doc. n.º5, com a sua petição, celebrado, em 19 de Agosto de 2011, com a 1ª Ré, consubstanciou um acordo parassocial, tal como este vem definido no artigo 17º, do Código das Sociedades Comerciais (CSC).
8. De facto, o contrato cuja cópia a Apelante juntou, sob doc. n.º5, com a sua petição, celebrado, em 19 de Agosto de 2011, com a 1ª Ré, teve por objecto o exercício de direitos sociais (voto e repartição de lucros), a atribuição de deveres aos sócios, concretamente o reforço do financiamento da sociedade pelos sócios, através da subscrição de aumentos de capital, e o prosseguimento de um determinado projeto, o regime de transmissão das participações sociais da 2ª Ré e a confidencialidade e validade do acordo, abarcando, portanto, as quatro categorias de cláusulas dos acordos parassociais.
9. A presente ação fundamentou-se, pois, no alegado incumprimento de um acordo parassocial (cfr. art. 17º do CSC).
10. Concretamente, a Apelante fundamentou a sua pretensão indemnizatória na cláusula 3ª do contrato cuja cópia juntou, sob doc. n.º5, com a sua petição, nos termos da qual “A primeira contraente [aqui 1ª Ré], na qualidade de sócia maioritária da Sociedade [aqui 2ª Ré], obriga-se a indemnizar a segunda contraente [aqui Apelante] por quaisquer perdas e danos decorrentes da inexatidão do que declara nas alíneas seguintes: (…)”.– cfr. artigo 70º, da petição inicial.
11. Além disso, a Apelante invocou, ainda, a violação de vários dos seus direitos sociais (máxime, direito a participar nas deliberações dos sócios; direito à informação sobre a vida da sociedade), conforme se extrai dos artigos 58., 59., 60. e 61., da sua petição inicial.
12. Sucede, ainda, que, na presente ação, a Apelante pediu, a título principal, que a 1ª Ré (Apelada), enquanto sócia maioritária da 2ª Ré, e a própria 2ª Ré, fossem condenadas a pagarem-lhe uma indemnização pelo lucro que a mesma Apelante deixou de auferir, enquanto sócia da 2ª Ré, em consequência do incumprimento do supra citado acordo.
13. Aliás, a Apelante reconheceu que o lucro cessante que agora reclama das Rés era contrapartida da sua posição de sócia na 2ª Ré, como decorre da factualidade expendida pela Apelante nos artigos 21º e 22º da petição inicial.
14. O que significa, portanto, que o alegado direito ao pedido indemnizatório reclamado pela Apelante às Rés na presente ação, a título de lucros cessantes no valor de € 445.576,94, a existir, adviria da sua qualidade de sócia da 2ª Ré.
15. De resto, isso mesmo ficou estabelecido no tal contrato cuja cópia a Apelante juntou, sob doc. n.º5, com a sua petição, designadamente na cláusula 4ª, n.º3, com o seguinte teor: “As quantias que a segunda contraente [Apelante] tem direito a receber da Sociedade [2ª Ré] ser-lhe-ão pagas a título de dividendos ou antecipação dos mesmos, salvo se a tal se opuser qualquer lei ou regulamento, caso em que serão titulados pela forma que a segunda contraente venha a indicar.”
16. Por isso, a Apelante está a reclamar os dividendos ou lucros, no valor de € 445.576,94, a que teria direito por força da sua qualidade de sócia da 2ª Ré, caso o acordo não tivesse sido alegadamente incumprido.
17. É, pois, evidente que a Apelante, através da presente ação, pretendeu exercer um alegado direito social de que é titular, e que lhe advém da sua qualidade de sócia da 2ª Ré e de uma específica relação constituída entre si e a 1ª Ré, enquanto sócias da 2ª Ré.
18. Por um lado, a Apelante, devido à sua qualidade de sócia da 2ª Ré e no âmbito da situação jurídica de sócia, formulou contra a 1ª Ré e a 2ª Ré um pedido indemnizatório fundado no incumprimento de um contrato que configurou um acordo parassocial (cfr. art. 17.º CSC), ou pelo menos um acordo de cooperação entre a Apelante (futura sócia) e a 1ª Ré (sócia maioritária) para a prossecução da atividade social da sociedade 2ª Ré.
19. Por outro lado, esse pedido indemnizatório correspondeu aos montantes a que a Apelante, enquanto sócia, teria direito a receber da Sociedade [2ª Ré], a título de dividendos ou antecipação dos mesmos (cfr. cláusula 4ª, n.º3 do acordo em apreço).
20. Assim, a Apelante pretendeu exercer pela presente ação os seguintes direitos sociais: (i) direitos sociais patrimoniais, concretamente o direito ao lucro/dividendo da Apelante, e (ii) direitos sociais pessoais, como os direitos parassociais da Apelante decorrentes da posição pessoal obtida por força do acordo em causa, e o direito à lealdade derivado das relações dos sócios entre si (Apelante e 1ª Ré) e destes para com a sociedade (2ª Ré).
21. A pretensão da Apelante, bem como a respetiva causa de pedir, têm, pois, como pano de fundo o estatuto de sócia da Apelante na 2ª Ré e o acordo (parassocial) celebrado entre a Apelante e a 1ª Ré para regular o exercício de direitos sociais na 2ª Ré.
22. Resulta, pois, inequívoco que a presente ação intentada pela Apelante contra a 1ª Ré, aqui Apelada, e a 2ª Ré consubstanciou uma ação relativa ao exercício de direitos sociais, e, por isso, a secção de comércio é materialmente competente para dela conhecer, segundo o disposto no art. 128º, n. º1, c), da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário).
23. Face ao exposto, conclui-se, sem margem para hesitações, que o douto despacho recorrido, quer na sua fundamentação como na sua decisão, fez exata apreciação dos factos e devida aplicação do direito impendente, devendo ser integralmente confirmado.
24. As alegações, de facto e de direito, da Apelante carecem, em absoluto, de fundamento, pelo que devem improceder em toda a linha, o que terá, necessariamente, que conduzir ao não provimento da Apelação e à manutenção do douto despacho recorrido.
Nestes termos, e nos que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, não deixarão de negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar, integralmente, o douto despacho recorrido, fazendo, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA.»

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
4. Foram os seguintes os ARGUMENTOS USADOS NA DECISÃO RECORRIDA (transcrição parcial):
«A questão que importa resolver é a de saber se o pedido principal dirigido contra as Rés se integra no exercício dos denominados “direitos sociais”, sendo, por isso, este Tribunal incompetente, em razão da matéria, para conhecer da presente acção.
Vejamos.
Nos termos do art. 96º do CPC, a infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal.
Estabelece o art.128º, nº1, c), Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) que compete às secções de comércio preparar e julgar as acções relativas ao exercício de direitos sociais.
Não há na lei uma definição de “direitos sociais”, mas a doutrina e a jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal de Justiça vem considerando que são direitos sociais todos aqueles que os sócios de uma determinada sociedade têm, como sócios, isto é, enquanto titulares dessa mesma qualidade jurídica, dirigidos à protecção dos seus interesses sociais, não se devendo considerar exaustiva a enumeração dos direitos dos sócios feita no art. 21º, nº1, do Código das Sociedades Comerciais.
Como se pode ler no Acórdão do STJ de 07.06.2011: “Devem incluir-se neste conceito, naturalmente, os direitos dos sócios previstos no art. 21º do Código das Sociedades Comerciais, como seja: quinhoar nos lucros, participar nas deliberações dos sócios, obter informação sobre a vida da sociedade e ser designado para os órgãos de administração e fiscalização da sociedade, sempre nos termos do contrato e da lei.
Também, seguramente, se incluem nos direitos sociais: o direito de acção de anulação de deliberações sociais, de requerer inquérito judicial por falta de apresentação de contas e de deliberação sobre elas, de propor acção judicial de responsabilidade contra membros da administração, de preferência nos aumentos de capital por novas entradas em dinheiro, e o direito à quota de liquidação – art.’s 59, 67, 77, 156, 266 e 458 do C.S.C.”
Já não revestem essas características “os direitos de que os sócios são igualmente titulares, independentemente da sua qualidade de sócios, aqueles em que essa qualidade não releva para o exercício do direito, representando direitos extra-sociais, que os sócios podem exercer como qualquer outra pessoa, numa posição semelhante à de terceiros” (Paulo Olavo Cunha, Breve Nota Sobre os Direitos dos Sócios, em Novas Perspectivas do Direito Comercial, pág. 232; Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, pág. 509; Brito Correia, Direito Comercial, 2º Vol., págs 305 e segs)”.
Por outro lado, certo é que a competência em razão da matéria é fixada em função dos termos em que a acção é proposta: concretamente, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como configurada na petição inicial, isto é, no confronto entre o respectivo pedido e a causa de pedir.
Isso mesmo é ensinado por Manuel de Andrade in" Noções Elementares de Processo Civil, I, reedição de 1979, pág. 91, e seguido em numerosos Acórdãos do STJ, que afirmam que a competência do tribunal se afere pelos termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos) e independentemente da sua viabilidade, como também é frisado pela jurisprudência.
Todavia, não se pode esquecer que o Tribunal é livre para efectuar o enquadramento jurídico dos factos alegados para fundamentar uma determinada pretensão não sendo, pois, necessariamente, determinante o que lhes é dado pelo autor.
Nestes pressupostos, analisemos então a pretensão da Autora e os seus fundamentos.
Analisando-a, vê-se que em causa está um pedido de indemnização fundado no incumprimento definitivo de um determinado contrato em que, como contrapartida da obrigação principal da Autora – de subscrição do aumento do capital social da 2ª Ré por via do qual aquela ficaria possuidora de quotas da referida Ré (cláusula 2ª) –, a mesma teria direito a receber determinadas quantias, quantias essas a serem-lhe pagas a título de dividendos, ou antecipação dos mesmos, da referida 2ª Ré, D. Ltda. (de que a 1ª Ré possuía quotas que lhe permitiam tomar sozinha todas e quaisquer deliberações) (n.ºs 1 e 3 da Cláusula 4ª), sociedade da qual a Autora é, neste momento e como então previsto, sócia “com 24,99% das quotas e com direitos especiais”, sendo, portanto, as restantes obrigações ali previstas (e alegadamente violadas) prestações acessórias em relação à referida obrigação de pagamento de determinadas quantias a título de dividendos da 2ª Ré, ou seja, prestações estabelecidas para, no seu conjunto, conduzirem à concretização do referido resultado final visado e, desse modo, à satisfação do interesse da Autora.
E a indemnização peticionada corresponde, como frisa a própria Autora, aos montantes que esta teria direito a receber nos termos contratuais, o mesmo é dizer, aos montantes a que teria direito a título de dividendos – ou seja, como quinhão nos lucros – da 2ª Ré.
O direito decorrente do contrato para a Autora está, pois, intimamente conexionado com a posição desta como sócia da 2ª Ré, passando o normal cumprimento do contrato pela activação do direito aos dividendos a que a aquela tem direito nessa qualidade de sócia. Assim sendo, o eventual direito de indemnização assente no incumprimento definitivo do dito contrato encontra-se, também ele, directamente ligado à referida qualidade de sócia, não podendo considerar-se tal qualidade despicienda para a pretensão formulada, pelo que, salvo melhor entendimento e independentemente da viabilidade da dita pretensão, é de considerar estarmos perante uma acção relativa ao exercício de direitos sociais.
A acentuar a importância, nesta acção, da referida qualidade de sócia, recorde-se ainda que, entre o mais, a Autora alega que nunca lhe foram apresentados, como sócia da 2ª Ré com 24,99% das quotas e com direitos especiais, quaisquer dados da gestão societária e do estado financeiro da 2ª Ré, como sócia, nunca foi chamada a qualquer assembleia geral, nem assinou contas de 2011, 2012 ou 2013, o que demonstra a deliberada ocultação, por parte dos Réus, da real situação daquela 2ª Ré, nomeadamente do uso dos fundos disponíveis, do estado das contas sociais de 2011, 2012 e 2013 e do possível incumprimento fiscal e legal das obrigações da 2ª Ré no Brasil e viola a Cláusula 16ª da 1ª alteração contratual da 2ª Ré celebrada em 24 de Outubro de 2011.
A presente acção insere-se, pois, nos termos do citado art. 128º, nº 1, c), no âmbito da competência das secções de comércio, não estando, portanto, incluída no âmbito da competência em razão da matéria das secções cíveis da instância central.
A incompetência absoluta do Tribunal é uma excepção dilatória que determina a absolvição da instância ou, no caso, como o presente, de ter sido decretada depois de findos os articulados, a remessa dos autos ao Tribunal competente, (…) (art.´s 96º, a), 97º, nº 1, a), 98º, 99º, nºs 1 e 2, 576º, nºs 1 e 2, e 577º, al. a), todos do CPC).»

5. O MÉRITO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 608º nº 2, ex vi do art. 663º nº 2, do Código de Processo Civil (de futuro, apenas CPC).
No caso, o recurso suscita uma única QUESTÃO: se a presente ação é da competência dos tribunais comuns ou do tribunal de comércio.

5.1. (IN)COMPETÊNCIA MATERIAL
A incompetência em razão da matéria constitui exceção dilatória, insuprível, de conhecimento oficioso e importando a absolvição da Ré da presente instância: art. 96º, 97º nº 1, 99º, 278º nº 1 al. a) e 577º al. a) do CPC.
Como é sabido, a competência em razão da matéria contende com as diversas espécies de tribunais, comuns ou especiais, estatuindo-se as normas delimitadoras da jurisdição desses tribunais de acordo com a matéria ou o objeto do litígio.
Nos termos do art. 65º do CPC são as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada.
E, de acordo com o art. 38º nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26.08 (Lei de Organização do Sistema Judiciário, de futuro apenas LOSJ), a competência dos tribunais fixa-se no momento em que a ação é proposta.
E, a ser assim, se o que define a propositura da ação é a petição inicial, a competência em razão da matéria terá de ser aferida em função do pedido e da causa de pedir, tal como formulados pelo Autor.
Daqui decorre, como primeira constatação, que para o apuramento da competência material, não há que entrar em linha de conta com a contestação e/ou reconvenção [ ] deduzidas pelo Réu nem com as exceções [ ] por ele suscitadas.

A incompetência foi decretada por recurso à alínea c) do art. 128º nº 1 da LOSJ: “Compete às secções de comércio preparar e julgar: (…) c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais”.
Discorda a Autora, considerando que com a ação pretende ela efetivar a responsabilidade civil/indemnização por incumprimento contratual e não exercer um direito social.
O critério geral e primacial para distinção entre a jurisdição comum e a comercial é, pois, o da natureza societária/comercial da relação jurídica em litígio.
Apuremos então o que são, ou quais são, os “direitos sociais” a que alude o art. 128º nº 1 al. c) da LOSJ.
Em primeiro lugar, regista-se que o art. 128º nº 1 al. c) da LOSJ fala em “direitos sociais” e não em “direitos dos sócios”, o que nos permite a ilação de que o que está em causa para efeitos da competência dos tribunais de comércio são as questões relacionadas com a atividade das sociedades comerciais e não os direitos que assistam aos sócios na sua própria pessoa. [ ]
Um outro elemento referencial é-nos dado pela lei processual civil, ao descriminar os processos especiais (e, dentro desta, como processos de jurisdição voluntária) atinentes ao “exercício de direitos sociais”: “inquérito judicial à sociedade” (artigos 1048º e segs.), “nomeação e destituição de titulares de órgãos sociais” (artigos 1053º e segs.), “convocação de assembleia de sócios” (artigo 1057º), “redução do capital social” (artigo 1058º), “oposição à fusão e cisão de sociedades e ao contrato de subordinação” (artigos 1059º e 1060º), “averbamento, conversão e depósito de ações e obrigações” (artigos 1061º e segs.), “liquidação de participações sociais” (artigos 1068º e 1069º) e o de “investidura em cargos sociais” (artigos 1070º e 1071º).
Também aqui, ainda que relacionadas com a pessoa dos sócios, temos situações todas elas materialmente respeitantes à “vida” e ao Direito das sociedades comerciais.
E, com o auxílio da doutrina, tentemos entender então o que são, ou quais são os “direitos sociais” no domínio das relações do sócio perante a sociedade.
Nesse âmbito, Manuel de Andrade distingue os “direitos de participação na administração corporativa” dos “direitos de utilizar e recolher certas vantagens associativas” e, quanto a estes últimos, refere «Estas podem ser de diversa natureza: utilização de bens ou locais a tal efeito destinados, subsídios pecuniários em dadas eventualidades, assistência médica, etc. Nas sociedades, os direitos deste tipo que pertencem aos sócios, são fundamentalmente os dois que no texto se indicaram. Todos estes direitos são direitos pessoais sui generis. Não são direitos reais ou de crédito, salvo, quanto aos do segundo tipo, depois de adjudicadas por acto corporativo as respectivas utilidades.». [ ] (sublinhado nosso)
Também Paulo Olavo Cunha considera que «Os direitos sociais são direitos «sui generis» que resultam da posição que os sócios ocupam na sociedade, enquanto sócios.
Estão fora do seu âmbito os «direitos creditórios» ou «extracorporativos — direitos de terceiros ou direitos dos sócios enquanto terceiros, ou seja, independentemente da sua posição social ou, conquanto dela possam ter resultado, autonomizaram-se quando concretizados.
(…)
Dificuldades também se colocam no plano terminológico.
Refiro-me à expressão «direitos adquiridos», que afasto por poder significar tanto direitos dos sócios enquanto terceiros, que tenham resultado da sua posição de sócios, mas que já se autonomizaram, porque concretizados (o exemplo clássico é o do direito a dividendos já definitivamente aprovados pela assembleia geral) (…).». [ ] (sublinhado nosso)
Por seu turno, segundo Eduardo de Melo Lucas Coelho, «Os direitos creditórios são direitos dos sócios como terceiros — não enquanto sócios —, posto resultarem de relações jurídicas alheias à relação social (compra e venda, emprego, mútuo), ou dimanarem da relação social mas haverem-se autonomizado desta (o direito a dividendos já definitivamente aprovados em assembleia geral).
Contrapõem-se-lhes os direitos corporativos como direitos dos sócios nesta qualidade, direitos de vária espécie cujo conjunto exprime a posição do sócio face à sociedade.». [ ]
Em termos jurisprudenciais: «O conceito de direitos sociais, a que se reporta a alínea c) do nº 1 do artigo 89º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais abrange essencialmente os que se inscrevem na esfera jurídica dos sócios das sociedades em razão de nestas participarem por via de contrato e que se traduzem em posição jurídica envolvente da protecção dos seus interesses societários.». [ ]
Daqui podemos concluir que, sendo embora a qualidade de sócio um elemento essencial, ele não é bastante; necessário ainda é que o direito que se pretende exercer se situe no âmbito da relação social enquanto tal e que dela ainda se não tenha autonomizado.

Visto isto, olhemos a situação tal com a Autora a configurou no articulado inicial:
A 2ª Ré, detida quase exclusivamente pela 1ª Ré, perspetivava desenvolver um projeto imobiliário no Brasil, no âmbito dum programa denominado “Minha Casa Minha Vida”.
A Autora, pretendendo internacionalizar os seus investimentos, celebrou um contrato com a 1ª Ré no qual ficou estipulado que ela entraria no capital social da 2ª Ré com R$ 38.749,00 para, através dela, desenvolver o referido projecto imobiliário do programa “Minha Casa Minha Vida” e, ainda que a 1ª Ré reforçaria o capital social da 2ª Ré com R$ 111.251,00.
A realização de tais aumentos de capital seria efetuada de uma forma faseada, em função das diferentes fases do projecto imobiliário e dum “Instrumento Particular de Consultoria Imobiliária e Cessão de Direitos” que iria ser celebrado entre a 2ª Ré e a W. empresa que desenvolveu os estudos e projectos técnicos para a construção e que era titular do direito de opção de compra do terreno.
Em contrapartida, a Autora teria direito a receber da 2ª Ré R$ 1.294.000 conforme indicado no item “lucro”, + R$ 150.000 referente ao pagamento inicial dos projectos à W.
Os montantes entregues pela Autora a título de realização do aumento de capital deveriam ser utilizados somente para pagamento da remuneração devida à W.
A entrada da Autora no capital social da 2ª Ré foi tão só um meio de realização do seu investimento no projecto, não pretendendo ela, após a conclusão do mesmo, permanecer acionista daquela sociedade.
A 1ª Ré obrigou-se a proceder a todos os atos necessários ou convenientes a que fosse cumprido o projecto imobiliário em questão e, com base nos rendimentos, receitas ou lucros desse projecto, proceder a todos os atos necessários ou convenientes a que a Autora recebesse os montantes acima referidos.
Mais se obrigou a 1ª Ré, na qualidade de sócia maioritária da 2ª Ré, a indemnizar a Autora por quaisquer perdas e danos decorrentes do incumprimento das alíneas a) a d) da Cláusula 3ª do contrato, do seguinte teor:
a) “(…) A Sociedade [ ] celebrará com a W. um contrato de consultoria imobiliária e cessão de direitos nos termos da minuta de instrumento particular que constitui o Anexo I ao presente contrato e que dele faz parte integrante;
b) A Sociedade celebrará com empresa construtora brasileira detentora de conceituação de risco de crédito (Geric), um contrato de constituição da sociedade empresária de propósito específico limitada, nos termos da minuta de instrumento particular de contrato social que constitui o Anexo II ao presente contrato e que dele faz parte integrante;
c) Relativamente à sociedade empresária de propósito específico, entre a Sociedade e a empresa construtora brasileira detentora de conceituação de risco de crédito (Geric) será celebrado um contrato de constituição de sociedade em conta de participação, nos termos da minuta de instrumento particular que constitui o Anexo III ao presente contrato e que dele faz parte integrante;
Na data do contrato, a Autora transferiu a quantia de € 26.500,00 para a conta titulada pelos 4º e 5º Réus, à data Presidente e Vice-presidente da 1ª Ré, os quais confirmaram a aceitação da receção daquele montante e assumiram inteira responsabilidade sobre o mesmo.
Esse valor destinava-se ao aumento de capital social da 2ª Ré pela 1ª Ré, e devia, no prazo de 8 dias, ser utilizado para o pagamento da 1ª tranche referida no contrato celebrado entre a 2ª Ré e a W.
Ainda em cumprimento do contrato, a Autora efetuou as seguintes transferências, no valor total de 25.405:
a) em 12 de Outubro de 2011, o montante de € 12.300,00
b) em 23 de Novembro de 2011, o montante de € 4.500,00
c) em 28 de Dezembro de 2011, o montante de € 3.605,00
d) em 9 de Abril de 2012, o montante de € 5.000,00
Todos esses valores, num total de € 51.905, deveriam integrar o capital social da 2ª Ré até 31 de Dezembro de 2011, segundo resulta da 1ª alteração contratual da 2ª Ré celebrada em 24 de Outubro de 2011, pela qual a Autora passou a ser titular de 38.749 quotas daquela sociedade, no valor nominal total de R$ 38.749,00.
A Autora foi constituída especificamente com o único propósito de ser parte neste negócio e, desde 2011 à presente data, suportou os custos de organização do mesmo, nomeadamente custos com solicitação de serviços jurídicos (em Portugal e no Brasil) para a elaboração dos contratos em causa, bem como demais custos de contabilidade e de funcionamento, que se traduzem num total de € 16.879,01.
Sucede que os Réus violaram os princípios e obrigações contratualmente assumidas. Assim:
a. O projecto imobiliário em questão está atrasado mais de 3 anos por factos imputáveis às 1º e 2ª Rés, tendo as verbas disponibilizadas pela Autora sido desviadas pelos Réus para outros fins que não os contratualizados (afetando-as a um outro projecto imobiliário que estava a ser executado pela 2ª Ré, o que importou dificuldades no pagamento de despesas normais e previstas para a implementação do projecto contratado com a Autora e inviabilizou a sua).
b. Numa deliberada ocultação da real situação da 2ª Ré, nunca foram apresentados à Autora (sócia da 2ª Ré com 24,99% das quotas e com direitos especiais), quaisquer dados da gestão societária e do estado financeiro da 2ª Ré, nunca ela foi chamada a qualquer assembleia geral, nem assinou contas de 2011, 2012 ou 2013, o que viola a Cláusula 16ª da 1ª alteração contratual da 2ª Ré celebrada em 24 de Outubro de 2011.
c. O contrato tornou-se, à data, impossível de cumprir dado que o terreno onde iria ser implantado o projeto já foi vendido a terceiros.
d. As 1ª e 2ª Rés já manifestaram expressamente que não iriam cumprir o acordado.
e. Em violação do disposto na Cláusula 3ª al. a) do contrato celebrado com a Autora, o Instrumento Particular de Consultoria Imobiliária e Cessão de Direitos a celebrar entre a W. e 2ª Ré não foi assinado por ambas as partes nem está registado.
f. Desde 2013, face ao incumprimento da W., o proprietário do terreno permitiu que fosse estudada e implementada uma parceria que seria benéfica para a 2ª Ré e a Autora, conferindo à 2ª Ré a opção de compra daquele terreno, afastando a W. do processo, o que permitiria que a 1ª Autora pudesse gerar algum valor com a execução do projecto. Apesar de várias insistências da Autora, os Réus não avançaram com a celebração do negócio, ultrapassando-se, à data, já todos os prazos para o efeito. O proprietário do terreno vendeu-o a terceiros.

A causa de pedir consiste no ato ou facto jurídico de que emerge o direito que o autor se propõe fazer valer ou «(…) no acervo dos factos que integram o núcleo essencial da previsão da norma ou normas do sistema que estatuem o efeito de direito material pretendido (…).». [ ]
Ora, dado que a previsão legal/estatuição normativa é formulada abstratamente, torna-se necessário alegar os factos concretos, as ocorrências da vida que, no caso, integram e permitem identificar o facto jurídico.
Não são de confundir, portanto, os factos naturalísticos ou materiais com os factos jurídicos.
Assim, a relação jurídica trazida aos autos é uma relação obrigacional: segundo a Autora, os Réus Ré constituíram-se em diversas obrigações —— no âmbito dum contrato que tinha por objetivo o desenvolvimento de um projeto imobiliário no Brasil, o qual interessava à Autora que pretendia internacionalizar os seus investimentos —— obrigações essas que não cumpriram e que inviabilizaram definitivamente a realização do dito projeto de construção.
É certo que a Autora se obrigou a entrar no capital social da 2ª Ré.
Porém, como a Autora deixa bem vincado, essa sua entrada no capital social da 2ª Ré foi tão só um meio de realização do seu investimento no projecto, não pretendendo ela, após a conclusão do mesmo, permanecer acionista daquela sociedade.
Ou seja, pretendia-se com essa “entrada de dinheiro” criar as condições à boa realização da construção projetada; repare-se que foi alegado que os montantes entregues pela Autora a título de realização do aumento de capital deveriam ser utilizados somente para pagamento da remuneração devida à WISE.
Assim, a satisfação do interesse da Autora concretizar-se-ia com a construção do projeto imobiliário —— no âmbito da sua atividade de gestão de ativos imobiliários e administração de imóveis —— e não, como se entendeu na decisão recorrida, com o pagamento de determinadas quantias a título de dividendos da 2ª Ré.
A obrigação assumida num contrato (e cumprida, segundo se alega) de entrar no capital social de determinada sociedade não pode confundir-se com o exercício de qualquer direito social que, depois de cumprida a obrigação, pudesse assistir à Autora frente à sociedade de que passou a ser acionista.
Repare-se que a Ré outorga o contrato com a 1ª Ré e os aludidos direitos sociais só poderiam ser exercidos contra a 2ª Ré, da qual veio a tornar-se acionista.

É certo que a determinada altura da PI, a Autora alude a que «teria direito a receber da 2ª Ré R$ 1.294.000 conforme indicado no item “lucro”, + R$ 150.000 referente ao pagamento inicial dos projectos à W.».
Porém, este direito deriva do contrato firmado com a 1ª Ré, e não de uma qualquer deliberação social da 2ª Ré no tocante à distribuição de lucros.
O que nem poderia ser pois atenta a natureza aleatória e futura do lucro, à data da outorga do contrato não era possível saber-se qual a efetiva rentabilidade do negócio, o projeto não estava construído e nem a Autora era ainda acionista da 2ª Ré!
Não se trata, pois, do direito de quinhoar nos lucros.
A utilização do lucro esperado com a construção do projeto (e que, de “esperado” não passa, resulta claramente do anexo IV do contrato, a fls. 92, denominado “plano de negócios”) serviu apenas como referente de cálculo para a obrigação assumida pela 1ª Ré frente à Autora: esta viria a receber uma quantia pré-fixada entre elas, o que mais uma vez contraria a natureza do lucro e se mostra estipulada na cláusula 4ª do contrato (fls. 62), altura em que a construção do projeto não tinha sequer sido iniciada e não podia ter gerado lucros.
Não é de estranhar que a 1ª Ré assumisse obrigações “por conta” da 2ª Ré uma vez que era ela quase a sua única acionista (dona de “4.999 quotas com o valor nominal de R$ 1,00 cada”, tendo a 2ª Ré um “capital social de R$ 5.000,00” segundo consta do contrato, a fls. 59).
O que contrariaria as regras da experiência seria que um empresário se dispusesse a entregar tão avultadas quantias e a vincular-se a um projeto de tal envergadura sem se prevenir de alguma forma com o controle da situação, medida que só se conseguiria com a entrada no capital social da empresa que o ia realizar e construir.

Também quando se alega que, sendo a Autora já acionista da 2ª Ré, nunca lhe foram fornecidos quaisquer dados da gestão societária e do estado financeiro da empresa, nunca tendo sido chamada a qualquer assembleia geral ou assinado contas, tal é referido apenas para factualizar a alegação de ter sido violada a Cláusula 16ª da 1ª alteração contratual celebrada em 24 de Outubro de 2011 (artigos 60 e 61 da PI).
Essa alegação importará ao mérito da ação pois a partir do momento em que a Autora ficou acionista da 2ª Ré, empresa que iria concretizar o projeto imobiliário, poder-se-ia dizer que a Autora também contribuiu para a inviabilização do projeto, que a Autora imputa a culpa exclusiva das Rés.

O que se está a exercitar com a ação não é o direito aos lucros gerados pela 2ª Ré, nem a possibilidade/dever de se inteirar ou participar ativamente na sua vida social. Para tanto, teria apenas de acionar a 2ª Ré, definindo a sua posição de acionista e alegando quais as irregularidades cometidas que defraudaram os seus direitos societários.
Ao invés, exercita-se aqui um direito indemnizatório decorrente do incumprimento dum contrato por parte das Rés.

E não se diga, como alega a Ré contra-alegante, que o contrato aqui em causa consubstanciou um acordo parassocial, em conformidade com o art. 17º do Código das Sociedades Comerciais (CSC). [ ]
Desde logo porque, como do preceito resulta, os acordos parassociais respeitam apenas a quem já tem a qualidade de sócio, o que aqui não acontecia com a Autora, que apenas se obrigou a adquirir essa qualidade.
Mas, mesmo que estivéssemos perante um desses acordos, o art. 27º do CSC refere expressamente que eles apenas “têm efeitos entre os intervenientes”, o que sempre nos remeteria para o domínio da responsabilidade civil entre os contratantes e não para o âmbito dos direitos sociais, que pressupõe um litígio entre o sócio e a sociedade.
«Estão em causa contratos de natureza civil que — em termos muito genéricos — se caracterizam, simultaneamente, pela sua autonomia em relação ao contrato de sociedade e por elementos de conexão com a vida societária. De forma mais restrita — em correspondência com a noção adoptada naquele preceito legal — podem definir-se como sendo os contratos celebrados por sócios de uma sociedade nessa qualidade de sócios, através dos quais se regulam relações societárias.» [ ]
Concluindo, a causa de pedir reside na responsabilidade civil contratual.

E o mesmo resulta dos pedidos deduzidos e atrás enunciados no relatório.
A condenação das 1ª e 2ª Rés reporta-se sempre ao pagamento de montantes indemnizatórios, realidade bem diferente do pagamento da participação nos lucros gerados pela 2ª Ré ou qualquer outro direito societário (participar nas deliberações de sócios, obter informação sobre a vida da sociedade, anulação de deliberações sociais, de requerer inquérito judicial por falta de apresentação de contas e de deliberação sobre elas, etc.).
Com a condenação dos 3º a 5º Réus pretende-se a devolução das quantias que a Autora transferiu nos termos contratuais; subsidiariamente e para o caso de eles não as terem integrado no património da 2ª Ré. Neste caso, a causa de pedir reside no enriquecimento sem causa.

Consequentemente, a competência para conhecer da ação pertence aos Tribunais comuns e não aos Tribunais de comércio.



6. SUMARIANDO (art. 663º nº 7 do CPC)
a) Para se apurar da competência material do tribunal para o conhecimento da ação, apenas há que entrar em linha de conta com a causa de pedir e o pedido tal como configurados na petição inicial.
b) Se a Autora invoca que outorgou num contrato com a Ré com vista a desenvolver e implementar um projeto imobiliário, obrigando-se a entrar no capital social da Ré (obrigação que cumpriu), sendo que a Ré não cumpriu com as suas obrigações pelo que o pretendido projeto imobiliário se tornou inviável, pretendendo a Autora ser indemnizada em conformidade com o previsto no contrato, estamos perante uma ação de responsabilidade civil contratual, da competência dos Tribunais comuns e não perante o exercício de “direitos sociais”, da competência dos Tribunais de comércio.

III. DECISÃO
7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação.
Consequentemente, revoga-se a decisão recorrida e julga-se o tribunal recorrido o competente em razão da matéria.
Custas pela parte vencida a final.
Guimarães, 04.02.2016

___________________________________________
(Relatora, Isabel Silva)
1ª Adjunto, Heitor Gonçalves)
2ºAdjunto, Carlos Carvalho Guerra
[1]Proc. 8536/08.9TBVNG.P1, Ac. RP, de 19.02.2004, proferido no Proc. 0326765, e Ac. da RP de 18-06-2008, proferido no Proc. 0833654 (estes três últimos acessíveis em http://www.dgsi.pt.)
[2] Nesse sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.09.2009, proferido no âmbito do processo n.º 23/08.1TYLSB.L1-6, disponível em www.dgsi.pt
[3] A reconvenção está, ela própria, sujeita a regras de admissibilidade, de índole adjetiva e substantiva, também elas reportadas à causa de pedir e ao pedido da petição inicial: art. 266º do CPC.
[4] Vide neste sentido Ac. STJ, de 20/05/98, BMJ 477-389, Ac. RP., de 04-02-2010, proferido no [ ] Quanto às exceções perentórias suscitadas pelo Réu, se colidirem com a competência material do tribunal da ação, entramos no âmbito das questões prejudiciais e da extensão da competência, a resolver nos termos dos arts. 91º e 92º do CPC.
[5] Cf. acórdão do STJ, de 19.09.2002 (processo 02B2071), disponível em www.gde.mj.pt, sítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.
[6] In “Teoria Geral da Relação Jurídica”, vol. I, Coimbra, 1983, pág. 184, nota (1).
[7] Artigo “Breve Nota sobre os Direitos dos Sócios (das Sociedades de Responsabilidade Limitada) no Âmbito do Código das Sociedades Comerciais”, in Novas Perspectivas do Direito Comercial, Almedina, 1988, pág. 232-234.
[8] In “Direito de Voto dos Accionistas nas Assembleias Gerais das Sociedades Anónimas”, Rei dos Livros, 1987, pág. 31-32.